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 Sobre a Deficiência Visual

Os Serviços de Leitura Pública para Pessoas com Deficiência Visual em Portugal

José Guerra

Bibliothécaire aveugle - fotografia de Bettina Rheims, 1992
Bibliotecário cego - fotografia de Bettina Rheims, 1992


A rede nacional de leitura pública e as pessoas com deficiência

O acesso à cultura, à informação, é à educação são direitos fundamentais dos cidadãos, reconhecidos em documentos internacionais, máxime, Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas (1994), e na legislação nacional, mormente na Constituição da República Portuguesa - Artigo 73º e seguintes da CRP.

Na realização destes direitos fundamentais dos cidadãos, as bibliotecas de leitura pública desempenham um relevante papel, na medida em que resulta da sua natureza e é seu objetivo, suprir necessidades culturais de uma determinada comunidade, sem exclusão de qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos. A isto acresce que a generalidade das bibliotecas de leitura pública em Portugal são municipais (ou de tutela municipal), o que garante uma maior proximidade com as pessoas.

Em Portugal, desde o final da década de 50, primeiro com recurso às bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian (as primeiras carrinhas saíram para a estrada em 1958), e a partir do final da década de 80, com a publicação do decreto-lei 111/87, que veio estabelecer a criação e contínuo alargamento de uma rede nacional de bibliotecas de leitura pública, através de contratos-programa firmados entre as autarquias e o Ministério da Cultura, atingiu-se uma cobertura bastante satisfatória do território nacional no que concerne a estes equipamentos socioculturais.

Cabe agora perguntar se este esforço para dotar o país de uma rede de bibliotecas de leitura pública, erigido à custa do erário público, pelo menos a partir de 1987, foi suficientemente abrangente em todas as suas dimensões, no sentido de não provocar exclusões de qualquer ordem.

Infelizmente, no que concerne às pessoas com deficiência, creio que não podemos responder afirmativamente. Basta recordar que, entre as orientações para formulação dos contratos-programa, propostas às autarquias como condição de financiamento, não se estipulavam cláusulas específicas com vista à integração de utentes com necessidades especiais, conforme se impôs em relação ao quadro de pessoal, secção infantil, livre acesso, audiovisuais, etc..

Estas orientações têm sido sujeitas a aperfeiçoamentos e atualizações e, valha a verdade, no mais recente documento sobre o programa de apoio às bibliotecas municipais, datado de janeiro de 2009, já é feita referência à necessidade de se prever parqueamento para as viaturas de pessoas com deficiência, havendo ainda uma breve recomendação quanto ao balcão de atendimento, que deve ter “alturas diversificadas – não excedendo 1, 10 m – de molde a facilitar o atendimento tanto de adultos como de crianças e de deficientes”. Sobre a deficiência visual, deixa uma recomendação, ao mencionar que “a sinalização deve também ser afixada em Braille se, e onde, for necessário”.

Cabe aqui lembrar que estas orientações de 2009 surgem no período de vigência do Decreto-Lei n.º 163/2006, que aprovou o regime da acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, estando por isso a sugerir o que afinal é uma obrigação legal.

Muitas das bibliotecas de leitura pública existentes em Portugal foram construídas na fase inicial deste programa de apoio às bibliotecas municipais, uma época de vazio legislativo no que concerne às acessibilidades e um tempo em que as consciências ainda não estavam tão despertas para estas questões. Assim, por um lado, a generalidade das bibliotecas de leitura pública não comporta respostas quanto a formatos alternativos para utilizadores com necessidades especiais, enquanto, por outro lado, algumas optaram por projetos, relativamente ao espaço edificado, que se revelaram posteriormente pouco adequados para o acesso de determinados grupos de cidadãos, pessoas com deficiência motora e sensorial à cabeça.

 

Jorge Luis Borges na Biblioteca
Jorge Luis Borges na Biblioteca
 

O discurso politicamente correto e o quotidiano dos cidadãos com deficiência

Nos últimos anos temos constatado uma crescente sensibilização e preocupação dos poderes públicos e da sociedade em geral para as dificuldades e obstáculos que ao longo do tempo têm contribuído para a marginalização das pessoas com deficiência, afastando-as duma plena participação na comunidade em que vivem. Esta nova atitude resultou no aparecimento de políticas públicas promotoras da inclusão, legislação anti discriminação e diversos documentos de intenção a proclamar o direito à igualdade de oportunidades, com vista a uma sociedade mais justa e verdadeiramente inclusiva.

Todavia, a prática ainda está distante de coincidir com o discurso político, continuando a existir inúmeros fatores de exclusão, sejam eles de cariz social, sejam de natureza física. Por tudo isto, às vezes, pequenas mudanças podem significar toda a diferença para aqueles que continuam a necessitar de se adaptar ao meio envolvente, transformado pelo homem segundo o critério do padrão maioritário, ao invés de uma transformação pensada para todos.
 

Algumas Indicações de Boas práticas de Acessibilidade nas bibliotecas

O regime da acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 163/2006 de 8 de agosto, pelo que nos dispensamos de enumerar aqui as regras técnicas que atualmente são de aplicação obrigatória. Limitamo-nos a sugerir algumas práticas que poderão facilitar o acesso das pessoas com deficiência, nomeadamente as pessoas com deficiência visual, sugestões que no entanto não são de aplicação generalizada. A sua pertinência deve ser avaliada mediante a análise do caso concreto.

Por exemplo, um ou dois vasos de plantas, com fragrâncias, situados próximos da entrada do edifício pode facilitar a sua identificação, isto para além de uma eventual alteração da textura do piso próximo da entrada principal (revestimento podo tátil).

Dentro do edifício, próximo da receção, é interessante que haja um mapa táctil ou uma maquete em relevo apresentando a organização geral dos sectores do edifício, contribuindo assim para a autonomia dos utilizadores com deficiência da visão. Neste local, também deverão existir informações gerais em Braille e a tinta sobre os serviços disponíveis.

Sempre que possível, as portas devem ter um bom contraste para que as pessoas com baixa visão possam distingui-las das paredes.

Em correspondência com informação disponibilizada junto da receção, quer por texto impresso em braille, quer resultante do mapa táctil, ao longo dos vários percursos podem existir sinais tácteis que deverão ser lidos e tocados pelas mãos ou reconhecidos pelos pés no solo (guias).

Por fim, um ou mais postos informatizados de acesso à informação devem estar equipados com ampliadores ou leitores de ecrã e/ou linha braille, para permitir uma consulta autónoma pelos utentes com deficiência visual.

 

A Biblioteca Municipal de Coimbra no contexto das bibliotecas para pessoas com deficiência da visão

As primeiras bibliotecas com materiais de leitura especiais surgiram em instituições para pessoas cegas, institutos, escolas de ensino especial, associações. Mais tarde, numa tentativa de promover a integração cultural destas pessoas, surgiram os primeiros serviços de leitura para pessoas cegas e amblíopes integrados nas bibliotecas comuns, nomeadamente na Biblioteca Nacional de Portugal e em algumas municipais, procurando-se deste modo mitigar os efeitos negativos da segregação cultural. Todavia, trata-se dum patamar intermédio que não exclui de todo o estigma da segregação.

Assim, recentemente, a par com o que se passa no domínio da educação, passou a falar-se em “biblioteca inclusiva”, ou seja, uma biblioteca com capacidade de se adaptar e responder de modo integrado às necessidades de todos os seus utentes, sem precisar de um espaço específico para as pessoas com deficiência. Na verdade, a deficiência por si mesma não implica a necessidade de separação: apenas basta a existência de suportes alternativos e que o modelo idealizado para o meio envolvente (o espaço e o mobiliário) não pretenda ser adequado apenas em função da ideia de “homem normal”, mas antes se baseie na ideia de desenho universal, o qual, aliás, não se preocupa apenas com as pessoas com deficiência, mas também com as pessoas idosas, as parturientes, os pais com carrinhos de bebé, as comunidades estrangeiras, etc., etc.

A “biblioteca inclusiva” além de servir os propósitos de oferta de serviços de leitura para todos, fomenta a integração social das pessoas com deficiência, na medida em que estimula a SUA participação em outros eventos organizados pela biblioteca, como exposições, palestras, encontros com autores, etc.

Podemos dizer que o serviço de leitura para pessoas com deficiência da visão da BMC nasceu na fase intermédia (biblioteca integrada) e, com exceção das grandes urbes de Lisboa e Porto, foi pioneiro em Portugal no que concerne a esse movimento. De facto, aquando da criação da então designada Secção Braille da BMC em 1986, existiam as bibliotecas das associações de cegos (atual ACAPO), e os serviços Braille e áudio da Biblioteca Nacional e das Bibliotecas Municipais de Lisboa e do Porto, havendo ainda um pequeno acervo braille na Biblioteca Municipal de Beja.

Sem garantir que somos exaustivos, mais tarde a iniciativa alastrou-se às bibliotecas municipais de Abrantes, Águeda, Albufeira, Feira, Figueira da Foz, Gaia, Matosinhos, Odivelas, Tondela, Viana do Castelo, Vila Verde, locais onde atualmente se disponibilizam algum tipo de formatos alternativos ou pontos de consulta adaptados. No entanto, é restrito o número das que possuem serviços de produção de materiais de leitura em formato acessível, braille, registo sonoro ou texto digital.

Na Biblioteca Municipal de Coimbra, atualmente, para além do espólio braille (a atingir os mil títulos (alguns produzidos localmente), existe ainda um crescente acervo de audiolivros (em formato mp3), resultante da conversão digital de antigos livros sonoros gravados em cassetes, tarefa que é executada mediante parcerias com a Biblioteca Sonora da Biblioteca Pública Municipal do Porto, a Área de Leitura para Deficientes Visuais da Biblioteca Nacional e a ADFA – Associação dos Deficientes das Forças Armadas, entidades que cedem as matrizes analógicas, a partir das quais se obtém o ficheiro digital. Aos audiolivros assim obtidos, acrescem os que são gravados de raiz em estúdio próprio, com recurso a locutores voluntários, no âmbito do projeto “Livros para os Sentidos”, em curso desde o final de 2010, implementado com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.

 


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José Guerra
      José Guerra

Os Serviços de Leitura Pública para Pessoas com Deficiência Visual em Portugal
por José Guerra
texto publicado in
"Jardim da Sereia", n.º 4
Revista Inclusiva de Divulgação Tiflo-Cultural
Dezembro 2012

 

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14.Ag.2014
publicado por MJA