
RESUMO | O transtorno
conversivo é definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais – 4.ªEdição (DSM-IV) por sintomas
que afetam a função sensorial ou motora voluntária,
assemelhando-se a uma condição neurológica, mas que, após
investigação, não podem ser explicados por essa condição, e
sim por fatores psicológicos. Em raras ocasiões, o exame
neurológico e os exames complementares não são suficientes
para estabelecer o diagnóstico do transtorno conversivo.
Este artigo descreve um caso para o qual a aplicação de uma
técnica de sugestão (torpedeamento) confirmou o diagnóstico
de cegueira conversiva e também se mostrou eficaz no
tratamento. A sugestão, aliada a psicoterapia e
psicofarmacologia, pode ser uma ferramenta valiosa no
tratamento desses pacientes.
Relato de Caso
INTRODUÇÃO
O transtorno conversivo é
definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais – Quarta Edição (DSM--IV) por sintomas
que afetam a função sensorial ou motora voluntária,
assemelhando-se a uma condição neurológica, mas que, após
investigação, não podem ser explicados por essa condição, e
sim por fatores psicológicos 1.
O diagnóstico é feito por meio do exame neurológico, que
inclui testes que revelam inconsistências e incongruências
em relação às doenças neurológicas conhecidas. Tais
incongruências são suficientes para diagnosticar a maioria
dos casos, sem a necessidade de exames complementares. Os
transtornos conversivos habitualmente presentes em centros
de neurologia são crises não epilépticas psicogênicas,
chamadas no nosso meio de pseudocrises
2,
transtornos psicogênicos do movimento
3,
perdas sensoriais de qualquer modalidade, perda da força,
alterações da fala ou deglutição, transtornos do equilíbrio
e condições neuro-oftalmológicas
4.
Em raras ocasiões, o
exame neurológico e os exames complementares não são
suficientes para estabelecer o diagnóstico. Este artigo
descreve um caso para o qual a aplicação de uma técnica de
sugestão (torpedeamento) selou o diagnóstico de cegueira
conversiva e também se mostrou eficaz no tratamento. A
avaliação psiquiátrica também é apresentada.
CASO CLÍNICO
Uma mulher de 56 anos
apresentou borramento visual bilateral súbito, com
diminuição progressiva da acuidade visual em ambos os olhos,
até que, dois meses após, enxergava somente vultos. A
avaliação pela oftalmologia descartou doenças oculares. O
exame neurológico revelou diminuição acentuada da acuidade
visual bilateralmente, apraxia ocular e ataxia óptica. O
restante do exame foi normal. Assim, foi feito o diagnóstico
de síndrome de Balint, por provável lesão parieto-occipital
bilateral. A ressonância magnética de crânio e a análise do
líquido cefalorraquidiano foram normais. A paciente foi
reexaminada, quando se pôde notar que ela não conseguia
pegar a sua própria mão de olhos fechados. Sendo esse um
achado incongruente para uma paciente com propriocepção
normal, foi levantada a hipótese de cegueira conversiva. Os
testes específicos para detectar cegueira conversiva não
permitiram a exclusão de uma causa neurológica.
O piscar quando o
examinador ameaçou a paciente com a própria mão (reflexo de
ameaça) e o acompanhar o espelho com os olhos (teste do
espelho) seriam esperados em uma paciente com cegueira
conversiva (ver referência 5).
No entanto, a paciente não piscou e não acompanhou o
espelho.
Diante da incerteza do
diagnóstico, optou-se por uma técnica de sugestão chamada de
torpedeamento. Um dos autores (M.V.P.) informou à paciente
que ela tinha dois pontos no cérebro que emitiam “ondas
eletromorfofuncionais” e que a impediam de enxergar e
movimentar seus olhos. A paciente recebeu a sugestão de que,
após a aplicação do diapasão em vibração sobre esses pontos
por cinco vezes, essas ondas seriam dissipadas e ela ficaria
curada. O procedimento foi realizado em duas ocasiões, e a
paciente voltou a movimentar os olhos e a apresentar
acuidade visual normal.
Alguns dias após voltar a
enxergar, a paciente foi avaliada por uma psiquiatra (A.F.).
Queixou-se de tristeza profunda, falta de esperança, excesso
de sono, cansaço e isolamento, além de perda de peso e
abandono dos cuidados pessoais.
Relatou inúmeros traumas
emocionais: foi estuprada aos 11 anos pelo irmão de 18 anos,
testemunhou a morte de sua mãe aos 13 e aos 14 engravidou de
um vizinho de 29 anos.
Aos 39 anos, a paciente
soube ser portadora do vírus HIV, o que ela vivenciou como
sendo o pior evento traumático da sua vida. Nessa época, ela
mantinha um relacionamento com um homem que lhe era infiel
e, ao revelar a seu companheiro que ele a havia infectado
com o vírus HIV, este reagiu com frieza e a abandonou.
Alguns dias antes da perda visual a paciente encontrou-se
casualmente com o ex-companheiro, a quem já não via há mais
de 10 anos. Ao reconhecê-lo, sentiu “dor, angústia e vontade
de sair dali”. A paciente expôs seus sintomas e traumas sem
variação no tom afetivo da fala e na mímica facial, deixando
evidente sua indiferença emocional contrastando com o
conteúdo dramático do seu relato. Ao descrever o mal-estar
ao se deparar com seu ex-companheiro, sua expressão facial
modificou-se, demonstrando tristeza e indignação. Ao final
da entrevista, ela confessou o desejo de encontrá-lo para
lhe dizer “o mal que ele havia lhe causado”.
Foram formulados os
diagnósticos pelo DSM-IV de Transtorno Conversivo com
déficit sensorial (cegueira) e Episódio Depressivo Maior
grave, sem sintomas psicóticos. A paciente iniciou
psicoterapia de base analítica e cloridrato de fluoxetina
até 40 mg ao dia. Apresentou remissão do episódio depressivo
e não voltou a apresentar perda visual, permanecendo
assintomática um ano e meio após a primeira avaliação.
DISCUSSÃO
Este artigo descreve um
caso de transtorno conversivo com déficit sensorial
(cegueira) de difícil diagnóstico, assim como sua avaliação
psiquiátrica. Os achados anormais do exame neurológico
sugeriram uma síndrome neuro-oftalmológica.
Outros testes para
identificar cegueira conversiva 5 também foram sugestivos de
cegueira neurológica. Os únicos dados que apontaram para
cegueira conversiva foram os exames complementares normais e
a impossibilidade de alcançar os membros de olhos fechados,
um achado incongruente com os testes que mostravam
propriocepção normal.
A confirmação do
diagnóstico de transtorno conversivo foi possível pela
técnica de sugestão chamada de torpedeamento, que fez com
que a paciente recuperasse totalmente a acuidade visual e
voltasse a movimentar os olhos. O nome torpedeamento
(torpillage) tem origem numa forma persuasiva de terapia
criada por Clovis Vincent em 1916 que utilizava correntes
elétricas galvânicas e farádicas para fazer com que soldados
com “neurose de guerra” retornassem rapidamente para o campo
de batalha 6.
Atualmente, o torpedeamento é feito pela aplicação de um
estímulo indolor em pontos do corpo onde se apresenta a
conversão associada à sugestão ao paciente de que esse
estímulo irá curá-lo.
São frequentes os
questionamentos sobre a ética dos métodos de sugestão em
medicina. Costuma-se alegar que, ao sugestionar o seu
paciente, o médico o está “enganando” e tirando-lhe a
autonomia. Por outro lado, a sugestão tem um papel crucial
no diagnóstico dos transtornos conversivos, já que os
neurologistas são unânimes em afirmar que a remissão de um
sintoma por sugestão é o sinal mais fidedigno de que aquele
sintoma é de natureza conversiva. Por exemplo, as diretrizes
diagnósticas para transtorno psicogênico do movimento exigem
que o diagnóstico de certeza só seja feito se “o movimento
for persistentemente aliviado por psicoterapia, sugestão
psicológica ou placebo”
7. O
torpedeamento não somente selou o diagnóstico de cegueira
conversiva neste caso como também levou à remissão
definitiva do sintoma. Evidências recentes de ensaios
randomizados e metanálises mostraram a eficácia da sugestão
no tratamento dos fenômenos conversivos
8,
9.
Os métodos de sugestão
podem-se tornar valiosas ferramentas terapêuticas nas mãos
do psiquiatra, principalmente porque, diferente do que
ocorre com a maioria dos transtornos psiquiátricos, não há
tratamento farmacológico específico para a conversão. É
comum que, ao receber do neurologista um paciente com
transtorno conversivo, o psiquiatra indique a psicoterapia
sem acompanhar o paciente concomitantemente, acreditando não
poder oferecer intervenções que promovam o alívio rápido dos
sintomas. No entanto, sendo a conversão um fenômeno crônico
e incapacitante na grande maioria dos casos, a possibilidade
de lançar mão de uma técnica de sugestão para prontamente
aliviar o sofrimento pode modificar o curso da doença,
melhorando significativamente o prognóstico e a qualidade de
vida, como ocorreu com o caso aqui apresentado.
A entrevista psiquiátrica
desse caso revelou que, além de cegueira conversiva, a
paciente apresentava episódio depressivo maior. É muito
frequente o paciente com transtorno conversivo exibir outro
diagnóstico psiquiátrico associado, principalmente os
transtornos depressivos e de ansiedade
10,
11.
Por exemplo, pacientes com pseudocrises apresentaram taxas
elevadas do diagnóstico de transtorno de estresse
pós-traumático 12,
13.
Portanto, para um grupo de pacientes, mesmo não havendo
psicofármacos específicos para conversão, o diagnóstico e o
tratamento farmacológico do transtorno psiquiátrico
associado podem auxiliar a remissão do sintoma conversivo e
também prevenir sua recidiva.
A paciente relatou que a
cegueira instalou-se após um encontro casual com o
ex-companheiro, a quem a paciente não via há mais de 10
anos. Este a havia infectado com o vírus HIV – pior trauma
de sua vida – e a abandonado ao saber que ela portava o
vírus. O encontro provocou “dor intensa, angústia e vontade
de sair dali” e, ao mesmo tempo, desejo de se aproximar
dele. Acredita-se que o fenômeno conversivo seja gerado por
conflitos inconscientes que se “convertem” num sintoma
neurológico que simboliza o próprio conflito
14.
Nesse caso, é possível que a reação de cegueira diante da
visão do ex-companheiro tenha “protegido” a paciente de
“enxergar” os sentimentos ambíguos de raiva e amor revividos
nesse momento.
Chamou a atenção a
indiferença emocional com que a paciente relatou seus
sintomas e sua história traumática, chamada classicamente de
la belle indifference
15.
Essa indiferença deu lugar à tristeza quando ela falou do
sofrimento provocado pelas atitudes do seu ex-companheiro,
reforçando, assim, a hipótese de que o sintoma conversivo
tenha de fato sido desencadeado pela revivescência das
emoções associadas a esse trauma.
CONCLUSÃO
Este trabalho propôs o
uso da sugestão para casos de difícil diagnóstico de
transtorno conversivo. O torpedeamento confirmou o
diagnóstico de cegueira conversiva e também se mostrou
eficaz na sua remissão. A sugestão, aliada a psicoterapia e
psicofarmacologia, pode ser uma ferramenta valiosa no
tratamento dos pacientes com transtorno conversivo.
CONTRIBUIÇÕES INDIVIDUAIS
Marcus Vinicius Pinto –
Realizou o diagnóstico neurológico e a aplicação do
torpedeamento. Adriana Fiszman – Realizou a avaliação
psiquiátrica. Marcus Vinicius Pinto,
Marco Antonio Alves
Brasil, Mauricio de Assis Tostes e Adriana Fiszman –
Contribuíram na concepção do relato do caso, na elaboração
do artigo, na revisão do seu conteúdo e aprovaram sua versão
final.
REFERÊNCIAS
-
1.
American Psychiatric Association. Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders – Fourth Edition
(DSM-IV). Washington, DC: American Psychiatric
Association; 1994. Pinto MV et al.
-
2.
Kuyk J, Siffels MC, Bakvis P, Swinkels WA. Psychological
treatment of patients with psychogenic non-epileptic
seizures: an outcome study. Seizure. 2008;17(7):595-603.
-
3.
Reich SG. Psychogenic movement disorders. Semin Neurol.
2006;26(3):289-96.
-
4.
Stone J, Carson A, Sharpe M. Functional symptoms and
signs in neurology: assessment and diagnosis. J Neurol
Neurosurg Psychiatry. 2005;76 Suppl 1:i2-12.
-
5.
Beatty S. Non-organic visual loss. Postgrad Med J.
1999;75:201-7.
-
6.
Tatu L, Bogousslavsky J, Moulin T, Chopard JL. The
“torpillage” neurologists of World War I: electric
therapy to send hysterics back to the front. Neurology.
2010;75(3):279-83.
-
7.
Williams DT, Ford B, Fahn S. Phenomenology and
psychopathology related to psychogenic movement
disorders. Adv Neurol. 1995;65:231-57.
-
8.
Poole NA, Wuerz A, Agrawal N. Abreaction for conversion
disorder: systematic review with meta-analysis. Br J
Psychiatry. 2010;197(2):91-5.
-
9.
Shamy MC. The treatment of psychogenic movement
disorders with suggestion is ethically justified. Mov
Disord. 2010;25(3):260-4.
-
10.
Feinstein A, Stergiopoulos V, Fine J, Lang AE.
Psychiatric outcome in patients with a psychogenic
movement disorder: a prospective study. Neuropsychiatry
Neuropsychol Behav Neurol. 2001;14(3):169-76.
-
11.
Fiszman A, Kanner A. Comorbidities in psychogenic
nonepileptic seizures: depressive, anxiety, and
personality disorders. In: Schacter S, La France Jr C,
editors. Gates and Rowan’s Nonepileptic Seizures, 3rd.
edition. Cambridge: Cambridge University Press; 2009.
-
12.
Fiszman Alves-Leon SV, Nunes RG, D’Andrea I, Figueira I.
Traumatic events and posttraumatic stress disorder in
patients with psychogenic nonepileptic seizures: a
critical review. Epilepsy Behav. 2004;5(6):818-25.
-
13.
Marchetti RL, Kurcgant D, Neto JG, von Bismark MA,
Marchetti LB, Fiore LA. Psychiatric diagnoses of
patients with psychogenic non-epileptic seizures.
Seizure. 2008;17(3):247-53.
-
14.
Breuer J, Freud S. Edição standard brasileira das obras
completas de Sigmund Freud, volume II (1893-1895):
Estudos sobre a histeria, segunda edição. Rio de
Janeiro: Imago Editora Ltda., 1987.
-
15.
Freud S. Edição standard brasileira das obras completas
de Sigmund Freud, volume XIV (1914-1915): A história do
movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e
outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda.,
1974.
ϟ
A Sugestão na Cegueira Conversiva
- relato de caso -
Jornal Bras Psiquiatria 2013;62(4):306-9.
|