A Dream
of Motion - fotografia de Evgen Bavcar, 1997
Se eu sou algo incompreensível assim
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de andar por aí
Não adianta nem me abandonar.
Gilberto Gil
Deixando meu pensamento voar e sobrevoar minha existência nos
dias de hoje, percebo-me em alerta ao pensar sobre a evolução dos seres
humanos, da cultura, da arte, da ciência e da tecnologia da informação e
comunicação. Estes “mundos” aos quais pertenço têm mostrado um
desenvolvimento aceleradíssimo e de grande eficiência, no que se refere às
potencialidades que as máquinas possuem, sob as quais o ser humano tem todo o
domínio de conhecimento, apropriação e utilização.
Fica claro para mim que esse desenvolvimento todo está diretamente
atrelado e mantido pelo mundo científico, e o ser humano como criador,
divulgador, mantenedor e utilizador dele está e se faz presente em toda essa
dinâmica que visualizo como uma espiral em constante movimento, onde o todo
são as partes e as partes são o todo. Como afirma Morin (2001, a):
-
O mundo torna-se cada vez mais um todo. Cada parte do
mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como
um todo, está cada vez mais presente em cada uma de
suas partes. Isto se verifica não apenas para as nações e
povos, mas para os indivíduos. (p.67)
Assusto-me, em muitos momentos da minha vida, com os fatos que
vivencio e experimento e, também, com aqueles que apenas ouço e vejo de
longe. Chego a sentir-me dentro de um caleidoscópio nesse mundo vida em que
eu e os corpos que me rodeiam estão imbricados.
Os afazeres são muitos e os prazeres se mostram cada vez mais
ligados a estes, nascendo uma desordem que busca a ordem, a organização ou
mesmo a desorganização quando tento compreender a minha essência e a minha
existência nos “mundos” que sou e estou presente, em que um deles é o mundo
da ciência.
Vejo e sinto este mundo como um grupo de crianças livres e soltas
num parque a brincar... elas chegam e vão aos poucos se familiarizando com o
local, fazem um reconhecimento dos brinquedos ali existentes, observando-os e
admirando-os para em seguida escolher brincar com aqueles que mais
chamaram a atenção. Passado esse primeiro momento, iniciam a compreensão e
a apreensão sobre o primeiro brinquedo escolhido para, posteriormente, elas
fazerem a opção pelos meios de apropriação e utilização do mesmo. Seguindo
ou não regras pré-fixadas e determinadas, o locus da descoberta está na
criatividade e na autonomia que as crianças terão para se aproximarem e se
apoderarem do brinquedo escolhido.
A ordem ou a desordem desse processo deverá conduzí-las às
diversas possibilidades que elas têm para brincar com e neste brinquedo.
Porém, não podemos deixar de considerar os diversos fatores que podem
interferir nesse processo como: o parque pode estar demasiadamente cheio de
crianças; de repente o sol se esconde e começa a chover; o brinquedo pode
parar de funcionar de repente; o tempo para elas permanecerem naquele local
se encerra; uma criança pode desmaiar e precisar da atenção de todas as
outras; uma criança cega se aproxima e quer brincar junto com as demais, ou
um outro evento qualquer que venha a desestruturar toda a programação feita
anteriormente. Enfim, é o inesperado e são os acasos que em toda e qualquer
situação aparecem e se instalam sem avisar, pedindo uma outra ação diferente
da estabelecida inicialmente.
-
O inesperado surpreende-nos. É que nos instalamos de
maneira segura em nossas teorias e idéias, e estas não
têm estrutura para acolher o novo. Entretanto, o novo
brota sem parar. Não podemos jamais prever como se
apresentará, mas deve-se esperar sua chegada, ou seja,
esperar o inesperado. (Morin, 2001, a , p.30)
Frente a esse contexto, sei que se eu estivesse naquele parque agiria
de uma determinada forma, se fosse você teria outras atitudes que se
diferenciariam das minhas, se fosse outra pessoa as ações não seriam nem as
minhas nem as suas, porque cada um, no momento da intervenção ao acaso, iria
se revelar de acordo com seu modo próprio de ser e de viver as relações com o
mundo. E assim as intersecções e interlocuções da essência e da existência dos
seres humanos na relação com o mundo, vão acontecendo como num
caleidoscópio onde as figuras, as cores e os seus respectivos movimentos vão
se formando com rigor, com fidedignidade, com junção das partes para o todo
e do todo para as partes de modo indissociável, com ordem, com desordem e
com organização, propiciando dessa forma a evolução da espécie humana.
Pensando na evolução do ser humano me reporto à Morin (2001, a) ao
retratar a evolução dizendo:
-
Toda evolução é fruto do desvio bem – sucedido cujo
desenvolvimento transforma o sistema onde nasceu:
desorganiza o sistema, reorganizando-o. As grandes
transformações são morfogêneses, criadoras de formas
novas que podem constituir verdadeiras metamorfoses. De
qualquer maneira, não há evolução que não seja
desorganizadora/organizadora em seu processo de
transformação ou de metamorfose. (p.82)
Nesse processo, existem e sempre vão existir as diferentes ações
dos seres humanos reveladas nas inúmeras situações, pelo fato da
singularidade e individualidade serem próprias do ser humano. Isso acontece
de modo indissociável, com ordem, com desordem e com organização, em que se
busca a descoberta e, conseqüentemente, a compreensão dos fenômenos que se
dá devido aos diversos “mundos” que surgem e se instalam.
Ao tratar dos conceitos de ordem/desordem/organização Morin
(2000) explicita suas idéias para cada termo em separado. Ele identifica a
ordem com a racionalidade, com a harmonia entre a ordem da mente e a ordem
do mundo, com a causalidade, com o determinismo, com a objetividade e
também com o controle. A desordem está associada às irregularidades, às
inconstâncias, às instabilidades, às agitações, às dispersões, às incertezas,
aos
acidentes, aos desvios, que podem vir a perturbar a ordem e é também
considerada pelo acaso e pela eventualidade. Ao falar em organização, o autor
deixa claro que não pode reduzí-la à ordem. A organização ...”mantém um
conjunto ou “todo” não redutível às partes, porque dispõe de qualidades
emergentes e de coações próprias, e comporta retroação das qualidades
emergentes do “todo” sobre as partes” (p.198).
O trinômio, ordem, desordem e organização, pode se apresentar
separadamente, no entanto, constata-se estes três princípios acontecendo de
maneira imbrincada e cadenciada em todos os fenômenos humanos e da
natureza. Eles aparecem na evolução, no progresso e na modificação dos
fenômenos, que estão presentes em todos os ambientes que o ser humano se
encontra. Um desses ambientes que estou presente, buscando compreender é o
mundo científico.
Passar pelo processo de conhecer e viver o mundo científico está
sendo um desafio para mim, visto que em toda minha formação escolar, familiar
e religiosa, fui sempre direcionada a ver e viver o mundo das coisas e das
pessoas de forma separada, fechada, simplificada e padronizada diante de uma
lógica formal e racionalizada. E agora, nesse processo de apreender, assimilar
e transmitir conhecimentos, sinto-me no meio de um parque cheio de crianças
em movimento em que o inesperado e os acasos surgem trazendo instabilidades,
incertezas e desequilíbrios propondo um verdadeiro caos.
Em vários momentos na obra Teia da Vida, Capra (2001) faz diversos
apontamentos sobre o caos, colocando em evidência que todo ser vivo é
caracterizado por um fluxo e uma mudança contínuos no seu estado de viver,
pois, se o equilíbrio se instalar em todo e qualquer processo da vida desse ser
vivo, ele pode se considerar morto. O ser vivo, diante das inúmeras
perturbações do sistema do caos, é capaz de coordenar, de ser flexível, de se
adaptar e evoluir porque faz parte de um sistema complexo e autoorganizativo.
Volto a lembrar do ser humano que é cego e vive sua essência e
existência num mundo criado e projetado para e por quem enxerga.
Voltando para minha trajetória de pesquisadora, deparo-me com
inúmeras situações em que os fluxos e mudanças se fazem necessários a todo
instante, e que estes não se explicam e nem têm porque se explicarem, mas
mesmo assim, às vezes, me pego pensando e agindo contraditoriamente, ou
seja, tento dar explicações e justificativas sobre determinada situação.
Acredito, porém, que isto também faz parte do processo de assimilação e
incorporação de uma nova forma de entender, aceitar, experimentar e divulgar
o pensamento científico.
O ser humano e todos os outros seres viventes são fenômenos,
portanto não são passíveis nem possíveis de explicações concretas, fechadas, e
fadadas de generalizações como os fatos sempre foram tratados pela ciência
clássica. Pensando nisso, lembro-me dos apontamentos de Descartes e de sua
importante e significativa contribuição ao mundo científico para e na época em
que foram divulgados e apropriados. Separar, isolar, tornar distante o sujeito
do objeto a ser investigado, era para Descartes, uma condição única e possível
para se fazer pesquisa, para se fazer ciência.
Para ele o conhecimento científico era totalmente alicerçado na
filosofia cartesiana como verdade absoluta. Descartes acreditava na ciência
como uma estrutura matemática, em que os resultados obtidos não poderiam
despertar dúvidas. Disso ele deduzia que a essência da natureza humana está
no pensamento e não na matéria, concluindo que mente e corpo são separados e
fundamentalmente diferentes, como apresenta Capra (1994).
No entanto, o tempo não parou, o ser humano e sua relação com o
mundo evoluiu, como também a ciência tem apresentado muitas modificações no
decorrer da sua trajetória histórica. Conceitos e princípios básicos como
verdade, generalização, normatização, objetividade, técnica, fragmentação,
certeza e explicação, têm sido amplamente discutidos e analisados sob uma
perspectiva de mudança paradigmática no e do mundo científico.
A nova visão de mundo e de ciência baseia-se na possibilidade de
inter-relação e interdependência entre os fenômenos físicos, biológicos,
psicológicos, sociais e culturais. Já existem vários princípios formulados e
aceitos por muitos estudiosos e instituições ao acomodarem a formulação do
novo paradigma da realidade (Capra, 1994).
Nesse sentido, desvelar o fenômeno da corporeidade do cego
significa eu acreditar nessa nova realidade científica, ou seja, acatar o novo
paradigma científico: o da complexidade.
Ser corpo, refletir e falar sobre corpo sob os olhos da ciência é uma
tarefa complexa se eu considerar significativo o processo dinâmico e autônomo
que ele é. A noção de autonomia dos seres humanos, cegos, videntes e outros,
pode ser pensada e discutida com base na biologia, na física, na sociologia, na
antropologia, na cibernética, entre outras, por tratar de seres vivos que são e
estão em contato constante com o mundo.
O ser humano é inseparável do meio ambiente e esse entorno humano
dá-se pela natureza e sociedade. Essa relação é corporal, é subjetiva, é
objetiva, é organizada, é uma mediação entre as duas dimensões da natureza –
o corpo e o ambiente – o interno e o externo ou o orgânico e o inorgânico
(Silva,
2001). Fazendo referência surge uma imagem na minha memória: um cego,
sozinho num ponto de ônibus da sua cidade, espera tranqüilamente pelo
transporte urbano. Ao perceber que o mesmo se aproxima estende o braço à
frente do corpo sinalizando-o para parar. Quando a condução pára, o
passageiro confirma com o motorista sobre o destino da mesma, sendo o
destino pretendido o cego entra no ônibus, senta num dos bancos e acompanha
o caminho com tranqüilidade até o seu ponto de desembarque.
Fabiana, cega congênita, manifesta-se dizendo que os cegos
percebem o espaço de modo diferente dos videntes, pelo fato das
necessidades entre ambos serem diferentes. Com isso as experiências que vão
se acumulando estão intrinsecamente associadas ao modo próprio e particular
de viver de todo ser humano, portanto os cegos não são capazes de adentrarem
no mundo dos videntes, como os videntes não são capazes de adentrarem no
mundo dos cegos (anexo 1).
Essa situação comum entre os cegos orientados para tal, muitas
vezes chama a atenção das demais pessoas videntes. Surge o questionamento:
como que um cego consegue ser autônomo, independente e até transportar-se
de ônibus sozinho? Exprime-se aí a intersecção natureza e sociedade, em que
deve-se respeitar e acreditar nas mais diversas possibilidades que os sistemas
vivos possuem para estarem presentes no mundo. Por isso a necessidade de
criar-se novos olhares para a corporeidade do cego.
-
Todo e qualquer organismo – desde a menor bactéria até
os seres humanos, passando pela imensa variedade de
plantas e animais – é uma totalidade integrada e, portanto,
um sistema vivo. (...) Mas os sistemas não estão limitados a
organismos individuais e suas partes. Os mesmos aspectos
de totalidade são exibidos por sistemas sociais – como o
formigueiro, a colmeia ou uma família humana – e por
ecossistemas que consistem em uma variedade de
organismos e matéria inanimada em interação mútua. O
que se preserva numa região selvagem não são árvores ou
organismos individuais, mas a teia complexa de relações
entre eles. (Capra, 1994, p.260)
Maturana e Varela (1995 e 1997) explicitam que qualquer sistema de
qualquer ser vivo é autônomo quando este especifica suas próprias leis e
mecanismos, mantendo suas características de unidade. Estudando biologia, a
partir da composição celular e as suas possibilidades de relações dentro do seu
próprio sistema, mostram como essa unidade vivente é autonônoma e
organizada, em que mantém o mecanismo de identidade celular que acontece
como numa rede de modo circular e próprio. Denominam esse sistema de
definição da organização de suas unidades de autopoiese ou de organização
autopoiética.
A identidade autopoiética está atrelada à variação estrutural dos
seres vivos não somente em termos da sua estrutura físico-química, mas
também quanto unidade que se organiza, isto é, identidade que se autoproduz e
que se conserva, aparecendo, de modo explícito na natureza, pontos de
referência nas interações dos mesmos seres vivos. Possibilitando, dessa forma,
a interpretação dos fenômenos pela diversidade de significados que eles
apresentam, como comentam Maturana e Varela (1997).
Assmann (1998) faz alusão ao sistema autopoiéitco dizendo:
-
... é uma teia de processos que 1) vão produzindo,
ingredientes, componentes e padrões (caóticos e
ordenadores) que regeneram continuamente, através de
suas transformações e interações, a própria teia que os
produz e 2) constituem o sistema enquanto unidade
concreta no espaço em que existe, ao especificar o domínio
topológico no qual se realiza enquanto teia. Os processos
autopoiéticos devem ser imaginados como multiplicidade de
níveis interligados e emaranhados. (p.136)
O sistema autopoiético é uma propriedade que o ser vivo tem e é de
auto-produzir-se e auto-organizar-se numa cadeia de sistemas em que a
intersecção aparece e se mantém, sem intervir nas unidades concretas que são
sempre interdependentes. Para ilustrar minhas idéias, utilizo as seguintes
palavras de Capra (2001):
-
Cada um desses sistemas forma um todo com relação às
suas partes, enquanto que, ao mesmo tempo, é parte de
um todo maior. Desse modo, as células combinam-se para
formar tecidos, os tecidos para formar órgãos e os
órgãos para formar organismos. Estes, por sua vez,
existem dentro de sistemas sociais e de ecossistemas. Ao
longo de todo o mundo vivo, encontramos sistemas vivos
aninhados dentro de outros sistemas vivos. (p.40)
Vejo alguém ao meu lado que não me vê, o cego! Um ser da espécie
humana, que apresenta seu sistema autopoiético como qualquer outro ser da
mesma espécie. Seu sistema celular, devido a alguma causa congênita ou
adquirida proveniente de uma desordem biológica, provoca uma organização ou
reorganização do próprio sistema para ele poder ser e estar presente no
mundo. Ao pensar na desordem biológica vivida pelo cego, a ordem e a
organização se fazem presentes ao mesmo tempo.
Por mais aguçado e preciso que o tato, o olfato, e ou a audição sejam
para os cegos, jamais estes órgãos poderão desempenhar funções dos olhos,
por exemplo: o tato “vê”, mas nunca será capaz de ver imagens, distâncias,
perspectivas, entre outras coisas, acontecendo o mesmo com os demais órgãos.
Sacks (1995) afirma que para existir uma conexão entre o mundo visual e o
mundo tátil só é possível a partir da experiência vivida (do lebenswelt).
Veiga (1983), cego, comenta que é comum a todos os cegos
desenvolverem as habilidades auditivas com mais intensidade e refinamento do
que os videntes, mas isso se dá pela maior observação dos estímulos audíveis do
que pela acuidade auditiva.
-
A voz humana, esta sim: ninguém a conhece melhor que o
cego. É o espelho da criatura, a expressão fisionômica, a
vida interior, a própria alma, tudo das outras criaturas
para ele. Nela ele sabe buscar todo o relacionamento com
as pessoas de seu convívio; todas as ligações harmoniosas,
sentimentais, amorosas, e até toda a repulsa com as
pessoas. (Veiga, 1983, p. 34)
O neurocirurgião Sacks (1995) declara que tratar do cérebro
humano propicia contatos com situações novas, inesperadas e complexas.
Situações essas que colocam o ser humano e sua natureza numa complexidade
tal, impossível de ser prevista a partir do curso da vida comum. No século
XVII, Willian Harvey escreveu: “Não há lugar onde a natureza exponha mais
abertamente seus mistérios secretos do que nos casos que mostra vestígios de
seu funcionamento fora do caminho trilhado” (apud Sacks, 1995, p.124).
Numa passagem de Damásio (1998) algumas reflexões para
subsidiarem essas idéias. Sustenta-se que grande parte das interações com o
meio ambiente acontecem num local delimitado pelo corpo, como exemplo, a
audição é processada num lugar específico delimitado pelo corpo, o ouvido. Por
conseguinte, algo que o ser humano ouve como um sinal externo, não corporal,
transforma-se em sinal corporal, que será enviado ao complexo
somatossensorial e motor representado por todo o corpo, como também será
enviado à unidade sensorial específica (campos neurológicos que se relacionam
ao órgão auditivo ou da audição). Ao ouvir, o ser humano não é limitado e
fechado apenas na informação sonora recebida, ao contrário, ele percebe e
sente, pela capacidade auditiva, que está ouvindo algo com seus ouvidos, ou
seja, seu cérebro processará os mínimos detalhes daquilo que está estimulando
seu órgão auditivo. Porém, o seu corpo como um todo também está absorvendo
a informação e apresentará ações advindas dessa informação.
Possuindo ao nascer todos os órgãos dos sentidos, é natural ao ser
humano criar e estabelecer correlações entre eles, a partir do contato com
mundo. Esse contato possibilita a criação de sentidos e significados para os
objetos e para tudo o que se apresenta diante dele. Portanto, o mundo não é
simplesmente dado ao ser humano, mas sim construído a partir das
experiências, classificações, memória e reconhecimento incessantes, alega
Sacks (1995).
Cyrulnik (1997) admite o corpo como um ser que age e é agido no
meio estruturado. O processo biológico não pára, do nascimento à morte,
indicando que o organismo procura aquilo que para ele é ou será acontecimento.
Esse processo torna-o sensível às informações advindas do meio. O corpo age e
é agido na sua relação com o mundo, é o mundo vivido (lebenswelt).
-
“... quando Virgill abriu os olhos, depois de ter sido cego
por 45 anos – tendo um pouco mais que a experiência
visual de uma criança de colo, há muito esquecida -, não
havia memórias visuais em que apoiar a percepção; não
havia mundo algum de experiência e sentido esperando-o.
Ele viu, mas o que viu não tinha qualquer coerência. Sua
retina e nervo ótico estavam ativos, transmitindo
impulsos, mas seu cérebro não consegui lhes dar
sentido;...” (Saks, 1995, p.129)
Deve-se reconhecer que o conhecimento em relação à realidade
absoluta é limitado, mas é de significativa consistência a construção da
realidade própria e individual que o cérebro humano é capaz de efetuar e
partilhar. Pois, “nossas mentes são reais, nossas imagens são reais, nossos
sentimentos em relação às imagens são reais. Sucede que essa realidade
mental, neural e biológica é a nossa realidade” (Damásio, 1998, p.266).
Entendo que diante dessas considerações, a desordem e a ordem
estão presentes não só no sistema biológico, como também no sistema social e
cultural. Apesar de todas as dificuldades encontradas pelo cego para conviver
social e culturalmente no mundo dos videntes, a convivência se dá. E isso gera a
desorganização e a desestabilização de todos os sistemas fechados que se
baseiam, unicamente, nas teorias explicativas da ciência clássica. Sistemas,
qual o sentido dessa palavra nesse contexto estudado?
Morin (1998) mostra duas vertentes sobre a idéia do pensamento
sistêmico: uma em que o sistema surge como um conjunto funcional formado
pelas partes que se completam harmoniosamente atendendo as finalidades do
todo; na outra a idéia de sistema tem essa complementaridade, mas também os
antagonismos e as mais diversas perturbações que o fazem viver. O princípio do
antagonismo não é fixo, nem estático, está conectado ao dinamismo das
interações/retroações internas e externas do ser humano. Essa
complementaridade cria fenômenos de crise, pelo fato de provocar a
desorganização e suscitar a reorganização já evoluída.
A concepção sistêmica para Capra (1994) também concebe o mundo a
partir de relações e de integração, ou seja, todos os sistemas são totalidades
integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às unidades menores.
A natureza do todo não pode, de forma alguma ser considerado apenas como
mera soma das partes. A abordagem sistêmica enfatiza seus princípios básicos
na organização de todos e entre todos os sistemas, porém estas relações são
dinâmicas, flexíveis e pertencentes a um processo.
Ao apresentar algumas proposições sobre as relações existentes
entre o todo e as partes, Morin (2001, a) atesta que tanto no ser humano,
quanto nos demais seres vivos, estas relações são mútuas. A unidade celular
contém todo o patrimônio genético do organismo; a sociedade, como um todo
marca sua presença em cada indivíduo, pela linguagem, pelo saber, pelas normas
e pelas obrigações. Entende-se então que tanto a célula está na sociedade,
como a sociedade está na célula.
A partir dessas análises, posso dizer que se a unidade celular do ser
humano é um sistema autopoiético, ele como um composto celular também o é,
apresentando suas diferenças e singularidades, por ser um sistema próprio que
possui sua identidade, entre os milhões de indivíduos da espécie humana que
também são sistemas de identidade própria. Esse contexto remete-me à
sociedade que num de seus sistemas de referência organizativa cria a
possibilidade de caracterização ou classificação dos seres humanos pela cor,
pela raça, pela língua, pelos padrões de normalidade, entre outros. Lembro-me
então das pessoas deficientes visuais e auditivas (sensoriais), mentais e
físicas. Elas todas, como qualquer outro ser humano classificado de normal,
apresentam seus sistemas de identidade própria, tanto nos aspectos biológicos
e físicos como nos históricos, culturais e sociais,
É comum ouvir que o ser humano, ao apresentar o ouvido ou a visão
comprometidos, os outros órgãos tornam-se mais sensíveis e mais inteligíveis.
Diante desses comentários observo que há um desconhecimento, por parte das
pessoas, de que o cérebro é quem coordena esse processo de substituição para
a percepção física e sensorial do deficiente. Essa sobrevida dos sentidos só
existe devido à complexidade do corpo (Bavcar, 2001). Completando o
pensamento o autor, que é cego, diz: “Para um cego, é todo o corpo que de
algum modo se torna órgão da vista, pois qualquer parte do corpo pode olhar um
objeto que lhe seja exterior” (p.5).
Estabelece-se, a partir dessa constatação, uma relação estreita com
os sistemas autônomos mostrados por Morin (1991). Ele fala da autonomia como
um sistema que cria suas próprias determinações e suas próprias finalidades na
desordem, no acaso e nos processos auto-organizativos. Comenta que a
autonomia humana depende das condições sociais e culturais, ou seja, para um
indivíduo ser autônomo ele é dependente da sociedade, da linguagem, da
cultura, da educação, bem como, do cérebro que é um produto próprio de um
programa genético.
-
...a autonomia se fundamenta na dependência do meio
ambiente e o conceito de autonomia passa a ser um
conceito complementar ao da dependência, embora lhe
seja, também, antagônico. Aliás, um sistema autônomo
aberto deve ser ao mesmo tempo fechado, para preservar
sua individualidade e sua originalidade. (Morin, 2000, p.
184)
Ao pensar no cérebro como um sistema autônomo parece simples se
eu relacioná-lo com uma linha telefônica, mas é um equívoco fazer essa
comparação pelo fato da existência das múltiplas e variadas conexões
existentes no sistema nervoso central. Considerando o sistema visual,
Maturana e Varela (1995) demonstram que, normalmente, a percepção visual é
tratada como uma operação que se dá a partir da imagem formada na retina e
que em seguida será transformada no interior do sistema nervoso. Entretanto,
tal abordagem se desestabiliza quando compreende-se que para cada neurônio
da retina projetado sobre o córtex visual, há mais de cem neurônios provindos
de outras partes do cérebro, o que trará como conseqüência múltiplos efeitos
que se superpõem à ação da retina. Isso mostra a interligação entre as
estruturas, e não apenas uma simples seqüencialidade de fatos entre as
mesmas.
Os mesmos autores afirmam que o sistema nervoso funciona de tal
forma que, independente das mudanças ocorridas, estas geram outras
mudanças dentro de si mesmas, em que...
-
... o operar do sistema nervoso é plenamente consistente
com sua participação numa unidade autônoma, em que
todo estado de atividade leva a outro estado de atividade
nela própria, pois seu operar é curricular, dentro de uma
clausura operacional. Portanto, por sua própria
arquitetura, o sistema nervoso não contradiz o caráter
autônomo do ser vivo, e sim o ressalta. (p. 194)
Sistemas neurais, cérebro, organismo e ambiente são temas
amplamente discutidos por Damásio (1998). Ao tratar desses assuntos o autor
afirma, a todo momento, existir uma relação direta e interdependente entre
todos estes componentes presentes na vida de um ser humano. Toda e qualquer
decisão pessoal e social do ser humano é recheada de incertezas, as quais
produzem reações diretas e indiretas na sua sobrevivência. Decorre disso que
o repertório de conhecimentos sobre o mundo externo (ambiente) e sobre o
mundo interno (organismo) é muito vasto. O cérebro por sua vez retém e reúne
os conhecimentos de forma distribuída entre as suas estruturas, os quais
serão manipulados ao longo da existência do ser humano.
Relacionando esses apontamentos com o ser humano deficiente da
visão, ou seja, com os cegos, é possível compreender porque um cego percebe a
luz e o outro não, nas mesmas condições ambientais. O sistema nervoso nessas
situações revela sua autonomia e sua auto-organização, pois os seres humanos
cegos podem vir apresentar algumas semelhanças, mas as diferenças
certamente vão ser predominantes ao pensar na limitação da capacidade visual.
Essas diferenças também são perceptíveis quando me deparo com
dois cegos que apresentam a mesma classificação funcional. Certamente, eles
apresentarão seus sistemas organizativos próprios e, conseqüentemente, suas
relações com o mundo também se darão de modo individualizado.
É comum a idéia sobre o sistema nervoso de que este capta as
informações do meio; porém, o que acontece é a produção de um mundo a
partir da percepção de que configurações do meio são perturbações que
provocam mudanças estruturais no organismo. Essas mudanças constituem atos
de cognição, em que o sistema cria um mundo através do processo de viver que
se dá a partir das interações com o meio ambiente (Maturana e Varela, 1995).
No âmbito da organização biológica, Morin (1998) comenta a
complexidade existente no sistema de informação genética, que corresponde a
um fenômeno de memória organizacional, garantindo a manutenção da
originalidade, da improbabilidade e da complexidade do sistema vivo.
Considera-se, contudo, um sistema auto-organizativo que depende do exterior
(ecossistema), mas detém em si a originalidade da conservação, da manutenção,
da transmissão, da renovação e da reprodução, ou seja, do seu princípio
generativo.
O cérebro recebe sinais do corpo, como também de partes de sua
própria estrutura, as quais recebem sinais do corpo; considera-se essa uma
relação indissociável que forma o organismo, afirma Damásio (1998). O
organismo do ser humano, sendo composto por cérebro-corpo, é e está em
interação simultânea com o ambiente como um conjunto. Essa interação produz
respostas externas, chamadas de comportamentos e respostas internas,
denominadas pelo autor de imagens (visuais, auditivas e somatossensoriais).
Capra (2001), ao comentar sobre o organismo, ressalta que por este
ser único, individual, traça seu caminho de modo diferente por apresentar as
mudanças estruturais próprias, e como conseqüência os atos da cognição de
cada organismo se darão, também, de modo particular e próprio. Todo esse
processo não acontece de modo linear entre causa e efeito, mas sim, a partir
de mudanças estruturais na rede autopiética não-linear, permitindo que o
processo de viver do organismo em seu meio ambiente tenha continuidade, e
isso se dá de forma inteligente.
Com efeito, as estruturas/organizações do ser humano são
improváveis em relação à probabilidade física. Pois, a originalidade da
estrutura/organização do ser vivo e social, aparece na sua complexidade, na
sua heterogeneidade, na sua singularidade, que é conservada, mantida,
transmitida, renovada e reproduzida (Morin, 1998).
O cego, pela falta da visão, apresenta uma postura de pescoço e
cabeça diferenciada da do vidente, acarretando uma má postura. Isso
prevalece entre os cegos que apresentam ainda um contato restrito com o
mundo, ou seja, o cego quando não possui independência e autonomia para se
orientar e se mover no mundo, ele adota essa postura corporal como medida de
proteção e segurança. É uma forma inteligível que o corpo do cego encontra de
se auto-organizar perante as suas particularidades estruturais e o meio
ambiente para viver. O cego é um organismo constituído por um sistema
autopoiético, então porque ele haveria de manter uma postura igual à do
vidente, se várias das suas estruturas são diferentes das do vidente?
Respondo a essa indagação utilizando algumas reflexões de Damásio
(1998) ao ressaltar que o organismo, por possuir uma mente, forma
representações neurais as quais poderão ou não tornar-se imagens manipuláveis
no processo denominado de pensamento. Esse terá influência direta no
comportamento em virtude do planejamento e escolha da próxima ação. Esse
processo se dá ...”pelas representações neurais que são modificações biológicas
criadas por aprendizagem num circuito de neurônios, se transformam em
imagens nas nossas mentes; (...) que cada um experiencia como sendo sua”
(p.116). As imagens não são somente visuais, são também sonoras, táteis,
olfativas, entre outras. Portanto,
-
... a função global do cérebro é estar bem informado
sobre o que se passa no resto do corpo, sobre o que se
passa em si próprio, e sobre o meio ambiente que rodeia o
organismo, de modo que se obtenha acomodações de
sobrevivência adequadas entre o organismo e o ambiente
(Damásio, 1998, p.116)
Um exemplo disso é pensar: como o cego congênito sonha? Fabiana
(anexo 1) diz que sonha como qualquer outro ser humano, porém seus sonhos
são diferentes dos sonhos de alguém que enxerga. Os videntes sonham com
imagens por serem estas as representações para eles, cegos como ela sonham
com suas formas de perceber o mundo, os sons, os cheiros, as sensações táteis.
Do ponto de vista da ação corporal, como um sistema complexo de
relações biológicas, cognitivas, motoras, sociais e psicológicas, afirma-se que
a
mente é individual, é observada a partir da ação/comportamento do ser
humano, é moldada nos seus conteúdos a partir do mundo circundante, é
ação/pensamento, ressalta Del Nero (1997). “Somos ao mesmo tempo uma
mente rica, cheia de idéias, emoções e vontades e um produto final que é sua
expressão motora pública” (p. 323). Portanto, a mente não é um aparato físico
e palpável como o cérebro.
Edgar Morin (1998) discute amplamente sobre a intersecção entre
os sistemas do organismo e os sistemas sociais; mostra com clareza que as
diferenças existentes entre eles não é a comunicação, nem a informação, nem a
hierarquia, nem a divisão do trabalho, nem a especialização, pois, tudo isso
acontece em ambos os sistemas. A diferença se mostra no desenvolvimento do
ser humano social, dotado de um sistema neurocerebral e que através do seu
comportamento é autônomo e livre para interagir com os outros. É notável
então que...
-
O sistema nervoso e o cérebro devem ser concebidos não
tanto como órgãos, mas como aparelhos organizadores dos
comportamentos. É neste sentido que o cérebro é a placa
giratória da relação social. (...)
A questão de saber se a sociedade é biológica ou se a vida
é social deixa de ter importância desde o momento em que
as noções de vida e de sociedade passam a ser abertas,
relacionadas, enriquecidas, aprofundadas,
complexificadas. (p.99)
Nesta linha de análise, torna-se evidente que os seres humanos, ao
estarem presentes no mundo vivenciam os princípios de ordem, desordem e
organização, emanados das estruturas próprias, particulares e sociais.
Revelam-se assim, fenômenos auto-organizativos, tanto do ser humano para
com o ambiente, como do ambiente para o ser humano.
Ao referenciar a complexidade interativa penso na linguagem
fazendo parte deste entrelaçamento de mundos tão semelhantes e tão
diferentes ao mesmo tempo, criando um mundo próprio e um mesmo mundo,
quando as relações sociais acontecem.
E por falar em linguagem, Maturana e Varela (1995) mostram que
esse sistema dos seres humanos está diretamente associado ao domínio social
e da comunicação entre os mesmos, em que são produzidos fenômenos de
coerência e estabilização da sociedade. A coerência da linguagem é denominada
pelos autores como consciência e como a mente do ser humano. As palavras são
ações que produzem a nossa (...)”história de interações recorrentes que nos
permite um acoplamento estrutural interpessoal efetivo” (p.251).
Isso quer dizer que a consciência e o mental pertencem ao domínio
social, e é neste que se dá a sua dinâmica a partir das interações lingüísticas,
em que o ser humano seleciona o seu vir-a-ser. A linguagem permite o ser
humano ser e estar nos contínuos acoplamentos interativos possíveis, e não tem
o papel de dizer quem é o ser humano, pois este se apresenta em contínua
transformação pelo ato de conhecer o que a própria linguagem possibilita.
A interação existente entre a linguagem e a sociedade acontece de
forma regular e dependente de toda e qualquer circunstância, visando a
sobrevivência individual e coletiva, surgindo aí as normas e os valores que
inibem ou regulam as ações dos seres humanos (Del Nero, 1997).
Os seres humanos são os únicos organismos vivos possuidores de
capacidade narrativa, proporcionada pela linguagem, que produzem relatos
orais advindos dos não orais. Para Damásio (1998), esse processo não está na
origem do eu não verbal mas, certamente, encontra-se na origem do eu
enquanto sujeito verbal. E aí sim, haverá a possibilidade destes “eus” se
interagirem com o meio ambiente se socializando de modo individual e próprio,
adaptando-se a este frente as suas limitações e capacidades.
As interações entre os seres humanos acontecem através do uso da
linguagem, que é autônoma e dependente simultaneamente, por depender do
espírito/cérebro humano que são seus criadores, do sujeito que é o seu
locutor, e das interações sociais e culturais que transmite-lhe existência e
ser.
A linguagem é fundamental para a organização de qualquer sociedade por
possibilitar o diálogo em todas as operações cognitivas e comunicativas que
conservam, transmitem e inovam os dispositivos culturais, segundo Morin (1991,
a).
Ser deficiente sensorial, especificamente da visão, parece não
sofrer limitações no que diz respeito à linguagem, mas sofre. A linguagem oral
do cego é e está presente na sua existencialidade, inclusive como um dos
principais meios de comunicação e interação desse ser humano com o mundo.
No entanto, ela pode, às vezes, apresentar-se de modo desordenado frente à
mesma linguagem desenvolvida pelos videntes. Isso devido a algumas limitações
para o entendimento e compreensão de muitos vocábulos, conforme seu sentido
e significado, como por exemplo alguns conceitos espaciais. O vidente apreende
conceitos de distância, de tamanho, entre outros, a partir da experiência
corporal vivida. O cego, por outro lado também apreende estes conceitos,
porém suas experiências corporais vividas se diferem significativamente das
dos videntes. Saks (1995) relata o discurso de um cego que voltou a enxergar
depois de 22 anos:
-
“Durante as primeiras semanas [logo após a cirurgia], eu
não tinha nenhum senso de profundidade ou distância; as
luzes da rua eram manchas luminosas grudadas aos vidros
das janelas, e os corredores do hospital eram buracos
negros. Ao atravessar a rua, o tráfego me aterrorizava,
mesmo quando estava acompanhado”... (p.135)
Morin (1991, a) observa dizendo que a linguagem corrente, ou seja,
do dia-a-dia é muito mais complexa do que as linguagens formalizadas. Ela
comporta maleabilidade, possibilitando assim a imaginação fluir pela não
existência da rigidez, o que não retira o rigor do discurso, mas enriquece-o
pela possibilidade da inserção da analogia e da metáfora, ingredientes
necessários ao pensamento.
A partir desta contextualização da linguagem, não posso deixar de
mencionar a linguagem corporal ou gestual que acompanha a linguagem oral de
todo ser humano. Naquela o cego, na maioria das vezes, mostra-se bem limitado
ao ser comparado com o vidente, pela impossibilidade que o primeiro tem de
imitar o segundo. A relação criada pelo cego entre as linguagens oral e
corporal, é ínfima por ele não sentir e não perceber que ambas se
complementam.
Para o cego basta falar as palavras e estas transmitirão suas idéias e
o que elas querem dizer, pois é dessa linguagem que ele se apropria e também
recebe de qualquer outro ser humano durante toda a sua existência no seu
mundo vida.
Porto (1995), ao discursar sobre a comunicação corporal, aponta que
os gestos, as posturas, como também as expressões faciais, são estabelecidos
e ou modificados em virtude do ser humano ser um ser social que se
interrelaciona
com o mundo, aprendendo e usufruindo das expressões corporais.
Isso acontece de modo individual e particular, pelo fato de todo ser
humano viver em ambientes diferentes e contextos culturais também
diferentes, o que influencia diretamente na forma como o corpo se expressa.
O cego, portanto, não poderia mostrar-se diferente em relação à sua
comunicação corporal, pois as imagens para ele inexistem na sua relação com o
mundo. Ele se comunica como qualquer outro ser humano, porém de modo
diferente dos seres que captam as imagens pela visão. Na relação da
comunicação corporal entre cegos e videntes, muitas vezes, estes estranham
por não estarem habituados em dialogar considerando as diferenças existentes
entre todos os seres humanos, então se assustam demasiadamente quando se
deparam com cegos, com surdos, com paraplégicos, por exemplo.
Veiga (1983), cego congênito, revela em algumas passagens do seu
livro, que a falta da visão vai fazer com que o cego tenha sua própria
plasticidade de movimentos quando estes se associam à linguagem, e esta é e
se mostra diferente dos demais seres humanos que enxergam. Isso não deixa
de ser natural e comum para quem existencializa a situação. O autor, numa das
passagens no livro, torna explícito alguns fenômenos que não se explicam
ordenadamente, muitas vezes, causando espanto e indignação:
-
De mim, praticamente cego de berço, dou conta de que, já
homem feito, espantei, de tal modo, uma mocinha com
certo trejeito que dei ao riso, que ela, embora íntima mas
desavisada, exclamou: “Você parece uma caveira quando
ri!” Claro que eu não estava querendo “parecer caveira”,
como nunca na vida tenho desejado parecer exatamente o
que aparento nos gestos, nas atitudes e nas expressões
fisionômicas. (p.10)
Esse fato revela o quanto as diferenças não são respeitadas entre os
seres humanos e o quanto a padronização e a imitação dos gestos e posturas
continuam em evidência. Ou ainda, como diz Baitello Jr. (2002), são as
incapacidades, as lacunas, os boicotes existentes na comunicação entre os
seres humanos, denominados de incomunicação. Esta tem conquistado espaços a
cada dia, (...)”provocando inúmeros estragos, desfazendo e desmontando,
distorcendo e deformando, semeando discórdia e gerando falsas expectativas,
invertendo sinais e valores, azedando as relações e produzindo estranhamentos
incômodos” (s.p.).
A linguagem só existe porque os seres humanos interagem, formando
assim os sistemas sociais, que existem também como unidades para seus
componentes. Os sistemas sociais humanos apresentam sua identidade própria
a partir da conservação e da adaptação dos domínios lingüísticos. Dessa forma,
o ser humano poderá conservar o seu comportamento, ou seja, a sua
plasticidade operacional. Nota-se uma circularidade entre os sistemas sociais e
os lingüísticos, pois o operar do sistema social humano acontece a partir da
geração e ampliação das propriedades dos domínios da linguagem, que por sua
vez é condição para a sua existência, ampliando a criatividade individual dos
seus componentes (Maturana e Varela, 1995).
Ao transportar essas idéias à passagem anteriormente citada por
Veiga, penso que os seres humanos necessitam dar mais atenção às suas
particularidades e individualidades, como sendo uma das unidades dos sistemas
sociais e históricos. Dessa forma, irão aceitar, respeitar e relevar as
diferenças e identidade própria existentes entre todos os seres humanos, de
modo individual e coletivo.
Deparo-me com uma assertiva de Maturana e Varela (1995) sobre o
fenômeno social humano. Deixa claro a relação complexa existente com o ser
humano nas perspectivas biológica e social:
-
A coerência e harmonia nas relações e interações entre os
integrantes de um sistema social humano se devem à
coerência e harmonia de seu crescimento dentro dele,
numa contínua aprendizagem social que seu próprio operar
social (lingüístico) define, e que é possível graças aos
processos genéticos e ontogenéticos que lhes permitem
sua plasticidade estrutural. (p.224)
Observa-se que o fenômeno social humano é um processo que vem
acontecendo, há milhões de anos, com a hominização, em que surgem novas
espécies, decorrendo o desaparecimento das precedentes e aparecendo a
linguagem e a cultura, como facilitadores do processo de complexificação
social. Desencadeia aí a linguagem humana, propiciando a constituição da
cultura, que está intimamente inter-relacionada com a natureza neurocerebral
da sociedade.
Pode-se dizer que a cultura é um sistema das comunicações interhumanas,
cujas informações são consideradas pelos saberes, pelo saber-fazer,
pelas normas, pelas prescrições, pelos interditos. (...) “é uma memória,
transmitida de geração em geração, em que se encontram conservadas e
reprodutíveis todas as aquisições (linguagem, técnicas, regras de organização
social) que mantém a complexidade e as originalidade da sociedade humana.’’
(Morin, 2001, a; 1998, p.93)
Vejo a cultura como um agente de grande influência no processo de
desenvolvimento da descoberta e incorporação do ser-no-mundo.
As condutas culturais, para Maturana e Varela (1995), permitem
manter a invariância da história do grupo, indo de ser humano para ser humano,
por meio da dinâmica da comunicação, decorrendo daí a imitação e a seleção
contínua dos comportamentos intragrupais que são adquiridos ontogenicamente
nos meios sociais.
Um avanço significativo pela neurobiologia é demonstrado por
Damásio (1998), ao colocar em evidência as recentes preocupações dessa
ciência em não reduzir os fenômenos sociais aos biológicos. Salienta que apesar
da cultura e da civilização serem frutos do comportamento de seres humanos
biológicos, esse comportamento surge em grupos de seres humanos que
mantêm relações de interação com o meio ambiente. Portanto, o surgimento da
cultura e da civilização deve-se não só aos mecanismos biológicos do ser
humano, mas também às suas relações sociais.
Complementando a idéia, o mesmo autor declara que as sociedades
humanas estão presas às convenções sociais e regras éticas em volta e além
das estabelecidas pela biologia. Essas formas de controle externo moldam o
comportamento instintivo do ser humano, de modo a possibilitar sua
autoorganização
no meio ambiente, com flexibilidade e assim, garantir a sua
sobrevivência. Embora essas convenções e regras sejam transmitidas pela
socialização e educação, de geração em geração, suspeita-se que as
representações neurais da sabedoria, incorporadas pelo ser humano, e dos
meios utilizados para a utilização da mesma, encontram-se ligadas às
estruturas neurais dos processos biológicos inatos de regulação.
Morin (2001, a) sobre esse assunto, assevera:
-
O homem somente se realiza plenamente como ser humano
pela cultura e na cultura. Não há cultura sem cérebro
humano (aparelho biológico dotado de competência para
agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente, isto
é, capacidade de consciência e pensamento, sem cultura.
(p.52)
A complexidade do ser humano se revela na sua condição de ser, ao
mesmo tempo, biológico e cultural. As estruturas cerebrais, os órgãos do
sentido, como a visão, a audição, o tato são totalmente biológicos e,
simultaneamente culturais, pois possibilitam o corpo se movimentar na sua mais
misteriosa e singular forma de ser e de viver, como comenta Morin (2001). Ele
alerta que se deve pensar na palavra cultura, em seu sentido antropológico, ou
seja, os conhecimentos, os valores, os símbolos que orientam os seres humanos
no seu modo de viver é a cultura.
O mesmo autor na obra Sociologia (1998) mostra que a cultura pode
ser definida como (...) “uma esfera organizacional/informacional que garante e
mantém a complexidade humana – individual e social – (...); contém tudo o que
não é inato geneticamente, tudo o que não é organizado espontaneamente”
(p.106). A cultura não está inscrita nos genes, mas aparece inscrita nos
cérebros, e como um aparato propriamente sociológico, desempenha um papel
essencial na auto-organização, na auto-reorganização, na auto-produção da
complexidade social própria dos seres humanos. Permitindo e possibilitando a
identidade singular de uma sociedade, ou seja, o seu modo próprio de viver, os
seus usos, os seus costumes, as suas técnicas. Portanto, deve-se
(...)”considerar a cultura como um sistema que faz comunicar – dialetizando –
uma experiência existencial e um saber constituído” (p. 127).
Não existe uma sociedade humana sem cultura, e cada uma delas é
singular na sua unidade, mas apresenta também diversidade das culturas. As
culturas são, por aparência, fechadas devido sua identidade singular, mas são,
simultaneamente, abertas por integrarem nelas saberes, técnicas, idéias,
costumes, alimentos e indivíduos vindos de fora (Morin, 2001, a). Infere-se daí
que a invariância, apontada por Maturana e Varela anteriormente, comporta a
variância em sua estrutura histórica.
Dawsey (2001) faz alusão as diferentes culturas mostrando que
estas, além de percorrerem caminhos diferentes de desenvolvimento, estão
sujeitas a interrupções, mudanças repentinas e surpreendentes transtornos.
A cultura é considerada embrionária de todas as possíveis
expressões advindas de uma sociedade ou de um grupo de pessoas, que ao
revelarem o modo próprio de ser e de viver, colocam-se à mostra e à aceitação
as diferenças e as diferenciações, intrínsecas e extrínsecas, na e pela
transmissão das variadas culturas.
Estabelecendo um paralelo com essa idéia, me deparo com o cego,
que devido a uma alteração biológica constituída no seu modo carnal de ser, o
seu modo de viver é peculiar e próprio, surgindo aí uma cultura distinta da dos
videntes, o que vem enriquecer o processo cultural de ambos os grupos, que, ao
final, são modos invariantes de uma mesma cultura.
Esse panorama cultural conduz o meu pensamento às artes. Cinema,
música, pintura, dança, teatro, são algumas das manifestações culturais e
artísticas presentes no meu mundo vida, as quais saboreio por transmitirem-me
prazer. Prazer pelas inúmeras e diversas possibilidades de interpretação que
se dá pela separação e ligação, pela explicação e compreensão, pela análise e
síntese do todo para as partes e das partes para o todo, desencadeando assim
muitas incertezas que vêm desestabilizar a ordem dos meus pensamentos.
A relação do ser humano com o mundo das artes possibilita revelar o
perceber a universalidade da condição humana, pois permite visualizar sua
relação com o outro, com a sociedade, consigo mesmo, ou seja, com o mundo.
Leva este ser à comunicação com o mistério que está além do dizível, por
transcender a dimensão poética da existência humana, ensinando o ser humano
ver o mundo esteticamente (Morin, 2001).
Ao ler o título: “Evgen Bavcar: o fotógrafo cego” (reportagem da
capa na Revista Benjamin Constant, 2001), fico curiosa e penso na mesma hora
como pode isso? Discorrendo meus olhos pelas palavras grafadas vou sentindo a
cada escrito pelo fotógrafo, filósofo e teórico da Arte, que o ser humano é um
ser dotado de complexidade, impossível de ser imaginada, mas possível de ser
vivida.
Como entender um fenômeno como este? A partir das descrições
pode-se compreendê-lo; o que acontece é o trinômio
ordem/desordem/organização apresentado na teoria da complexidade por
Morin (2000). Sendo cego, Bavcar já é considerado um ser humano que foge as
regras, aos padrões, ao comum, tirar fotografias então... provoca sim
desequilíbrio, desestrutura, instabilidades e desentendimentos se for levado
em consideração apenas a ordem lógica e racional dos fatos.
Para mim, vidente e vivente numa sociedade em que a racionalidade e
a lógica das situações ainda prevalecem, este fenômeno de um cego tirar
fotografias foi a forma que Bavcar encontrou na sua presentidade, para
autoorganizar
a sua existência, que se dá na escuridão e ao mesmo tempo na luz.
Como ele mesmo destaca: “Não podemos conceber uma arqueologia da luz sem
considerar a escuridão, e sem elucidar o fato de que a imagem não é apenas
alguma coisa da ordem do visual, mas pressupõe, igualmente, a imagem de
obscuridade ou das trevas” (Bavcar, 2001, p. 21).
Perceber e relacionar-se com o meio ambiente não se resume apenas
aos sinais diretos que o cérebro recebe de determinados estímulos. O
organismo modifica-se ativamente pelo fato do corpo não ser passivo e estar
sempre à busca da manutenção de um estado de equilíbrio funcional para
propiciar e garantir todas as interações necessárias à sobrevivência.
Completando essa sua idéia, Damásio (1998) diz:
-
Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente
alimento, sexo e abrigo, é necessário sentir o meio
ambiente (cheirar, saborear, tocar, ouvir, ver) para que
possam formular respostas ao que foi sentido. A
percepção é tanto atuar sobre o meio ambiente como dele
receber sinais (p.256).
Essa citação me reporta à história, contada por Sacks (1995), de um
cego que aos 45 anos de idade volta a enxergar. Após adquirir a visão
novamente, ele passa a se sentir totalmente perdido, inseguro, desentendido
do mundo que até aquele momento ele existencializara com o corpo todo sem a
visão. Situações adversas de desconfiança, medo, insatisfação, confusão e
perturbação mental são descritas na história. Essa situação é decorrente do
fato dele ver com os olhos, mas não saber e não compreender o que estava
vendo, pois a apreensão do mundo por este ser humano, durante toda a sua
vida, não se deu pela visão mas por todo o corpo.
O relato dessa história revela para mim que o ser humano vivendo
sua essência e sua existência na relação com o mundo, percebe e atua,
mediante o que o corpo vivencia e sente. Ao propor e executar uma mudança
corpórea para um ser humano, como o caso desse cego que volta a enxergar,
corre-se o risco de desorganizar e desordenar todo um sistema que, apesar
de ser considerado pelos videntes como tal, demonstra-se
ordenado/desordenado/organizado na sua existência e essencialidade.
Como diz Bavcar (2001),
-
Não sou fotógrafo, mas iconógrafo, porque a imagem
captada pela máquina fotográfica, é sempre antecipada na
minha cabeça, e assim constitui um ato mental. Deficiente
da imagem visual, física, tento exprimir, através da
máquina fotográfica, as aparições que se formam dentro
de mim e que, enquanto tais se tornam um pouco as
imagens da transcendência invisível.
(...) não sou fotógrafo, “mas qualquer coisa que
fotografa”, porque minha deficiência não me permite o
olhar físico distanciado, mas apenas o toque, a que chamo
de olhar aproximado. (p.9)
Em se tratando da dinâmica da vida do ser humano, ela perpassa
pelos diversos cruzamentos possíveis entre os domínios biológico, cognitivo,
lingüístico, social e cultural que, ao se entrelaçarem, formam uma rede de
imagens possíveis e intermitentes, como num caleidoscópio, dobrando e
desdobrando o viver de cada e do todo humano.
Com o aumento gradativo, significativo, rico e diversificado das
relações entre os seres humanos, o desenvolvimento da linguagem, da cultura,
da arte e do pensamento desponta também. Ao mesmo tempo, vai se
desenvolvendo a capacidade do ser humano de pensar abstratamente, tornando
o mundo interior cada vez mais complexo, mais fragmentado e menos humano
por perder o contato com a natureza e exacerbar-se no contato com os
objetos inanimados (Capra, 2001).
Em meio à complexidade e à diversidade do ser humano, o ver e o
não ver, o visível e o invisível, o visto e o não visto denotam a consonância
com
as possibilidades que as mesmas, complexidade e diversidade, dispõem a serem
vistas...
Dentro dessa complexidade corpórea e intercorpórea,
habitando os planaltos do que é instigante, hospeda-se nos
pântanos das impressões e passeando pelas praias da
perplexidade..., a carne, o desejo e os signos constituem o
corpo conforme as estações da história. ... cada corpo
existe como corpo graças às dádivas, dívidas e dúvidas que
dividem seu dia-a-dia com senhas e sonhos intransferíveis,
irrepetíveis, intraduzíveis.” (José Lima Júnior, 2001, p.79
e 80)
ϟ
MOMENTO III | COMPLEXIDADE À VISTA: VER E NÃO VER
in
A CORPOREIDADE DO CEGO: NOVOS OLHARES
ELINE TEREZA ROZANTE PORTO
Tese de Doutorado, defendida por Eline Tereza Rozante Porto
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO FÍSICA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
UNICAMP Campinas - 2002
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