

Tecelã cega - fotografia de
Eudora Welty, 1930s
No âmbito do definido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, os Estados-parte obrigam-se a garantir a todas as pessoas com
deficiência o pleno reconhecimento e o exercício dos seus direitos num quadro de
igualdade de oportunidades (Art.º 1.º), bem como o direito a viver de forma
independente e à total inclusão e participação na comunidade (Art.º 19º).
As práticas sociais em relação às pessoas com deficiência têm evoluído no
sentido de promover, gradualmente, uma maior participação destas pessoas na
sociedade. Assim, até ao início do século XX, verificava-se o predomínio de um
paradigma promotor de exclusão, passando-se, entre as décadas de 20 e 40, para
uma atitude de segregação das pessoas com deficiência. Com o abandonar do modelo
médico que até então tinha orientado a intervenção no campo da reabilitação,
surge uma nova era que privilegia a relação entre a sociedade e as pessoas com
deficiência. Assim, num primeiro tempo, entre as décadas de 50 e 80, surge um
período que promove a integração, passando-se já nos anos 90 e, até à
atualidade, para um tempo onde a inclusão é a preocupação de todos aqueles que
trabalham nesta área.
Em Portugal, as condições de vida para as pessoas com deficiência têm assentado
na delegação das responsabilidades nas famílias ou na institucionalização, sendo
os apoios existentes baseados, fundamentalmente, em prestações pecuniárias
mensais, (de acordo com as condições de atribuição estabelecidas por lei) e, em
respostas de Ação Social (equipamentos e serviços), destinados a proteger as
pessoas que se encontram em situação de carência económica ou de exclusão
social. Neste contexto, a implementação de um modelo de apoio à vida
independente surge como uma resposta inovadora, que rompe com a dimensão
assistencialista que tem caracterizado boa parte das respostas existentes até à
data.
Como surgiu a ideia de promover a vida independente? Nos anos 70, um pouco por
todo o mundo, criaram-se ou reformularam-se estruturas organizativas, que
estabeleceram como propósito central tornar evidentes as várias formas de
opressão a que as pessoas com deficiência se sentiam sujeitas.
É neste contexto que, nos Estados Unidos da América, surge um projeto de
promoção da vida independente, nascido na cultura universitária, com a criação
do primeiro centro para a vida independente a partir de uma residência destinada
a estudantes universitários. A ideia deste centro partiu da necessidade de um
espaço de suporte, gerido pelas próprias pessoas com deficiência, que lhes
conferisse o apoio necessário para a sua integração na sociedade, libertando as
suas vidas do controlo dos profissionais e desmedicalizando-as. Estes centros viriam a disseminar-se por todo o país, articulando-se com um
amplo movimento social de pessoas com deficiência - donde se destacou a American
Coalition of Citizens with Disabilities -, reivindicando o fim das relações de
dependência e a chamada de atenção para os obstáculos presentes no meio
envolvente.
Criou-se, então, aquilo que ficou designado como o Independent Living Movement
(Movimento de Vida Independente), um movimento que se centrou na defesa dos
direitos das pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a ter repercussões
noutros contextos.
Este movimento carateriza-se por ser um movimento social de pessoas com
deficiência, cujos princípios de integração social foram formulados pelas
próprias pessoas com deficiências severas, que não aceitavam ficar à margem da
sociedade e à mercê das instituições, dos especialistas e dos familiares, que
decidiam tudo por eles. Através deste movimento, dá-se ênfase ao termo
“independente”, que significava não-dependente da autoridade institucional e
familiar.
O Movimento de Vida Independente veio provar que a pessoa com deficiência tem
capacidade plena para administrar os seus interesses e obrigações com
independência, fazer as suas escolhas e tomar decisões sobre o que é melhor para
si, e exigir o direito de o fazer. Passa a ser responsabilidade da própria
pessoa com deficiência o controlo sobre a vida quotidiana, incluindo a
oportunidade de fazer escolhas e tomar decisões sobre onde morar, com quem viver
e como viver. Permite a escolha da contratação de um/a assistente pessoal, em
detrimento da institucionalização.
O Assistente Pessoal tem como missão apoiar a pessoa com deficiência ou
incapacidade a viver de forma independente, através da realização, sob a sua
orientação, de atividades em diferentes contextos, que, em razão das limitações
decorrentes da interação com as condições do meio, a pessoa não pode realizar
por si própria.
As atividades e tarefas de um assistente pessoal poderão desenvolver-se em
vários domínios da vida da pessoa com deficiência, designadamente apoio e
assistência, cuidados pessoais (higiene, alimentação, e outros), cuidados de
manutenção de saúde, atividades domésticas, deslocações, participação de
cidadania, e em atividades culturais, desportivas e de lazer, frequência de
ações de formação profissional, entre outras. Neste contexto, o assistente
pessoal poderá, caso se torne necessário, surgir como um mediador, nomeadamente
no que concerne à comunicação e/ou em atividades sócio laborais, profissionais e
ocupacionais.
Em que medida poderão as pessoas com deficiência visual beneficiar do apoio à
vida independente e do contributo de um assistente pessoal?
O papel de um assistente pessoal, bem como o tipo de tarefas que este possa
desempenhar, pode variar tendo em conta a(s) incapacidade(s) de cada pessoa e o
seu nível de autonomia. Assim, pessoas menos autónomas poderão ter necessidade
de um acompanhamento maioritariamente relacionado com a mobilidade e as tarefas
da vida diária, enquanto pessoas com um maior grau de autonomia necessitarão
antes de maior apoio, por exemplo, em atividades de lazer ou de participação
social e cívica. Por outro lado, pessoas menos autónomas poderão necessitar de
um apoio mais permanente, ao passo que pessoas com maior grau de autonomia
poderão ter a necessidade de um acompanhamento de caráter episódico (deslocar-se
a um local desconhecido, ir de férias, realizar uma compra fora do habitual, ir
a um serviço de que não necessita regularmente, entre outras).
Analisamos agora os vários domínios em que um assistente pessoal poderá
facilitar a vida de uma pessoa com deficiência visual.
No domínio das atividades da vida diária, as tarefas de um assistente pessoal
poderão concretizar-se ao nível da higiene pessoal (nas atividades de higiene ou
facilitação das mesmas, por exemplo participando na etiquetagem ou distinção dos
artigos de higiene), leitura e/ou adaptação para formato acessível de documentos
tais como cartas, publicidade, bulas de medicamentos, informação de alimentos
não etiquetados em braille ou que não estejam escritos em caracteres ampliados,
entre outras.
Dentro do lar, as atividades do assistente pessoal poderão materializar-se em
apoio na compra, tratamento e escolha do vestuário (nomeadamente organizando
e/ou coordenando as peças de vestuário por cores, identificando aspetos de
desgaste ou sujidade que a pessoa não consegue identificar autonomamente),
organização, limpeza e adaptação da casa (organização dos objetos para que sejam
facilmente identificáveis pela pessoa com deficiência visual), apoio na
preparação de refeições, utilização de equipamento doméstico não acessível
(nomeadamente equipamento que funciona com base em informação visual), entre
outras.
Ao nível do acompanhamento, o assistente pessoal poderá acompanhar a pessoa com
deficiência visual na sua casa, no trabalho, no ensino e na formação
profissional, na rua, em viagens ou atividades de lazer, bem como durante as
férias. Neste âmbito, o assistente pessoal será, sobretudo, uma mais-valia em
espaços desconhecidos, pois será ele que possibilitará à pessoa com deficiência
visual poder movimentar-se, bem como utilizar equipamentos e usufruir
verdadeiramente de serviços dos quais não conhece a localização ou dos quais não
poderia à partida beneficiar. Será também o assistente pessoal que poderá fazer
todas as descrições e leituras necessárias de forma a possibilitar à pessoa com
deficiência visual o acesso à informação que seja relevante para cada atividade
(podemos tomar como exemplo a leitura de legendas no cinema, a descrição de um
cenário de um espetáculo de música ou teatro, de uma paisagem, e outros).
Outra área de grande relevância na intervenção de um assistente pessoal
prende-se com as relações sociais. Neste âmbito, em momentos de convívio social
ou profissional (como conferências, congressos ou viagens de trabalho), o
assistente pessoal poderá identificar os presentes, comunicar à pessoa com
deficiência visual quem está e dirigir a pessoa para aqueles com quem esta
quiser estabelecer um diálogo. Embora este aspeto possa parecer de menor
relevância face aos anteriores, não podemos esquecer que os relacionamentos
sociais começam, muitas vezes, por uma identificação visual, o que, para quem
não possui visão suficiente, pode ser fortemente limitativo. É de salientar
também que os relacionamentos sociais são um importante veículo de
estabelecimento de rede de contactos, muito relevante para o desenvolvimento no
domínio profissional, pessoal, académico, político, e outros.
Para realizar estas tarefas adequadamente, o assistente pessoal deverá ser
detentor de um conjunto de competências específicas que vão desde o domínio das
técnicas de guia, conhecimentos de braille, noções básicas de orientação e
mobilidade, noções de audiodescrição, bem como outras que poderão ser
específicas para cada caso (por exemplo, dominar a utilização de um produto de
apoio que seja especificamente utilizado por uma determinada pessoa).
Em suma, tal como podemos verificar, existe uma grande necessidade de aplicação
de Modelos de Apoio à Vida Independente para as pessoas cegas ou com baixa
visão. Contudo, será sempre importante não perder de vista que este apoio deve
ser um complemento promotor da autonomia, e não um substituto das competências
de autonomia pessoal que qualquer pessoa com deficiência deve ter.
Atualmente, a temática da vida independente assume uma grande importância nas
preocupações daqueles que intervêm na promoção da inclusão das pessoas com
deficiência em Portugal. Encontra-se, desde 2015, em funcionamento o CVI -
Centro de Vida Independente, que resulta do projeto-piloto promovido pela Câmara
Municipal de Lisboa lançado em dezembro de 2014. Este centro é uma organização
sem fins lucrativos, constituída e dirigida por pessoas com diversidade
funcional, que tem por objetivo base a defesa e a divulgação da filosofia de
Vida Independente em Portugal. O CVI pretende desenvolver várias atividades,
designadamente gerir sistemas de vida independente, divulgar e disseminar o
conceito de vida independente, garantir a sustentabilidade do projeto-piloto e
da prestação de assistência pessoal e ainda sensibilizar/formar e prestar
consultoria na área da deficiência em geral.
Em conclusão, torna-se claro que a plena realização individual e o acesso a uma
vida independente estão intimamente ligados à possibilidade de controlo sobre as
escolhas da própria vida e ao acesso aos recursos em diversas áreas, tais como a
cultura, a educação, a informação, o acesso ao conhecimento, que permitam opções
informadas e decisões livres sobre a própria vida e sobre a forma de
participação na sociedade.
Neste enquadramento, importa mobilizar esforços e criar estratégias e estruturas
para acautelar o acesso a todas estas áreas, de forma a garantir que temos
pessoas com deficiência incluídas, autónomas, participativas e realizadas.
Afinal, nunca devemos perder de vista que todos os projetos a desenvolver para a
inclusão de pessoas com deficiência devem ter como base a ideia de “nada sobre
nós, sem nós”.
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Vida independente: Uma nova visão
por Ana Patrícia Santos, técnica superior no Instituto Nacional para a
Reabilitação, I.P.
Revista Louis Braille
Data/edição N.º20
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