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 Sobre a Deficiência Visual

Participação Ocupacional do Idoso com Deficiência Visual: sua percepção

Marlene Caldas Monteiro

Blind Wit Stwosz with daughter - Matejko
Blind Wit Stwosz with daughter - Matejko, 1865
Introdução
I - Revisão Bibliográfica
1. Definição de deficiência visual no idoso
2. Patologias da visão no idoso
3. Impacto da deficiência visual no idoso
    3.1. Consequências Psicossociais
    3.2. Consequências funcionais
4. Ajustamento e adaptação à deficiência visual
5. Papel da Terapia Ocupacional no idoso com deficiência visual
II - Estudo Empírico
1. Aspectos Metodológicos
    1.1 Abordagem Metodológica
    1.2 Amostra
    1.3 Método de recolha de dados
    1.3.1 Procedimentos
    1.4 Análise de Dados
2. Resultados
2.1 Impacto da deficiência visual
     2.1.1 Implicações psicossociais da deficiência visual
     2.1.2 Restrições nas actividades e ocupações do idoso com deficiência visual
2.2 Adaptação e ajustamento à deficiência
     2.2.1 Apoio e atitudes sociais
     2.2.2 Instituições e recursos acessíveis
     2.2.3 Estratégias utilizadas
2.3 Benefícios percebidos
      2.3.1 Benefícios psicológicos
      2.3.2 Participação
3. Discussão
3.1 Impacto da deficiência visual
3.2 Adaptação e ajustamento à deficiência
3.3 Benefícios percebidos
Conclusão
Referências bibliográficas


Introdução

O presente estudo surge no âmbito do Mestrado em Terapia Ocupacional, especialização Gerontologia e debruça-se sobre uma área que tem merecido muito pouca atenção por parte dos teóricos e investigadores no geral, sobretudo em Portugal: deficiência visual. Esta constatação deriva da escassa bibliografia publicada, escassez que em Portugal assume uma carência notória. Acredita-se que este pouco interesse decorre, pelo menos em parte, devido ao conjunto de mitos e de falsas crenças em torno da problemática da deficiência visual que se dilui pela sociedade em geral, ainda mais na população idosa. Mas os órgãos dos sentidos são muito importantes não só para a vida de relação do indivíduo como também para dar qualidade à sua existência. Por essa razão seria expectável uma preocupação acrescida na área da deficiência visual, ainda mais nos idosos, porque, quando a pessoa envelhece, os cinco sentidos declinam em acuidade, e o prejuízo da visão é um dos que traz mais maior número de problemas (Serra, 2006).

Tratando-se de um dos sentidos com maior importância na adaptação à vida do dia-a-dia, efectivamente, a perda de visão é a deficiência mais temida, talvez porque associada a ela esteja o medo da perda de outras capacidades e funções importantes. Além disso, na bibliografia existente, verifica-se uma maior atenção sobre as questões educativas de crianças com deficiência visual, o que poderia sugerir que esta população é a mais afectada pela perda de visão (Mendonça et al, 2008). No entanto, os dados epidemiológicos mostram precisamente o contrário. Ou seja, é cada vez mais tarde que os sujeitos são afectados pelas perdas visuais. Este facto, em parte poderá ser explicado pelos dados estatísticos do Instituto Nacional de Estatística (INE), que apontam que em Portugal, a população idosa duplicou nos últimos 40 anos, estimando-se em 1 500 000 com idade maior ou igual a 65 anos, que coloca esta faixa etária em franca proeminência (INE, 2002). E, os níveis de fragilidade, do adoecer crónico e incapacidade são agora dominados pelos muitos idosos. Este grupo, mais do que o grupo de idosos saudáveis, impõe exigências e desafios substanciais à sociedade em geral. Dado o rápido crescimento da população idosa, estas ambiguidades e desafios relativos aos cuidados geriátricos, ganharam maior relevância e tornaram-se mais prementes. Impõe-se, deste modo, um novo paradigma, que enquadre este grupo etário numa visão mais holística da medicina, isto é, numa perspectiva de amplificação biopsicossocial (Fernandes, 2006).

Considerando que a Terapia Ocupacional investiga e intervém numa vasta gama de problemáticas relacionadas com a saúde e com a doença, e que a deficiência visual é uma condição de saúde que merece intervenção por parte dos profissionais da área em causa, decidiu-se que seria pertinente dedicar esta investigação a esta temática. Procurou-se, por isso, que este estudo abarcasse as experiências dos idosos que perdem a visão, por se considerar esta população tem uma experiência de participação ocupacional bem diferente da dos mais jovens. Para tal, optou-se por utilizar uma metodologia qualitativa, fenomenologia, permitindo construir hipóteses com base nos dados recolhidos.

De modo a possibilitar uma compreensão desta investigação, dividiu-se o estudo em duas grandes partes: a primeira, constituída por quatro capítulos, e denominada de revisão bibliográfica; a segunda constituída por três capítulos, apresenta o estudo empírico desenvolvido. No primeiro capítulo abordou-se a definição de deficiência visual no idoso, para enquadrar tudo o que venha a ser dito sobre este conceito ao longo do trabalho, e alertando, também para as estatísticas de incidência desta deficiência ao nível mundial e nacional. Descreve-se, depois, sucintamente o sistema visual, bem como as doenças oftalmológicas que conduzem à redução e ausência da função visual no idoso. Em seguida, descreveram-se algumas considerações sobre o impacto da deficiência visual no idoso, abordando as implicações psicossociais e funcionais. Por fim, caracterizou-se o processo de ajustamento e adaptação à deficiência visual, incorporando a perspectiva da reabilitação. O último ponto apresentado justifica, então, a intervenção da Terapia Ocupacional no idoso com deficiência visual.

No estudo empírico, propriamente dito, procurou-se explorar as perspectivas dos idosos com deficiência visual na experiência que têm na sua participação ocupacional. Pretendeu-se, também, perceber as suas atitudes e comportamentos em relação ao apoio da Terapia Ocupacional, uma vez não existe em Portugal publicações neste âmbito. Foi com estes objectivos que a presente investigação abrangeu três focos de estudo: impacto da deficiência visual no idoso, ajustamento e adaptação à deficiência pelo idoso e a sua participação ocupacional actual.

Espera-se que esta investigação ofereça uma panorâmica do muito que há a explorar sobre a deficiência visual, de modo a despertar noutros o interesse e o empenho que esta temática merece.


I - Revisão Bibliográfica

Nesta secção serão abordados alguns aspectos genéricos que permitem enquadrar a intervenção na população idosa com deficiência visual. Nesta perspectiva abordar-se-ão as seguintes temáticas: definição de deficiência visual no idoso; as patologias da visão no idoso; o impacto da deficiência visual no idoso; o ajustamento e adaptação à deficiência; e o papel da Terapia Ocupacional no idoso com deficiência visual.

1. Definição de deficiência visual no idoso

A deficiência visual é um conceito abrangente e, para se definir melhor abordar-se-ão aspectos como avaliação e classificação, uma vez que são interdependentes. Assim, primeiramente, apontar-se-ão alguns dos conceitos dentro deste campo e as suas definições, far-se-á referência a alguns aspectos envolvidos na avaliação do funcionamento visual, e apresentar-se-á a classificação da deficiência visual, com especial atenção à proposta da Organização Mundial de Saúde (OMS). Por fim, remeter-se-á estes dados para as estatísticas mundiais e nacionais, de forma a perceber a incidência na população idosa.

Por deficiência, na perspectiva de Verdugo (1995) abrange uma multiplicidade de problemas e situações, embora habitualmente possam ser agrupadas de forma genérica em deficiências físicas, sensoriais, e mentais, sendo entre as do segundo grupo que se encontra a visual. Especificamente, para a deficiência visual, dada a heterogeneidade de termos, de conceitos, de sujeitos implicados, de objectivos perseguidos, de critérios utilizados, de modelos de análise e de estratégias de intervenção, não se verifica um grande consenso. Na literatura sobre o assunto, é possível encontrar não só grande variedade de termos, mas também diferentes definições para um mesmo termo.

Tal como outros autores já constataram, Cotter et al (2006) mencionam que a própria expressão deficiência visual por vezes é utilizada de forma inconsistente: ora referindo-se a visão parcial, ora englobando todas as condições em que se verifica um comprometimento da visão, incluindo a cegueira. Estes autores optaram pela segunda definição, salientando que a deficiência visual é um contínuo de condições que vão da cegueira a vários graus e tipos de visão parcial. É também neste sentido que se utilizou a expressão deficiência visual ao longo do presente estudo. Portanto, a cegueira corresponde a um tipo de comprometimento visual dentro da deficiência visual. Para designar os défices visuais parciais encontrou-se, entre outros, termos como ambliopia, baixa visão, visão sub-normal, visão reduzida, sub-visão, visão parcial e, como se acabou de referir, deficiência visual. Neste estudo, optou-se por utilizar a expressão ambliopia para designar as pessoas que apresentam uma diminuição significativa na sua capacidade visual. Ainda que o termo ambliopia também não seja consensual, poderá suscitar menos dúvidas quanto ao seu significado porque representa a terminologia utilizada na Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), instituição onde se concretizou o estudo, tornando-se mais fácil a correspondência dos dados.

Pode-se deferir pela literatura que ainda existe grande discussão sobre os critérios e limites para definir e classificar a visão reduzida e a cegueira. Por isso, optou-se por seguir as linhas orientadoras da OMS, em que a deficiência visual é definida pelo funcionamento visual. Esta definição tem por base medidas clínicas relativas a duas funções visuais: a acuidade visual e o campo visual, uma vez que da sua análise se deduz o estado de funcionamento da visão (WHO, 2007; Mendonça et al, 2008).

A acuidade visual representa uma medida clínica de aptidão do olho, de resolução espacial, que permite discriminar os detalhes espaciais. Ou seja, mede a capacidade de perceber a forma e o contorno dos objectos a uma distância específica, normalmente feita através da escala optométrica de Snellen e corresponde à relação entre a distância a que a escala é colocada e a linha de símbolos mais pequenos que a pessoa é capaz de ver com ambos os olhos. Trata-se, portanto, de uma medição objectiva do que a pessoa consegue ver (Olver & Cassidy, 2009; Ladeira & Queirós, 2002).

O campo visual, por sua vez constitui um mapa que corresponde à distância angular que cada olho consegue abranger, ou seja, é a área passível de ser vista para a frente, para as laterais direita e esquerda, para cima e para baixo, quando o olho está a ser examinado fixo num ponto, numa linha recta paralela ao solo. Inclui visão central e periférica e, normalmente o campo visual é de 180 graus de lado a lado (Olver & Cassidy, 2009; Ladeira & Queirós, 2002). Para Olver & Cassidy (2009, estas duas medidas são independentes porque, por exemplo, uma pessoa com fraca acuidade visual apresenta um campo visual normal, caso as vias visuais estejam intactas, mas carece de um alvo de maior dimensão para que os seus campos sejam marcados. Por isso, para estes autores é errado classificar um paciente com perda do campo visual, recorrendo a um alvo demasiado pequeno, quando este apresenta fraca acuidade visual. Assim, defendem que, antes de tudo, há que avaliar a acuidade visual para depois se efectuar a melhor opção para avaliação do campo visual. Assim, tendo por base estas duas medidas, e respeitando os critérios determinados pela OMS, a deficiência visual engloba duas categorias distintas: a cegueira e a ambliopia, correspondendo a ambliopia a acuidades visuais compreendidas entre 0.3 e os 0.05, com um campo visual de pelo menos 20º e a cegueira a acuidades visuais inferiores a 0.05 ou um campo visual inferior a 10º. A ambliopia subdivide-se em moderada e grave e a cegueira em profunda, quase total e total (Cotter et al, 2006; WHO, 2007; Resnikoff et al, 2004).

Para este estudo foram, então seguidos os critérios de OMS para a definição de deficiência visual, pelo estatuto reconhecido a nível mundial da OMS e porque, em Portugal e na Instituição de onde foi recolhida a amostra (ACAPO), também se adoptou esta definição. Portanto, os indivíduos com deficiência visual que se podem associar a esta Instituição têm que apresentar uma acuidade visual igual ou inferior a 30%, no melhor dos olhos e após correcção, e que possuam um campo visual igual ou inferior a 20º (Estatutos da ACAPO, 2008). No entanto, Mendonça et al (2008) defendem que, se por um lado, os resultados da avaliação destes parâmetros têm um valor objectivo incontestável, por outro, é difícil a sua transposição para as condições e situações de visão dos sujeitos com visão reduzida, porque duas pessoas com os mesmos valores de acuidade e campo visual, podem apresentar níveis de funcionamento visual muito distintos. Até a própria pessoa, quando sujeita a diferentes condições ambientais pode apresentar diferentes níveis de funcionamento visual. De acordo com estes autores pode-se inferir que esta classificação pouco ou nada nos diz sobre o real funcionamento visual de cada indivíduo.

Parece pois pertinente apresentar a definição de Ribeiro (2007), que conceptualiza a deficiência visual numa perspectiva funcional, caracterizando-a como uma alteração da capacidade funcional da visão decorrente de: uma diminuição significativa da acuidade visual; redução do campo visual; e alterações corticais e/ou de sensibilidade ao contraste, que interfiram ou limitem o desempenho visual do indivíduo, influenciados por factores ambientais e pessoais inadequados.

Na perspectiva da Terapia Ocupacional, são importantes as definições clínica e funcional; contudo é dado maior enfoque na funcional, pois a partir do momento em que o indivíduo apresenta dificuldades no desempenho das suas ocupações (como por exemplo dificuldades em ler um livro, apesar de conseguir ler pequenas indicações e palavras), significa que o indivíduo não está a usar a sua visão de forma funcional, apesar dos valores de acuidade visual se manterem estáveis (Ribeiro, 2007). Isto porque, mais uma vez, um mesmo valor de acuidade visual pode-se traduzir em limitações visuais distintas, tendo em consideração a eficiência e visão funcional, bem como variáveis de ordem pessoal (experiência, motivação, necessidades, expectativas) e ambiental (Ladeira & Queirós, 2002).

Assim, podemos assumir, tal como Ladeira & Queirós (2002) que os critérios não devem ser exclusivamente direccionados para a acuidade e campo visual, mas sim incluir também a eficiência e visão funcional. Para estes autores, a eficiência visual diz respeito ao grau de facilidade, conforto e tempo que a pessoa demonstra ao desempenhar determinadas tarefas, enquanto que a visão funcional representa o grau de utilização da visão no desempenho dessas mesmas tarefas.

Pelo exposto, verifica-se que algumas questões terminológicas, avaliativas e classificatórias carecem de homogeneidade e de consenso, na abordagem e no estudo das classificações visuais. No entanto, também é importante perceber como se reflecte na sociedade.

Assim, pretende-se ainda dar a conhecer algumas estatísticas referentes à incidência da deficiência visual a nível mundial, para depois referenciar os dados de Portugal, permitindo definir a quantidade de idosos afectos a esta deficiência.

Baseados nos dados da OMS, e tendo em conta a população mundial em 2002, o número de pessoas com deficiência visual rondava os 314 milhões de pessoas, dos quais cerca de 45 milhões eram cegas. E mais, as estatísticas apontam que a maioria das pessoas com deficiência visual são idosos, e as mulheres são o grupo de maior risco em todas as idades, em qualquer parte do mundo (WHO, 2009).

Em Portugal, segundo os dados do INE (2002), o número de pessoas com deficiência recenseadas em 12 de Março de 2001 cifrou-se em 634.408, das quais 333.911 eram homens e 300.497 eram mulheres, em que a taxa de deficiência visual era a mais elevada representando 1,6% do total de população, com a mesma proporção entre homens e mulheres. No entanto, salienta-se, também, que as respostas sobre a deficiência obtidas nos Censos 2001 resultaram sobretudo da autoavaliação de cada respondente em relação aos tipos de deficiência inscritos nos respectivos questionários. Mesmo nas situações em que as respostas dos questionários foram preenchidas pelos recenseadores na sequência de entrevista directa e não de auto-preenchimento, a resposta baseou-se na auto-percepção que cada pessoa tinha em relação às suas características individuais, ou dos membros da família em relação aos quais estava a prestar informações, o que pode provavelmente não coincidir com a classificação de deficiência visual. Estes dados do INE (2002), revelaram também que a taxa de incidência da deficiência visual foi igualmente alta em todas as regiões do País, tendo maior incidência em idades mais avançadas, sobretudo em mulheres, coincidindo com as estatísticas apontadas pela OMS (WHO, 2009). Este facto é justificado pelo INE (2002), como resultante da própria estrutura etária da população residente, ou seja, entre a população idosa o número de mulheres é bastante superior ao de homens, consequência de dois fenómenos demográficos: a maior longevidade das mulheres e a maior taxa de mortalidade masculina.

Ainda, de acordo com Serviço de Estudos sobre a População do Departamento de Estatísticas Censitárias e da População (2002), a proporção da população mundial com 65 ou mais anos regista uma tendência crescente, aumentando de 5,3% para 6,9% do total da população, entre 1960 e 2000; e para 15,6% em 2050, segundo as mesmas hipóteses de projecção. É de referir ainda que, o ritmo de crescimento da população idosa é quatro vezes superior ao da população jovem. Assim, respeitando estes factos, e de acordo com os dados apontados pela OMS, pode-se inferir, que os idosos são um grupo susceptível à deficiência visual, não só pela maior proporção de pessoas face a outras faixas etárias, mas também, provavelmente, devido à maior incidência de doenças oculares que se manifestam no idoso (Duthie & Katz, 2002; Ribera, Veiga & Torrijos, 1991; WHO, 2009). No próximo capítulo serão então, abordas as patologias oculares mais frequentes neste grupo etário.


2. Patologias da visão no idoso

Procurar-se-á, neste ponto, apresentar uma panorâmica geral sobre o funcionamento do sistema visual que, por se caracterizar por uma enorme complexidade, torna impraticável a sua exposição aprofundada neste estudo. Contudo, uma breve apresentação do sistema visual, permitirá enquadrar de seguida a descrição sumária das patologias que estão na origem da deficiência visual da população em estudo.

O olho como órgão sensorial receptor de informação permite a percepção do ambiente; no entanto, ver requer muitos processos para ser significativo e útil (Mclntyre & Atwal, 2005) e, ao contrário do que possa aparentemente parecer, ver não é um acto simples. Requer todo um conjunto de ligações cerebrais imprescindíveis para se obter uma resposta visual, numa ínfima fracção de tempo. Defende-se que as imagens não dependem só do olhar, mas também da forma como a informação alcança as áreas cerebrais responsáveis pela recepção, organização e tratamento da informação visual e da interacção activa do cérebro na codificação dos múltiplos estímulos que permite atribuir um sentido à informação captada pelo olho (Ladeira & Queirós, 2002). Embora possa parecer bastante simplista, Ladislas (1994) descreve o olho como sendo essencialmente constituído por um sistema óptico (a córnea, o cristalino e o corpo vítreo), um sistema fotoreceptor ligado ao córtex visual do cérebro (a retina), e um sistema de contenção (esclerótica, músculos e pálpebras).

Para Fernández-Ballesteros (2004), a importância do olho incide sobretudo na sua função. Este autor descreve que a actividade visual se inicia com o processo de fototransdução retiniana ao nível dos fotoreceptores (cones e bastonetes) por excitação de pigmentos visuais que absorvem os fotões. A despolarização-hiperpolarização destes fotoreceptores propicia a libertação de neurotransmissores nas células da retina, que estabelecem contacto em fendas sinápticas da membrana externa e interna dos fotoreceptores. Aí, organizam-se os feixes centrais que conduzem o nervo óptico até aos centros do sistema visual, localizados no cérebro, onde, por sua vez se descodificam as mensagens visuais e se consolida a memória visual.

Pode-se então resumir que o sistema visual é um complexo aparelho (basicamente formado pelo olho, por um conjunto de vias nervosas e por estruturas do sistema nervoso central), em que a sua função é captar luz do meio ambiente e convertê-la em impulsos nervosos para serem transmitidos ao córtex visual.

Na literatura encontrou-se várias explicações etiológicas para problemas que afectam uma ou mais das estruturas do sistema visual e, consequentemente, a visão, tais como: condições hereditárias, recém-nascidos prematuros expostos a concentrações excessivas de oxigénio em incubadoras, doenças infecciosas contraídas pelo próprio sujeito ou pela mãe durante a gravidez, condições provocadas por insuficiências vitamínicas, problemas metabólicos, causas acidentais, condições devidas ao envelhecimento, entre muitos outros exemplos. É importante salientar que a etiologia da deficiência visual pode ser multifactorial, ou pode não estar especificada (WHO, 2009; Resnikoff et al, 2004).

Devido ao grande número de condições causadoras de deficiência visual, optou-se por apresentar, ainda que de forma muito sucinta, as patologias apontadas como mais comuns na população idosa e, são elas: as cataratas, a degenerescência macular relacionada com a idade (DMI), o glaucoma e a retinopatia diabética (Duthie & Katz, 2002; Ribera, Veiga & Torrijos, 1991).

As cataratas são definidas por Kauffman (1999), como uma opacificação do cristalino, o que pode provocar vários sinais e sintomas comuns, incluindo problemas com luzes intensas e perda de visão ao longe. Isto acontece porque o cristalino é a lente que concentra os raios luminosos da retina e a nitidez da imagem na retina depende da acomodação do cristalino. Embora actualmente não existam meios comprovados de prevenção da catarata, o processo de perda visual pode ser curável, se houver acesso ao diagnóstico e tratamento (Ribeiro, 2007).

A DMI é uma patologia degenerativa da retina, que afecta essencialmente a área foveomacular, podendo-se encontrar escotomas centrais. Os sinais e sintomas desta patologia incluem a redução da visão central, com implicações na leitura (mesmo com óculos específicos) e perda de visão de detalhe (tais como as características faciais). As cores podem parecer desbotadas e os objectos podem parecem diferentes quando observados com um olho de cada vez. Estas alterações visuais também podem criar dificuldades com a percepção da profundidade e os objectos podem desaparecer do campo visual (Kauffman, 1999). Na perspectiva de Silva & Ribeiro (2006), tendo em conta o envelhecimento crescente da população idosa, assiste-se a uma tendência para o aumento desta patologia. Em Portugal, estima-se que 45 000 pessoas sofram de DMI, das quais 30 000 têm tratamento possível, permitindo retardar a progressão da doença. No entanto, de acordo com Ribeiro (2007) esta patologia pode progredir para uma perda irreversível de visão, levando à deficiência visual.

O glaucoma é uma condição em que a pressão intra-ocular se torna tão elevada que danifica a retina e o nervo óptico, traduzindo-se numa deficiente condição de afluxo aquoso, devido à menor resistência nos canais de drenagem (Olver & Cassidy, 2009). Segundo estes autores, esta patologia representa um grupo diverso de condições oculares (pelo menos 60 tipos), que podem ser divididas em grupos diagnósticos distintos. Os sinais e sintomas do glaucoma dependem da sua evolução: podem-se encontrar desde sensibilidade reduzida ao contraste, sensibilidade à luz forte, excesso de lágrimas, dor e rubor nos olhos, entre outros. De acordo com Kauffman (1999), também se pode traduzir em cegueira nocturna, pontos cegos no campo visual e uma visão periférica deficitária. Uma intervenção inicial e controlo da situação são fundamentais para impedir a perda da função visual e, se não for tratado, o glaucoma pode levar à cegueira.

A retinopatia diabética é descrita por Ribeiro (2007), como uma alteração retiniana devido a obstrução dos vasos capilares de região macular e retiniana. Existe formação de cicatriz ou escotomas extensos, e em alguns casos, edema ou cistos de mácula, podendo evoluir para descolamentos de retina. Os sinais e sintomas que Kauffman (1999) nos chama atenção, incluem imagens flutuantes, distorção, escurecimento, alterações na correcção refractária, diplopia e perda de visão de cores.

Os dados estatísticos apontam que a incidência destas patologias está claramente ligada à idade cronológica, acabando por se verificar um aumento progressivo de idosos com deficiência visual (Benito, Veiga & González, 2003). Posto isto, tal como Ladislas (1994) e Duthie & Katz (2002) afirmam, as doenças oculares, quando acompanham o idoso, devem ser detectadas o mais precocemente possível e devem ser devidamente vigiadas, a fim de reduzir o risco de cegueira.

Ainda, alertados por Fonseca (2006), convém frisar que há indivíduos que manifestam logo desde a meia-idade alterações de saúde bastante significativas, com implicações ao nível do seu bem-estar físico e psicológico, e que vão ter impacto na sua velhice. Na verdade, o que se pretende transmitir é que, com a idade, os sinais biológicos da velhice instauram-se e tanto podem ser pouco perceptíveis, como podem confundir-se com os sintomas de uma doença. Quando a pessoa envelhece, os cinco sentidos declinam em acuidade e muitas alterações normais da visão ocorrem no idoso, em níveis fisiológicos e funcionais (Mclntyre & Atwal, 2005; Serra, 2006). Esta dificuldade em diferenciar estes sinais justifica, de certa forma, a opinião de Galeno, que situava a velhice a meio caminho entre a doença e a saúde (Romano, 1997). Contudo, Sousa, Figueiredo & Cerqueira (2004) defendem que este processo não é tão linear: tanto há idosos que sofrem de múltiplas doenças e/ou incapacidades, como há alguns que mostram apenas pequenas variações de saúde até uma fase bastante tardia da existência.

Assim, e tal como Zirmermam (2000), defende-se que a velhice e os sinais do envelhecimento não são doença, embora a doença possa surgir e, em alguns casos levar à deficiência visual. Na perspectiva de Silva & Ribeiro (2006), a deficiência visual adquirida, em qualquer fase da vida, tem um grande impacto sobre o indivíduo e a sua família, por isso é que estes autores incentivam o estudo da deficiência visual no idoso. Contudo, Ribera, Veiga & Torrijos (1991) contrapõem e realçam que, no caso dos idosos, se dá pouca atenção à patologia dos sentidos e há vivência destas alterações neste campo, tanto pelo próprio idoso, como pela família e sociedade. Para perceber melhor estes pontos de vista, organizou-se no próximo capítulo alguma informação referente ao impacto da deficiência visual no idoso.


3. Impacto da deficiência visual no idoso

Paul & Fonseca (2001) atestam que a sua saúde não é por si só condição de felicidade mas, para o idoso, a sua ausência provoca sofrimento e quebra no bem-estar, devido a interacções complexas, directas e indirectas, com factores da qualidade de vida.

Por isso, dada a multiplicidade de aspectos envolvidos na forma como a deficiência visual afecta o indivíduo e as alterações que esta condição provoca nas suas vidas, procurar-se-á neste capítulo abordar o impacto da deficiência visual no idoso. Este impacto, abordado de um modo geral, manifesta-se num conjunto de consequências que poderão ser agrupadas em consequências psicossociais e consequências funcionais.


3.1. CONSEQUÊNCIAS PSICOSSOCIAIS

Na perspectiva de Benito, Veiga & González (2003), quando se trata de abordar as consequências psicossociais que uma deficiência visual acarreta para a vida dos que a vivenciam, e para melhor se entender estas consequências no idoso, muitos aspectos devem ser tidos em consideração, devido à grande variedade de situações que ela pode provocar. Assim, há que atender à forma como a deficiência visual surge: se é congénita ou adquirida; se a perda foi gradual ou repentina; qual o grau, tipo e estabilidade de visão; se as dificuldades são óbvias para o observador externo, e se essa condição vem acompanhada de outros problemas de saúde, sem esquecer todo um conjunto de factores sociais que produzem variabilidade em qualquer população afectada por esta deficiência.

No idoso, as diversas situações que foi vivendo ao longo do tempo e observando nos outros vão constituir um fundo experimental que é tido em consideração, nesta situação de privação visual. Tendo em conta este suporte, poderão ser diferentes as repercussões psicológicas emergentes e podem consolidar ou potenciar o aparecimento de determinados esquemas cognitivos ou respostas emocionais, que vão actuar como base ou referência desestabilizadora no processo de ajustamento à deficiência. As manifestações depressivas têm sido as repercussões psicológicas mais comuns associadas à deficiência visual (Benito, Veiga & González, 2003). Estes autores chegam mesmo a apontar que um terço dos idosos com deficiência visual experimentam sintomatologia depressiva clinicamente significativa, representando uma proporção substancialmente mais elevada que a apresentada na população em geral dentro deste mesmo contexto.

Contudo, também realçam que a sintomatologia depressiva é relativamente comum num elevado número de idosos, não sendo exclusiva da deficiência visual, concluindo que deficiência só por si não afecta o idoso, mas sim todo o conjunto de mudanças associada ao processo de envelhecimento. Ainda, na tentativa de salientar as repercussões emocionais negativas na deficiência visual, descrevem a diminuição da satisfação e decréscimo na auto-estima. Para Dodds, Bailey, Pearson & Yates, (1991), além da depressão, a ansiedade também pode se manifestar, surgindo normalmente em simultâneo. Isto permite assumir que, por si só a deficiência visual não assume repercussões psicológicas estanques para o idoso.

Por outro lado, a deficiência visual pode resultar num factor de stress não só para o indivíduo, como também para as pessoas que estão mais próximas. Assim, quando se estudam idosos, além dos efeitos no bem-estar psicológico e na qualidade de vida, têm sempre que se considerar os efeitos das redes sociais (Horowitz, Reinhardt, & Boerner 2005)

As implicações sociológicas da deficiência visual podem ser: isolamento e afastamento social, passividade e dependência, acesso restrito ou inadequado a modelos de papéis sociais e, sobretudo atitudes estereotipadas tanto das pessoas que vêem como das que não vêem (Dodds, Bailey, Pearson & Yates, 1991; Benito, Veiga & González, 2003). Estas atitudes parecem ainda mais vinculadas nos idosos, sobretudo numa sociedade em que prevalece o materialismo, em que aqueles que são percebidos como não contribuintes económicos e com capacidades limitadas, passam a ser vistos como menos importantes e significativos para sociedade. São, muitas vezes até marginalizados e a riqueza da sua experiência é esquecida, ao invés de ser valorizada (Mclntyre & Atwal 2005). Ou seja, as atitudes estigmatizantes assumem contornos pouco favoráveis porque, além de afectar a qualidade das relações humanas, inibindo a aproximação das pessoas que vêem com as pessoas cegas e vice-versa, podem afectar a auto-estima da pessoa cega e a sua atitude face à sociedade (Dodds, Bailey, Pearson & Yates, 1991; Rodrigues, 2004).

Assim, além do funcionamento social eficaz por parte das pessoas cegas estar afectado devido aos estereótipos, Benito, Veiga & González (2003) alertam também para as dificuldades no estabelecimento de relações interpessoais decorrentes da perda de controlo sobre os métodos normais de iniciar uma conversação, como o contacto ocular e comunicação não verbal, bem como silêncios prolongados que podem levar a pessoa que não vê a considerar que está a ser observada ou ignorada.

As pessoas com visão reduzida são também sujeitas, e por vezes ainda mais do que as pessoas cegas, a concepções e atitudes erradas, talvez pela dificuldade das pessoas com visão normal de compreender o que é ter visão reduzida, pois conseguem imaginar mais facilmente o que é ser cego (Sacks, 1996).

Desta forma, é difícil determinar concretamente qual o impacto psicossocial da deficiência visual no idoso porque, apesar de alguns estudos mencionados no âmbito do impacto da deficiência visual no idoso verificarem que esta deficiência está associada a dificuldades em actividades habituais dos mais velhos, também se constata que estas mesmas limitações em conjunto com outras consequências do envelhecimento podem desencadear outras doenças ou inclusive diminuir as expectativas de vida dos idosos (Benito, Veiga & González, 2003).


3.2. CONSEQUÊNCIAS FUNCIONAIS

Na perspectiva de Sousa, Figueiredo & Cerqueira (2004), é corrente associar dependência à velhice, apesar desta ideia ser defendida com estereótipo, até porque a dependência não é um elemento que caracteriza apenas esta fase da vida, nem é específica de nenhuma deficiência. Contudo, Benito, Veiga & González (2003) afirmam que os idosos com deficiência visual apresentam um grau maior de morbilidade e de condições secundárias à deficiência do que os idosos sem deficiência visual. Defendem que a deficiência visual pode ser considerada o maior factor de risco associado com o declínio funcional, associado ao sedentarismo, sobretudo em idosos com idades acima dos 70 anos: as perdas visuais afectam o desempenho de muitas ocupações diárias e, por isso, as pessoas com deficiência visual tem necessidade de maior ajuda nas ocupações diárias que a população idosa em geral.

Good (2008), no seu estudo de satisfação e qualidade de vida com idosos com e sem deficiência visual, contrapõe estes factos afirmando que as mudanças e perdas devidas à deficiência visual podem não ser diferentes das que as pessoas mais velhas vivenciam, pois são muitas as razões porque as pessoas experienciam a perda de independência e de actividades com a idade. Além disso, a própria idade é considerada um importante preditor para a redução de participação em actividades.

Ainda, num estudo de Sixsmith (cit in Sousa, Figueiredo & Cerqueira, 2004), (em que a independência era vista pelos idosos como sinónimo de capacidade de tomarem conta de si, sem estarem dependentes dos outros para tarefas domésticas e cuidados pessoais, competência de auto-decisão e liberdade para fazer escolhas e não se sentir um fardo/obrigação para os outros) verificou-se que nos idosos que recebiam apoio directo, os sentimentos de independência podiam ser preservados, desde que sentissem que a ajuda era dada em contexto de reciprocidade. Não se pretende com isto dizer que a deficiência visual não tem um profundo impacto nas actividades das pessoas idosas, antes pelo contrário. Até porque as actividades, habitualmente significativas para as pessoas mais velhas sem qualquer patologia, como ver televisão, ler, ir ao teatro, ir ao cinema, viajar, ficam totalmente condicionadas pela perda visual (Ribera, Veiga & Torrijos, 1991).

Os dados disponíveis relativos a população norte americana apontam que a deficiência visual está identificada como um preditor de limitações funcionais, e concretamente, os idosos com deficiência visual tem dificuldades na realização de tarefas domésticas, sair de casa e participar em actividades de lazer, como ir à missa, assistir a espectáculos culturais e recreativos (Benito, Veiga & González, 2003).

Neste sentido, Crews & Campbell (2001) e outros autores demonstraram que a deficiência visual afecta negativamente a realização de actividades da vida diária instrumentais e básicas. Ao nível das actividades da vida diária instrumentais verifica-se, por exemplo um comprometimento em tarefas como: arrumação da casa; na preparação de refeições, devido às dificuldades em perceber se os alimentos estão cozidos, cálculo de quantidades, uso do fogão; nas compras, devido à dificuldade na identificação dos produtos e preços; na identificação do dinheiro; e dificuldades na utilização de transportes, por implicações na visualização do número do autocarro, na identificação da paragem e dos horários e na compra do bilhete (Iecovich & Isralowitz, 2004; Luiz et al, 2009). Ainda, outra dificuldade que tem a ver com o impedimento da condução automóvel, o que pode limitar bastante o contacto social, uma vez que a pessoa passa a ficar dependente de outras para de deslocar (Benito, Veiga & González, 2003).

Nas actividades da vida diária básicas, Crews & Campbell (2001) sugerem restrições, quer na alimentação, por dificuldades na identificação dos alimentos no prato e por dificuldade na identificação das espinhas no peixe; quer no vestir, sobretudo na escolha de roupa adequada; e também no banho. Outros estudos destacam também que os idosos com deficiência visual tem maiores dificuldades que os idosos sem deficiência visual no caminhar dentro e fora de casa, no deitar e levantar-se da cama e no sentar-se. Se bem que a deficiência visual não deveria afectar a capacidade de deslocação em espaços seguros e conhecidos como o próprio domicílio, é frequente que tal se verifique, causado provavelmente por desorientação, temor ou excesso de protecção. Também é comum que exista uma dificuldade acrescida nas saídas ao exterior, sobretudo por limitações na compreensão do espaço em se desloca, necessitando de uma explicação de outra pessoa. Resumindo, o idoso com deficiência visual apresenta dificuldades de deslocação que compromete a mobilidade autónoma (Lamoureux, Hassell & Keeffe, 2004; Iecovich & Isralowitz, 2004; Luiz et al, 2009).

A perda da integridade física, da confiança nos sentidos remanescentes, do contacto real com o meio ambiente e da segurança luminosa, explicam, em alguns aspectos, as dificuldades de mobilidade dos idosos com deficiência visual. Isto acontece não só pela ansiedade que se cria, mas também pela necessidade de esforço cognitivo acrescido (Benito, Veiga & González, 2003). Este aspecto levanta outras questões, sobretudo no que se refere ao processamento cognitivo do idoso.

Com base nos estudos citados por Fontaine (2000), constatou-se que para Horn (1980), Schaine (1964) e Raz (1990), não existe uma associação significativa entre os défices sensoriais de natureza visual e o funcionamento cognitivo geral (memória e inteligência). No entanto, outros estudos citados pelo mesmo autor, deixa supor que estas associações podem ser diferentes depois dos 60-70 anos, como poderemos perceber no estudo de Lindenberger (1994), que pretendia determinar se as acuidades visual e auditiva constituíam bons factores de predição do nível intelectual nas pessoas com mais de 70 anos. As dimensões cognitivas medidas neste estudo foram: velocidade de processamento, raciocínio, memória, conhecimento e fluidez de raciocínio. As conclusões determinaram que a acuidade sensorial mediatiza o efeito da idade no desempenho intelectual, demonstrando que as perdas visuais são uma causa importante de declínio intelectual. Através deste estudo pode-se inferir que as limitações visuais têm por consequência uma espécie de privação sensorial que restringe as estimulações ambientais necessárias para o indivíduo, ao nível cognitivo. Este autor acrescenta ainda que, tendo em conta esta perspectiva, o idoso pode ser considerado vítima de uma espécie de “autismo intelectual”, quando existe uma limitação sensorial. Apesar de não existir uma justificação clara deste facto, julga-se que tal como Ladislas (1994) menciona, poderá existir, face à diminuição do uso dos órgãos dos sentidos, uma perturbação ao nível da eficácia das conexões nervosas que asseguram a passagem de informação do exterior para os centros cerebrais e permitem, em seguida, a utilização dessas informações por outros centros que, por sua vez, os utilizam para assegurar a integração do indivíduo no seu meio.

Resumindo, as limitações decorrentes da deficiência visual podem ser entendidas como tendo um profundo impacto na vida das pessoas idosas, porque parecem limitar a sua independência e autonomia, tornando os idosos dependentes no que respeita ao desempenho das suas actividades. No entanto, Bonder & Wagner (2001), defendem que uma longa lista de problemas não significa, necessariamente, um elevado grau de deterioração funcional: a deficiência visual também atinge pessoas jovens, que podem levar uma vida praticamente normal, desde que respeitados alguns cuidados.

Apesar de ser frequente que o idoso apresente limitações decorrentes da deficiência, isto não significa que o idoso seja considerado doente e incapaz (Zimerman, 2000). Até porque Benito, Veiga & González (2003), defendem que a deficiência visual é influenciada pelas características psicológicas do idoso, pelo seu estilo de vida e pelo contexto que o rodeia, interferindo de forma mais ou menos negativa conforme a própria morbilidade da doença, recursos do meio e os recursos de coping de que o indivíduo dispõe. Por isso, para o idoso, é improvável que as suas consequências da deficiência visual sejam percebidas de forma imediata, e o stress será experimentado repetidamente a cada implicação e a cada nova frustração. Ou seja, tal como Goncalez (2008) defende, há necessidade de um ajustamento à deficiência visual, que será descrito no próximo capítulo.


4. Ajustamento e adaptação à deficiência visual

A perda de visão é, por tudo o que já foi anteriormente mencionado, um acontecimento de vida que suscita uma multiplicidade de reacções e que obriga os idosos a encontrar formas de lidar, quer com estas reacções, quer com as consequências que decorrem da grave redução ou ausência da visão. Ou seja, há uma necessidade evidente de adaptação, que por sua vez varia de indivíduo para indivíduo, respeitando o ritmo de cada um (Barreto, 2006). Estes aspectos são geralmente abordados sob a forma de modelos de ajustamento ou adaptação; contudo, na pesquisa teórica efectuada, verificou-se que os conceitos de ajustamento e adaptação não se encontram muitas vezes diferenciados e concisos. Optou-se então por reunir alguns pontos mais genéricos que permitissem reconhecer a sua importância no processo de reabilitação. Para Rodrigues (2004), o modelo de adaptação à deficiência é um processo contínuo que interfere com os resultados da reabilitação, daí que, esta autora explore exaustivamente todos os factores que intervêm positivamente no ajustamento e na reabilitação. Nesta linha de pensamento, apesar de se reconhecer que o impacto de determinados factores (características demográficas como idade, género, ambiente cultural e rendimento económico; características da perda de visão, como grau de visão residual, idade na altura do início da perda de visão, tempo decorrido desde a perda, grau de mudança; circunstâncias externas que incluem as atitudes dos outros em relação à deficiência visual, apoio social e acessibilidades do ambiente; e variáveis pessoais) influenciarem o processo de aceitação e, por inerência a reabilitação, apenas se descrevem, com maior detalhe as características pessoais e sociais, uma vez que nas restantes, a literatura consultada é escassa e pouco consensual. Por exemplo, quanto às características da própria deficiência, no que respeita à possível relação entre grau de perda de visão e ajustamento ou adaptação, existe muito desacordo. Se por um lado há estudos que apontam que graus mais elevados de perda visão estão associados com adaptação psicossocial mais pobre, há outros que dizem que esta relação não é encontrada (Rodrigues, 2004).

No entanto, Sacks (1996) refere que os estudos que comparam o ajustamento de pessoas cegas com amblíopes, concluíram que estas últimas se percepcionam mais negativamente, quer em relação às pessoas cegas, quer em relação às pessoas sem deficiência. Isto pode ser em parte justificado pelo facto de as necessidades das pessoas amblíopes não serem tidas em conta, esperando-se que funcionem como pessoas com visão normal, ou então devido à insegurança provocada pela possibilidade de perdas acrescidas de visão. Por isso, aquando da reabilitação de uma pessoa cega, em termos de aquisição de competências, poderão ser encontrados menos entraves que na pessoa com resíduo visual, porque além de não haver necessidade de avaliação do resíduo visual, também é mais fácil apresentar uma solução padrão com recurso aos outros órgãos sensoriais. Por outro lado, a existência de resíduo visual pode influenciar positivamente a continuidade de utilização da visão e uma satisfação com os instrumentos ópticos adequados. O tempo após a perda de visão e a visibilidade da deficiência podem funcionar como amortizador das reacções mais negativas. A falta de visibilidade será mais frequente em pessoas com visão reduzida, e a sua falta pode causar situações constrangedoras e interferir nas relações interpessoais, na medida em que a pessoa aparenta ser aquilo que não é. Tendo em conta estes dados, verifica-se que existem muitos aspectos a esclarecer quanto à possível relação entre as características da perda da visão e ajustamento, adaptação ou aceitação (Horowitz, Reinhardt & Boerner, 2005; Rodrigues, 2004).

No que respeita aos recursos pessoais, a motivação surge aqui como um factor interno que dá energia e direcção ao comportamento. O idoso motivado inicia uma conduta instrumental que o leva à satisfação de um desejo, ajudando-o a escolher entre os que mais eficazmente atingem o objectivo em vista, além de manter a sua actividade até à satisfação da necessidade. Portanto, a motivação não se limita a fornecer a energia para realizar certas acções, mas também as dirige para o objectivo a atingir, escolhendo os meios adaptados a alcançar o fim e descartando os inadaptados, tornando o idoso persistente, mesmo que seja preciso procurar novos meios, e mantendo o feedback depois de novas tentativas, para continuar a orientar-se no bom sentido. Quanto à motivação das pessoas idosas pode dizer-se que, em geral ela vai diminuindo com a idade, atendendo por um lado, aos obstáculos que vão surgindo, cada vez mais difíceis de ultrapassar, e por outro lado, a consciência de que o fim está mais próximo e de que por isso não vale a pena investir demasiado (Oliveira, 2008). No idoso, este impulso é fundamental para a aceitação da deficiência e funciona com um marco importante para a reabilitação.

A auto-estima, também parece ser um factor pessoal que interfere em e é afectada por muitos aspectos da reabilitação. Uma baixa auto-estima poderá interferir na aceitação da ajuda de outros e mesmo dos serviços de reabilitação e ser mesmo uma das causas do abandono de um programa de reabilitação. Resumindo, assim, a motivação, a continuidade do esforço na prática diária e o interesse em encontrar novos objectivos específicos a atingir poderão fazer variar o êxito da reabilitação do idoso com deficiência visual (Rodrigues, 2004)

Atendendo aos recursos sociais, Sacks (1996) afirma que as reacções da comunidade, da família, dos colegas ou amigos podem ser muito diversas e influenciam a forma como as pessoas com deficiência visual enfrentam a situação. Por isso, para que o idoso mantenha confiança em si próprio, é indispensável que ele possa confiar naqueles que o cercam, e que sinta relativa segurança face ao futuro. Assim sendo, depreende-se que as redes sociais próximas afectam o processo de adaptação e reabilitação da pessoa com deficiência visual e, este, por sua vez, tem um efeito importante sobre a família.

Diversos estudos têm constatado empiricamente as contribuições que o apoio social de família e amigos tem para facilitar o ajustamento à deficiência visual. No que respeita aos idosos, segundo Benito, Veiga & González (2003), existe um efeito amortizador do apoio social em relação ao ajuste à deficiência demonstrando que tanto aspectos quantitativos como qualitativos do apoio social ao idoso estão associados com indicadores de adaptação à deficiência visual e que os níveis iniciais de apoio predizem a adaptação a longo prazo. Contudo, concretamente, atitudes e comportamentos sobreprotectores dos familiares afectam negativamente a autonomia e o bem-estar do idoso. Por isto é que Barreto (2006), atesta que a utilidade e capacidade das famílias para o processo de reabilitação não devem ser deixadas de lado ou subestimadas. E mais, para este autor a relevância dos contactos sociais passa pela qualidade dos contactos, mais do que pela quantidade, afirmando que o idoso não precisa de ter muitos conviventes, o que ele necessita é de se sentir importante para alguém.

Segundo Verdugo (1995), tem havido uma grande evolução nos paradigmas e modelos subjacentes às concepções e atitudes sociais face à deficiência, o que se reflecte naturalmente na área da reabilitação. Actualmente, procura-se o emergir de uma autonomia pessoal ou de vida independente, enfatizando-se a auto-determinação do indivíduo no seu processo de reabilitação e a importância da abolição de barreiras físicas e sociais. Portanto, o objectivo geral da intervenção para pessoas com deficiência visual é que o indivíduo atinja a autonomia e a independência que necessita e deseja que é um objectivo comum para a população idosa.

Os mecanismos de adaptação ao dispor do idoso não são ilimitados, mas são variados e podem permitir controlar situações difíceis de perda e ameaça, existindo uma pluralidade de caminhos possíveis para um envelhecimento feliz, apesar de não se poder impor nenhum deles como preferível (Barreto, 2006). De qualquer forma, o desafio é fazer que o envelhecimento se processe cada vez com melhor qualidade, em todos os domínios (saúde física e mental, competência social, conservação da autonomia, bem-estar subjectivo) (Oliveira, 2008).

A deficiência visual no idoso, reflecte-se numa mudança no seu curso de vida, exige um grande esforço de adaptação a uma nova vida e suscita habitualmente mudanças de planos no projecto de vida (Paul & Fonseca, 2001). Assim, neste caso específico, estas mudanças podem ser conseguidas através de programas específicos de reabilitação.

Em Portugal, em termos legislativos, os objectivos da política da reabilitação são assegurar à pessoa a mais ampla participação na vida social e económica e a maior independência e autonomia possível (ACAPO, 2010). Portanto, a reabilitação do idoso deve ser total e um processo múltiplo de intervenção, através de estratégias que visem a reestruturação das perdas apontadas no capítulo anterior e podem ser variadas: treino de outros sentidos que irão substituir a visão; treino de capacidades e uso de equipamentos; recuperação da segurança psicológica; e ajudar o idoso a lidar com as atitudes da sociedade.

Nesta perspectiva, Benito, Veiga & González (2003), destacam a importância do acesso precoce a serviços de reabilitação com o fim de prevenir os desajustes emocionais e funcionais, defendendo que a participação em programas desenvolvidos por serviços especializados contribuem para manter as capacidades funcionais, o que evita a inactividade e o isolamento associados com a origem de comportamentos depressivos. O conteúdo e os objectivos dos programas de reabilitação devem considerar o carácter biopsicossocial que caracteriza o processo de envelhecimento. Por outras palavras, a aprendizagem de estratégias associadas a compensação da deficiência visual deve desenrolar-se tendo em conta as condições de saúde física e mental. Paralelamente a estes conteúdos devem-se incluir a aprendizagem de estratégias relacionadas com a autonomia pessoal, ajudas para a ambliopia, atenção psicológica, formação de familiares, eliminação de barreiras e pôr em prática medidas de favorecer a integração social (Rodrigues, 2004; Benito, Veiga & González, 2003). Neste sentido, de forma a atingir os objectivos de uma reabilitação, é de grande importância um trabalho de equipa, por profissionais de diferentes áreas onde se destaca o Terapeuta Ocupacional. O papel deste profissional será melhor descrito no capítulo subsequente.


5. Papel da Terapia Ocupacional no idoso com deficiência visual

Inicia-se o presente capítulo com uma sumária perspectiva sobre a população idosa e a necessidade de intervenção da Terapia Ocupacional, dada a ausência de bibliografia que permita abordar especificamente a intervenção da Terapia Ocupacional na população idosa com deficiência visual em Portugal. Far-se-á em seguida, uma pequena abordagem sobre este tema, fazendo referência aos objectivos da intervenção e à forma como se desenvolve.

De acordo com Mclntyre & Atwal (2005) sustenta-se que as pessoas mais velhas são tão diferentes nas suas habilidades, necessidades, recursos e interesses quando comparadas com os jovens, no entanto os idosos são, muitas vezes representadas, na sociedade como um grupo homogéneo. Realmente até se pode pensar que os idosos não são heterogéneos, porque ao contrário das ocupações dos mais jovens, que exigem vigor, agilidade e rapidez do corpo traduzindo-se em maior diversidade de actividades, as grandes acções dos idosos estão vocacionadas para a sabedoria, autoridade e valor de opiniões, atribuindo-lhe, desta forma, um sentido mais homogéneo (Romano, 1997).

Assim, e na perspectiva de Sequeira (2007), deve-se considerar a velhice como um momento privilegiado da vida, com realização pessoal, satisfação e prazer, reforçando a importância de promover esta etapa de vida enquanto período com memórias felizes, resultando em sensação de bem-estar, apesar das limitações circunstanciais que possam existir. Ainda, nesta linha de pensamento, o autor reforça a importância de serem elaboradas novas estratégias sobre as actividades dos mais velhos, tendo por matriz as suas preferências individuais e colectivas, de modo a proporcionar bem-estar emocional e psicológico e não constituindo apenas meras tarefas a executar por pessoas com demasiado tempo livre.

Portanto, tal como Mclntyre & Atwal (2005), defende-se que uma sociedade ocupacionalmente justa, seria aquela que oferece oportunidades para as pessoas idosas, bem como para os mais jovens, de forma a todos continuarem a desenvolver-se, não espartilhados por expectativas sociais ou familiares. No entanto, sabe-se que a organização e privilégio das ocupações não é natural, mas sim determinado e socialmente construído e, muitas vezes são os próprios idosos que as moldam. Isto comprova que, além das oportunidades ou expectativas no ambiente que a rodeia, as ocupações também são determinadas por factores pessoais: o tipo de actividades nas quais a pessoa se sente eficiente a realizar, o que a pessoa gosta de fazer, o que a pessoa dá valor e significado em realizar.

Desta forma, e de acordo com Kielhofner (2008), a ocupação tanto pode conduzir a resultados positivos como negativos na saúde, tendo em conta o indivíduo e contexto envolvente. No idoso com deficiência, estes efeitos negativos poderão ser mais evidentes, porque ao longo da vida as pessoas adquirem convicções e compromissos sobre aquilo que consideram bom, mau, certo e importante para fazer. Mesmo cientes disto, os terapeutas ocupacionais, desde cedo na história da profissão, acreditam nas ocupações enquanto actividades de envolvimento em situações de vida com significado e valor único e, por isso enfatizam a importância das pessoas participarem em ocupações, considerando o direito à ocupação como sendo uma questão de justiça, em que a pessoa tem direito à sua escolha respeitando as suas expectativas culturais, as suas necessidades económicas, a sua saúde ou doença. Respeitando estes princípios, os terapeutas ocupacionais devem encontrar, juntamente com os indivíduos, soluções que resolvam os problemas que interferem no desempenho das ocupações significativas e valorizadas pelo próprio (Mclntyre & Atwal, 2005).

Quando se fala do idoso, Barreto (2006) defende que há com efeito, condições objectivas que favorecem ou limitam a sua capacidade de adaptação. Por isso, a actividade compatível com o estado de saúde é útil em muitos sentidos porque reduz a ansiedade e confere sentimentos de segurança e valia, multiplica as oportunidades de gratificação e auto-satisfação. Desta forma, além de contribuir para manter um certo nível de trocas interpessoais e um certo grau de influência social, previne a depressão. Este autor relembra também que qualquer forma de ocupação pode ser benéfica, desde que corresponda ao interesse do idoso e lhe pareça útil.

Para Kielhofner (2008), o termo ocupação refere-se a todas as actividades que ocupam o tempo da pessoa e que são significativas para ela.

De acordo com o enquadramento da prática da Terapia Ocupacional, as ocupações dividem-se em: actividades da vida diária básicas e instrumentais, trabalho e actividades produtivas, brincar e actividades de lazer.

O papel do terapeuta ocupacional é promover o envolvimento e participação nessas actividades, equilibrando as acções e sentimentos do indivíduo em relação às suas habilidades, aos desafios do meio e às dificuldades da tarefa. Para tal, deve adaptar as exigências da tarefa, tornar o ambiente mais adequado e ensinar novas estratégias ou ajudar o indivíduo a readquirir as habilidades perdidas (Ribeiro, 2007). Isto porque, o seu foco de intervenção está na natureza da ocupação e no seu efeito, acreditando que a ocupação tem um papel central na promoção de bem-estar e saúde no ser Humano (Lewis, 2003).

Nos idosos com deficiência visual, que têm que lidar quer com as questões do envelhecimento, quer com as questões da doença, a intervenção do terapeuta ocupacional pode ajudar a enfrentar as perdas de capacidade de participar plenamente nas actividades de propósito e de significado (Kielhofner, 2008). Na óptica deste autor, é fundamental a intervenção do terapeuta ocupacional junto desta população porque além de agir como facilitador que capacita o idoso a fazer o melhor uso possível das suas capacidades remanescentes, pode-o ajudar a tomar as suas próprias decisões e a assegurar uma consciencialização de alternativas realistas, promovendo e preservando uma boa qualidade de vida e a sua integração na comunidade. Estes pressupostos são transversais para o idoso com deficiência visual, uma vez que estes apresentam um forte comprometimento na sua participação, na medida em que a deficiência cria alguns obstáculos à perspectiva sobre si próprio como uma pessoa capaz, limitando a sua capacidade de fazer aquilo que quer e gosta.

Para Whiteford (2005), o ambiente também constitui uma figura central na experiência da deficiência, porque afecta o que a pessoa faz e como o faz. Como no passado, a presença de uma deficiência era sinónimo de isolamento social e de oportunidades ocupacionais restritas, porque a maior parte do ambiente é construído pelo Homem e é pensado para pessoas com corpos “capazes” (sem deficiências visuais, auditivas ou cognitivas) claramente que este afecta o idoso.

Ainda, e tendo em conta que constantemente o ser humano procura determinados tipos de ambiente e modifica-os consoante os seus objectivos, a deficiência no idoso pode levar a uma descontinuidade entre as capacidades, oportunidades e o que a pessoa valoriza, diminuindo a auto-estima. Desta forma, podemos encontrar idosos que se sentem capazes e eficazes e como tal, procuram oportunidades, corrigindo o seu desempenho e persistindo em alcançar os seus objectivos. Por contraste, podemos encontrar idosos que se sentem incapazes e ineficazes, evitando oportunidades e desistindo facilmente dos seus objectivos, como se verifica ma maioria dos idosos com deficiência visual (Lewis, 2003; Ivanoff & Svensson, 2003).

Assim, quando se fala do idoso com deficiência visual, o projecto de vida é alterado pela emergência de determinadas consequências, de uma forma mais ou menos profunda, provavelmente com repercussões em todas as áreas. Portanto, viver com a deficiência implica, necessariamente, uma tentativa de reconstrução da vida própria, envolvendo estratégias específicas para lidar com a deficiência, com as consequências percebidas e com o ajustamento à mesma no âmbito das relações sociais (Paul & Fonseca, 2001).

Desta forma, verifica-se que o terapeuta ocupacional tem um papel fulcral nesta fase da vida e nesta deficiência. Apesar de se saber que o envelhecimento patológico limita a sua eficiência funcional, em que há uma necessidade de adequação à nova realidade (não esquecendo que cada idoso é um indivíduo diferente, que precisa de um programa pessoal de trabalho, de acordo com as suas necessidades) acredita-se que as capacidades do idoso com deficiência podem ser restauradas ou adaptadas, promovendo intervenções que maximizem a sua independência e autonomia. Ou seja, a finalidade da intervenção do terapeuta ocupacional com pessoas idosas, tanto saudáveis como com patologia associada, é conseguir o maior grau de autonomia possível e a sua continuidade no tempo, assim como evitar ou diminuir a tendência para a dependência. Para isto utilizam-se diferentes actividades relacionadas com os objectivos pretendidos. Uma actividade só é útil se for bem programada, aplicada e se interessar ao idoso (Lewis, 2003; Ivanoff & Svensson, 2003, Eklund et al, 2008)

Também, para Ribera, Veiga & Torrijos (1991), o foco de actuação do terapeuta ocupacional depende do idoso, do nível de apoio e dos serviços sociais comunitários. Quando o idoso tem limitações, os objectivos da intervenção que se pretendem atingir dependem do grau de limitação do próprio idoso. Portanto, quando a tendência é a incapacidade, aplicam-se técnicas específicas a cada caso, que diminuam ao máximo o seu grau de incapacidade e que ajudem a adaptar-se a sua nova situação, e simultaneamente a máxima adequação ao seu meio. É importante também que o idoso seja devidamente integrado na sua própria comunidade graças ao estudo e eliminação de barreiras existentes (tanto arquitectónicas como urbanísticas) e à estruturação de centros de reunião que fomentem as relações com outros idosos, evitando o isolamento.

Tendo por base os pressupostos anteriormente enumerados, a Terapia Ocupacional é uma das profissões que compõem os programas de reabilitação do idoso.

A reabilitação funcional do idoso com deficiência visual, além de englobar, por um lado, o lidar com as reacções emocionais decorrentes da perda visual, com a aceitação e adaptação à situação deve, por outro lado incorporar o aprender métodos para levar a cabo um conjunto de actividades sem a visão, tais como orientação e mobilidade, actividades da vida diária básicas e instrumentais, acesso à informação, e adaptações para o lazer (Mello, 2007; Lewis, 2003; Ivanoff & Svensson, 2003, Eklund et al, 2008). Na verdade, são estas as premissas sobre as quais a Terapia Ocupacional intervém na área da deficiência visual, apesar de só agora estar a ser reconhecida (Mclntyre & Atwal 2005).

Contudo, os terapeutas ocupacionais ainda poderiam ser mais pró-activos na intervenção com esta população, porque um acompanhamento precoce, serviços e atendimentos especializados favorecem a autonomia e independência do idoso com deficiência visual e permitem a sua participação em papéis e situações de vida desejadas em todos os contextos em que está inserido, podendo, mesmo colaborar na afirmação do idoso com deficiência visual (Mclntyre & Atwal, 2005).


II - Estudo Empírico

Descrever-se-á nesta secção, a metodologia utilizada no âmbito do estudo empírico efectuado, para em seguida se proceder à análise dos resultados obtidos.


1. Aspectos Metodológicos

1.1 ABORDAGEM METODOLÓGICA

Para a concretização deste estudo foi adoptada uma metodologia de investigação qualitativa, pois as suas características apontaram-na como particularmente adequada para a investigação que se pretende realizar, permitindo ao investigador estudar questões em profundidade e investigar toda a complexidade dos fenómenos em contexto natural (Patton, 2002).

Ainda, considerando a primazia da experiência subjectiva como fonte de conhecimento, o estudo dos fenómenos a partir da perspectiva do outro ou respeitando os seus marcos de referência e o interesse em se conhecer a forma como as pessoas experienciam e interpretam o mundo, tal como Almeida & Freire (2000) defendem face a esta metodologia, reforçou ainda mais a presente opção metodológica. Contudo, apesar de os métodos qualitativos partilharem certas características comuns, não perseguem todas os mesmos objectivos. Assim, com o intuito de explorar as perspectivas dos idosos com deficiência visual na experiência que têm na sua participação ocupacional e de perceber as suas atitudes e comportamentos em relação ao apoio da Terapia Ocupacional, descobrindo a essência deste fenómeno, a sua natureza intrínseca e o sentido que lhe é atribuído, desenhou-se um estudo fenomenológico.

O desenho de estudo utilizado, na perspectiva de Fortin (2000) e de Knight & Mellor (2007) permite, então, conhecer uma realidade do ponto de vista das pessoas que a experienciam, em que o ênfase foi dado ao idoso e à compreensão do que acontece com ele na sua interacção com o mundo, tornando-o a unidade de referência.

Para Creswell (1998) e Patton (2002), os estudos fenomenológicos além de realçarem e compreenderem as afirmações da atitude natural, procuram também fazer uma descrição directa da experiência humana sem nenhuma consideração da sua génese psicológica e das explicações causais, pressupondo que se pode deixar o fenómeno falar por si, alcançando o verdadeiro sentido da experiência. Tal como estes autores, assume-se que o fenómeno que se pretende estudar, necessita uma descrição fina, densa e fiel da experiência relatada, a partir da análise das significações da linguagem do idoso por intermédio das dimensões psicoafectivas expressas através das suas palavras (Fortin, 2000; Creswell, 1998; Patton, 2002). Seguindo, estes autores, a recolha de dados para este estudo fenomenológico foi estruturada em focus groups, porque para Krueger & Casey (2000), esta técnica é particularmente apropriada quando o objectivo é explicar como as pessoas consideram uma experiência, uma ideia ou um evento. Estes autores realçam também a discussão durante as reuniões, como uma fonte informação relevante sobre o que as pessoas pensam ou sentem ou, ainda, sobre a forma como agem.


1.2 AMOSTRA

Tendo em consideração que a metodologia utilizada busca a globalidade e a compreensão dos fenómenos, os participantes deste estudo foram os que verdadeiramente vivem a experiência que se pretendia relatar (Fortin, 2000; Ritchie & Lewis, 2003; Almeida & Freire, 2000).

Desta forma, a população subjacente a este estudo pertence aos idosos com deficiência visual que estão vinculados à ACAPO, respeitando os critérios de deficiência para admissão nesta instituição – cegueira e ambliopia. As idades cronológicas para idoso foram baseadas nos critérios da OMS, portanto foram apenas incluídas pessoas com mais de 65 anos (WHO, 2002). Os participantes apresentavam idades compreendidas entre os 65 e 90 anos; quatro deles eram homens e sete mulheres, seleccionados da base de dados da delegação do Porto da ACAPO, tendo por base critérios de escolha intencional. Trata-se, portanto, de uma amostragem não probabilística de conveniência, tal como a maioria das amostras em estudos qualitativos (Patton, 2002). Contudo, a escolha dos participantes foi efectuada por meio de critérios de selecção que asseguram uma relação íntima dos participantes com a experiência que se pretendia descrever e analisar (Carmo & Ferreira, 1998).

De forma a adequar o estudo e respeitando os pressupostos de Gustavii (2003), foi necessário seleccionar os participantes, tendo por base critérios de inclusão e exclusão. Como critérios de inclusão determinou-se que a amostra teria de ser constituída por participantes que apresentassem deficiência visual há mais de dois anos, devido ao processo de aceitação da deficiência. Excluíram-se deste estudo todos os idosos que apresentassem: algum tipo de défice cognitivo que dificultasse a compreensão do mesmo; diagnóstico de doenças neurológicas que modificassem a funcionalidade do indivíduo, devido às sequelas; doença mental diagnosticada; e dificuldades de participação em sessões de focus groups.

A amostra foi dividida em dois grupos, consoante o apoio ou não em Terapia Ocupacional, em que de um grupo constaram sete participantes que usufruíram desse apoio e no outro cinco participantes que não usufruíram. Dos doze participantes, oito eram amblíopes e quatro eram cegos.

Na perspectiva de Albarello et al (1997), apesar de se tratar de um número limitado de participantes, o critério que determina o valor da amostra passa a ser a sua adequação aos objectivos da investigação, tomando como princípio a diversificação das pessoas e garantindo que nenhuma situação importante é esquecida. Nesta óptica, a selecção dos participantes em metodologias qualitativas é em função da problemática da investigação, devido ao seu carácter exemplar (Patton, 2002).


1.3 MÉTODO DE RECOLHA DE DADOS

Após a autorização institucional, a autora do estudo procedeu à recolha de dados recorrendo a focus groups. Esta técnica permitiu discutir a participação ocupacional dos idosos com deficiência visual e perceber as suas atitudes e comportamentos em relação ao apoio da Terapia Ocupacional, através de encontros coordenados por um moderador, em que o objectivo foi sondar conhecimentos, atitudes e sentimentos sobre estas questões, obtendo informações mais fiéis (Greenbaum, 2000).

Para Krueger & Casey (2000), esta técnica propicia riqueza e flexibilidade na recolha de dados, normalmente não disponíveis quando se aplica um instrumento individualmente, além do ganho em espontaneidade pela interacção entre os participantes. Por outro lado, exige maior rigor no processo de preparação dos encontros. Então, para a concretização empírica deste estudo usaram-se exclusivamente as linhas orientadoras propostas por estes autores. Primeiramente desenvolveram-se as questões para os focus groups; em segundo seleccionaram-se os participantes; em terceiro lugar treinou-se o moderador e seguiu-se a escolha e treino do assistente; posteriormente efectuou-se a recolha dos dados; e, por fim o registo dos mesmos.

Cumprindo os pressupostos de Krueger & Casey (2000), o guião compreendeu cinco tipo de questões: apresentação, introdução, transição, questões chave e de finalização. Estas questões foram similares nos dois focus groups e organizaram-se da seguinte forma:

Questão de apresentação: Gostaria que cada um de vocês se apresentasse: nome, idade, área de residência, percurso profissional? Há quanto tempo integram os serviços da ACAPO?

Questão introdutória: Quais são os vossos primeiros pensamentos, quando alguém vos pergunta de que forma a deficiência visual interfere no vosso dia-a-dia?

Questões de transição: Que tipo de actividades tiveram de deixar de realizar após o aparecimento da deficiência visual? Que actividades realizam, neste momento durante o dia? Tudo o que necessitam no dia-a-dia está disponível de forma a responder as vossas necessidades? Como caracterizam a vossa participação nas actividades que realizam?

Questões chave: Quais as razões que vos levaram a deixar de realizar essas actividades? Como se sentem ao realizar essas actividades? Que tipo de apoio costumam solicitar para realizar as actividades pretendidas?

Questão final: Imaginem que estão em televisão e que tem um minuto para falar sobre a vossa participação nessas actividades, o que diriam?

Tal como Krueger & Casey (2000) e Lewis (2000) defendem, o guião além de expor estas questões de orientação, também contemplou outros tópicos que foram fulcrais para a discussão. Estes tópicos permitiram orientar o moderador e o assistente durante a realização dos focus groups, no sentido de recolher informação relevante que não estava registada na bibliografia, até então descrita. Os tópicos de discussão foram: impacto da deficiência visual na participação ocupacional do idoso; factores que influenciam negativa e positivamente a participação ocupacional desta população; recursos da comunidade adequados e direccionados às necessidades e interesses dos idosos com deficiência visual.


1.3.1 PROCEDIMENTOS

Para a concretização deste estudo careceu-se de uma autorização do Director da Instituição onde o estudo foi realizado, bem como do consentimento informado dos participantes, respeitando todos os procedimentos de confidencialidade e privacidade ao longo da investigação.

Tendo em conta a disparidade de informação referente à técnica de recolha de dados em causa, como foi possível constatar, optou-se por usar exclusivamente os procedimentos propostos por Krueger & Casey (2000). Nesta perspectiva, depois de construído o guião dos focus groups, a investigadora contactou os participantes e explicou os objectivos do seu trabalho, bem como a sua a importância e fins a que se destinava, sendo que os focus groups apenas se realizaram num segundo contacto. Assim, o convite para participar nos focus groups foi efectuado pela autora do estudo via contacto telefónico e o encontro para as sessões foi agendado na delegação do Porto da ACAPO, uma vez que esta delegação possuía uma sala com todas as condições ambientais asseguradas e, porque se tratava de um local do conhecimento de todos.

Realizaram-se dois focus groups, um para cada grupo de participantes, respeitando a amostra seleccionada, com um tempo de realização de 90 minutos no focus groups 1 e de 120 minutos no focus groups 2. O tempo médio de duração das sessões, mais uma vez, procurou obedecer às linhas de Krueger & Casey (2000). A data de encontro foi agendada conforme a conveniência dos participantes do próprio grupo e da autora do trabalho.

Antes de iniciar as sessões, foi lida aos participantes uma breve introdução, onde constava o objectivo do trabalho e foi pedido autorização aos participantes para que as sessões fossem gravadas em áudio e vídeo para, tal como Lewis (2000) menciona, obter uma melhor distinção das vozes e para ter uma perspectiva da comunicação não verbal dos participantes.

Durante as sessões, foi imprescindível a utilização por parte do moderador, de outras questões que permitiram manter e estimular a discussão entre os participantes (como: “Pode explicar melhor?”; “Pode dar um exemplo?” “Mais alguém quer dizer alguma coisa?”; “Não percebi!”). O assistente, com alguma experiência em grupos de discussão, retirou as devidas anotações das sessões.

Imediatamente a seguir às sessões, o moderador e o assistente reuniram para discutir a dinâmica do grupo, as percepções do grupo e as reacções dos participantes (Krueger & Casey, 2000; Lewis 2000; Melo 2008).

Os dados sócio-demográficos dos participantes foram recolhidos da base de dados dos associados, após aceitação do convite para participar no focus group e foram registados pela investigadora, dadas as limitações visuais para o auto-preenchimento em questionário a tinta.


1.4 ANÁLISE DE DADOS

Nas pesquisas qualitativas, segundo Patton (2002), a escolha das técnicas de análise de dados deve proporcionar um olhar multifacetado sobre a totalidade dos dados obtidos no período de recolha. Assim, apoiados em Lewis (2000), afirma-se que a informação recolhida nos focus groups constitui os dados brutos e a tarefa enquanto investigadora foi analisar esses mesmos dados, utilizando a técnica de análise qualitativa mais adequada, uma vez que nas metodologias qualitativas não existem regras universais para analisar e resumir os dados (Quivy & Campenhoudt, 1998).

Para Patton (2002), a técnica de análise de dados qualitativa mais utilizada é a análise de conteúdo, cujo objectivo é a busca de sentido ou sentidos de um documento e que Bardin (1988) define como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens.

Com base nestes pressupostos, decidiu-se utilizar esta técnica de análise de dados, contudo, e suportados pelas linhas de Krueger & Casey (2000), a análise seguiu os procedimentos propostos por este autor.

Assim, em primeiro lugar, e para facilitar a sua análise, o conteúdo em áudio e vídeo foi transcrito para texto, revisto com precisão e corrigido pela investigadora. Depois, seguiu-se uma leitura repetida, várias vezes, para melhor memorização, familiarização e localização da informação relevante, a fim de apreender de uma forma geral as ideias principais e os seus significados gerais (Lewis, 2000; Krueger & Casey, 2000; Melo, 2008).

Seguidamente, procedeu-se à selecção das unidades de análise, que incluíram-se palavras, frases, expressões, parágrafos e que formaram as categorias. As categorias resultantes de toda a análise foram organizadas em temas, que correspondiam a ideias mencionadas várias vezes pelos participantes ao longo da discussão. Por isso, nesta análise, consideraram-se as palavras e os seus significados; o contexto em que foram colocadas as ideias; a consistência interna, a frequência e a extensão dos comentários; a especificidade das respostas; e a importância de identificar as grandes ideias (Krueger & Casey, 2000).

Começou-se por imprimir dois exemplares do conteúdo transcrito, um deles foi usado para recortar e outro manteve-se intacto para referência. Os textos referentes aos dois focus groups foram impressos em cores diferentes, para melhor identificação e as respostas às diferentes questões em ambos os grupos foram identificadas e cotadas usando marcadores coloridos. As unidades de análise foram seleccionadas usando os seguintes códigos de identificação: a inicial correspondente ao participante e focus group 1 – sem apoio de Terapia Ocupacional, focus group 2 – com apoio de Terapia Ocupacional (por exemplo, A1).

Ainda, e para dar credibilidade ao estudo, tal como Lewis (2000) e Krueger & Casey (2000) defendem, a transcrição dos focus groups foi analisada independentemente pela investigadora e pela assistente, com o intuito de obter maior profundidade no realce das palavras, expressões e frases. As análises foram efectuadas independentemente, mas discutidas conjuntamente até se verificar unanimidade nas opções de categorias e temas.

Esta revisão por pares proporcionou maior rigor na análise dos dados, dando credibilidade ao estudo, uma vez que permitiu detectar desvios derivados da influência do factor “investigador”, tendo em conta os viéses produzidos por esta técnica de análise de dados. Ainda, a descrição rigorosa dos procedimentos metodológicos favoreceu, igualmente a capacidade de aplicação noutros contextos, proporcionando também mais qualidade ao estudo (Creswell, 1998; Merrian, 1998; Patton, 2002).


2 Resultados

O presente capítulo tem por objectivo apresentar os resultados obtidos a partir dos depoimentos dos idosos com deficiência visual nas sessões de focus groups. O focus group 1 corresponde aos idosos que não usufruíram de apoio de Terapia Ocupacional e o focus group 2 aos que beneficiaram desse apoio.

Da análise efectuada sobressaíram categorias e temas. Foram identificadas sete categorias distintas: implicações psicossociais da deficiência visual; restrições nas actividades e ocupações do idoso com deficiência visual; apoio e atitudes sociais; instituições e recursos acessíveis; estratégias utilizadas; benefícios psicológicos e participação. Estes resultados sustentam a existência de três temas gerais que emergiram da construção de opiniões entre os idosos de ambos os grupos sobre a participação ocupacional após o aparecimento da deficiência visual no idoso que se caracterizam em: impacto da deficiência visual, adaptação e ajustamento à deficiência e benefícios percebidos.


2.1 IMPACTO DA DEFICIÊNCIA VISUAL

Os idosos estudados categorizam a deficiência visual adquirida como um grave impedimento nas suas vidas. Por um lado, salientam implicações psicológicas e sociais, por outro, referenciaram comprometimento na realização de actividades e ocupações do seu dia-a-dia.


2.1.1 IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DA DEFICIÊNCIA VISUAL

A deficiência visual surge nestes idosos como um défice que aparece progressivamente conservando, na maioria deles algum resíduo visual:

“eu gostava que ela me tivesse dito, a senhora daqui por dois ou três anos vai ter uma perda de visão, mas não disse, mas se ela dissesse” – A2

“É para ver se não perco mais visão de que o que perdi” – F1

“que eu ficasse sempre assim, já pedia a deus que eu ficasse sempre assim” – M2

Por isso a cegueira é sentida como algo temeroso, como se percebe na expressão de um dos participantes:

“Medo de ficarmos cegos” - O1

Independentemente da ambliopia ou cegueira, associado a esta deficiência são descritos pelos idosos sentimentos de sofrimento psíquico:

“é triste ir a um sítio e não poder ver” – O1

“sofri muito” – O1

“estive muito mal, não aceitei a minha doença, não, fui mesmo ao fundo, ao fundo mesmo, só faltava por a tampa” – A2

“O desgosto é de tal ordem” – J2

“eu estava com uma depressão” – E2

“eu fiz uma depressão” – F2

“chorei muito” – JA2

A perda de visão é, assim sentida de forma trágica e, segundo estes idosos, também traz complicações ao nível do funcionamento social, como é ilustrado em algumas frases dos participantes:

“as pessoas podem passar a minha frente e eu não as vejo” – O1

“passar na rua e as pessoas não falarem” – E1

“Então, eu passo por ti e tu não cumprimentas, eu cumprimentei e tu não cumprimentas” – C2

Além deste impedimento físico para o estabelecimento de relações humanas, foi salientado pelos participantes impedimento social devido ao estigma associado à deficiência visual como se pode perceber nas seguintes expressões:

“eu já tenho dito muitas vezes, quem não vê são eles” – F1

“ele pôs muitas coisas por eu não ver” – A2

Os entraves atrás descritos acabam por se reflectir na auto-estima do idoso, como se percebe nos seus discursos:

“eu não sou capaz” – O1

“e que não era como os outros, porque há alturas em que a gente, pára para pensar e que nota que não é como os outros, e que é um bocadinho inferior, e era isso que eu sentia” – JA2

“dizia que…que eu não prestava” – A2

É de salientar que o grupo 2 parece ser mais explícito na demonstração das implicações psicossociais que advém da deficiência visual, que pode ser interpretado como resultado de uma intervenção neste âmbito e, por conseguinte uma tentativa de adaptação e ajustamento à nova condição de vida.


2.1.2 RESTRIÇÕES NAS ACTIVIDADES E OCUPAÇÕES DO IDOSO COM DEFICIÊNCIA VISUAL

O impacto da deficiência visual no idoso repercute-se a vários níveis, como se percebe pela afirmação de um dos participantes:

“o nosso dia-a-dia, quando não vemos, é de facto com muita dificuldade” -JA2

Por isso, além das implicações psicossociais surgem também restrições nas suas actividades e ocupações, com maior enfoque na mobilidade funcional:

“nós ficamos sem ir” – E1

“a senhora não sabe quantas portas eu bati para vir aqui” – O1

“já não saia de casa” – J2

“porque eu já nem de autocarro andava” – A2

“Ia conduzindo, conduzia, tudo mais, deixei isso tudo” – M2

“porque não ando sozinho, nunca ando agora sozinho” – C2

“Eu na rua dependo sempre das pessoas” – M2

“porque eu já nem de autocarro andava” – F2

O impacto da deficiência visual é observado, ainda nas actividades da vida diária básicas:

“A minha filha põe a travessa da comida na mesa e eu não vejo, ela é que me tem que servir porque eu não vejo. E se estou a comer no prato, ela, mãe já não tenho isso, não tens aquilo, queres mais, já acabaste de comer. E, às vezes arrumo o prato a pensar que já acabei de comer e ela diz ainda não acabaste, ainda tens…” – O1

“já não tomava banho” – A2

“ele saturava todos os dias dizer assim, bem lá tenho de me levantar pra fazer a barba, bem lá tenho eu de me levantar para fazer a barba, e cada vez faço pior os cantos” - E2

“eu é a mesma coisa, eu também não vejo para comer, também não vejo” – C2

Assim como, nas actividades da vida diária instrumentais:

“já não frito à mais de 3 ou 4 anos, cozinhar também não” – O1

“eu nem consigo ver para marcar as teclas” – O1

“não consigo escolher as couves” – M1

“eu não levanto dinheiro” – J1

“não passo a ferro” – E2

“os trocos é que é mais grave” - F2

E no lazer:

“não leio é depois aquilo que lá está” – F1

“ler não” – E1

“se levantar a caneta ou o lápis já não sei onde tenho que meter para escrever, até posso escrever por cima” – O1

“Não vejo televisão, não vejo rodapés, não vejo filmes, não vejo nada” - M2

“não vou a festanças, não vou para festas” – E2

“não vinha ao café, não vinha ao restaurante” – J2

“que eu nem ia a restaurantes” – A2.

O impedimento ao nível da mobilidade funcional e do lazer denota-se melhor no grupo 2 enquanto que as restrições descritas ao nível actividades da vida diária e instrumentais aparecem mais no grupo 1. Isto verifica-se, provavelmente pelo facto de os idosos do grupo 2 procuraram mais actividades no exterior, enquanto os do grupo 1, estão procuram mais actividades no seu lar.


2.2 ADAPTAÇÃO E AJUSTAMENTO À DEFICIÊNCIA

No que respeita à adaptação do idoso com deficiência visual, aquilo que os idosos deste estudo verbalizam é que a sociedade actual, constitui um grande obstáculo à sua adaptação à deficiência, porque nem sempre os apoios sociais são os mais adequados, os recursos ambientais nem sempre estão acessíveis e as estratégias utilizadas nem sempre são devidamente rentabilizadas.


2.2.1 APOIO E ATITUDES SOCIAIS

O apoio e as atitudes sociais face à adaptação do idoso com deficiência visual representam um pilar fulcral para que este ajustamento aconteça de facto. A atitude do próprio idoso no que respeita a esta dimensão é também muito relevante. Contudo, em ambos os grupos estudados, nem sempre este apoio e atitudes foram relatadas de forma favorável, destacando-se algumas mais favoráveis do que outras. Distinguem-se idosos que se sentem capazes para a mudança e que se exprimem da seguinte forma:

“Também aprendi, afinal de contas, nunca se diz a uma pessoa que não é capaz.” – E1

“Eu disse assim, ai, amanhã já lá vou.” – M1

“de modo que assim fui andando, mas sempre muito dinâmica” – JA2

e idosos menos capazes que se reprimem e, apenas transmitem impotência e incapacidade:

“ensinou-me a contar o dinheiro, mas agora não lido com dinheiro, quem lida é a mulher” - C2

“eu aprendi o dinheiro, a contar o dinheiro, as serrilhinhas, e aquelas coisas todas, mas isso não, pago muito bem com notas mas com moedas não” – E2

“Agora não há quem mandar, não há canalha a quem pedir, não andam aos recados” – O1

“não tenho ninguém que me faça nada” – F2

Se o próprio idoso duvida de si e das suas capacidades, poder-se-á pensar que estas atitudes afectarão o seu meio envolvente, e todas as pessoas que estão em seu redor podem reagir negativamente à sua adaptação. No grupo 1, estas considerações são bastante notórias:

“Ela dizia como ele consegue ver, consegue saber onde está. Ela chegava a casa e dizia, como é que ele consegue distinguir onde é que estamos!” – F1

“até a minha própria família, tinha uma tia que era muito minha amiga que me dizia, tu não te metas nisso, não te metas naquilo” – E1

“O meu marido dizia, para quê mulher, para quê, não faças mais de comer” – O1

“A minha filha não quer que eu vá para o fogão, até me tem os fósforos escondidos” – O1

“Vamos os dois, ela tem medo. Por exemplo, eu quero ir dar um passeio até Lisboa, ela tem medo de ir comigo” – F1

“temos que ir vivendo, as pessoas são muito insensíveis, não é de propósito, não ligam, até se esquecem, nós ficamos um bocado tristes, mas eles não fazem aquilo por mau, até se esquecem que nós precisamos” – E1.

Ou seja, o apoio das redes sociais deve ser ajustável ao idoso com deficiência visual, podendo mesmo representar um reforço bastante significativo na sua adaptação. Isto denota-se no grupo 2:

“os nossos filhos também nos ajudaram muito a superar, nunca fizeram crítica, isso não é nada” – E2

“mas a pouco e pouco, é preciso que a gente lute e que haja alguém que goste” – JA2

“um dia a minha mais velha foi para a Internet e descobriu esta escola” – A2

“Eu tenho encontrado sempre pessoas boas, prontas para me ajudar” - M2


2.2.2 INSTITUIÇÕES E RECURSOS ACESSÍVEIS

Percebe-se pelo atrás referido que, para que o caminho da adaptação à deficiência seja cumprido pelo idoso, tem que existir um conjunto de apoios e estruturas determinadas para esse fim, porque o idoso pode não ser capaz de o fazer de forma independente. Assim, a ACAPO, é de momento considerada, por estes idosos a instituição de oferece mais oportunidades ao idoso com deficiência visual. Isto é perceptível nos seus depoimentos:

“eu senti-me tão mal que virei para o meu marido e não há ai qualquer coisa que eu me possa adaptar na ACAPO, então ele levou-me e ele arranjou-me uma professora para me ensinar e ajudar lá em casa” – E1

“nós é que vimos aqui porque precisamos muito” – JA2

“faz muita falta, sim senhor” – C2

“tenho a minha segunda casa que é esta, eu se não vier para aqui fico doente” – A2

“depois quando surgiu a hipótese de eu não ficar melhor e quando vim à ACAPO, ao vir para cá, via muito mal, eu não via nada, absolutamente nada” – J2

Apesar da ACAPO constituir uma referência, sobretudo para os idosos do grupo 2, nem todos eles a sentem como instituição suficientemente capaz de superar todas as necessidades do idoso com deficiência visual, como se analisa na seguinte expressão:

“mas podia ser um centro de convívio e não é” – JA2

No que respeita a estruturas, o que os idosos deste estudo relataram foi que, na maioria das vezes, as estruturas ambientais estão pouco ou nada acessíveis. Os participantes que verbalizam mais estes entraves são os do grupo 2.

“Não, eles não deixam tocar, está tudo dentro de vidros” – O1

“Ainda no outro dia ficaram a rir-se de mim, eu perguntei o número do autocarro, palerma tu não sabes ler?” – F2

“nós não podemos morar aqui porque os passeios são muito estreitinhos, temos de ir para um sítio onde haja passeios largos, onde possamos andar a vontade” – E2

Posto isto, a ACAPO e os serviços e apoios que integra, as redes sociais próximas e os recursos acessíveis representam factores determinantes para o ajustamento à deficiência visual por parte do idoso. Contudo, estes factores não são tão explícitos no grupo 1.


2.2.3 ESTRATÉGIAS UTILIZADAS

Os idosos com deficiência visual que procuram uma reconstrução de vida própria, mencionam todo um conjunto de estratégias utilizadas com esse intuito, como se pode perceber nas seguintes descrições:

“se ela quer ir comigo ao café, vai, senão vou eu sozinho” – F1

“Não foi ninguém que me ensinou, fui eu que aprendi sozinha” – E1

“eu vou, quer dizer sendo sítios que eu conheço assim, que estou habituado” – J1

“o telemóvel tocou e eu tirei a lupa, que não via” – J1

“escolho, depois pergunto uma coisa ou outra” - F2

“eu vou ao supermercado, tenho dificuldade em ver as coisas, nem olho aos preços. Olho para a prateleira e é aquilo que conheço” – M2

“Apalpa-se, apalpa-se…” – A2

Nestas expressões pode-se depreender que existe todo um conjunto de estratégias que podem e devem ser utilizadas pelo idoso com deficiência visual, contribuindo para o seu ajustamento e adaptação à sua nova condição de vida. No entanto, estas estratégias parecem ser mal aproveitadas ou insuficientes para alguns destes idosos porque, há quem levante questões desta índole:

“já sabe que a mão que guia, já se sabe que a mão que guia. É como faço! Depois para vir outra vez para traz. Onde é que vou colocar para saber onde já está escrito?” – O1

Resumindo, as estratégias utilizadas pelos idosos de ambos os grupos podem ser agrupadas da seguinte forma:

Recurso a terceira pessoa:

“Nós as vezes, estamos a precisar muito, eu só peço quando estou a precisar muito senão eles pensam que estamos sempre a pedir. Eu só preciso quando realmente não consigo.” – E1

“quase sempre pergunto se é aquele, não é, já vou começando a conhecer bem qual é” – F2


Recurso ao resíduo visual:

“Eu lá ia com o meu bocadito” – O1

“nós compramos um espelho de aumento, de segurar na parede para ele fazer a barba” – E2

“tinha que fazer tudo muito muito pertinho dos olhos” – JA2


Recurso aos restantes órgãos sensoriais:

“depois outra coisa é eu ir lá com a mão, porque no frigorífico é diferente” – O1

“a senhora põe a mão. Já sabe onde acaba. A gente guia” – F1

“E eu conhecia por intermédio das palavras” – C2

“andei ano e meio, a apalpar as coisas, a tentar ver” – J2

“apalpa-se, às vezes vou lá com o pano, e vou lá com a mão e estava a ver migalhas, e isto e aquilo”- JA2

“que arroz vinha de um lado, que o bife … mete-se do outro” – A2

“faz-se tanto, faz tanto jeito, a palpação” – E2


Recurso às capacidades remanescentes:

“Eu com este telemóvel, está todo gravado e eu carrego nas teclas” – F1

“só vou a casas que eu conheço bem, que as pessoas me conhecem pessoalmente, que fizeram parte da minha vida…” – F2


Recurso a ajudas técnicas:

“um ampliador para me ajudar a ler as cartas” – M2

No que respeita à utilização de estratégias adaptativas, consegue-se perceber que o grupo 2 utiliza mais estratégias adaptativas para a reconstrução das actividades que pretende realizar, além de as utilizar com maior eficácia. Por exemplo, o recurso à terceira pessoa, que poderia aqui ser interpretado com um símbolo de dependência, é recrutado com maior frequência no grupo 1.

No grupo 2, este recurso é mais utilizado quando a acessibilidade ambiental impede que realize algo de forma autónoma. No que respeita à utilização dos restantes órgãos sensoriais, resíduo visual e capacidades remanescentes, o grupo 2 também se destaca, fazendo um melhor uso destas capacidades. As ajudas técnicas são apenas enunciadas no grupo 2.


2.3 BENEFÍCIOS PERCEBIDOS

O aparecimento da deficiência visual tem consequências negativas na vida do idoso e obriga-o a um ajustamento à nova situação de vida. Quando este ajustamento se processa de forma eficaz podem ser percebidos benefícios psicológicos no idoso e níveis de participação ocupacional mais satisfatórios.


2.3.1 BENEFÍCIOS PSICOLÓGICOS

Quando o idoso se consegue adaptar à nova condição de vida, fazendo o melhor uso possível das suas capacidades remanescentes:

“se nos mostrarmos que somos capazes, que temos mais capacidades, temos outras riquezas” – E1

“mas depois que vim para aqui com a colaboração, …eu depois vou para casa… nós nem pensamos noutra coisa, e que temos que viver” – JA2

tomando as suas próprias decisões:

“eu quero aprender e pelo menos quero tentar, e se conseguir consegui” - E1

promovendo uma boa qualidade de vida:

“faço a minha vida, e penso, não vejo se o meu chão está sujo ou se está limpo, às vezes o meu marido, olha o que deixaste cair ao chão, olha se deixei já está, vejo mal, apanha, eu às vezes até uso o ver mal, para ter um pouco mais de carinho porque lhe digo que, tu não sabes, não vês, coitadinha de mim, é por isso que a palavra coitadinha estou sempre a dizer, coitadinha de mim, eu não vejo bem, estás me a chamar atenção, faz tu, e é isso, uma vida divertida” – JA2

Estes testemunhos remetem, claramente níveis de bem-estar no idoso, como de apreende nas seguintes falas:

“e prontos estamos bem, sentimo-nos bem” – E2

“estou feliz porque vim para aqui” – A2

Ou seja, a independência pode ser possível apesar de algumas limitações que possam existir, como descrevem alguns idosos:

“Eu claro que vou com elas, sempre com certo limite” – M2

“agora venho para aqui e me distrai, o chego a casa e faço uns trabalhinhos, uns mais bem feitos, outros mais mal feitos” – JA2

“porque eu não vejo as pessoas, eu se for a uma reunião a qualquer sítio e ponho-me a olhar para as pessoas, as pessoas não dizem que vejo mal, se vejo melhor ou não…” J2

No grupo 1, estes sentimentos de satisfação não são tão evidentes, no entanto parece existir iniciativa para mudança:

“o problema por vezes, às vezes a gente acomodar-se com a situação, e nós não devemos acomodarmos-nos” – F1

reconhecendo alguns benefícios neste processo, como se denota nas suas descrições:

“As pessoas dizem assim, parece impossível, como ele consegue fazer as coisas” – F1

“a minha filha diz, mãe tu limpas melhor o teu fogão do que eu limpo o meu” – O1

Portanto, neste grupo, em particular, estas expressões podem ser entendidas como um marco de referência para início de intervenção terapêutica, uma vez que, os participantes, individualmente já foram percebendo alguns benefícios na realização de actividades de forma autónoma e, mais ainda já reconhecem que as primeiras mudanças serão ao nível das suas atitudes e comportamentos:

“vem ao som do que se está a dizer…há que fazer as coisas e ser persistente, nós temos que resolver por nós próprios” –F1


2.3.2 PARTICIPAÇÃO

O idoso com deficiência visual quando aprende a lidar com as reacções emocionais decorrentes da cegueira, com a aceitação e adaptação à situação, consegue também aprender métodos para levar a cabo um conjunto de actividades sem a visão, e que lhe permitem explorar livremente actividades significativas, como se percebe nos seguintes enunciados:

“eu tenho o prato conforme me ensinaram cá, divido o prato em 4 zonas, e ponho a comida, a mulher põe-me a comida, pronto está, é isto, e eu começo a ver, pronto” – J2

“frito naqueles tachinhos, naquelas sertãzinhas da grelha” – E2

“consigo governar o meu dinheiro, graças a deus, consigo governar o dinheiro…para mim cozinho, faço a minha comida, cozinho tudo que me apetecer, faço a comida que quero, vou comprar as minhas coisas ao supermercado….faço a minha vida, ponho as máquinas a trabalhar, lavo roupa que me apetece à mão, outra meto na máquina, passo a ferro, faço a minha vida toda” – F2

“eu nunca tive tanta pena de eu levar a minha bengala” – A2

“aprendi outras coisas mais, a comer, a me movimentar sozinha” – JA2

Contudo, nem sempre são capazes de fazer esta aprendizagem de forma autónoma, o que os leva a recorrer a instituições e serviços especializados.

Em Portugal a intervenção do Terapeuta Ocupacional no idoso com deficiência visual não está documentada, mas, neste estudo específico e para os idosos em causa, essa intervenção é reconhecida:

“foi elementar, foi bom o que eu aprendi cá na casa” – J2

“isso é que nos orientou para a vida” – E2

“encontrei um grande apoio para mim, e achei, passado uns tempos de andar aqui, dizia e digo para mim própria que vale a pena viver, que eu já estava a perder um pouco a sensação” – JA2

“pronto, pronto e é assim, e a minha vida já está melhor” – M2

“mas acho que para já não preciso, enquanto não piorar, aprendi o suficiente” – A2

tendo por base um programa individual adequado a cada idoso:

“a Dra. Marlene teve aulas comigo, ajudou-me nalgumas coisas” - E2

“vim aqui aprendi……, agradeço a Dra. Marlene, porque me ensinou muito bem, com muita calma e muito carinho, eu tinha assim, um certo medo, um certo receio, porque não estava acostumada que me tratassem assim” - JA2

“a menina Marlene começou-me a ser um pouco teimosa, começou-me a meter que eu devia de sair, que havia de ir comer” – A2

No grupo 1, os participantes também mencionaram actividades que realizam de forma autónoma, como:

“E agora aqui faço assim, nunca fico em casa” – J1

“enfio uma máquina de costura, é muito fácil de enfiar uma agulha, faço roupas para as bonecas” – E1

“vou buscar o pão à padaria” – F1

“Agora as coisas da minha casa vou fazendo” – O1

apesar de não ter sido mediada qualquer intervenção terapêutica. No entanto, o envolvimento significativo nessas mesmas actividades é pouco evidente, acabando, por ser interpretadas como meras tarefas a executar por pessoas com demasiado tempo livre.

No grupo 2, a participação em ocupações é bem fundamentada como se pode perceber nos seguintes excertos da sessão:

“Eu todas as tardes vou para um convívio” – C2

“e eu ganhei uma coragem, lá vai ela, todos os fins-de-semana vou jantar, todos os fins de semana vou dançar” – A2

“ainda a propósito, eu ainda agora ultimamente, depois que fiz 70 anos, agora que já tenho, acho que tenho uma idadinha para ter mais de juízo, mas eu fui muitas vezes a Fátima sozinha, nas camionetas da Batalha” – E2

“Fui me inscrever para ser voluntária” – A2

“faço a minha vidinha normal, vou para toda a parte, o meu passeio preferido é a Foz, aliás sempre foi, por conseguinte saio de casa vou até ao Marquês, apanho o autocarro…vou até a foz, dou o meu passeiozinho, entro no meu café, às vezes como um bolo, se tenho mais fome, se não tenho mais fome volto para o autocarro, venho para casa, continuo a minha vida, faço a vida toda de casa” - F2

“Eu quando venho ao Porto fazer qualquer coisa, trago a minha bengala” – J2

“nós temos que conviver lá fora, e às vezes faltamos aqui porque temos os nossos convívios lá fora uns com os outros” – JA2.


3. Discussão

Depois de criar as categorias e os temas, procurou-se na literatura, bibliografia que justificasse a participação ocupacional do idoso com deficiência visual e o papel da Terapia Ocupacional neste processo, fundamentando, desta forma, as categorias e os temas encontrados (Krueger & Casey, 2000).


3.1 IMPACTO DA DEFICIÊNCIA VISUAL

De forma a explorar as perspectivas dos idosos com deficiência visual na experiência que tem desta vivência, foi necessário dar-lhe voz. Então, para os idosos deste estudo, a deficiência visual surge como um défice que aparece progressivamente, conservando, na maioria deles algum resíduo visual e que se traduz em prognósticos inseguros ou negativos, predispondo os idosos a vidas que temem a cegueira e, por outro lado alimentando esperanças como ilustra a frase “mas para mim que já não dá, que está muito adiantado, mas qualquer pessoa podia por isso” – E1, que, por sua vez, implicam uma insegurança constante para os planos de futuro.

Através destas inferências e, suportados pelos pressupostos de Sacks (1996) entende-se que o impacto da deficiência visual deve ser interpretado, tendo por base as expectativas que o idoso tem em relação ao seu défice sensorial, porque parece improvável que o idoso interprete as consequências da deficiência visual de forma imediata. Ou seja, o stress será experimentado repetidamente a cada implicação e a cada nova frustração. De facto, e, respeitando este raciocínio de Sacks (1996), estes idosos experimentam frustrações constantes, que envolvem a ideia de eventualmente vir a ficar cego. Isto acontece sobretudo em pessoas com visão reduzida, o lidar com mudanças no seu estilo de vida, com a sensação de perda de controlo, com a experiência emocional dolorosa das idas constantes ao oftalmologista e, também com a decisão de se submeter ou não a uma cirurgia. Estas necessidades que a deficiência visual impõe ao idoso, levam-no a desenvolver níveis de sofrimento psíquico e pode, mesmo chegar a níveis extremos de aparecimento de uma reacção psicopatológica.

Nos dois grupos foram descritos níveis diferentes de sofrimento psíquico, e, embora para Goncález (2008) não exista uma reacção psicopatológica específica para a cegueira, a depressão foi caracterizada como reacção típica, uma vez que é constantemente citada por estes idosos, sobretudo no grupo 2. Contudo, nem todos os estados psicopatológicos denominados de depressão que foram mencionados pelos participantes remetiam exclusivamente para uma reacção típica à perda visual, tal como verificamos nos seguintes comentários: “também tenho tido algumas depressões à mistura” – M2; “faço muitas depressões” – A2.

Para Benito, Veiga & González (2003), esta situação é comum, porque nos estudos longitudinais sobre idosos que descrevem, conseguiram perceber que a sintomatologia depressiva é relativamente comum num elevado número de idosos, não sendo exclusiva da deficiência visual, mas sim associada a todas as modificações inerentes ao processo de envelhecimento. Portanto, a partir do momento que essas modificações são sentidas pelo idoso, está-se de acordo com estes autores quando afirmam que para se apreender o impacto desta deficiência no idoso, deve ser considerado toda uma perspectiva multidimensional da velhice, incluindo também as características sociodemográficas, características da deficiência, capacidades funcionais, condição de saúde, e avaliação dos défices.

No que refere às implicações sociais da deficiência visual nesta etapa da vida, aquilo que os idosos em estudo realçam são os preconceitos impregnados na sociedade actual que os impedem de um funcionamento social eficaz. Para Dodds, Bailey, Pearson & Yates (1991), estes estereótipos são verdadeiramente preocupantes, porque levam a que o idoso com deficiência visual experimente a ansiedade decorrente do receio de vir a ser rejeitado socialmente trazendo, como uma das principais consequências, a afectação das relações humanas, o isolamento social e perda de auto-estima.

Todas as manifestações atrás referidas vêm responder ao impacto do aparecimento da deficiência visual no idoso, mas são várias as limitações causadas pela deficiência visual nesta etapa de vida e repercutem-se também ao nível das suas actividades e ocupações.

No presente estudo, as restrições de actividades coincidem com as descritas por Crews & Campbell (2001) e reflectem-se tanto ao nível das actividades da vida diária instrumentais, ao nível das actividades da vida diária básicas, no que respeita à mobilidade funcional e no lazer. Para Benito, Veiga & González (2003), assim como em ambos os grupos estudados, salientou-se ainda o impedimento da condução automóvel e que, tal como estes autores descrevem, impede o contacto social, uma vez que a pessoa passa a ficar dependente de outras para de deslocar.

Resumindo, para os idosos em estudo, a deficiência visual leva a limitações funcionais, favorecendo o declínio funcional, porque as perdas visuais afectam o desempenho de muitas das suas ocupações diárias, limitando a sua independência e autonomia, tal como Benito, Veiga & González (2003) e Crews & Campbell (2001) descrevem na sua bibliografia. Toda esta inibição de participação ocupacional desejada obriga o idoso a um ajustamento e adaptação à deficiência (Goncalez, 2008).


3.2 ADAPTAÇÃO E AJUSTAMENTO À DEFICIÊNCIA

Segundo Whiteford (2005), no passado, a presença de uma deficiência, era sinónimo de isolamento social e de oportunidades ocupacionais restritas, porque a maior parte do ambiente construído pelo Homem era pensado para pessoas com corpos capazes, sem deficiências visuais, auditivas ou cognitivas. Ainda há idosos neste estudo que também o relatam: “porque antigamente quem estivesse cego ou tivesse coisas, ou assim dificuldades, tinha que estar em casa, não havia trabalho para estas pessoas” - JA2.

Infelizmente, actualmente, ainda se conseguem reportar alguns desses episódios (“e dizem que nós não podemos” – F1). Devido a estas circunstâncias, a deficiência no idoso pode levar a uma descontinuidade entre as capacidades e o que a pessoa valoriza e as oportunidades, diminuindo a sua auto-estima e dificultando a integração plena do idoso com deficiência visual.

Segundo Kielhofner (2008), este desfazamento torna-se cada vez mais evidente, porque ao longo da vida as pessoas adquirem convicções e compromissos sobre aquilo que consideram bom, mau, certo e importante para fazer. Assim, há idosos que se sentem incapazes e ineficazes, evitando oportunidades e desistindo facilmente dos seus objectivos, mas, por contraste, também se descobrem idosos que se sentem capazes e eficazes e como tal, procuram oportunidades, corrigindo o seu desempenho e persistindo em alcançar os seus objectivos. No presente estudo conseguiram-se sinalizar idosos com ambas as perspectivas, embora a maior prevalência apontada se traduza num elevado número de idosos com deficiência visual que evita e desiste dos seus objectivos, tal como Lewis (2003) e Ivanoff & Svensson (2003) afirmam que existe. Isto torna perfeitamente espectáveis as considerações de Dodds, Bailey, Pearson & Yates, (1991) quando mencionam casos de isolamento e afastamento social, passividade e dependência, acesso restrito ou inadequado a modelos de papéis sociais, e, sobretudo atitudes estereotipadas tanto das pessoas que vêem como das que não vêem. Estes pressupostos também se manifestam neste estudo, afectando as atitudes e apoio da família próxima e pares, tornando-se um factor impeditivo para o bom ajustamento à deficiência. O contrário também é expectável e destaca-se sobretudo no grupo 2, em que os contactos sociais próximos representam uma fonte de alegria, porque permitem criar referências com alguém que lhes dê atenção, considerando-se aceites face à problemática que apresentam. Conclui-se, assim que, quando se estudam idosos com deficiência visual, se devem considerar os efeitos das redes sociais, tornando-os um reforço positivo para a sua vida, uma vez que a maneira como estas redes interagem podem condicionar o processo de ajustamento à deficiência.

À medida que as discussões se desenvolviam, era cada vez mais evidente que, tal como Dodds, Bailey, Pearson & Yates, (1991) afirmam, o ambiente é que impõe as limitações às pessoas com deficiências visuais através de estruturas, costumes e comportamentos que tornam o mundo exterior inacessível, levando a estereótipos e o estigma relativos à deficiência visual. Por isso há necessidade de um olhar mais atento às necessidades desta população.

Para Mclntyre & Atwal (2005) uma sociedade ocupacionalmente justa, seria aquela que oferece oportunidades para as pessoas, incluindo os idosos, de forma a continuarem a desenvolver-se, não espartilhados por expectativas sociais ou familiares. Desta forma, quando o idoso com deficiência visual atesta que: “tenho a minha segunda casa que é esta, eu se não vier para aqui fico doente” – A2, assume-se que a ACAPO surge como uma resposta coesa e imediata para este público. No entanto e, apesar destes idosos partilharem a importância que a ACAPO representa para eles, não se pode desvalorizar que são pessoas diferentes nas suas habilidades, necessidades, recursos e interesses, tornando-as únicas e com necessidades muito específicas: “mas para as nossas idades não há nada, e estou a falar em termos de quem fica cego, aos 60 anos, aos 50” – JA2. Esta afirmação permite que se reflicta e se pondere, realmente se estes idosos não estarão privados de ocupações significativas, não sendo respeitadas todas as suas necessidades e/ou interesses.

Sem dúvida que viver com a deficiência implica, como Paúl & Fonseca, (2001) asseguram, uma tentativa de reconstrução da vida própria, envolvendo estratégias específicas para lidar com os sintomas, com as consequências percebidas da deficiência e com o ajustamento à deficiência no âmbito das relações sociais. Contudo, nem todos os idosos deste estudo procuraram essa reconstrução de vida própria como se reconhece no discurso de O1: “ Agora arranjei quem me fizesse.”. Apesar desta excepção e outras que não foram tão claras, em ambos os grupos, foram sinalizados idosos com deficiência visual que procuram uma reconstrução de vida própria e, para tal mencionam todo um conjunto de estratégias utilizadas com esse intuito, favorecendo o seu ajustamento e adaptação à sua nova condição de vida. As estratégias utilizadas pelos idosos de ambos os grupos são sobretudo o recurso à terceira pessoa, o recurso ao resíduo visual, o recurso aos restantes órgãos sensoriais, o recurso às capacidades remanescentes e o recurso a ajudas técnicas.

No grupo 1, estas estratégias parecem ser mal aproveitadas ou insuficientes porque há considerações de idosos que apelam à dependência para a realização das suas actividades, denotando-se uma melhor utilização destes recursos no grupo 2. Estas particularidades existentes entre os dois grupos podem ser justificadas, em parte pela existência de uma intervenção por técnico especializado. Isto porque o papel do terapeuta ocupacional é ajudar no desempenho de actividades, equilibrando as acções e sentimentos do indivíduo em relação às suas habilidades, aos desafios do meio e às dificuldades da tarefa, adaptando as exigências da tarefa, tornando o ambiente mais adequado, ensinando novas estratégias ou ajudando o indivíduo a readquirir as habilidades perdidas (Ribeiro, 2007).


3.3 BENEFÍCIOS PERCEBIDOS

Tal como se pode perceber à medida que se caracterizam as particularidades do idoso com deficiência visual, há um forte comprometimento na sua participação, na medida em que a deficiência cria alguns obstáculos à perspectiva sobre si próprio como uma pessoa capaz, limitando a sua capacidade de fazer aquilo que quer e gosta. (Kielhofner, 2008). Contudo atesta-se que, da literatura consultada e do que se conseguiu apreender das sessões, o idoso pode ser treinado a fazer o melhor uso possível das suas capacidades remanescentes, a tomar as suas próprias decisões e assegurar uma consciencialização de alternativas realistas, promovendo e preservando uma boa qualidade de vida e a sua integração na comunidade, desde que haja uma intervenção direccionada às suas necessidades e aos seus interesses.

O discurso dos participantes que usufruíram de uma intervenção por técnico especializado transmitiram um bem-estar generalizado, valorizando os princípios de Sequeira (2007), quando defende que a velhice deve ser percepcionada como uma etapa de vida com memórias felizes, resultando em sensação de bem-estar, apesar das limitações circunstanciais que possam existir.

No grupo 1, estes sentimentos de satisfação não são tão evidentes; no entanto, parece existir predisposição para mudança, reconhecendo alguns benefícios nessa mudança. Neste grupo, em particular, estas expressões podem ser entendidas como um marco de referência para início de intervenção terapêutica, uma vez que, os participantes já se vincularam à ACAPO e, individualmente, já foram percebendo alguns benefícios na realização de actividades de forma autónoma. Reconheceram também que as primeiras mudanças serão ao nível das suas atitudes e comportamentos, como se comprova no seguinte depoimento: “vem ao som do que se está a dizer…há que fazer as coisas e ser persistente, nós temos que resolver por nós próprios” –F1.

Assim, suportados por Mclntyre & Atwal (2005), acredita-se que as ocupações, enquanto actividades de envolvimento em situações de vida, têm significado e valor único e que daí advém uma motivação clara para as pessoas participarem em ocupações.

Para Kielhofner (2008), também não restam dúvidas que todos os indivíduos devem ter direito à participação, responsabilização, partilha, escolha, satisfação, crescimento e, também a oportunidades de ocupação significativa diversificada. Ainda mais estes idosos, porque muitas das suas actividades foram cessadas com o aparecimento da deficiência visual. Quando as oportunidades surgem, os sentimentos são: “eu vou para lá para fazer tudo e quero me sentir útil para tudo, naquilo, dentro das minhas capacidades” – A2.

Isto permite pensar que, tal como Mello (2007) defende, seria imprudente não programar uma reabilitação funcional junto do idoso com deficiência visual. E, se por um lado, nunca se deve descurar, como já se referiu anteriormente, o lidar com as reacções emocionais decorrentes da cegueira, com a aceitação e adaptação à situação; por outro deve-se programar o aprender métodos para levar a cabo um conjunto de actividades sem a visão, para que a pessoa possa explorar livremente as suas oportunidades de participação ocupacional. Esta aprendizagem permite ao idoso com deficiência visual uma participação ocupacional desejada.

Na verdade, tal como Mclntyre & Atwal (2005) reportam, algumas destas premissas codificam a intervenção do terapeuta ocupacional na área da deficiência visual, apesar de só agora estar a ser reconhecido esse apoio. Contudo, para os participantes em estudo parece já não existir esta barreira, pois reconhecem com importância e até descrevem com entusiasmo e satisfação a intervenção mediada, como se dilui nos comentários do grupo 2: “encontrei um grande apoio para mim, e achei, passado uns tempos de andar aqui, dizia e digo para mim própria que vale a pena viver, que eu já estava a perder um pouco a sensação” – JA2.

No grupo 1 também se consegue apreender a necessidade de uma intervenção por técnico especializado, embora não seja tão explícito, porque, apesar de nas suas descrições, os participantes mencionarem actividades que realizam de forma autonomamente, parece não existir um envolvimento significativo nessas mesmas actividades, acabando, por ser interpretadas como Sequeira (2007) diz, meras tarefas a executar por pessoas com demasiado tempo livre. Portanto, seguindo esta linha de pensamento, as actividades para os idosos em geral, e na deficiência visual também, tem que ter por matriz as preferências individuais e colectivas, de modo a proporcionar bem-estar emocional e psicológico.

Acredita-se, pois que as capacidades do idoso com deficiência podem ser restauradas ou adaptadas, mas para tal é necessário que se promovam intervenções que maximizem a sua independência e autonomia de forma a permitir ao idoso o programar da sua participação ocupacional. Porém, e porque se sabe que o envelhecimento patológico limita a sua eficiência funcional, em que há uma necessidade de adequação à nova realidade, não se pode esquecer que cada idoso é um indivíduo diferente, que precisa de um programa pessoal de trabalho, de acordo com as suas necessidades (Lewis, 2003; Ivanoff & Svensson, 2003; Eklund et al, 2008).


Conclusão

Chegada a etapa final, parece pertinente apresentar algumas reflexões que permitam conhecer a complexidade das experiências dos idosos com deficiência visual face à sua participação ocupacional e à sua relação com o apoio em Terapia Ocupacional, deixando sempre em evidência a necessidade de se estudar mais sobre estas questões. Trata-se de um estudo que se debruçava apenas por duas áreas que, apesar de complementares e interligadas, são cada uma por si merecedoras de investigação aprofundada. Isto impôs limitações notórias aquando da concretização deste estudo, porque não permitiu o aprofundamento desejado e merecido.

No sentido de responder aos objectivos do estudo, defende-se que só é possível perceber as perspectivas de participação ocupacional dos idosos com deficiência visual se se estudarem em detalhe as repercussões que esta deficiência tem nas suas vidas, contemplando o percurso e história de vida antes e durante o aparecimento da deficiência, bem como o processo de ajustamento à deficiência que cada idoso experimenta. Como se percebeu nos resultados descritos, em ambos os grupos foram mencionadas restrições nas actividades e ocupações, após o aparecimento da deficiência visual. O maior enfoque foi nas actividades da vida diária básicas e nas instrumentais, na mobilidade funcional e no lazer. Contudo, este estudo não contemplou características diferenciadoras da própria deficiência visual, principalmente no que respeita à vivência das perdas visuais (existência ou não de visão residual). Este aspecto pode fazer variar a experiência que o idoso tem da sua participação ocupacional, havendo actividades visuais que ainda podem ser conseguidas pelos idosos amblíopes, o que não acontece na cegueira. Sabendo que amostra utilizada incorporava mais idosos amblíopes do que cegos, poder-se-á depreender que existirão outras ou até mais restrições ocupacionais nesta população.

Outra reflexão importante tem a ver com a intervenção do terapeuta ocupacional nesta população. Sabe-se que ainda há um longo caminho que deve ser percorrido para que estes idosos sejam realmente integrados na sociedade actual carecendo, sem dúvida, de respostas mais abrangentes que incorporem distintas áreas de intervenção. Este facto realmente resume o pouco investimento que tem sido feito em Portugal no processo de reabilitação de idosos com deficiência visual.

A ACAPO, enquanto instituição de âmbito nacional que representa e defende os direitos e os interesses das pessoas cegas e amblíopes portuguesas, intervindo activamente na definição e implementação de todas as políticas no âmbito da habilitação, reabilitação e participação das pessoas com deficiência visual, também não parece estar devidamente orientada para responder às reais necessidades da população idosa com deficiência visual. Apesar de a Terapia Ocupacional ser incorporada nos serviços desta Instituição, tal como a Psicologia e o Serviço Social, nem sempre é possível implementar toda a dimensão de intervenção, principalmente porque muitas das soluções aos problemas que interferem no desempenho das ocupações significativas e valorizadas pelo idoso são de âmbito ambiental. Não é portanto possível, institucional e burocraticamente responder de forma imediata. Contudo, nas sessões de focus groups denotou-se diferenças evidentes entre os idosos de ambos os grupos, no que respeita à sua participação ocupacional. No grupo de idosos que não beneficiou de apoio de Terapia Ocupacional, ao contrário do que acontece com os que beneficiaram deste apoio, percepciona-se que os idosos participam em ocupações porque tem demasiado tempo livre, sem evidência directa de satisfação e, simultaneamente descrevem privações ocupacionais.

O grupo que beneficiou da intervenção do terapeuta ocupacional parece saber lidar melhor com os pensamentos negativos que daí advém, a cada nova frustração. Assim, conseguem evocar estratégias adaptativas de forma a realizar as actividades pretendidas e procurar outras ocupações de envolvimento desejado. Estes factos apontam para uma melhor adaptação e ajustamento à deficiência por parte destes idosos, que pode e deve ser atribuída à intervenção do terapeuta ocupacional, uma vez que a maior diferença entre os grupos se reflectia no benefício ou não da intervenção deste profissional. Tendo em conta o exposto, percepciona-se que o grupo apoiado pelo terapeuta ocupacional apresenta, realmente, diferenças em relação ao grupo que não usufruiu desse apoio e que se traduzem, como já se referiu anteriormente, no nível de participação, responsabilização, partilha, escolha, satisfação, crescimento e oportunidade de ocupação significativa. Resumindo, as diferenças nas percepções de participação ocupacional do idoso com deficiência visual evidenciadas entre os grupos e os sentimentos de envolvimento significativo que daí parecem advir, demonstram que a intervenção do terapeuta ocupacional, nesta população específica pode ser considerado um marco de referência respeitável.

Em síntese, foi de todo interessante conhecer-se a experiência da deficiência visual no idoso, compreendendo os benefícios da participação ocupacional desejada, porque além de elucidar a importância da intervenção do terapeuta ocupacional nesta população, contribuiu para determinar que a participação ocupacional do idoso com deficiência visual na sociedade actual é abrangente, sendo cada vez mais importante neutralizar as barreiras deste processo.

Quando se iniciou este estudo, esperava-se concluí-lo com muitas certezas e dados; contudo, durante a discussão dos resultados foram imergindo mais e mais questões que carecem de esclarecimento e aprofundamento. Assim, independentemente das limitações e potencialidades que este estudo contempla, levantou também outras reflexões que poderão ser alvo de investigações futuras. Aquela que à partida suscitou mais interesse e, talvez pertinência, tem a ver com a valorização e reconhecimento científico da intervenção do terapeuta ocupacional na população idosa com deficiência visual, porque, apesar de muitos serem os contributos mencionados, há necessidade que isto seja devidamente documentado. Para tal, é evidente o uso de outra metodologia que possa categorizar melhor esta questão científica.


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Participação Ocupacional do Idoso com Deficiência Visual: sua percepção
Marlene Caldas Monteiro
Dissertação de Mestrado em Terapia Ocupacional
Área de Especialização: Gerontologia
Instituto Politécnico do Porto
Escola Superior de Tecnologia da Saúde
Porto, 2010

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6.Nov.2012
publicado por MJA