Snezhana, de 10 anos, fotografada por Diana Markosian
O nascimento de uma criança com deficiência visual representa para a família um
momento impactante e de difícil superação, pois a identificação com este filho
pode significar para os pais uma impossibilidade e o rompimento brusco dos
sonhos e desejos destinados a uma criança não falha instaura neles uma ferida
narcísica: "é um estranho no qual os pais não se enxergam" (Balestrin, 2001, p.
18).
O impacto causado pela ausência do globo ocular, a constatação médica da
privação ou restrição visual da criança, especialmente quando não acontece
nenhuma suspeita durante a gravidez, atinge emocionalmente o núcleo familiar de
tal forma que, muitas vezes, o melhor qualificativo para seu comportamento é
"congelado", paralisando qualquer escrita neste corpo e estremecendo o próprio
vínculo diádico.
Um conjunto de reações emocionais ou mecanismos de defesa peculiares da família
surgem então através de comportamentos conscientes ou não que se manifestam
como, segundo Carvalho (1998), uma busca imediata dos "prováveis culpados", fuga
da responsabilidade como pais, desequilíbrio emocional, apego a crenças, negação
da ciência e procura de soluções mágicas. O autor ainda refere que um constante
conflito entre o ideal, o real e o inesperado faz-se presente internamente na
unidade familiar e pode extrapolar deste grupo para o contexto social.
Trugillo (s.d.) arrola outros comportamentos usualmente encontrados nestas
situações, tais como a negação da importância do problema, rejeição da criança
pela dor e impotência dos pais, superproteção e projeção da própria culpa
sentida pelos pais em pessoas próximas ou no cônjuge. Quanto à superproteção,
esta autora nos indica que este comportamento advém muito mais da figura materna
a qual não permite a vivência do sofrimento e de um mínimo de frustração pelo
filho, mesmo que para isto ela tenha de anular-se e encontrar dificuldades no
seu relacionamento conjugal e familiar.
Assim, os possíveis desejos, expectativas e fantasias construídos pela rede
social em torno da criança podem ficar fragilizados e, até mesmo, necessitarem
de uma súbita reorganização a partir do ato obstétrico quando se concretiza o
surgimento desta criança porque a criança cega ou com baixa-visão é uma
realidade presente e ativa. Como qualquer outra criança, ela precisa de cuidados
e afeto inclusive para entender este novo meio que, sem imagens, a envolve com
sons, toques, palavras, reações, horários, roupas e alimentos.
Deste modo, esta criança precisa receber ajuda de pessoas que se disponibilizem,
desde o seu nascimento, a despertar nela o desejo de conhecer e aprender,
explorar o mundo e elaborar de forma própria as informações: auxílio este que
pode em muito ser efetivado a partir de conversas mais freqüentes com a criança
com deficiência visual do que com aquela que enxerga (Gil, 2000).
A concessão de cuidados e estímulos significativos provindos do outro social,
entretanto, está em nosso entendimento diretamente relacionada a própria
capacidade e habilidade deste outro em proceder à leitura da realidade desta
criança e, dentro de estratégias sustentadas no bom-senso e no esclarecimento,
significar e ressignificar o mundo para ela e ela para este mundo, do qual ela
própria faz parte direta ou indiretamente.
Neste sentido, convém relembrarmos Santin e Simmons (2000, p.4) em sua
referência de que "uma conceitualização de cegueira como diferença e não como
déficit é fundamental para se compreender como uma criança que nasce totalmente
cega conhece o mundo, obtem informações sobre ele, e constrói a sua realidade".
Estas tarefas não são simples e fáceis porque, em muitas ocasiões, nesta criança
é vista a deficiência visual e o impedimento antes do sujeito e da
possibilidade, sendo freqüentes os casos em que, temporalmente, ela ainda
permanece ancorada na gravidez materna ou em algum lugar mítico ou ilimitado
existente no sonho do outro e, pior ainda, muitas vezes contracenando a estória
de um outro que não ela: o que a remete à condição de criança-fantasma.
Para além da deficiência visual, ou junto a ela, componentes culturalmente
importantes para determinados grupos, como o gênero, a cor, o planejamento
familiar e a ordem filial podem ser importantes construtos agregados à
elaboração do desejo do outro quanto à vida ou à morte da criança com
deficiência visual, acentuando sua diferença e até mesmo a inviabilizando em sua
edificação como sujeito.
Assim, a esperança da chegada de um menino, proeminente cirurgião do futuro,
poderá ser substituída pela decepção ou pela rejeição da presença de uma menina
que até seria "engraçadinha" se tivesse os globos oculares ou enxergasse alguma
coisa. Estes comportamentos parentais podem, em alguma medida, determinar ou
conduzir a forma de relacionamento com a criança e, conseqüentemente, com o seu
próprio desenvolvimento: forma a qual já está primeiramente comprometida no
pensamento do outro pela questão do seu sexo, mas que talvez seja intensificada
pela cegueira ou, então, encontre nesta deficiência sensorial uma desculpa
conveniente para a explicação da conduta do pai, da mãe ou de outro familiar.
Por sua vez, a intensidade do desejo circulante será uma condição significativa
e prioritária para o desenvolvimento construtivo mútuo das vinculações e do
próprio desenvolvimento infantil, uma vez que a conquista de oportunidades e
experiências não se constituem para a criança congenitamente cega da mesma forma
e pela mesma rota que para a criança normovisual ou com baixa visão devido sua
impossibilidade de interação e exploração visual do ambiente.
Deste modo, a generalização no ritmo e na qualidade evolutiva da criança cega
torna-se não apenas um comportamento irresponsável e imaturo, como também uma
atitude perigosa para o estabelecimento de padrões e modelos pré-concebidos uma
vez que o processo de individuação deve ser sempre levado em consideração, assim
como a própria diversidade de graus e etiologias da cegueira: fatores
suficientes para uma diferenciação mínima das crianças cegas entre si.
Nesta direção, Albuquerque e Castro (1961) escreve com propriedade que tais
generalizações podem condenar a criança cega injustamente a condições passíveis
de permanência por toda sua vida e, também, alerta sobre a freqüente atribuição
de insuficiência psíquica a esta criança quando o que realmente pode estar
ocorrendo são defeitos em sua educação.
Da mesma forma, esta autora refere a importância de encontrarmos para cada caso
as variáveis adequadas porque assim estaremos contribuindo para a redução em
grande parte das deficiências da criança com deficiência visual e,
conseqüentemente, para o não-sentimento de diminuição nas suas relações com os
outros e nos seus auto-conceitos.
O enlace entre a criança e a mãe (tutora ou figura de apego) não irá ocorrer por
via da devolução do olhar fisiológico ou do sorriso (Stone, s.d.; Ochaita,
1993), mas certamente entre estes dois atores da cena simbiótica sinais e
códigos peculiares e individualizados serão prudentemente estabelecidos para que
o diálogo seja muito mais do que um instrumento de conversação afetiva ou tônica
e atinja, também, sua função de intercâmbio informativo.
A apresentação e a interpretação do mundo, sua estrutura e o seu funcionamento,
são progressivamente feitos à criança com deficiência visual a partir dos
elementos e das palavras valorizadas pelo outro. Por isto, seu conhecimento é,
mais do que para a criança normovisual, estruturado e orientado com base naquilo
que é significativo e importante para seu outro social e na forma como este
conhecimento lhe é transmitido.
Contudo, a transmissão destes valores acontece, na maioria dos casos,
inexplicavelmente dentro de um ambiente dissociado de alegria, luz, cor, forma,
movimento e disciplina mesmo quando o período de luto e depressão familiar já
tenha sido devidamente resolvido e, por vezes, em ambientes onde os
profissionais dizem-se plenos conhecedores da problemática da criança e aptos a
sua resolução.
Estas condutas adquirem tamanho grau de importância e influência na percepção e
na construção desenvolvimental da criança e do conceito decegueira ou
baixa-visão (inclusos em deficiência visual) que podem ser interpretadas, em
nossa opinião, sob dois enfoques reciprocamente prejudiciais. Por um lado,
fortalece e prolonga o estado de dependência da criança cega ou com baixa-visão
em relação ao outro. Por outro lado, a omissão ou vigilância excessivas do
outro, devido possíveis sentimentos de superproteção ou inutilidade, podem
prender a criança em um mundo irreal para o qual nem mesmo ela estará
instrumentalizada a viver porque sempre estará presente a dialética visual.
O som, o toque, o cheiro convertem-se em estímulos para a criança quando trazem
em si informações significativas que a ela possibilitam o estabelecimento de
investigações e correlações: processos nela desencadeados pela curiosidade
presente na criança-cientista.
Esta curiosidade, entretanto, precisa ser desejada e incentivada pelo outro
(Gil, 2000). Aliás, consideramos que esta criança presente precisa ter em si
marcas de um querer simbólico inscritas nela a partir do vislumbramento do seu
futuro pelo outro.
O brinquedo colorido, o gesto motor do amigo, a imagem de uma pessoa ou animal e
a proximidade da sua escola não constituem, contudo, especialmente para a
criança cega, estímulos e representam despropósitos na atitude de algumas
pessoas que assim os consideram como importantes para, em muitas oportunidades,
desencadear espontaneamente na criança cega um movimento estático ou dinâmico.
Esta atitude do outro, por sua vez, intensifica em algumas destas crianças a
dificuldade de movimentos auto-iniciados, conforme apontado por Fraiberg (1977).
A necessidade de potencialização dos seus sentidos remanescentes, a partir do
seu aproveitamento pelo outro como vias de comunicação, passa a ser uma condição
sine qua non para a estruturação de processos interativos: ato que toma forma
desde a aprendizagem do outro quanto à organização comunicativa sem a
retroalimentação visual e com a estruturação própria da criança realizada sem as
informações sintetizadas por este canal perceptivo.
A tendência à permissividade que muitas pessoas mantêm em relação ao
comportamento e atitudes da criança com deficiência visual são tão inexplicáveis
quanto sua inaptidão, talvez inconsciente, para informar esta criança sobre a
existência, o cumprimento e a negociação de regras e rituais. Isto certamente
irá produzir nela a organização distorcida de uma realidade na qual poderá
desenvolver a convicção de que normas, disciplinas e contratos são aplicáveis
somente aos outros porque nela estas demandas e exigências não foram inscritas.
Igualmente, a criança cega ou com baixa-visão pode apresentar inabilidades ou
defasagens geradas pela "flexibilidade" do outro quanto ao ensino e solicitação
de hábitos, posturas e atividades motoras e psicossociais.
Com estas atitudes, no entanto, o outro estará somente sonegando desta criança
instrumentos necessários para sua construção de uma realidade onde ela pode ser
um elemento ativo e, pior ainda, este outro estará oferecendo a ela motivos e
estímulos para sua estruturação como criança-ditadora: a qual poderá talvez não
ser aceita ou suportada por aqueles que não fazem parte do seu círculo familiar.
Tratamentos diferenciados são comumentemente dispensados pelo outro à criança
com deficiência visual em detrimento do seu irmão ou colega, desencadeando
nainteração frátria ou entre os companheiros um relacionamento muitas vezes
marcado pela hostilidade, constrangimento ou pesar. Estes sentimentos, além de
contraproducentes para o fortalecimento sadio da rede social, possibilita à
criança cega ou com baixa-visão permanecer centrada em si e, assim,
constituir-se como uma criança-estrela.
Para um filho ou companheiro normovisual é exigida, por exemplo, a organização
do seu quarto, dos seus brinquedos e do seu material escolar, enquanto que para
uma criança com deficiência visual, muitas vezes, esta exigência pode ser
transformada em pedido ou simplesmente ser abolida, caracterizando, por uma
leitura subliminar, descrença nas suas competências frente à cegueira ou uma
atitude de compensação adotada parentalmente.
Assim, rótulos e conceitos são demarcados e a criança com deficiência visual vai
recebendo cada vez mais características originadas muito mais na incompetência
do outro social do que nas suas dificuldades pela invisualidade.
Desta forma, situações cotidianas da vida infantil, que naturalmente servem à
criança normovisual como espaço para experimentação e aprendizagem, podem
constituir para aquela invisual momentos de restrição evolutiva e materialização
do descrédito do outro social nas suas potencialidades e possibilidades. Uma
ilustração bastante significativa deste comportamento é trazida por Veiga (1946,
p. 53), abaixo transcrita:
-
"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. -
Coitadinho, deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na
boca, descascam- lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. - Coitadinho!
Já basta o que ele sofre!... E a criança não sofre nada com a falta da vista ...
Sofrerá, sim, mais tarde, a conseqüência dessa educação mal dirigida."
Costa (1965) refere com uma linguagem bastante clara e precisa que a distinção
essencial da criança cega, e acrescentamos da criança com baixa-visão, está,
mais do que para aquela normovisual, no fato dela ter a necessidade de ajuda na
transposição do caminho entre o egocentrismo característico dos dois anos de
idade e a sociabilização dos sete ou dos doze anos. Esta autora acrescenta que
tal conduta para a criança cega é vital, enquanto que para a criança visual pode
ser importante.
A falha nesta ajuda e um centrismo exacerbado correspondem certamente ao
surgimento de traços considerados autísticos, devido a presença de atitudes
aparentemente semelhantes as daquela patologia. Movimentos estereotipados
facilmente se instalam nestas situações, pois a criança encontra dificuldades
para diversificar sua atividade pela falta de modelos e instrumentalizações
espontâneas (Buell, 1974; Fonseca, 1980). Contudo, é importante destacar que a
presença de estereotipias no comportamento da criança cega ou com baixa-visão
não constitui característica da deficiência visual e, muito menos, são
encontradas exclusivamente na presença deste impedimento visual porque, conforme
Cantavella et al. (1992), estes movimentos ou expressões repetitivas podem fazer
parte tanto da fase evolutiva em que a criança se encontra quanto pode ser
resultado de umaautossensorialidade, produto da carência de estímulos.
O prolongamento da fase egocêntrica na criança cega, incluindo aquela com
baixa-visão, poderá resultar em sérios comprometimentos inclusive para sua
socialização no ambiente familiar e comunitário, além de proporcionar a muitas
pessoas a possibilidade de considerações errôneas sobre a presença do já
referido autismo ou de qualquer outra patologia associada à cegueira, sem que
esta verdadeiramente esteja instalada.
Esta auto-centração, resultado provávelmente de uma não-individuação e do
não-entendimento da dissociação dos pronomes eu-tu na própria linguagem apontada
por Fraiberg (1977), repercute necessariamente na organização e na sua
participação em jogos simbólicos ou não.
Delgado Cobo, Gutierrez Rodríguez e Toro Bueno (1994) indicam que a partir dos
dois anos de idade a criança cega começa a jogar em companhia dos outros, embora
este jogo não esteja organizado na co-participação tal como acontece com as
crianças normovisuais nesta etapa evolutiva do jogo. Segundo estes autores, um
brincar mais coordenado e co-participativo é estruturado pela criança cega a
partir dos 5 anos de idade, enquanto o mesmo ocorre com a criança normovisual
desde os 4 anos. Porém, estabelecemos nestas indicações questionamentos sobre a
quantidade e a qualidade de informações e estímulos oferecidos e compartilhados
com a criança com deficiência visual, de tal forma que eles sejam suficientes
para motivar e desencadear uma situação de jogo.
Como característica do comportamento infantil associado à cegueira, temos
encontrado também afirmativas generalizantes de uma conduta solitária em sua
preferência para os momentos de brincadeiras e, inclusive, uma forte tendência
desta criança para o manuseio de brinquedos e a ingestão de alimentos de
determinadas texturas e temperaturas. Neste aspecto, estamos novamente frente à
qualidade de atuação do outro no sentido de oferecer à criança cega congênita
informações e recursos não apenas para sua saída do egocentrismo, mas também
para o próprio entendimento e organização da troca de objetos, funções e papéis
que resultam em continuidade no jogo ou em sua vida diária. Neste ponto, faz-se
mister o questionamento: de que modo será possível a ela estruturar uma
brincadeira simbólica como "mamãe" ou como "professora" e diversificar esta
representação para vivências em situações fora do seu cotidiano e da sua
realidade, sendo talvez uma vendedora ou manequim, se a ela não for
disponibilizado o material informativo necessário para a própria construção do
jogo no que diz respeito ao seu conteúdo e comportamento?
Uma linguagem repetitiva e vocabulário reduzido pobre em significados são
normalmente apontados como presença predominante entre as crianças cegas (Hill,
1995), especialmente a partir da idade correspondente à pré-escola e,
tendencialmente, algumas pessoas tomam tal premissa como característica da
cegueira sem uma análise factual da mesma. Compartilhamos com esta autora sua
justificativa para o surgimento de semelhante reducionismo em muitas crianças
cegas: a precariedade de suas vivências e estímulos ambientais. No entanto,
consideramos que este comportamento psitacista merece uma discussão ampliada na
própria gênesedo instrumento social traduzido por linguagem confrontada com as
questões subjetivas do outro pertencente ao mundo desta criança.
Quando Vygotsky (1995) indica o surgimento de diferenciações nas funções social
e egocêntrica da fala (as quais possibilitam o desenvolvimento da fala interior)
e que as estruturas da fala tornam-se estruturas básicas do pensamento quando
dominadas pela criança, acreditamos que o cerne do entrave lingüístico da
criança cega encontra-se também na dificuldade que o outro tem em apresentar,
nomear e interpretar os elementos do mundo a ela, sendo ela mesma incluída neste
mundo, dentro de um tempo e situação suficientes e adequadas para sua
compreensão e domínio da palavra (como propriedade e como símbolo do objeto).
Por outro lado, se partirmos do pressuposto de que um objeto novo apresenta
situações problemáticas à criança, demandando dela formas de solução e ampliação
do seu vocabulário, podemos facilmente chegar ao ponto de interrogação sobre a
diversificação de objetos, situações e ambientes nem sempre experienciados pela
criança cega ou com baixa-visão diante da inabilidade do outro na administração
das suas próprias dificuldades subjetivas e do comprometimento visual da
criança.
Ainda em relação à linguagem, J. Albuquerque e Castro, (1963, p.5) comenta que
as possíveis dificuldades de emissão vocal, gagueira, pobreza na modulação da
voz, manutenção do padrão de fala infantil nas demais etapas evolutivas,
transposição e falta de fonemas ou a imitação viciosa da fala de outras pessoas
que alguns portadores de cegueira possam apresentar parecem residir em certos
fenômenos de natureza psicológica que se prendem com o desenvolvimento da
personalidade. Em virtude da sua situação em relação aos outros e do ambiente
que estes geralmente lhe criam, deixando-a em constante isolamento, a criança
cega afunda-se em si mesma, vive mais da imaginação que da realidade, torna-se
egocêntrica, e ou não tem consciência dos seus defeitos ou, se a tem,
desculpa-os facilmente por serem seus.
A criança, convivendo ou não com a deficiência visual, terá que se apropriar do
legado cultural que as gerações passadas puseram ao seu alcance (Costa, 1965).
Porém, questionamos como esta criança poderá proceder tal apropriação sem que
meios e informações sejam adequadamente disponibilizados pelo outro a sua
condição?
A criança com deficiência visual, quando não apresenta outros comprometimentos
associados, possui os mesmos mecanismos psicofisiológicos e orgânicos de outras
crianças. Isto significa que ela traz seu aparato corporal instrumentalizado
para percorrer as mesmas fases evolutivas infantis, provavelmente em algumas
circunstâncias por rotas alternativas, e não que ela já venha apetrechada com as
matrizes informativas do seu mundo circundante porque este pensamento seria, no
mínimo, o reforço do conceito folclórico de alguns quanto ao poder adivinhatório
da pessoa cega, de uma gratificação divina ou, então, o retorno às antigas
teorias do surgimento e desenvolvimento do homem.
Entretanto, a disponibilidade do outro anteriormente citada não se limita às
informações teóricas, verbais e expositivas de uma determinada ação ou objeto,
mas abrange, sempre que possível e necessário, a permissão e oportunidade para a
vivência pela exploração, movimento e experiência desta informação pela criança
com deficiência visual.
Desta forma, chegar ao ponto de indicar que uma criança cega irá utilizar de
maneira eficaz a colher somente aos três anos de idade e o garfo aos quatro
anos, como fazem Delgado Cobo; Gutierrez Rodríguez; Toro Bueno (1994),
representa em nossa opinião informar ao outro até onde chega sua incompetência
ou inabilidade em oferecer a esta criança o ensino, as informações e as
experiências necessárias para o seu desenvolvimento e sua adaptação ao cotidiano
do mundo.
Claro está que a carência informativa, sintetizada e abrangente, obtida através
do canal perceptivo da visão pode trazer alguma restrição ou lentidão
desenvolvimental para a criança, uma vez que ajustes sensoriais e coordenativos
em termos de função precisam ser realizados. Contudo, o que vimos observando ao
longo dos anos, no que diz respeito a um possível atraso do seu desenvolvimento,
não está unicamente relacionado ao tempo necessário para a estruturação, por
exemplo, da coordenação ouvido-mão da criança cega em lugar da coordenação
olho-mão das crianças normovisuais mencionada por Bruno (1993) e Lucerga
Revuelta (s.d.).
A maneira do estabelecimento de comportamentos interativos, a qualidade das
facilitações e estímulos oferecidos e o tempo suficiente para um adequado
processo de assimilação-acomodação informativo na criança cega congênita
disponibilizado pelo outro, decorrentes de uma leitura nem sempre apropriada das
suas reais necessidades, parecem ser muito mais intervenientes e constituírem
fatores de atraso no seu desenvolvimento do que aqueles específicos da sua
deficiência visual.
Da mesma forma, a construção deste sujeito parece estar constantemente ameaçada
pela atitude do outro social no que diz respeito à escolha e discussão,
consciente ou não, de temas e informações com a criança invisual, uma vez que em
sua grande maioria com ela não são abordados assuntos básicos relacionados, por
exemplo, à cegueira/visualidade, cidadania e sexualidade (diferenciação
masculino-feminino, sensualidade e questões psicofisiológicas) como se esta
criança fosse um ser amorfo, assexuado e fragilizado.
Uma forte tendência para a espera pela solicitação de informações por parte da
criança com deficiência visual é comumentemente encontrada entre os adultos
(familiares e profissionais) que a circundam, talvez por desconhecimento,
inabilidade ou ignorância. Porém, Pilar Albuquerque e Castro (1963) salienta a
conveniência de não ser aguardado que somente ela tome a iniciativa da pergunta,
mas que o adulto crie e estimule a oportunidade para a informação e instrução
mesmo quando ela pareça não estar interessada.
Este comportamento pode, desavisadamente, assemelhar-se à antecipação do
suprimento de necessidades informativas da criança cega. No entanto, entendemos
que muitas vezes a curiosidade, a motivação e o próprioconteúdo para a
elaboração de uma pergunta (ou mesmo a dúvida) podem não circular pelo
pensamento da criança diante da sua incapacidade paravisualmente tomar contato,
recolher e transformar em questão aquilo que somente assim poderá ser feito com
o uso da visão, tal como acontece com acriança normovisual. Dentro deste
raciocínio, perguntamo-nos sobre a gênese e validade do comportamento do outro
que permite e torna-se conivente no processo deinstalação de uma insuficiência
informativa da criança cega, pela espera de perguntas sobre fatos que ela, por
sua condição visual, não sabe da existência. Esta conduta irrefletida nos parece
ao mesmo tempo incoerente e perversa, pois à criança cega é simultaneamente
negada e exigida uma diversificação cognitiva e cultural, uma interação
psicossocial e um conhecimento fundamental que a instrumentalize para o
entendimento do mundo que a envolve a partir de elucidações de questões que não
lhe são oferecidas ou oportunizadas por aqueles que disto teriam obrigação.
O quadro desenvolvimental fica ainda muito mais prejudicado quando a esta
criança, dentro de um tempo suficiente para que o surgimento e a instalação de
novos atrasos cognitivo-motores e psicossociais sejam evitados, deslocamentos e
explorações livres no e pelo ambiente são negados ou não oportunizados pelo
outro, impossibilitando o acesso ao ensino e ao uso de algum instrumento que
sirva de extensão do seu membro superior para a antecipação de objetos e
obstáculos durante os seus movimentos.
A partir destes posicionamentos, passamos a entender que o comportamento do
outro social em relação à deficiência visual assume para a construção da criança
como sujeito um papel fundamental, uma vez que deste outro ela irá nascer e se
desenvolver psicomotora, social e culturalmente.
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VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Sonia B. Hoffmann é Licenciada em Letras
(PUCRS); Professora especialista em deficiência visual (FAERS/PUCRS);
Especialista em Educação Física Adaptada (UFRGS/RS); Fisioterapeuta (IPA/RS) -
CREFITO: 6159/F; Mestre em Ciências do Movimento (UFRGS/BR); PhD em Ciências do
Desporto e Educação Física (UP/PT)
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A Construção da Criança com Deficiência Visual como Sujeito Social
autora:
Professora Doutora Sonia B. Hoffmann
19.Abr.2017
publicado
por
MJA
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