
Harém míope - Jorge Martins, 1969
Ao analisar as relações do neoliberalismo com a biopolítica, em
seu curso Nascimento da biopolítica, Foucault (2008, p.301) argumenta que
aquelas se configuram nos Estados Unidos, a partir da
segunda metade do século XX, como “uma maneira de viver e de
pensar”, “um tipo de relação entre governantes e governados” (e não
de uma técnica dos primeiros sobre os segundos), em que o “problema da
liberdade” se impõe sem que se reduza propriamente ao modo
de ser dos direitos e dos serviços públicos. Gradativamente, ver-se-
-ia essa forma de vida assumir uma “reivindicação global”, porém
se radicalizando em um modo de administração econômica que
penetrou nas esferas ínfimas da vida humana, tornando-a parte de
um capital e da constituição de um homo oeconomicus que não mais
se empreende pela troca, mas no investimento e no empreendimento
sobre si mesmo.
Na composição desse si a ser empresariado, é possível reconhecer
as limitações e as potencialidades a ser exploradas em sua máxima
capacidade e eficiência, em uma avaliação minuciosa e decisiva sobre si e os
demais indivíduos. Produzida graças ao desenvolvimento
técnico-científico e à ciência econômica, tal avaliação permite o reconhecimento
dos elementos inatos e o que pode ser adquirido pelos
indivíduos, exigindo o máximo de produtividade e de eficiência de
cada um, ao saber até onde sua máquina-competência pode chegar,
quais são seus eventuais desgastes e capacidades.
Dos elementos inatos ou hereditários relatados pela biologia ou,
até mesmo, pelo atual desenvolvimento da genética, esse indivíduo
poderia mapear como as tendências herdadas interfeririam nas escolhas,
limitariam ou incrementariam o equipamento de cada um para
ser mais bem explorado e para torná-lo produtivo de acordo com
esse diagnóstico. Afinal, diz Foucault: “um dos interesses atuais da
aplicação da genética às populações humanas é possibilitar reconhecer os
indivíduos de risco e o tipo de risco que os indivíduos correm
ao longo de sua existência” (ibidem, p.313). Com esse interesse genético, parece
ser possível mapear quais são os indivíduos de risco e
os riscos de relações destes com outros seres capazes de perpetuá-los
ou minimizá-los, definindo aqueles que possuem “bons equipamentos genéticos” e,
consequentemente, produzirão indivíduos de
“baixo risco ou cujo grau de risco não será nocivo, nem para eles,
nem para sociedade” (ibidem), constituindo-se em matrizes raras
que ingressam, frequentemente, no cálculo e tornam-se uma alternativa ao
investimento econômico.
O mesmo se pode dizer da classificação dos indivíduos que
implicam alto risco em razão de seus genes, em que sua reprodução
necessite ser monitorada para evitar seu perpetuamento e que seu
equipamento genético, salvo não possa ser aprimorado, requeira
maior controle no intuito de conduzi-lo ao exercício de funções sociais que
exigem um baixo risco, pouca responsabilidade. Embora a
inquietação com esse interesse econômico da genética traga tantas
preocupações, na acepção de Foucault não se trataria mais de compreendê-la “nos
termos tradicionais dos racismos”, pois se ocupa
de um problema político atual: o de “constituição, de crescimento,
de acumulação e de melhoria do capital humano” (ibidem, p.314).
Esse é o interesse em torno do qual a genética ganha relevo entre os
saberes e tem seu investimento assegurado pela ciência econômica,
pois auxilia a naturalizar a vida e a despolitizar as relações de poder
que a compreendem, assumindo uma das formas de fascismo atual
quando seu uso extremado justifica as exclusões de certas deficiências e
déficits, apoiando certos estados de exceção.
Tão importante quanto essa composição do si mesmo a ser empreendido como forma
de avaliação dos riscos e para a formação do
capital humano, porém, são os investimentos em seu aprimoramento
ao longo da vida ou sua qualificação para disputar um lugar no
mercado, tal como tem sido frequentemente destacado como importante estratégia
do neoliberalismo. Para formar “essas espécies
de competência-máquina que vão produzir renda”, é necessário,
segundo Foucault, “investimentos educacionais”, isto é, não apenas
a “instrução propriamente dita” ou o “aprendizado profissional”, desenvolvido na
escola, mas a formação dos “elementos que entram na
constituição de um capital humano”, “muito mais amplos” e “mais
numerosos” que esse tipo de instrução e aprendizado (ibidem, p.315).
No cálculo desses investimentos entram, em particular, entre
outros aspectos, desde o “tempo de afeto consagrado pelos pais a
seus filhos”, passando pela cultura dessa família e pelos estímulos
ambientais, até os cuidados médicos e de higiene para garantir, mais
que a formação do capital humano, seu aprimoramento para que
possa ser “conservado e utilizado pelo maior tempo possível” (ibidem, p.316).
Trata-se, portanto, de aprimorar e conservar o capital
humano, de formá-lo, cercando-o de cuidados psicológicos, pedagógicos e médicos
para que desempenhe efetivamente uma função
econômica, fazendo que aquele adentre as análises para o bom funcionamento
desta, mas sem deixar que se estratifique a mobilidade
do indivíduo no que se refere ao empreendimento de si mesmo. Isso
faz que, quanto mais se invista em si mesmo, no que se entende
como capital humano, mais se necessite continuar investindo, até o
final da vida ou o esgarçamento das forças vitais, sendo esse um imperativo da
existência que se apresenta a todos como um limiar entre
a vida e a morte, ou seja, em outras palavras: o viver como sinônimo
da mobilidade própria daquele investimento e empreendimento de
si, enquanto o morrer é entendido como similar à imobilidade e à
exclusão de quem está fora dessa meta (Duarte, 2010).
Nessa atual conjuntura, a mobilidade passa a ser constitutiva de
um investimento importante, como ocorre nos casos de migração
dos indivíduos, dando-lhe a impressão de que dessa maneira ampliariam seus
recursos e qualificações ou até mesmo seu senso de
liberdade, quando na verdade apenas respondem a certo princípio
concorrencial do mercado e se enredam em seu jogo. Afinal, a busca
de um ponto cego tanto do mercado quanto dos acontecimentos que
atravessam a existência dos indivíduos começa a entrar no cálculo da
busca de “inovações” nos mais diferentes campos, como uma marca
global do neoliberalismo, para propiciar uma impressão de mobilidade produzida
por um “sistema de diferenças” e uma aparente
unidade capaz de aplacar os efeitos dessa economia da vida, que a
torna escassa justamente onde transborda. De acordo com Foucault
(2008, p.354-5), tem-se nesse horizonte de análise:
[...] a imagem ou a ideia ou o tema-programa de uma sociedade na
qual haveria otimização dos sistemas de diferença, em que o terreno
ficaria livre para os processos oscilatórios, em que haveria uma tolerância
concedida aos indivíduos e às práticas minoritárias, na qual
haveria uma ação, não sobre os jogadores do jogo, mas sobre as regras do jogo,
e, enfim, na qual haveria uma intervenção que não seria
do tipo da sujeição interna dos indivíduos, mas uma intervenção de
tipo ambiental.
É nesse contexto global que as práticas ditas inclusivas aparecem
no âmbito da ação política pública, com vistas a garantir o direito das
minorias, sob o influxo de movimentos sociais que empreenderam,
muitas vezes dentro de uma lógica identitária e, lamentavelmente,
de uma economia do capital humano que procura valorizar as diferenças naquilo
que pode favorecer as inovações, a eficiência no
empreendimento de si e, enfim, favorecer a mobilidade do mercado.
Por sua vez, os discursos sobre a inclusão aparecem aí, quase sempre,
preservando sua lavra funcionalista e, principalmente, centrando-se
no apelo à garantia de condições (econômicas, de acessibilidade, de
igualdade étnico-racial, de gênero etc.) para intervir sobre o ambiente a fim de
que cada um possa empreender sobre si mesmo, algo que
geralmente se faz pelo investimento educacional recebido tanto da
escola quanto da família.
Os cálculos sobre as potencialidades dos componentes hereditários a ser
transformadas em atos, das capacidades a ser
desenvolvidas graças ao treinamento de habilidades, a aquisição
de conhecimentos e a incorporação de hábitos, em ambas as instituições,
constituem-se em variáveis importantes na avaliação dos
riscos do investimento do capital humano de cada indivíduo. No
caso da escola, essa avaliação se dá por uma escala que privilegia o
desenvolvimento de capacidades, o treinamento de habilidades e a
aquisição de informações necessárias para o acúmulo de capital humano destinado
à ação eficiente nos níveis superiores de ensino, ao
consumo informado e à qualificação profissional. Para essas tarefas
concorrem outros aparelhos estatais e dispositivos de sujeição da
sociedade civil, inclusive a mídia, que facultam aos indivíduos, mapeados com
maior potencial e menor risco ao investimento educacional, uma ampla gama de
possibilidades para constituírem-se em
empresários de si, incorporarem uma economia e perfazerem-se em
um capital humano. Ao mesmo tempo, esse capital humano torna-se
objeto de troca no mercado e produz satisfação pessoal no sujeito
econômico, que passa a ser julgado por si e por outrem em razão de
sua eficiência, de seu desempenho e de sua performatividade, ou
seja, por medidas ou por regras supostamente iguais para todos,
mas que instauram um jogo que somente alguns se sobressaem em
virtude de seus esforços, interesses, capacidades e, principalmente,
competências.
Em torno desses resultados almejados pelo investimento educacional se alinham a
escola e a família – contudo, ajustam-se a essa
racionalidade para qualificar e capacitar seus elementos para que
também se tornem sujeitos econômicos. A esses sujeitos-elementos
são oferecidas as condições para que alcancem o grau máximo possível para si
mesmo no jogo concorrencial existente e demandam-lhes
que mobilizem todas as forças e potencialidade disponíveis para
melhor se empreenderem no mercado.
O pressuposto que justifica essa demanda é o de que, desde a infância até sua
emancipação jurídica, são ofertadas a esses elementos
as condições materiais, afetivas e, principalmente, informacionais
para que correspondam a essa exigência de mobilização, em uma
aposta da escola e da família em sua capacidade, em seu desenvolvimento
cognitivo, desempenho e performatividade. Em torno de tal
justificativa dos discursos sobre a inclusão, ocorre uma espécie de
preparo ambiental, realizada em virtude das intervenções familiares
e escolares, para que suas potencialidades e capacidades frutifiquem,
tal como em todo capital humano no neoliberalismo, propiciando
ganhos a outrem e satisfação a si.
Desde o nascimento até o momento em que adentram o ensino
superior ou a vida pública – nesse caso o mercado de consumo e, depois, de
trabalho entendido como um dos sinais de emancipação do
sujeito econômico –, tais intervenções são medidas pelos cálculos de
risco no investimento em cada indivíduo, sendo objetos de avaliação,
elaboração e efetivação, levando-se em conta a composição de cada
“máquina”, suas competências e capacidades.
Parece ser desse modo que estratégias desenvolvidas por essas
instituições garantem a distribuição dos investimentos conforme
as capacidades de cada qual, almejando seu máximo rendimento,
ao mesmo tempo que suas práticas procuram oferecer as condições
de igualdade inicial e juridicamente instituídas, necessárias a toda
concorrência para que, por um lado, aos diagnosticados como menos
capazes, ou mesmo como incapazes, existam condições compensatórias para atuarem,
ainda que como coadjuvantes nos ganhos de outrem e na satisfação de si. Por
outro lado, em tais práticas, a atuação
dos mais capazes ou capacitados no processo de empreendimento de
si lhes conferiria o papel de protagonistas, já que estrategicamente a
eles estaria destinada a capacidade de inovação, produzindo a mobilidade própria
dessa configuração da biopolítica no neoliberalismo,
a saber: a criação de novos produtos capazes de ampliar os ganhos de
outrem, a renda para si e, consequentemente, sua própria satisfação.
As diferenças são diagnosticadas, assim, em virtude desse escalonamento de
capacidades individuais que, economicamente, fazem
funcionar melhor o jogo da livre concorrência, descentralizando
por meio da multiplicação de suas artes de governo a intervenção do
Estado, que apenas reage às reivindicações das minorias para regular
a vida da população e para apoiar a esse investimento educacional no
intuito de propiciar sua distribuição compensatória para cada indivíduo e de
garantir os preceitos jurídicos de igualdade naquele jogo.
Ainda que na esfera pública sejam consonantes, a maioria das
vezes, com os objetivos do jogo do mercado, aquelas reivindicações e
essa intervenção estatal constituem-se em condições de emergência
das políticas de inclusão no jogo concorrencial próprio do neoliberalismo. Isso
porque forçam a alteração das regras desse jogo para
corrigir eventuais desigualdades suscitadas por condições de diferenciação entre
seus jogadores – em razão de suas condições genéticas, físicas, cognitivas,
psicológicas, econômica, étnico-racial, de
gênero etc. –, instituindo práticas que visam manter certo equilíbrio
na consecução da eficiência dos lances, na inovação das estratégias e
na mobilidade daqueles que se alteram em protagonizar as jogadas,
ampliando os ganhos de todos da mesma equipe e, ao mesmo tempo,
a satisfação propiciada pelo consumo de cada um.
No entanto, nem essas práticas produzem esse equilíbrio em razão do descompasso
existente entre a previsibilidade das jogadas e o
imprevisível dos lances, nem a diferença dos jogadores pode ser dirimida por
alterações de regras que almejam corrigir as desigualdades;
sobretudo, quando o objeto da regulamentação não é totalmente
passível de comparação por assimilação ou abstração, nem por uma
lógica identitária ou um cálculo econômico, mas, sim, conduzido
por um sujeito impassível, errante e imprevisível como a vida. Justamente por
isso esse sujeito capaz de criar modos de existência outros
para melhor habitar eticamente o mundo teria como sua condição
ontológica a liberdade, como sua virtualidade a assunção de uma
atitude vital e como resultado a diferenciação produzida por essa
experiência.
É esse sujeito ético que as políticas de inclusão procuram, por um
lado, tornar presente no que se refere às condições de capacitação
e às potencialidades de suas capacidades e, por outro lado, fazê-lo
invisível em suas diferenças e calar-se em relação a suas resistências,
enquadrando-o em um jogo no qual as regras se alteram para que
seus resultados reflitam sobre o ganho de outrem e sobre a satisfação
pessoal de cada um.
O que permanece intacto nesse jogo é o esvaziamento da existência de sentidos
para reduzir a vida a sua racionalização, sequer lógica
e somente econômica. Não se trata mais, desse modo, de incluir para
requerer desses sujeitos que se diferenciam como anormais apenas
sua presença como objetos, mas como sujeitos que participam
ativamente desse jogo com suas capacidades, qualificações e limitações,
subjugando-se, mais que a suas regras para poder simplesmente jogar, a um
dispositivo de inclusão que independe da expectativa
de outrem em relação a seu desempenho. Ao cumprir esse papel
previsível no jogo, porém, esse sujeito deveria deixar de ser o que é
e de diferenciar-se eticamente dos demais, escondendo si mesmo no
empreendimento de um eu esperado socialmente, justamente para
ser aceito como se houvesse somente a racionalidade econômica,
uma lógica unificadora da pluralidade dos modos de habitar o mundo, definida por
uma justificação seja natural, seja transcendental,
seja histórica.
Em busca de um olhar mais radical
Ao adotar um desses pontos de vista, os discursos sobre a inclusão escolar
prometem fazer inclusão nesses termos, por um lado,
instituindo um direito para neutralizar as lutas em torno da afirmação da vida e
da diferenciação ética; por outro lado, acirrando a
disputa entre seus próprios jogadores dentro desse jogo e fazendo
valer a força de exceção, de exclusão, de segregação, daqueles que
ocupam uma melhor posição – majoritária – sobre aqueles que estão
supostamente em um nível abaixo do seu. A instituição dos direitos
civis ameniza as lutas empreendidas por essa população que se sente
excluída em razão de fatores que a diferenciam dos demais integrantes da
população, na medida em que se acomodam as regras para lhe
dar condições de presença no jogo, ainda que seja para cumprir o
papel antes mencionado, sobretudo porque parece ser difícil colocar
esses sujeitos à margem dos objetivos da livre concorrência e de sua
restrição a uma racionalidade econômica a qual os jogadores estão
enredados. Para alguns jogadores, o discurso da inclusão, com as alterações das
regras, traz certa promessa de salvação, de pertença e de
conquista, ainda que suas diferenças permaneçam nas formas de cor
de pele, de pertencimento a um gênero, de uma deficiência, de um
trauma, de uma condição sociocultural ou socioeconômica.
Embora essas demarcações do que são independam de suas
vontades e caracterizem em certa medida seus estilos de existência,
aquelas promessas procuram, provisoriamente, deslocar de si para
outrem a vontade e a caracterização de seu modo de ser, produzindo
o apaziguamento das forças que mobilizam internamente e das lutas
que travam com seus e contra os demais. Os outros integrantes da
população, por sua vez, quase sempre se incomodam com as alterações das regras
que já os favoreciam e continuam a favorecer, por
considerar uma intervenção externa, alheia sua vontade e que lhe
custará alguma mobilidade no jogo, mais para o lado, raramente para
baixo, na hierarquia concorrencial.
Bastaria a lembrança das políticas de cotas raciais e socioeconômicas para o
ensino superior ou mesmo as de inclusão escolar na
educação básica, no Brasil, para compreender tal referência como
uma reação tanto àquela intervenção quanto a essa ameaça de suposta mobilidade.
Esse sintoma indica quanto a maioria acostumada a
esse jogo, mesmo admitindo a alteração de suas regras, raramente se
dispõe a mudar suas condutas, mesmo que seja para melhor alcançar
seus objetivos imediatos. Por isso, as disputas se acirram no âmbito
do jogo, pois os demais integrantes da população veem nessa necessária alteração
das condutas uma ameaça sua integridade enquanto
sujeitos econômicos, com posições já definidas no jogo e com um
desvio no que se refere ao empreendimento de si, chamando atenção
para o fato de que existe algo além do investimento que fazem em seu
capital humano ou, até mesmo, no de seus filhos.
É comum ouvir de alguns pais queixas de que os alunos deficientes nas escolas,
os quais foram incluídos recentemente por
força de lei, atrapalhariam o rendimento de seus filhos, retardando
o aprendizado ou, ao menos, não permitindo o treinamento da máxima eficiência
das capacidades deles. O que significaria admitir, na
lógica da racionalidade econômica imperante, que seus filhos, supostamente
normais, estariam sendo prejudicados pelos chamados
deficientes e tendo perdas no investimento educacional destinado a
constituir seu capital humano. Embora não seja exatamente esse o
argumento, pais dizem que, mesmo apresentando menos riscos por
suas condições hereditárias ou genéticas e, portanto, mais potencialidades para
o desenvolvimento pleno de suas capacidades, seus
filhos ficam à mercê de práticas inclusivas nessa instituição que,
ao concordar com o discurso sobre a inclusão, atrasaria o ritmo de
aprendizados e amenizaria a intensidade de treinamento para que
as outras crianças desenvolvessem as competências necessárias para
sua constituição como capital humano e para apresentarem-se como
empresários de si.
Com vistas a considerar os riscos do investimento educacional,
esses pais dizem que seus filhos perdem economicamente com essa
relação com o incapaz ou o chamado deficiente, assim como eles,
pois – ainda que por meio de outras esferas invistam para que seus
filhos alcancem a esse fim –, sentem-se não eficientes na gestão
do capital humano de sua prole. Tal sentimento também ocorre
com pais de filhos deficientes, porém por outras razões. Afinal, a
realidade da relação com seus filhos lhes impõe a percepção da necessidade de
maior investimento, pois seus filhos estariam sujeitos
a um maior risco, segundo essa racionalidade, na medida em que
sua composição hereditária apresenta problemas genéticos, congênitos ou mesmo
limitações físicas e/ou intelectuais decorrentes de
acidentes, que restringem suas capacidades, antes mesmo de serem
desenvolvidas por seu treinamento, administração e aquisições advindas da
educação. Não raro esses pais se sentem ineficientes, até
mesmo como pais, ao perceberem as incapacidades de seus filhos em
se empresariar por si mesmos e, por vezes, ao perceber na deficiência
deles as suas próprias.
Tal sentimento parece substituir a vergonha de gerações anteriores,
impulsionando esses pais a uma busca desenfreada pela normalidade, por
correções, a ponto de vibrarem com qualquer conquista
nessa direção e resignarem-se, uma vez que, em virtude da segurança perante os
riscos da condição de deficientes de seus filhos, já seria
um ganho ocuparem uma posição menor na hierarquia funcional
instituída. Tal é o aprisionamento a determinada lógica e sentimentos que,
raramente, esses pais pensam que o eventual ganho de seus
filhos seria pequeno se comparado a de outros alunos, chamados
de normais, que aprendem com a convivência com a deficiência de
outrem e com as relações aí estabelecidas, algo que escapa ao poder
disciplinar, à normalização ou até mesmo à capacitação almejada
pela educação escolar.
Não é nesse âmbito de preocupações que se pauta atualmente o
discurso sobre a inclusão escolar, que teve como condição de emergência a
racionalidade econômica e a biopolítica neoliberal, mas, sem
sombra de dúvidas, poderia ser. Quando emergem por essa ótica, os
acidentes desse outrem e as diferenciações trazidas por sua deficiência para os
atores da escola seriam ao menos tomados como objetos
de estudo, de planejamento e de cálculo para promover a inovação
das tecnologias do biopoder presentes na escola, assim como propiciar maior
mobilidade ao capital humano formado nessa instituição,
para admitir a diferença ética e se confraternizar com ela, tornando o
mundo cada vez mais inclusivo.
Para além das restrições à disciplinarização, à correção, à normalização e à
capacitação desses atores da educação escolar, essa
perspectiva radicaliza o papel da instituição escolar na formação do
capital humano, dando-lhe poderes mais amplos e investindo na relação dos demais
alunos com o deficiente. Isso porque visa fazer dela
um preparo empírico para que os alunos ditos normais adquiram habilidades para
lidar com a diferença do outro no presente, ampliando
seu capital humano para que possa usar os recursos aprendidos com
essa relação em um futuro próximo, enquanto o deficiente com ela
garantiria o aprendizado de sua subsistência autônoma, contando
com a tolerância alheia e com políticas compensatórias pactuadas
desde o presente e a ser ampliadas no futuro.
Desse ponto de vista, os discursos sobre a inclusão poderiam
vencer algumas resistências e, se apropriados pelos pais dos alunos
com deficiência, poderiam convencer os demais de que o principal
beneficiário da introdução das práticas inclusivas, efetivamente,
seriam os filhos dos outros, já que os seus apenas teriam ganhos
secundários, mas ao menos estariam protegidos da exclusão e da violência que
esse jogo representa. É em torno de tais argumentos que
alguns profissionais que atuam com crianças e jovens deficientes
vêm enunciando de outro lugar o discurso sobre a inclusão, sendo
acompanhados por alguns pais. No entanto, esse outro lugar de
enunciação parece corroborar e aperfeiçoar essa ótica atual do mercado e do
capital humano, reiterando uma racionalidade econômica
que, embora se tenha instituído profundamente nos capilares da
vida atual e, especialmente, de seu controle pelas tecnologias do
biopoder, não parece suficiente para que a diferenciação ética que
compreende a deficiência torne-se visível e nela se veja não uma vida
que se esvai, mas uma experiência singular que potencializa e resiste
sua destituição nas relações de poder vigente.
Para que isso acontecesse, seria importante que de sujeito participante do
capital humano que, com todas as suas limitações, empreende a si próprio e ocupa
um lugar no jogo hierárquico do capital,
tal como proposto pelo discurso sobre a inclusão, os deficientes
passassem a assumir uma posição, se não de sujeitos da enunciação
desse discurso, ao menos daqueles que asseguram sua expressividade na esfera
pública, um lugar mais digno para ocupar-se de si
mesmo e exprimir sua diferença ética no âmbito de uma isonomia
quantitativa de opiniões. Poderiam apresentar-se dessa forma como
enunciadores de um discurso da diferença ou, simplesmente, como
sujeitos que exprimem uma deficiência, entre tantas existentes, inclusive em
cada um de nós e nas quais impulsiona a vida. Esse ponto
de vista daria maior visibilidade ao que são, ao sujeito ético que perfazem,
ainda que se encontre aí um limiar extremamente complexo
e delicado, assim como se apresentaria dessa forma um contraponto
tanto ao discurso sobre a inclusão quanto às práticas ditas inclusivas,
nos termos de sua biopolítica neoliberal.
Esse limiar é complexo porque implica uma passagem da inclusão para a diferença,
marcada por outro tipo de racionalidade, e
delicado porque necessita da implicação de cada um no intuito de
ocupar-se com as condutas que conduzirão a própria vida, em uma
relação com a deficiência que é de outrem, mas que também é sua, de
cada um e de qualquer comunidade. Tal delicadeza consiste em andar no fio da
navalha, entre uma vida que se esvai pelo atual exercício
das tecnologias do biopoder, a racionalidade econômica, e outra que
foge dessas últimas, sobrepondo-se, restando ou excedendo a ela,
por outras racionalidades. Em que medida se pode caminhar nessa
linha, sabendo quando se tem o direito de usar do desenvolvimento
dos conceitos e das ciências para conduzir a vida sobreposta, restante
ou excedente, é uma das incógnitas dessa política que tem como base
uma série de questões éticas ou bioéticas – e talvez um de seus desafios mais
dignos de serem enfrentados no tempo presente.
Entre as questões que desafiam aqueles que se relacionam forçosa
ou deliberadamente com esse outro, chamado de deficiente, por um
lado, é o de ver na experiência singular que essa relação proporciona
a emergência de uma diferença radical e de um acontecimento que
problematiza sua própria existência e faz dessa deficiência alheia um
devir da transformação de si mesmo; por outro lado, para esses com
quem se relacionam, o desafio parece o fato de se esse sujeito chamado
deficiente pode ou não, como qualquer um, pelas limitações
genéticas, biológicas ou acidentais que a ele se impõe, emancipar-se
desse estado ou, ao menos, exprimir a diferenciação ética em que
vive, entre tantas outras que se apresentam na esfera pública. Cabe
perguntar se essa diferenciação que exprime não seria a possibilidade
de transformar as próprias formas de existência hegemônicas nas comunidades das
quais participa e da própria esfera pública, exigindo
uma democracia que não se paute exclusivamente em uma isonomia
quantitativa, mas também na valorização da convivência agônica e
qualitativa de diferentes modos de existência, elegendo-o como seu
princípio vital e como uma maneira de resistir à atual configuração
da biopolítica.
Esses desafios, sim, parecem conferir positividade à deficiência
e dignidade aos deficientes como efetivos partícipes da vida e de
suas lutas no mundo, dando-lhes se não um lugar de destaque, ao
menos um lugar comum. Não foi esse, porém, o sentido conferido
à deficiência nos desdobramentos da biopolítica neoliberal, como
veremos no próximo Capítulo, mas, sem dúvida, é contra ele que
parte dos dispositivos desta última vão se desenvolver, com vistas a
capturar as formas de resistência apresentadas pelos modos de vida
denominados deficientes.
ϟ
in Biopolítica, deficiência
e educação: outros olhares sobre
a inclusão escolar
Pedro Angelo Pagni
São Paulo: Editora Unesp Digital, 2019, 173 p.
ISBN: 978-85-9546-333-2.
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