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 Sobre a Deficiência Visual

A Construção da Criança com Deficiência Visual como Sujeito Social

Sonia B. Hoffmann

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Snezhana, de 10 anos, fotografada por Diana Markosian

 

O nascimento de uma criança com deficiência visual representa para a família um momento impactante e de difícil superação, pois a identificação com este filho pode significar para os pais uma impossibilidade e o rompimento brusco dos sonhos e desejos destinados a uma criança não falha instaura neles uma ferida narcísica: "é um estranho no qual os pais não se enxergam" (Balestrin, 2001, p. 18).

O impacto causado pela ausência do globo ocular, a constatação médica da privação ou restrição visual da criança, especialmente quando não acontece nenhuma suspeita durante a gravidez, atinge emocionalmente o núcleo familiar de tal forma que, muitas vezes, o melhor qualificativo para seu comportamento é "congelado", paralisando qualquer escrita neste corpo e estremecendo o próprio vínculo diádico.

Um conjunto de reações emocionais ou mecanismos de defesa peculiares da família surgem então através de comportamentos conscientes ou não que se manifestam como, segundo Carvalho (1998), uma busca imediata dos "prováveis culpados", fuga da responsabilidade como pais, desequilíbrio emocional, apego a crenças, negação da ciência e procura de soluções mágicas. O autor ainda refere que um constante conflito entre o ideal, o real e o inesperado faz-se presente internamente na unidade familiar e pode extrapolar deste grupo para o contexto social.

Trugillo (s.d.) arrola outros comportamentos usualmente encontrados nestas situações, tais como a negação da importância do problema, rejeição da criança pela dor e impotência dos pais, superproteção e projeção da própria culpa sentida pelos pais em pessoas próximas ou no cônjuge. Quanto à superproteção, esta autora nos indica que este comportamento advém muito mais da figura materna a qual não permite a vivência do sofrimento e de um mínimo de frustração pelo filho, mesmo que para isto ela tenha de anular-se e encontrar dificuldades no seu relacionamento conjugal e familiar.

Assim, os possíveis desejos, expectativas e fantasias construídos pela rede social em torno da criança podem ficar fragilizados e, até mesmo, necessitarem de uma súbita reorganização a partir do ato obstétrico quando se concretiza o surgimento desta criança porque a criança cega ou com baixa-visão é uma realidade presente e ativa. Como qualquer outra criança, ela precisa de cuidados e afeto inclusive para entender este novo meio que, sem imagens, a envolve com sons, toques, palavras, reações, horários, roupas e alimentos.

Deste modo, esta criança precisa receber ajuda de pessoas que se disponibilizem, desde o seu nascimento, a despertar nela o desejo de conhecer e aprender, explorar o mundo e elaborar de forma própria as informações: auxílio este que pode em muito ser efetivado a partir de conversas mais freqüentes com a criança com deficiência visual do que com aquela que enxerga (Gil, 2000).

A concessão de cuidados e estímulos significativos provindos do outro social, entretanto, está em nosso entendimento diretamente relacionada a própria capacidade e habilidade deste outro em proceder à leitura da realidade desta criança e, dentro de estratégias sustentadas no bom-senso e no esclarecimento, significar e ressignificar o mundo para ela e ela para este mundo, do qual ela própria faz parte direta ou indiretamente.

Neste sentido, convém relembrarmos Santin e Simmons (2000, p.4) em sua referência de que "uma conceitualização de cegueira como diferença e não como déficit é fundamental para se compreender como uma criança que nasce totalmente cega conhece o mundo, obtem informações sobre ele, e constrói a sua realidade".

Estas tarefas não são simples e fáceis porque, em muitas ocasiões, nesta criança é vista a deficiência visual e o impedimento antes do sujeito e da possibilidade, sendo freqüentes os casos em que, temporalmente, ela ainda permanece ancorada na gravidez materna ou em algum lugar mítico ou ilimitado existente no sonho do outro e, pior ainda, muitas vezes contracenando a estória de um outro que não ela: o que a remete à condição de criança-fantasma.

Para além da deficiência visual, ou junto a ela, componentes culturalmente importantes para determinados grupos, como o gênero, a cor, o planejamento familiar e a ordem filial podem ser importantes construtos agregados à elaboração do desejo do outro quanto à vida ou à morte da criança com deficiência visual, acentuando sua diferença e até mesmo a inviabilizando em sua edificação como sujeito.

Assim, a esperança da chegada de um menino, proeminente cirurgião do futuro, poderá ser substituída pela decepção ou pela rejeição da presença de uma menina que até seria "engraçadinha" se tivesse os globos oculares ou enxergasse alguma coisa. Estes comportamentos parentais podem, em alguma medida, determinar ou conduzir a forma de relacionamento com a criança e, conseqüentemente, com o seu próprio desenvolvimento: forma a qual já está primeiramente comprometida no pensamento do outro pela questão do seu sexo, mas que talvez seja intensificada pela cegueira ou, então, encontre nesta deficiência sensorial uma desculpa conveniente para a explicação da conduta do pai, da mãe ou de outro familiar.

Por sua vez, a intensidade do desejo circulante será uma condição significativa e prioritária para o desenvolvimento construtivo mútuo das vinculações e do próprio desenvolvimento infantil, uma vez que a conquista de oportunidades e experiências não se constituem para a criança congenitamente cega da mesma forma e pela mesma rota que para a criança normovisual ou com baixa visão devido sua impossibilidade de interação e exploração visual do ambiente.

Deste modo, a generalização no ritmo e na qualidade evolutiva da criança cega torna-se não apenas um comportamento irresponsável e imaturo, como também uma atitude perigosa para o estabelecimento de padrões e modelos pré-concebidos uma vez que o processo de individuação deve ser sempre levado em consideração, assim como a própria diversidade de graus e etiologias da cegueira: fatores suficientes para uma diferenciação mínima das crianças cegas entre si.

Nesta direção, Albuquerque e Castro (1961) escreve com propriedade que tais generalizações podem condenar a criança cega injustamente a condições passíveis de permanência por toda sua vida e, também, alerta sobre a freqüente atribuição de insuficiência psíquica a esta criança quando o que realmente pode estar ocorrendo são defeitos em sua educação.

Da mesma forma, esta autora refere a importância de encontrarmos para cada caso as variáveis adequadas porque assim estaremos contribuindo para a redução em grande parte das deficiências da criança com deficiência visual e, conseqüentemente, para o não-sentimento de diminuição nas suas relações com os outros e nos seus auto-conceitos.

O enlace entre a criança e a mãe (tutora ou figura de apego) não irá ocorrer por via da devolução do olhar fisiológico ou do sorriso (Stone, s.d.; Ochaita, 1993), mas certamente entre estes dois atores da cena simbiótica sinais e códigos peculiares e individualizados serão prudentemente estabelecidos para que o diálogo seja muito mais do que um instrumento de conversação afetiva ou tônica e atinja, também, sua função de intercâmbio informativo.

A apresentação e a interpretação do mundo, sua estrutura e o seu funcionamento, são progressivamente feitos à criança com deficiência visual a partir dos elementos e das palavras valorizadas pelo outro. Por isto, seu conhecimento é, mais do que para a criança normovisual, estruturado e orientado com base naquilo que é significativo e importante para seu outro social e na forma como este conhecimento lhe é transmitido.

Contudo, a transmissão destes valores acontece, na maioria dos casos, inexplicavelmente dentro de um ambiente dissociado de alegria, luz, cor, forma, movimento e disciplina mesmo quando o período de luto e depressão familiar já tenha sido devidamente resolvido e, por vezes, em ambientes onde os profissionais dizem-se plenos conhecedores da problemática da criança e aptos a sua resolução.

Estas condutas adquirem tamanho grau de importância e influência na percepção e na construção desenvolvimental da criança e do conceito decegueira ou baixa-visão (inclusos em deficiência visual) que podem ser interpretadas, em nossa opinião, sob dois enfoques reciprocamente prejudiciais. Por um lado, fortalece e prolonga o estado de dependência da criança cega ou com baixa-visão em relação ao outro. Por outro lado, a omissão ou vigilância excessivas do outro, devido possíveis sentimentos de superproteção ou inutilidade, podem prender a criança em um mundo irreal para o qual nem mesmo ela estará instrumentalizada a viver porque sempre estará presente a dialética visual.

O som, o toque, o cheiro convertem-se em estímulos para a criança quando trazem em si informações significativas que a ela possibilitam o estabelecimento de investigações e correlações: processos nela desencadeados pela curiosidade presente na criança-cientista.

Esta curiosidade, entretanto, precisa ser desejada e incentivada pelo outro (Gil, 2000). Aliás, consideramos que esta criança presente precisa ter em si marcas de um querer simbólico inscritas nela a partir do vislumbramento do seu futuro pelo outro.

O brinquedo colorido, o gesto motor do amigo, a imagem de uma pessoa ou animal e a proximidade da sua escola não constituem, contudo, especialmente para a criança cega, estímulos e representam despropósitos na atitude de algumas pessoas que assim os consideram como importantes para, em muitas oportunidades, desencadear espontaneamente na criança cega um movimento estático ou dinâmico. Esta atitude do outro, por sua vez, intensifica em algumas destas crianças a dificuldade de movimentos auto-iniciados, conforme apontado por Fraiberg (1977).

A necessidade de potencialização dos seus sentidos remanescentes, a partir do seu aproveitamento pelo outro como vias de comunicação, passa a ser uma condição sine qua non para a estruturação de processos interativos: ato que toma forma desde a aprendizagem do outro quanto à organização comunicativa sem a retroalimentação visual e com a estruturação própria da criança realizada sem as informações sintetizadas por este canal perceptivo.

A tendência à permissividade que muitas pessoas mantêm em relação ao comportamento e atitudes da criança com deficiência visual são tão inexplicáveis quanto sua inaptidão, talvez inconsciente, para informar esta criança sobre a existência, o cumprimento e a negociação de regras e rituais. Isto certamente irá produzir nela a organização distorcida de uma realidade na qual poderá desenvolver a convicção de que normas, disciplinas e contratos são aplicáveis somente aos outros porque nela estas demandas e exigências não foram inscritas.

Igualmente, a criança cega ou com baixa-visão pode apresentar inabilidades ou defasagens geradas pela "flexibilidade" do outro quanto ao ensino e solicitação de hábitos, posturas e atividades motoras e psicossociais.

Com estas atitudes, no entanto, o outro estará somente sonegando desta criança instrumentos necessários para sua construção de uma realidade onde ela pode ser um elemento ativo e, pior ainda, este outro estará oferecendo a ela motivos e estímulos para sua estruturação como criança-ditadora: a qual poderá talvez não ser aceita ou suportada por aqueles que não fazem parte do seu círculo familiar.

Tratamentos diferenciados são comumentemente dispensados pelo outro à criança com deficiência visual em detrimento do seu irmão ou colega, desencadeando nainteração frátria ou entre os companheiros um relacionamento muitas vezes marcado pela hostilidade, constrangimento ou pesar. Estes sentimentos, além de contraproducentes para o fortalecimento sadio da rede social, possibilita à criança cega ou com baixa-visão permanecer centrada em si e, assim, constituir-se como uma criança-estrela.

Para um filho ou companheiro normovisual é exigida, por exemplo, a organização do seu quarto, dos seus brinquedos e do seu material escolar, enquanto que para uma criança com deficiência visual, muitas vezes, esta exigência pode ser transformada em pedido ou simplesmente ser abolida, caracterizando, por uma leitura subliminar, descrença nas suas competências frente à cegueira ou uma atitude de compensação adotada parentalmente.

Assim, rótulos e conceitos são demarcados e a criança com deficiência visual vai recebendo cada vez mais características originadas muito mais na incompetência do outro social do que nas suas dificuldades pela invisualidade.

Desta forma, situações cotidianas da vida infantil, que naturalmente servem à criança normovisual como espaço para experimentação e aprendizagem, podem constituir para aquela invisual momentos de restrição evolutiva e materialização do descrédito do outro social nas suas potencialidades e possibilidades. Uma ilustração bastante significativa deste comportamento é trazida por Veiga (1946, p. 53), abaixo transcrita:

"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. - Coitadinho, deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca, descascam- lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. - Coitadinho! Já basta o que ele sofre!... E a criança não sofre nada com a falta da vista ... Sofrerá, sim, mais tarde, a conseqüência dessa educação mal dirigida."

Costa (1965) refere com uma linguagem bastante clara e precisa que a distinção essencial da criança cega, e acrescentamos da criança com baixa-visão, está, mais do que para aquela normovisual, no fato dela ter a necessidade de ajuda na transposição do caminho entre o egocentrismo característico dos dois anos de idade e a sociabilização dos sete ou dos doze anos. Esta autora acrescenta que tal conduta para a criança cega é vital, enquanto que para a criança visual pode ser importante.

A falha nesta ajuda e um centrismo exacerbado correspondem certamente ao surgimento de traços considerados autísticos, devido a presença de atitudes aparentemente semelhantes as daquela patologia. Movimentos estereotipados facilmente se instalam nestas situações, pois a criança encontra dificuldades para diversificar sua atividade pela falta de modelos e instrumentalizações espontâneas (Buell, 1974; Fonseca, 1980). Contudo, é importante destacar que a presença de estereotipias no comportamento da criança cega ou com baixa-visão não constitui característica da deficiência visual e, muito menos, são encontradas exclusivamente na presença deste impedimento visual porque, conforme Cantavella et al. (1992), estes movimentos ou expressões repetitivas podem fazer parte tanto da fase evolutiva em que a criança se encontra quanto pode ser resultado de umaautossensorialidade, produto da carência de estímulos.

O prolongamento da fase egocêntrica na criança cega, incluindo aquela com baixa-visão, poderá resultar em sérios comprometimentos inclusive para sua socialização no ambiente familiar e comunitário, além de proporcionar a muitas pessoas a possibilidade de considerações errôneas sobre a presença do já referido autismo ou de qualquer outra patologia associada à cegueira, sem que esta verdadeiramente esteja instalada.

Esta auto-centração, resultado provávelmente de uma não-individuação e do não-entendimento da dissociação dos pronomes eu-tu na própria linguagem apontada por Fraiberg (1977), repercute necessariamente na organização e na sua participação em jogos simbólicos ou não.

Delgado Cobo, Gutierrez Rodríguez e Toro Bueno (1994) indicam que a partir dos dois anos de idade a criança cega começa a jogar em companhia dos outros, embora este jogo não esteja organizado na co-participação tal como acontece com as crianças normovisuais nesta etapa evolutiva do jogo. Segundo estes autores, um brincar mais coordenado e co-participativo é estruturado pela criança cega a partir dos 5 anos de idade, enquanto o mesmo ocorre com a criança normovisual desde os 4 anos. Porém, estabelecemos nestas indicações questionamentos sobre a quantidade e a qualidade de informações e estímulos oferecidos e compartilhados com a criança com deficiência visual, de tal forma que eles sejam suficientes para motivar e desencadear uma situação de jogo.

Como característica do comportamento infantil associado à cegueira, temos encontrado também afirmativas generalizantes de uma conduta solitária em sua preferência para os momentos de brincadeiras e, inclusive, uma forte tendência desta criança para o manuseio de brinquedos e a ingestão de alimentos de determinadas texturas e temperaturas. Neste aspecto, estamos novamente frente à qualidade de atuação do outro no sentido de oferecer à criança cega congênita informações e recursos não apenas para sua saída do egocentrismo, mas também para o próprio entendimento e organização da troca de objetos, funções e papéis que resultam em continuidade no jogo ou em sua vida diária. Neste ponto, faz-se mister o questionamento: de que modo será possível a ela estruturar uma brincadeira simbólica como "mamãe" ou como "professora" e diversificar esta representação para vivências em situações fora do seu cotidiano e da sua realidade, sendo talvez uma vendedora ou manequim, se a ela não for disponibilizado o material informativo necessário para a própria construção do jogo no que diz respeito ao seu conteúdo e comportamento?

Uma linguagem repetitiva e vocabulário reduzido pobre em significados são normalmente apontados como presença predominante entre as crianças cegas (Hill, 1995), especialmente a partir da idade correspondente à pré-escola e, tendencialmente, algumas pessoas tomam tal premissa como característica da cegueira sem uma análise factual da mesma. Compartilhamos com esta autora sua justificativa para o surgimento de semelhante reducionismo em muitas crianças cegas: a precariedade de suas vivências e estímulos ambientais. No entanto, consideramos que este comportamento psitacista merece uma discussão ampliada na própria gênesedo instrumento social traduzido por linguagem confrontada com as questões subjetivas do outro pertencente ao mundo desta criança.

Quando Vygotsky (1995) indica o surgimento de diferenciações nas funções social e egocêntrica da fala (as quais possibilitam o desenvolvimento da fala interior) e que as estruturas da fala tornam-se estruturas básicas do pensamento quando dominadas pela criança, acreditamos que o cerne do entrave lingüístico da criança cega encontra-se também na dificuldade que o outro tem em apresentar, nomear e interpretar os elementos do mundo a ela, sendo ela mesma incluída neste mundo, dentro de um tempo e situação suficientes e adequadas para sua compreensão e domínio da palavra (como propriedade e como símbolo do objeto).

Por outro lado, se partirmos do pressuposto de que um objeto novo apresenta situações problemáticas à criança, demandando dela formas de solução e ampliação do seu vocabulário, podemos facilmente chegar ao ponto de interrogação sobre a diversificação de objetos, situações e ambientes nem sempre experienciados pela criança cega ou com baixa-visão diante da inabilidade do outro na administração das suas próprias dificuldades subjetivas e do comprometimento visual da criança.

Ainda em relação à linguagem, J. Albuquerque e Castro, (1963, p.5) comenta que as possíveis dificuldades de emissão vocal, gagueira, pobreza na modulação da voz, manutenção do padrão de fala infantil nas demais etapas evolutivas, transposição e falta de fonemas ou a imitação viciosa da fala de outras pessoas que alguns portadores de cegueira possam apresentar parecem residir em certos fenômenos de natureza psicológica que se prendem com o desenvolvimento da personalidade. Em virtude da sua situação em relação aos outros e do ambiente que estes geralmente lhe criam, deixando-a em constante isolamento, a criança cega afunda-se em si mesma, vive mais da imaginação que da realidade, torna-se egocêntrica, e ou não tem consciência dos seus defeitos ou, se a tem, desculpa-os facilmente por serem seus.

A criança, convivendo ou não com a deficiência visual, terá que se apropriar do legado cultural que as gerações passadas puseram ao seu alcance (Costa, 1965). Porém, questionamos como esta criança poderá proceder tal apropriação sem que meios e informações sejam adequadamente disponibilizados pelo outro a sua condição?

A criança com deficiência visual, quando não apresenta outros comprometimentos associados, possui os mesmos mecanismos psicofisiológicos e orgânicos de outras crianças. Isto significa que ela traz seu aparato corporal instrumentalizado para percorrer as mesmas fases evolutivas infantis, provavelmente em algumas circunstâncias por rotas alternativas, e não que ela já venha apetrechada com as matrizes informativas do seu mundo circundante porque este pensamento seria, no mínimo, o reforço do conceito folclórico de alguns quanto ao poder adivinhatório da pessoa cega, de uma gratificação divina ou, então, o retorno às antigas teorias do surgimento e desenvolvimento do homem.

Entretanto, a disponibilidade do outro anteriormente citada não se limita às informações teóricas, verbais e expositivas de uma determinada ação ou objeto, mas abrange, sempre que possível e necessário, a permissão e oportunidade para a vivência pela exploração, movimento e experiência desta informação pela criança com deficiência visual.

Desta forma, chegar ao ponto de indicar que uma criança cega irá utilizar de maneira eficaz a colher somente aos três anos de idade e o garfo aos quatro anos, como fazem Delgado Cobo; Gutierrez Rodríguez; Toro Bueno (1994), representa em nossa opinião informar ao outro até onde chega sua incompetência ou inabilidade em oferecer a esta criança o ensino, as informações e as experiências necessárias para o seu desenvolvimento e sua adaptação ao cotidiano do mundo.

Claro está que a carência informativa, sintetizada e abrangente, obtida através do canal perceptivo da visão pode trazer alguma restrição ou lentidão desenvolvimental para a criança, uma vez que ajustes sensoriais e coordenativos em termos de função precisam ser realizados. Contudo, o que vimos observando ao longo dos anos, no que diz respeito a um possível atraso do seu desenvolvimento, não está unicamente relacionado ao tempo necessário para a estruturação, por exemplo, da coordenação ouvido-mão da criança cega em lugar da coordenação olho-mão das crianças normovisuais mencionada por Bruno (1993) e Lucerga Revuelta (s.d.).

A maneira do estabelecimento de comportamentos interativos, a qualidade das facilitações e estímulos oferecidos e o tempo suficiente para um adequado processo de assimilação-acomodação informativo na criança cega congênita disponibilizado pelo outro, decorrentes de uma leitura nem sempre apropriada das suas reais necessidades, parecem ser muito mais intervenientes e constituírem fatores de atraso no seu desenvolvimento do que aqueles específicos da sua deficiência visual.

Da mesma forma, a construção deste sujeito parece estar constantemente ameaçada pela atitude do outro social no que diz respeito à escolha e discussão, consciente ou não, de temas e informações com a criança invisual, uma vez que em sua grande maioria com ela não são abordados assuntos básicos relacionados, por exemplo, à cegueira/visualidade, cidadania e sexualidade (diferenciação masculino-feminino, sensualidade e questões psicofisiológicas) como se esta criança fosse um ser amorfo, assexuado e fragilizado.

Uma forte tendência para a espera pela solicitação de informações por parte da criança com deficiência visual é comumentemente encontrada entre os adultos (familiares e profissionais) que a circundam, talvez por desconhecimento, inabilidade ou ignorância. Porém, Pilar Albuquerque e Castro (1963) salienta a conveniência de não ser aguardado que somente ela tome a iniciativa da pergunta, mas que o adulto crie e estimule a oportunidade para a informação e instrução mesmo quando ela pareça não estar interessada.

Este comportamento pode, desavisadamente, assemelhar-se à antecipação do suprimento de necessidades informativas da criança cega. No entanto, entendemos que muitas vezes a curiosidade, a motivação e o próprioconteúdo para a elaboração de uma pergunta (ou mesmo a dúvida) podem não circular pelo pensamento da criança diante da sua incapacidade paravisualmente tomar contato, recolher e transformar em questão aquilo que somente assim poderá ser feito com o uso da visão, tal como acontece com acriança normovisual. Dentro deste raciocínio, perguntamo-nos sobre a gênese e validade do comportamento do outro que permite e torna-se conivente no processo deinstalação de uma insuficiência informativa da criança cega, pela espera de perguntas sobre fatos que ela, por sua condição visual, não sabe da existência. Esta conduta irrefletida nos parece ao mesmo tempo incoerente e perversa, pois à criança cega é simultaneamente negada e exigida uma diversificação cognitiva e cultural, uma interação psicossocial e um conhecimento fundamental que a instrumentalize para o entendimento do mundo que a envolve a partir de elucidações de questões que não lhe são oferecidas ou oportunizadas por aqueles que disto teriam obrigação.

O quadro desenvolvimental fica ainda muito mais prejudicado quando a esta criança, dentro de um tempo suficiente para que o surgimento e a instalação de novos atrasos cognitivo-motores e psicossociais sejam evitados, deslocamentos e explorações livres no e pelo ambiente são negados ou não oportunizados pelo outro, impossibilitando o acesso ao ensino e ao uso de algum instrumento que sirva de extensão do seu membro superior para a antecipação de objetos e obstáculos durante os seus movimentos.

A partir destes posicionamentos, passamos a entender que o comportamento do outro social em relação à deficiência visual assume para a construção da criança como sujeito um papel fundamental, uma vez que deste outro ela irá nascer e se desenvolver psicomotora, social e culturalmente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sonia B. Hoffmann é Licenciada em Letras (PUCRS); Professora especialista em deficiência visual (FAERS/PUCRS); Especialista em Educação Física Adaptada (UFRGS/RS); Fisioterapeuta (IPA/RS) - CREFITO: 6159/F; Mestre em Ciências do Movimento (UFRGS/BR); PhD em Ciências do Desporto e Educação Física (UP/PT)


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A Construção da Criança com Deficiência Visual como Sujeito Social
autora: Professora Doutora Sonia B. Hoffmann
fonte: http://www.diversidadeemcena.net/

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19.Abr.2017
publicado por MJA