
Estéfano Vizconde Veraszto,
Eder Pires de Camargo,
Nonato Assis de Miranda &
José Tarcísio Franco de Camargo

-
-
RESUMO:
O trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que investiga como
alunos de
licenciaturas em Física, Química e Biologia entendem a percepção de cegos
congênitos sobre fenômenos naturais e o processo de conceitualização em ciências. Esse objetivo
fundamenta-se no fato de que todo processo inclusivo deve levar em consideração que as diferenças individuais
devem ser reconhecidas e aceitas por toda a sociedade, sendo os pilares para a construção de uma nova
abordagem didática e pedagógica no ambiente escolar. Neste trabalho serão apresentados resultados da
primeira etapa da pesquisa que buscou identificar, por meio da Análise de Conteúdo, as percepções
de professores em formação na área de Ciências da Natureza acerca da possibilidade de realização
de trabalho científico por cegos congênitos. De maneira específica, a pesquisa foi realizada com cinquenta
e três estudantes dos anos finais de cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, Física e Química,
em duas universidades públicas; uma federal e outra estadual. Foi aplicado um questionário e as
respostas analisadas foram classificadas e categorizadas. A partir dos dados obtidos, foram criadas doze
categorias de análise e os resultados indicaram que os graduandos entrevistados julgam possível a
realização de atividade científica por indivíduos cegos. As categorias criadas auxiliarão trabalhos futuros de
elaboração de um instrumento de pesquisa maior destinado a investigar a percepção de cegos congênitos sobre
fenômenos naturais e o processo de conceitualização em ciências.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a presença de alunos com necessidades educacionais especiais
nas escolas brasileiras tem aumentado. Segundo dados do censo escolar nacional de 2012, o acréscimo de
matrículas de alunos com essas características - dentre os quais, os cegos congênitos - na rede
regular de ensino foi de 1313,4%, passando de 43.923 alunos, em 1998, para 620.777, em 2012 (BRASIL, 2012).
Esse novo cenário reflete os efeitos de legislações específicas para a educação
especial, no Brasil, que está em consonância com as diretrizes educacionais na área e com movimentos
organizacionais internacionais, com destaque para a Declaração de Salamanca. Assim, mesmo sabendo que a
existência desses dispositivos legais não garante, de fato, a inclusão desses alunos,
entende-se que, sem eles, intensificam-se relações de uma sociedade excludente (CAMARGO et al., 2009).
Nesse contexto, a formação inicial assume um papel preponderante no desenvolvimento de competências docentes com vistas a preparar o professor para atender a alunos com diferentes
necessidades educacionais especiais. Essa exigência é necessária, na media em que, por um lado, propostas
educacionais inclusivas têm sido desenvolvidas de forma eficiente, mas, por outro, o sistema
educacional brasileiro ainda carece de profundas alterações, tanto em relação à infraestrutura
adequada, quanto aos aspectos atitudinais de professores e gestores que precisam aprender a lidar com
ambientes inclusivos.
Embora existam avanços por parte dos cursos de licenciatura em prol de uma
formação que qualifique o profissional para aprender a lidar com a diversidade, ao que parece, essa
demanda ainda não foi assimilada por boa parte dos professores e gestores em exercício uma vez que:
Na discussão atual sobre a educação inclusiva nas escolas brasileiras é comum
escutarmos a argumentação de alguns professores e gestores educacionais de que a escola não
está preparada, e que é preciso primeiro prepará-la para depois iniciar a inclusão (GRIBOSKI &
ALVES, 2013, p.67-68).
Depreende-se, portanto, que esses profissionais não se sentem em condições de
enfrentar os desafios da escola contemporânea por entender que não estão “preparados”, porque lhes
falta formação para atuar em salas de aula que atendem a estudantes com necessidades educacionais
especiais.
Além de discordarmos desse ponto de vista, entendemos que atitudes dessa
natureza são preocupantes por demonstrar “o imaginário de que pessoas com deficiência constroem conhecimentos
especializados, não disponibilizados pelos cursos tradicionais de formação de professores” (GRIBOSKI
& ALVES, 2013, p.68).
Esse entendimento revela um reducionismo conceitual acerca dos processos de
ensino e aprendizagem
e da própria concepção de formação que precisa ser superada para avançar na
construção de práticas
efetivamente inclusivas. Ademais, concorda-se com Libâneo, Oliveria e Toshci
(2003), para quem a escola
integradora pode combater atitudes discriminatórias - a omissão é, sem dúvida,
uma forma de discriminar
-, “proporcionando uma educação mais efetiva à maioria das crianças e,
certamente (...) [melhorando]
a relação custo-benefício de todo o sistema educativo” (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA,
1994, p.10).
A linha de ação dessa Declaração (p. 18) baseia-se no princípio de que “todas as
diferenças humanas são normais e de que a aprendizagem deve, portanto, ajustar-se às necessidades de
cada criança”, a exemplo das cegas congênitas, objeto de estudo desta pesquisa. Para tanto, a Declaração
propõe uma pedagogia centrada na criança, mas sem excluir os jovens. O professor, por sua vez, deverá
mudar sua perspectiva social, valorizando mais o potencial do que a incapacidade dos educandos (LIBÂNEO,
OLIVEIRA & TOSCHI, 2003).
Nesse contexto, concorda-se com Camargo et al. (2009), para quem faz-se
necessário que professores desenvolvam habilidades para conceber, criar e aplicar diferentes procedimentos
didáticos e metodológicos que, de fato, garantam a inclusão do aluno com necessidade educacional especial.
Assim, é preciso que tanto professores atuantes no ensino regular como aqueles que estão em
processo de formação superem concepções pré-estabelecidas de que a deficiência é um fator limitante e
impeditivo no processo de ensino-aprendizagem.
Ao contrário, a inclusão contrapõe-se à homogeneização e à normalização,
defendendo o direito à heterogeneidade e à diversidade (MANTOAN, 2003). A inclusão parte da lógica de que as diferenças
individuais devem ser reconhecidas e aceitas por toda a sociedade e constituírem-se nos
pilares para a construção de uma nova abordagem didática e pedagógica no ambiente escolar (RODRIGUES,
2003).
É pela diferença do outro que percebemos nossa identidade. Pensar a diferença
como um elemento de
fundamentação para a não discriminação social é libertar o homem, ou seja, é
dar-lhe o direito de ser diferente.
A diversidade tem por referencial central a multiplicidade e a convivência de
elementos distintos
(CAMARGO, 2012). Assim, renegando qualquer ato excludente, a educação regular,
conforme prevê a
Constituição Federal de 1988, deve garantir a participação efetiva de todos os
alunos, sejam deficientes ou nãos, em cada atividade, ato ou dimensão escolar, por entender que:
Há diferenças e há igualdades, e nem tudo deve ser igual nem tudo deve ser
diferente, [...] é preciso que tenhamos o direito de ser diferente quando a igualdade nos
descaracteriza e o direito de sermos iguais quando a diferença nos inferioriza (MANTOAN, 2004: p.7-8).
Diante ao exposto, entende-se que, dentre os vários desafios inclusivos, um dos
maiores é o de se ensinar conceitos e fenômenos naturais e científicos para alunos com deficiência
visual. Essa consideração ampara-se em estudos realizados na área (CAMARGO, 2010a, 2010b, 2011; CAMARGO &
NARDI, 2006a, 2006b, 2007, 2008a, 2008b; CAMARGO & SILVA, 2003, 2004; CAMARGO et al.
2009) e também na concepção de Masini (1994; 2002), para quem o ensino é pautado em padrões
adotados para alunos videntes. A nosso ver, essa postura exclui alunos cegos e com deficiências
visuais do processo de ensino e aprendizagem, o que é inconcebível.
Para ilustrar o exposto, tomamos como referência dados do censo da Secretaria de
Estado da Educação do Estado de São Paulo. Apenas nesse sistema de ensino, no ano de 2012, foram
identificadas trezentos e noventa e sete matrículas de alunos cegos congênitos, sessenta e nove cegos e
surdos e novecentos e noventa e dois alunos com deficiência visual (SÃO PAULO, 2012).
Analisando-se essas informações, entendemos que não dá para ignorar a existência
de alunos com essas características. Caso contrário, estaríamos confrontando o princípio fundamental
da linha de ação da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, realizado em
Salamanca/Espanha, em 1994:
[...] as escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas
condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Devem acolher
crianças com deficiência e crianças bem-dotadas; crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de
populações distantes ou nômades; crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e
crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos ou marginalizados (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994,
p.18).
Temos consciência de que o atendimento a essa demanda requer uma reforma
considerável da escola comum e uma proposta de escolarização integradora. Temos consciência também, por
um lado, de que o processo de inclusão de alunos com necessidades educativas especiais, no Brasil,
iniciou antes mesmo da qualificação dos professores, o que acabou gerando certo desconforto tanto
para eles quanto para os gestores das escolas comuns, por sentirem-se despreparados para lidar com essas
demandas. Por outro, considerando-se que já se passaram vinte anos desde o lançamento da declaração
(1994-2014), esse prazo foi suficiente para formação dos profissionais da educação com vistas à
adequação às orientações contidas nesse documento.
Em síntese, é preciso que compreendamos que cada pessoa tem um modo de aprender, um estilo cognitivo de processar a
informação que recebe. Assim, aprender para pôr em prática uma inovação supõe um processo
complexo, mas essa complexidade é superada quando a formação se adapta à realidade educativa
da pessoa que aprende (IMBERNÓN, 2005, p.17).
Com base nessas breves considerações teóricas, esta pesquisa foi concebida
visando contribuir para mudanças atitudinais e metodológicas, a partir do desenvolvimento de um trabalho
voltado para a percepção de cegos congênitos sobre fenômenos naturais e o processo de conceitualização em
ciências, de forma mais específica, com professores em formação nas áreas de ciências da
natureza. Partimos do pressuposto de que, num primeiro momento, antes que o estudo do processo de
formação de conceitos seja colocado em prática, é importante saber como professores em formação
percebem a realização de práticas de atividades científicas por cegos congênitos.
PROBLEMA
Considerando o contexto introdutório exposto, este projeto busca resposta para a
seguinte indagação: como professores em formação percebem a realização de atividades científicas por
cegos congênitos? Ademais, esta pesquisa tenciona saber como essa compreensão influencia na forma
dos respondentes - professores em formação - pensarem em processos de ensino de ciências para
alunos com deficiência visual.
Essa questão é colocada, pois tomando por base as dificuldades de deficiência
visuais mais acentuadas nos cegos congênitos e totais, é possível estender estratégias para as outras
classes de deficientes.
Considerando que as dificuldades para a participação efetiva do aluno cego estão
relacionadas, predominantemente, ao emprego de linguagens de estrutura empírica audiovisual interdependente em
contextos não interativos e de autoridade, e que a interatividade é uma variável
importante para a superação de dificuldades comunicacionais, faz-se necessário entender como professores em
formação pensam e elaboram suas atividades.
OBJETIVO E JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA DO PÚBLICO ALVO
De forma específica, este trabalho busca analisar a percepção de professores em
formação da área de
ciências da natureza - física, química e biologia - acerca da possibilidade de
cegos congênitos exercerem
atividades científicas.
Este trabalho teve como público-alvo cinquenta e três alunos de cursos de
licenciatura (da área de Ciências
da Natureza), sendo 19 alunos de Biologia, 23 de Física e 11 alunos de Química,
de duas universidades
públicas do interior do Estado de São Paulo.
A escolha da amostra priorizou alunos de licenciatura em vias de conclusão de
curso, considerando que
eles já tenham tido experiência docente, seja nas disciplinas de estágio, seja
como professores regulares.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: DEFININDO TERMOS DA INVESTIGAÇÃO
Quando a proposta aponta a intenção de trabalhar com cegos congênitos, é preciso
entender que o
sujeito em foco no projeto é o cego total de nascimento, aquele que nunca
observou visualmente o
mundo. Nesse aspecto, não são considerados aqueles cegos totais que perderam a
visão ao longo da
vida. Tampouco são utilizadas as definições legais de cegueira, pois o artigo
4º, inciso III - cuja redação
foi alterada pelo Decreto nº 5.296/04 -, indica:
-
'cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho,
com a melhor
correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05
no melhor olho,
com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo
visual em
ambos os olhos for igual ou menor que 60o
; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições
anteriores'. (BRASIL, 2004).
Segundo Vigotski (1997, 2000), a cegueira não é apenas a falta da visão ou o
defeito de um órgão singular,
mas também é uma característica que provoca uma reestruturação profunda de todo
o organismo e
da personalidade do indivíduo que a possui. A cegueira, ao criar uma
configuração da personalidade, dá
origens a forças inexistentes nos indivíduos videntes, modifica certas funções
do organismo, reestrutura
e forma, de maneira criativa e orgânica, todas as características psicológicas
do homem.
Dessa maneira, pode-se dizer que a cegueira não deve ser encarada como um
defeito, uma deficiência,
uma debilidade, mas sim, em certo sentido, uma fonte de revelação de atitudes,
uma vantagem, um
ganho perceptivo sob alguns aspectos relacionados à abstração de fenômenos que
não têm dependência
direta com modelos visíveis.
Sem adentrar no mérito da discussão sobre qual abordagem epistemológica seria a
mais próxima da
realidade - a do vidente ou a do não vidente -, este trabalho é fundamentado em
aspectos que apregoam
que a inclusão é o caminho mais aceitável para que as diferenças possam vir a se
complementar no
processo de ensino-aprendizagem. Ademais,
A inclusão é produto de uma educação plural, democrática, transgressora. Ela
provoca uma crise
escolar, ou melhor, uma crise de identidade institucional, que por sua vez abala
a identidade
dos professores e faz com que seja ressignificada a identidade dos alunos. O
aluno da escola
inclusiva é outro sujeito, que não tem uma identidade fixada em modelos ideais,
permanentes,
essenciais. O direito à diferença nas escolas desconstrói, portanto, o sistema
atual de significação
escolar excludente, normativo, elitista, com suas medidas e seus mecanismos de
produção da
identidade e da diferença (MANTOAN, 2003, p.32).
Essa nova concepção de escola, aluno e professor prova um deslocamento
conceitual em que a diferença –
e não mais a igualdade - passa a ser tomada como norma, impulsionando a
instauração de novos saberes,
competências, modos de observação pedagógica e, fundamentalmente, de uma nova
concepção de formação
na qual o professor “é um ator no sentido forte do termo, isto é, um sujeito que
assume sua prática
a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui
conhecimentos e um saber-fazer
provenientes de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e
orienta” (TARDIF, 2012, p. 230).
METODOLOGIA
Esta investigação fundamenta-se em metodologia qualitativa utilizada para
investigar as percepções de
professores em formação nas áreas de Física, Química e Biologia acerca da
possibilidade de atuação de
cegos congênitos na área científica. Para tanto, foram empreendidas técnicas de
pesquisa exploratória.
A importância da escolha da abordagem qualitativa reside no fato de ela permitir
o estudo de situações
abertas, nas quais os dados podem sofrer fortes influências do meio. Além disso,
o tipo de análise oferecido
por esse método trouxe importantes informações para a abordagem analítica (CHEN,
1997).
Nesse sentido, a abordagem qualitativa adotada trouxe subsídios para interpretar
informações peculiares
provenientes de opiniões pessoais e subjetivas dos indivíduos envolvidos na
pesquisa. Nessa perspectiva,
assume-se que o comportamento humano é significativamente influenciado pelo
contexto em que ele
ocorre. As informações recolhidas, nesse caso, deram-se por meio de um
questionário aberto. Assim, o
material foi explorado, classificado, organizado e interpretado segundo técnicas
provenientes da Análise
de Conteúdo, atendendo, em todos os aspectos, os interesses investigativos do
projeto (PATTON, 1980;
LÜDKE e ANDRÉ, 1986; BARDIN, 1991; BOGDAN, R e BIKLEN, 1994; MORALES & MORENO,
1993).
INSTRUMENTO DE PESQUISA DA PRIMEIRA ETAPA
Definido o público-alvo, conforme já mostrado anteriormente, para o
desenvolvimento da proposta, o trabalho
selecionou um conceito específico da Física, apresentando-o na forma de
questionário para alunos
de Licenciatura em Física, Química e Biologia.
As questões do instrumento de pesquisa foram elaboradas a partir do referencial
teórico de Leontiev
(1988), para quem, embora os conceitos e fenômenos sensíveis estejam
inter-relacionados por seus
significados, psicologicamente, são categorias diferentes de consciência. Essa
ideia está embasada no
conceito de funções psicofisiológicas, que vêm a ser as funções fisiológicas do
organismo. O grupo inclui
as funções sensoriais, mnemônicas e tônicas. Nenhuma atividade psíquica pode ser
executada sem o
desenvolvimento dessas funções, que constituem a base dos correspondentes
fenômenos subjetivos
de consciência. Nesse sentido, Leontiev (1988) aponta que
se mentalmente excluirmos a função das cores, a imagem da realidade em nossa
consciência
adquirirá a palidez de uma fotografia branca e preta. Se bloquearmos a audição,
nosso quadro
do mundo será tão pobre quanto um filme mudo comparado com o sonoro. Todavia,
uma pessoa
cega pode tornar-se cientista e criar uma nova teoria, mais perfeita, sobre a
natureza da luz,
embora a experiência sensível que ela possa ter da luz seja tão pequena quanto
aquela que uma
pessoa comum tem da velocidade da luz (LEONTIEV, 1988, p. 13).
Essas considerações motivaram a elaboração das questões, para, em seguida, serem
apresentadas ao
público foco de investigação. São elas:
Questão 1. Acerca de uma pessoa totalmente cega de nascimento, reflita e
responda com toda tranquilidade
e sinceridade.
1.1. É possível que ela se torne cientista? Explique.
1.2. Ela pode compreender a natureza da luz? Explique.
Questão 2. A visão não constitui requisito para o conhecimento de alguns (ou
muitos) fenômenos físicos
(e de outras naturezas). Você concorda ou não com a afirmação apresentada?
Explique.
Questão 3. A experiência sensível que um cego congênito (cego de nascimento)
pode ter da luz é tão
pequena quanto aquela que uma pessoa comum tem da velocidade da luz. Você
concorda ou não com a
afirmação apresentada? Explique.
ORIENTAÇÕES PARA ANÁLISE DOS DADOS
Os questionários foram utilizados para investigar as percepções dos professores
em formação segundo os
objetivos já apontados anteriormente. A partir de então, todo o material reunido
passou por um processo
de análise e classificação de dados até a obtenção das variáveis.
O trabalho foi organizado em três etapas, segundo a teoria de Bardin (1991):
-
I. pré-análise: organização do material constituído e uma leitura flutuante,
para obter uma categorização
dos dados obtidos;
-
II. a exploração do material: a administração sistemática das decisões tomadas;
-
III. tratamento dos resultados e interpretação: fase que combinou a reflexão,
intuição e o embasamento
nos dados empíricos para estabelecer relações, buscando-se resultados a partir
de
dados brutos, de maneira a se tornarem significativos e válidos.
A partir desse processo, os dados passaram por codificação efetuada segundo
regras precisas. Os dados
brutos deram lugar a categorias específicas criadas a partir das regras de
contagem (BARDIN, 1991). Essa
categorização diferenciou os dados reagrupando-os segundo regras embasadas nos
referenciais teóricos.
Assim, a abordagem qualitativa foi utilizada para descobrirmos as principais
ideias de professores em
formação na área de ciências da natureza.
Os dados permitiram criar doze categorias de análise. São elas: 1) Capacidade;
2) Cognição e Percepção;
3) Recursos didáticos de apoio; 4) Modificações e adaptações do meio (ou
atividades laborais); 5) Papel
da sociedade (ou mediação social); 6) Compensação por outros sentidos; 7)
Dificuldades para inclusão; 8)
Empowerment; 9) Criatividade e abstração; 10) Recursos tecnológicos de apoio (ou
tecnologias assistivas);
11) Depende; 12) Impossibilidade – que serão apresentadas na sequência.
ANÁLISE DOS DADOS: CATEGORIZAÇÃO DAS RESPOSTAS
Este artigo aborda somente a análise do primeiro item da questão um, por
considerar que o material
coletado gerou margem para uma discussão aprofundada da temática direcionada aos
seus objetivos,
não sendo possível, portanto, apresentá-la neste momento.
Assim, tomando como base a questão 1, apresentada anteriormente, a maioria das
respostas dos alunos
indicaram que os futuros professores consideram que um indivíduo cego congênito
pode vir a tornar-se
um cientista. Nesse sentido, quarenta e seis alunos responderam de forma
positiva e apenas dois são da
opinião que essa possibilidade não é viável. Além dessas duas respostas, foi
possível, também, observar
que outros cinco alunos apresentaram respostas classificadas como “depende”, por
mostrarem respostas
positivas e negativas, simultaneamente.
Partindo das respostas dos licenciandos, uma análise de frequência simples foi
desenvolvida e é apresentada
no quadro 1. Uma discussão mais aprofundada acerca do conteúdo das respostas é
mostrada
na sequência, ao agruparem-se considerações semelhantes na criação de
categorias.
QUADRO 1: POSSIBILIDADES DE UM CEGO CONGÊNITO VIR A SER UM CIENTISTA: ANÁLISE DE
FREQUÊNCIA DAS RESPOSTAS DE ALUNOS DE GRADUAÇÃO EM CURSOS DE CIÊNCIAS DA
NATUREZA.
Instituição
|
Sim
|
Depende
|
Não
|
Total
|
Licenciatura em Biologia (instituição 1)
|
16
|
3
|
0
|
19
|
Licenciatura em Física (instituição 1)
|
9
|
1
|
0
|
10
|
Licenciatura em Química (instituição 1)
|
10
|
0
|
1
|
11
|
Licenciatura em Física (instituição 2)
|
11
|
1
|
1
|
13
|
Total
|
46
|
5
|
2
|
53
|
Fonte: elaborado pelos autores.
CRIANDO AS CATEGORIAS
Seguindo as orientações metodológicas apresentadas anteriormente, as respostas
dos alunos foram
organizadas, classificadas e categorizadas segundo padrões que levaram em conta
a semelhança das
respostas dadas (Quadro 2). Os nomes atribuídos às categorias, bem como suas
definições, foram escolhidos
a partir da ideia central das respostas apresentadas e também a partir do
embasamento teórico
adotado no trabalho e citado anteriormente (CAMARGO, 2010, 2012a, 2012b; CAMARGO
& NARDI, 2006a,
2006b, 2007, CAMARGO et al, 2009). Pela limitação de espaço, as transcrições das
respostas não serão
apresentadas. Alguns alunos apresentaram opiniões variadas, algumas vezes
contraditórias, que foram
classificadas em mais de uma categoria.
Cabe ressaltar ainda que, para a organização do trabalho, as respostas foram
transcritas e os alunos respondentes
são diferenciados por letras e números, segundo o seguinte critério de
organização:
-
I. Alunos da instituição 1 são distinguidos pelas iniciais dos cursos (B, para
licenciandos em
Ciências Biológicas, F para licenciandos em Física e Q para licenciandos em
Química). Essas iniciais
são precedidas de números que variam de 1 até o total de alunos (mostrados no
Quadro 1).
-
II. Alunos da instituição 2 são apresentados pelas três letras iniciais do curso
(FIS de Física).
CATEGORIA 1: CAPACIDADE
Nessa categoria foram agrupadas as respostas que indicam que uma deficiência
sensorial não seria
empecilho para que um aluno cego congênito se torne um cientista. Foi por isso
que esse nome foi
escolhido. Considerando-se que capacidade pode ser entendida como a qualidade de
alguém que está
apto a lidar com determinada situação, algumas das respostas que corroboram essa
perspectiva estão
abaixo transcritas.
B1: [...] esta deficiência não é limitadora. [...]
B11: A visão não está ligada a falta de capacidade ou mesmo interesse de quem
porta tal
deficiência.
F7: Uma pessoa totalmente cega terá muitas dificuldades ao longo da vida, para
reconhecer os
objetos, mas é possível sim que ela se torne cientista, pois muitas coisas como
o átomo não
é visível, as pessoas imaginam sua forma, mas atualmente ninguém nunca viu por
ser muito
pequeno. [...]
Vários alunos que participaram da pesquisa são da opinião de que a deficiência
não limita. Para eles, a
ausência da visão não é um fator de impedimento ou de incapacidade.
CATEGORIA 2: COGNIÇÃO E PERCEPÇÃO
Muitas das respostas apontam que, mais importante do que experiências sensoriais
para o aprendizado
científico, é fundamental o desenvolvimento cognitivo. Considerando que o termo
cognição está, aqui,
associado à faculdade de se conhecer algo e que a percepção pode ser entendida
também como a propriedade
de adquirir conhecimentos por meio dos sentidos da inteligência, essa categoria
foi nomeada
com base no uso conjunto desses dois termos. Isso pode ser verificado em
respostas como as que estão
transcritas a seguir.
B2: [...] a formação da ciência é composta por conhecimento cognitivo. Quanto
aos experimentos
é necessário que haja adaptação para a forma como obter e analisar os dados.
B4: [...] O fato de não possuir o sentido da visão não impede a pessoa de
perceber os fenômenos
à sua volta, pois pode ocorrer a manifestação de algo, de diversas formas.
F4: [...] Pode ser que ela tenha uma sensibilidade maior que outras em vários
requisitos necessários
para o desenvolvimento da Ciência. A Ciência se utiliza de vários métodos que
exploram
a razão: explicação, demonstração, coerência, etc. O fato de um ser humano ser
cego não o
exclui de usar a razão.
F9: [...] a cegueira não é um problema que afeta a parte cognitiva da pessoa.
[...]
FIS13: [...] isto não a impede de criar modelos mentais onde esta o aceita e a
partir daí construir
será a base do conhecimento científico.
Conforme observado nessas respostas, alguns alunos indicaram que a cognição e a
percepção são fundamentais
para o exercício da atividade científica.
CATEGORIA 3: RECURSOS DIDÁTICOS DE APOIO
Alguns alunos apontaram que a deficiência visual pode ser compensada pela
utilização de recursos alternativos
no processo de ensino-aprendizagem. Como recursos didáticos de apoio, entende-se
a utilização
de maquetes, atividades e/ou artefatos que recorrem a estratégias táteis e/ou
auditivas, ou, ainda, livros
em braile. Isso pode ser verificado nas passagens transcritas abaixo:
B1: [...] A pessoa pode utilizar materiais para permitir que ela entenda, como
por exemplo, para
se compreender uma célula, pode-se utilizar “maquetes” de uma célula [...].
B4: [...] Também há meios como a Língua Braille, que é voltada às pessoas que
possuem defici-
ências visuais e fazendo-se o seu uso [...] tornando o acesso dos deficientes
visuais aos temas
cotidianos efetivados.
B10: [...] Como qualquer outra pessoa, ela necessita de meios mediadores entre a
pessoa e o
conteúdo a ser aprendido. É importante ressaltar que serão necessários alguns
objetos e/ou
materiais adaptados [...].
B12: Sim é possível que ela se torne cientista, desde que ela tenha recursos
especiais que
garantam que ela compreenda o objeto de estudo e de certa formo o “observe?” a
sua maneira.
F9: [...] A cegueira só será um obstáculo se não forem criados os chamados
caminhos alternativos,
portanto é perfeitamente possível que ela se torne cientista.
F10: [...] Para que isso ocorra é necessário que o mesmo seja orientado de
maneira adequada e
que possa usufruir de recursos especiais para que assim tenha uma compensação
[...].
Q9: Uma pessoa com cegueira, com a ajuda de recursos especiais e caminhos
alternativos, pode
realizar todos os níveis de escolarização. Apesar de haver uma deficiência
primária (biológica)
que proporciona uma limitação, com a mediação e instrumentos corretos ela pode
se tornar
uma cientista, ou seja, tornar-se cientista está na gama de possibilidades [...]
Como foi possível constatar, muitos alunos apresentaram a opinião de que a
utilização de recursos didáticos
de apoio facilita o aprendizado de pessoas cegas, proporcionando, assim,
condições para que
venham a ser cientistas, caso essa seja a sua escolha.
CATEGORIA 4: MODIFICAÇÕES E ADAPTAÇÕES DO MEIO (OU ATIVIDADES LABORAIS)
Essa categoria foi criada a partir da resposta de alunos que mostram a
necessidade do meio de adaptar-
-se e modificar-se, proporcionando condições à inclusão de um indivíduo cego.
Muitos alunos associaram
o trabalho científico com o local de trabalho do cientista, por isso a categoria
também ganhou o nome
alternativo de atividades laborais. Algumas das respostas que confirmam essas
percepções estão abaixo
transcritas.
B4: Sim, é possível, pois [...] há como modificar o seu local de trabalho, de
forma que
elas apropriem-se de instrumentos auxiliadores contidos no ambiente e, dessa
forma,
vir a desenvolverem plena e eficientemente o seu trabalho. [...]
Q2: [...] Na parte da pesquisa vai ter que adaptar, por exemplo, o laboratório,
em locais
certos para cada item para não embaralhar as coais.
Q9: [...] No curso de química, por exemplo, o aluno com cegueira irá necessitar,
principalmente,
no laboratório alguém que possa descrever o que está acontecendo.
Q11: [...] qualquer um necessita de mediação para aprender, porque não nascemos
“sabendo”, a diferença para a pessoa com deficiência é que a mediação de
alguns conceitos deveria ser reformulada, de modo que torne possível o processo
de
ensino-aprendizagem.
CATEGORIA 5: PAPEL DA SOCIEDADE (OU MEDIAÇÃO SOCIAL)
As respostas dessa categoria refletem opiniões de que a atividade científica
pode ser possível se o meio
social cumprir, de forma acertada, seu papel na inclusão de indivíduos com
dificuldades sensoriais.
B8: [...] é preciso que haja mediação, intervenção, tanto de pessoas de seu
convívio (familiares)
como de elaboração de caminhos alternativos e mudança de ações e posturas da
sociedade
que possibilitem essa conquista por essa pessoa.
F6: [...] a sociedade que esta pessoa está inclusa, tenha que oferecer caminhos
alternativos e
recursos especiais para o indivíduo se desenvolver. [...]
Q5: Sim, se o aluno for incentivado pelos pais, colegas, professores e
profissionais. É necessário
que o professor tenha metodologia de ensino diferencial; ou seja, dispor de
métodos alternativos
para incentivar o aluno a ciência. [...]
FIS3: Eu acredito que é possível, no entanto, ele sempre terá que ter uma pessoa
ao seu lado
para lhe auxiliar, pois, por exemplo, ela não poderá desenvolver atividades em
laboratório, como
fazer reação química, manipular equipamentos, sozinha. E por exemplo na análise
de resultados
de uma pesquisa, são necessários análise de gráficos, figuras, raio x, e creio
que para isto
também será necessário a ajuda de outra pessoa.
CATEGORIA 6: COMPENSAÇÃO POR OUTROS SENTIDOS
Algumas respostas indicaram que o indivíduo que possui uma dificuldade
sensorial, muitas vezes, é
“compensado” por outros sentidos. Respostas que indicam essa evidência são
transcritas a seguir.
B10: [...] a deficiência em nada irá atrapalhar os estudos, visto que, a pessoa
pode se valer de
outros membros e sentidos do corpo para realizar todas as suas atividades
diárias, inclusive
estudos. [...]
Q11: [...] Pois, apesar da pessoa com deficiência ter suas limitações, ela poder
compensada de
alguma maneira, por exemplo, se utilizando dos outros sentidos para o
aprendizado.
FIS9: [...] ela pode sim tornar um cientista, ela apenas não tem a visão, mas
[...] ganhou suas
outras maneiras de ver, por exemplo, o tato fica mais sensível, o paladar, entre
outros. Vou citar
um exemplo que é um professor que eu tenho, nunca tive aula com um professor
cego, e este
professor me impressionou muito, pois para mim, ele é um herói pela sua
capacidade. Vendo
ele, acredito que é possível sim uma pessoa cega virar cientista.
FIS12: Acredito que sim, pois somos dotados de cinco sentidos, como tato,
audição, olfato, paladar
e visão. Então, se um desses sentidos faltar, os outros desde o início do
desenvolvimento
do ser humano, desde a infância, será aprimorado. [...]
CATEGORIA 7: DIFICULDADES PARA INCLUSÃO
Alguns dos alunos participantes da pesquisa indicaram, em suas respostas, que a
inclusão é possível,
mas é difícil de ser efetivada em razão de as instituições de ensino superior
não estarem preparadas para
receber alunos cegos de nascimento. Para ilustrar o exposto, transcreve-se uma
resposta dessa natureza.
B14: [...] O que acontece é uma barreira muito grande na inclusão dos
deficientes visuais.
Nenhuma universidade que conheço está preparada e possui professores treinados
para ensinar
ciências para este público alvo. [...]
CATEGORIA 8: EMPOWERMENT
A motivação e a “força” de vontade são fatores essenciais para que um indivíduo
cego congênito venha
a se tornar um cientista. Foi atribuído o nome da categoria de empowerment, pois
significa o processo
pelo qual uma pessoa, ou um grupo de pessoas, usa seu poder pessoal inerente à
sua condição para fazer
escolhas e tomar decisões, assumindo assim o controle de sua vida (SASSAKI,
2004). Dessa maneira,
várias respostas indicaram que a motivação e a força de vontade são fatores
essenciais para que um
indivíduo cego congênito torne-se um cientista ou qualquer outro profissional
que almejar. É uma categoria
nascida a partir de concepções subjetivas, mas presentes em muitas das respostas
dadas. Algumas
delas, ou trechos dessas respostas estão abaixo transcritas.
B18: [...] A força de vontade também é muito importante.
F5: [...] será necessário algumas adaptações e muito empenho em sua trajetória.
F10: [...] Um cientista não se forma a partir das condições físicas do
indivíduo, mas ele se constrói
com o tempo, pois a dedicação do mesmo se empenhando em aprender o torna um
estudioso.
FIS7: [...] O que é mais importante para um cientista é a perseverança e a
vontade.
FIS12: [...] Penso que uma pessoa nessas condições pode sim se tornar um
cientista com
muita dedicação. Digo com muita dedicação, pois tenho que admitir que o “mundo”
de hoje é
baseado, na sua maioria, em informações visuais e isso é um agravante e
dificuldade para tais
pessoas. Penso ainda que, em algumas “ciências” o individuo cego de nascimento
se deparará
com mais dificuldades que em outras “ciências”, como é o caso das ciências
exatas, como a
física e a matemática.
FIS13: [...] Para quem quer nada é impossível apenas, às vezes, mais difícil.
CATEGORIA 9: CRIATIVIDADE E ABSTRAÇÃO
A criatividade foi outro elemento que apareceu em algumas das respostas, como
pode ser observado na
transcrição que segue. Determinados alunos, em suas respostas, sinalizaram que o
indivíduo cego possui
uma capacidade intrínseca de criar e inovar, por isso essa categoria foi
escolhida.
F1: [...] a pessoa pode usar de sua cegueira para desenvolver novas ideias, um
exemplo seria
[...] a área da licenciatura ela poderia muito bem desenvolver novas formas e
métodos de aprendizado
para outras pessoas que também são cegas.
Essa percepção levanta ainda uma hipótese: a de que um indivíduo cego congênito
seria capaz de desenvolver
formas novas de aprendizado considerando sua condição sensorial diferenciada.
CATEGORIA 10: RECURSOS TECNOLÓGICOS DE APOIO (OU TECNOLOGIAS ASSISTIVAS)
A utilização de recursos tecnológicos assistivos foi ponto recorrente em muitas
das respostas obtidas na
pesquisa. Evidências que fundamentam a criação dessa categoria são mostradas na
sequência.
F6: [...] Materiais de alta tecnologia, todos estes com aparatos sonoros.
Exemplo: Osciloscópio,
computadores. A deficiência visual não deve ser tomada como uma barreira para se
tornar um
cientista.
FIS5: Sim, atualmente temos fácil acesso a vários recursos tecnológicos que
possibilite que um
deficiente visual se torne um cientista.
FIS6: Sim. Acredito que com a tecnologia que está ao alcance de muitos seja
possível que
uma pessoa cega ou com outra deficiência seja cientista. O maior exemplo disto é
o cientista
Stephan Hanking.
FIS7: [...] A visão não é um pré-requisito para se tornar um cientista, ainda
mais com todo desenvolvimento
tecnológico que existe atualmente. [...]
CATEGORIA 11: DEPENDE
Um grupo pequeno de alunos respondentes ficou em dúvida. Acredita-se que não
sabem as respostas,
mas encontraram situações que julgam ser conflitantes na hipotética atividade
científica realizada por
indivíduos cegos congênitos. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que apresentaram
respostas afirmativas,
discordavam, em outros momentos, tentando exemplificar situações que julgaram
improvável a
possibilidade de o cego congênito tornar-se cientista.
B16: Sinceramente acredito que ela terá muitas dificuldades, além de
obrigatoriamente não
poder atuar em áreas aplicadas da ciência onde a visão é fundamental, como é o
caso da microbiologia
clássica e aplicada, porém com o esforço e trabalho acredito sim que ela possa
ser
uma cientista com o mesmo mérito que os demais.
Q1: [...] uma vez que cientista não precisa fazer experimentos. Ele (a) pode
criar novas TEORIAS,
que logo após podem ser testados com uma ajuda de equipe.
Q2: Para ser um cientista pode ser difícil, porém é só melhorar outras
habilidades e adaptar
vários lugares e objetos [...].
Q7: [...] acredito que para algumas áreas não existem problemas com relação à
deficiência visual,
é claro que, por exemplo, na minha área que é química não acredito que seria
possível no caso
dessa pessoa desejar, por exemplo, testes calorimétricos, mas já atuei em áreas
da química em
que a percepção de maciez de tecidos, nesta área, por exemplo, acredito não
haver nenhum
problema com relação à atuação destes.
FIS4: Depende muito da área em que vai atuar, pois terá várias limitações.
CATEGORIA 12: IMPOSSIBILIDADE
Por fim, são apresentadas as respostas de dois alunos que julgaram impossível um
indivíduo cego congênito
vir a tornar-se um cientista.
Q8: Não, pois para que uma pessoa possa se tornar um cientista ela tem a
necessidade da visão
para observar experimentos de um determinado estudo, sendo que dependendo do
estudo pode
ser perigoso, como por exemplo, uma utilização errônea de um reagente em um
laboratório
pode colocar uma pessoa em risco de queimaduras e ferimentos.
FIS1: Não, pois acredito que mesmo treinando bastante os outros sentidos, não
será possível
suprir o sentido da visão, e este mesmo é essencial.
ANÁLISE DE FREQUÊNCIA DAS RESPOSTAS
A partir das respostas dos alunos, que, muitas vezes, puderam ser classificadas
em duas ou mais categorias,
em razão de as respostas serem abertas, no Quadro 2, apresenta-se a análise de
frequência das
respostas, segundo as categorias exibidas anteriormente.
QUADRO 2: ANÁLISE DE FREQUÊNCIA DAS RESPOSTAS.
Categorias
|
Definições segundo respostas analisadas
|
Frequência relativa
das respostas
|
Capacidade
|
Uma deficiência sensorial
não seria empecilho para o cego congênito
viesse a ser cientista (CAMARGO, 2010,
2012b).
|
10,4%
|
Cognição e Percepção
|
Mais do que experiências
sensoriais, o desenvolvimento cognitivo é
fundamental para a atividade científica
(CAMARGO, 2012a, 2012b).
|
12,9%
|
Recursos didáticos de apoio
|
A deficiência visual pode
ser compensada pela utilização de recursos
alternativos (como maquetes) no processo de
ensinoaprendizagem (CAMARGO, 2012a, 2012b).
|
15,6%
|
Modificações e
adaptações do meio (ou atividades
laborais)
|
As respostas sinalizam a
necessidade do meio de se adaptar e
modificar, proporcionando condições à
inclusão de um indivíduo cego (CAMARGO,
2012b).
|
13,0%
|
Papel da sociedade (ou
mediação social)
|
A atividade científica
pode ser possível se o meio social
cumprir, de forma acertada, seu papel na
inclusão de indivíduos com dificuldades
sensoriais (CAMARGO, 2012a, 2012b).
|
16,9%
|
Compensação por outros
sentidos
|
O indivíduo que possui
dificuldade sensorial muitas vezes é
“compensado” por outros sentidos
(CAMARGO, 2012a).
|
6,5%
|
Dificuldades para
inclusão
|
A inclusão é possível, mas é difícil de ser efetivada, pois as
instituições de ensino superior não estão preparadas para
receber alunos cegos de nascimento (CAMARGO, 2012b).
|
2,6%
|
Empowerment
|
A motivação e a “força” de vontade são fatores essenciais
para que um indivíduo cego congênito venha a se tornar um
cientista. Foi atribuído o nome da categoria de empowerment,
pois significa o processo pelo qual uma pessoa, ou um grupo de
pessoas, usa seu poder pessoal inerente à sua condição para
fazer escolhas e tomar decisões, assumindo assim o controle de
sua vida (SASSAKI, 2004, p. 11).
|
10,4%
|
Criatividade e abstração
|
A criatividade foi outro elemento que apareceu em
algumas das
respostas (CAMARGO, 2012a). 2,6%
Recursos tecnológicos
de apoio (ou tecnologias
assistivas)
A utilização de recursos tecnológicos assistivos apareceu em
algumas respostas obtidas na pesquisa (CAMARGO, 2012a,
2012b).
|
2,6%
|
Depende
|
Alguns dos alunos respondentes ficaram em dúvida. Não
por não saberem dar respostas, mas porque encontraram
situações que julgam ser conflitantes na hipotética atividade
científica realizada por indivíduos cegos congênitos. Assim, ao
mesmo tempo, em que apresentaram respostas afirmativas,
discordavam dessa possibilidade em outros momentos.
|
2,6%
|
Impossibilidade
|
Respostas de alunos que
julgaram impossível um indivíduo cego
congênito vir a se tornar um cientista.
|
3,9%
|
Fonte: elaborado pelos autores
|
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados desta pesquisa assinalam que é preciso buscar formas efetivas de
inclusão que contemplem
todos os níveis de ensino. Os dados apontaram que, na opinião dos alunos
pesquisados, cegos
congênitos têm condições mais do que suficientes para seguir a carreira
científica.
Considerando as dificuldades elementares que esse desafio impõe, como a
participação efetiva da sociedade
e o planejamento e adoção de metodologias alternativas, apoiadas em recursos de
apoio didático com
características táteis e auditivas, ou ainda, em tecnologias assistivas, um
indivíduo cego congênito - assim
como qualquer outra pessoa - pode ter êxito ao seguir uma carreira científica se
essa for a sua intenção.
Dessa forma, esta pesquisa trouxe informações básicas para que uma investigação
maior seja empreendida.
A partir dos resultados aqui apresentados, a intenção é centrar esforços para
desenvolver pesquisas
destinadas a entender melhor o processo de conceitualização em cegos.
Antes de finalizar, e levando em consideração a categoria criatividade,
concebida, principalmente, a partir
da resposta de um aluno do curso de Física, da instituição 1, é possível ainda
destacar que a cegueira não
deve ser encarada como um defeito, uma deficiência, uma debilidade, mas sim, em
certo sentido, uma
fonte de revelação de atitudes, uma vantagem, um ganho perceptivo sob alguns
aspectos relacionados
à abstração de fenômenos que não têm dependência direta com modelos visíveis.
Diante ao exposto, propõem-se algumas reflexões: será que muitos dos modelos
científicos abstratos
aceitos atualmente não seriam melhor explicitados se fossem concebidos por cegos
congênitos? A cegueira
não seria uma vantagem perceptiva sobre um mundo no qual toda a primeira
impressão é quase
sempre visual?
Não é intenção deste trabalho responder a essas indagações, mas deixar um
convite à reflexão e, quem
sabe, abrir espaço para novas investigações que busquem pesquisar o processo de
conceitualização que
ocorre em cegos congênitos, em perspectivas que não foram aqui abordadas.
REFERÊNCIAS
-
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Trad.: RETO, L. A. e PINHEIRO, A. Edições 70,
1991, Lisboa, Portugal:
71, 96-98, 101-103, 117-119.
-
BOGDAN, R e BIKLEN, S. Investigação Qualitativa em Educação: uma introdução à
teoria e aos métodos.
Trad. Alvarez, M. J.; Santos, S. B. e Baptista, T. M. 1.Portugual, Lisboa: Porto
Editora Ltda. 1994.
-
BRASIL, Ministério da Educação. Censo Escolar. 2012, INEP, Brasília, INEP, 2012.
Disponível em:
<http://www.inep.gov.br/ basica/ censo/ Escolar/ Sinopse/ sinopse.asp. >
Acesso em: 4 Jun 2013.
-
BRASIL. Casa Civil. Decreto nº 5.296, de 2 de Dezembro de 2004. Estabelece
normas gerais e critérios
básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
ou com mobilidade
reduzida, e dá outras providências. 2004. Disponível em <
http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/ _ato2004-2006/ 2004/ decreto/ d5296.htm
>. Acesso em 4 Jun 2013.
-
CAMARGO, E. P. de. O Perceber e o Não Perceber: algumas reflexões acerca do que
conhecemos por
meio de diferentes formas de percepção. In: MASINI, Elcie F. Salzano (org.).
Perceber: raiz do conhecimento.
São Paulo: Vetor, 2012.
-
CAMARGO, E. P; de. Análise das dificuldades e viabilidades para a inclusão do
aluno com deficiência
visual em aulas de termologia. In: Revista Interciência & Sociedade, v. 1, p.
9-17, 2011.
-
CAMARGO, E. P. de. A formação de professores de física no contexto das
necessidades educacionais
especiais de alunos com deficiência visual: a condução de atividades de Ensino
de Física. 2010a. 462f.
In: Relatório trienal final (2006-2009). Faculdade de Engenharia, Departamento
de Física e Química,
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Ilha Solteira,
São Paulo.
-
CAMARGO, E. P. de. A comunicação como barreira à inclusão de alunos com
deficiência visual em aulas
de mecânica. In: Ciência e Educação, Bauru, v. 16, n. 1, p. 259-275, 2010b.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R.; MIRANDA, N. A. de; VERASZTO, E. V. Contextos
comunicacionais adequados
e inadequados à inclusão de alunos com deficiência visual em aulas de óptica.
REEC. In: Revista
Electrónica de Enseñanza de las Ciencias, Espanha v. 8, p. 98-122, 2009.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R. O emprego de linguagens acessíveis para alunos com
deficiência visual
em aulas de óptica. In: Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v.14,
N 3, p.405 - 426, 2008a.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R. O emprego de linguagens acessíveis para alunos com
deficiência visual
em aulas de eletromagnetismo. In: Acta Scientiae (ULBRA), Porto Alegre-RS. v.10,
N 1, p.97 - 118, 2008b.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R. Dificuldades e alternativas encontradas por
licenciandos para o planejamento
de atividades de ensino de óptica para alunos com deficiência visual. In:
Revista Brasileira de
Ensino de Física, São Paulo, vol. 29, N. 1, 2007.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R. Ensino de conceitos físicos de termologia para
alunos com deficiência
visual: dificuldades e alternativas encontradas por licenciandos para o
planejamento de atividades. In:
Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v.12, n. 2, p.149-168, 2006a.
-
CAMARGO, E. P. de; NARDI, R. Planejamento de atividades de ensino de mecânica e
física moderna
para alunos com deficiência visual: dificuldades e alternativas. Revista
electrónica de investigación en
educación en ciencias, Buenos Aires, Argentina, vol 1, N 2, P: 39-64, 2006b.
-
CAMARGO, E. P. de; SILVA, D. Atividade de ensino de física para alunos com
deficiência visual: vivência
do atrito: observação e contextualização do fenômeno. In: Atas. 1º Congresso
Internacional de Educação
e Desenvolvimento Humano, Maringá, 2004.
-
CAMARGO, E. P.; SILVA, D. Atividade e material didático para o ensino de Física
à alunos com deficiência
visual: Queda dos objetos. In: Atas do IV ENPEC (IV Encontro Nacional de
Pesquisa em Educação em
Ciências), Bauru-SP, 2003.
-
CHEN, H, T. Applying mixed methods inder the framework of theory-driver
evaluation. New Directions
for Evaluation, v. 74, 1997, p. 61-72.
-
DECLARAÇÃO DE SALAMANCA: Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das
Necessidades Educativas
Especiais Salamanca-Espanha, 1994.
-
GRIBOSKI, C. M.; ALVES, D. de O. A educação especial e as perspectivas da
formação docente no contexto
da educação inclusiva. In: CERQUEIRA, T. C. S. (Org.). Transdisciplinaridade e
subjetividade: saberes
e perspectivas docentes. Curitiba: Editora CRV, 2013, p.67-77.
-
IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a
incerteza. 5. ed. São
Paulo: Cortez, 2005.
-
LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil.
In: VIGOTSKI, L. S.,
LURIA, A. R., LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São
Paulo: Cortez Editora,
1988.
-
LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M.. Educação Escolar: políticas,
estrutura e organização. São
Paulo: Cortez, 2003.
-
LÜDKE, M. e ANDRÉ, M. E. D. A. Pedagogia em educação: abordagens qualitativas.
São Paulo: EPU.
Editora Pedagógica e Universitária, São Paulo, 1986.
-
MANTOAN, M.T.E. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo:
Moderna, 2003.
-
MASINI, E. F. S. A educação de pessoas com deficiências sensoriais: algumas
considerações. In: Do
sentido, pelos sentidos para o sentido: o sentido das pessoas com deficiências
sensoriais. São Paulo:
Editora Vetor, 2002.
-
MASINI, E. F. S. Impasses sobre o Conhecer e o Ver. In: O perceber e o
relacionar-se do deficiente visual:
orientando professores especializados. Brasília: CORDE, 1994.
-
MORALES, M.; MORENO, M. Problema en el uso de los terminos
cualitativo/cuantitativo en la investigación
educativa. In: Investigación en la Escuela, Madri, Espanha, v . 21 nº 2, p.
149-157, 1993.
-
PATTON, M. Q. Qualitative evaluation and research methods. Sage Publications.
Second Edition. Newburry
Park, California, USA, 1980.
-
RODRIGUES, A.J. Contextos de Aprendizagem e Integração/Inclusão de Alunos com
Necessidades
Educativas Especiais. In: Ribeiro, M.L.S. e Baumel, R.C.R. (Org). Educação
Especial - Do querer ao fazer.
São Paulo: Avercamp, 2003, p. 13-26.
-
SÃO PAULO. Censo Escolar Estado de São Paulo: Informe 2012. Governo do Estado de
São Paulo.
Secretaria de Estado da Educação. Centro de Informações Educacionais.
Disponível
em < http:// www.educacao.sp.gov.br/ a2sitebox/ arquivos/ documentos/ 399.pdf >. Acesso em 30 Mai
2013.
-
SASSAKI, R. K. Vida independente: na era da sociedade inclusiva. São Paulo: RNR.
2004.
-
TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 14. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2012.
-
VIGOTSKI, L. S. Obras Escogidas: V Fundamentos de Defectología . Editora
Aprendizaje Visor. 2. ed.Madrid, 1997.
-
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
ϟ
Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores Form. Doc., Belo Horizonte, v. 06, n. 10, p. 69-86, jan./ jun. 2014.
Δ
|