A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para
não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos e tampouco,
arrancar de
suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,
preparando-as em vez disso e com antecedência para a tarefa de renovar um mundo
comum.
Hanna Arendt
1. O desafio da inclusão
A inclusão é um desafio, que ao ser devidamente enfrentado pela escola comum,
provoca
a melhoria da qualidade da Educação Básica e Superior, pois para que os alunos
com e sem
deficiência possam exercer o direito à educação em sua plenitude, é
indispensável que essa
escola aprimore suas práticas, a fim de atender às diferenças. Esse
aprimoramento é necessário,
sob pena de os alunos passarem pela experiência educacional sem tirar dela o
proveito
desejável, tendo comprometido um tempo que é valioso e irreversível em suas
vidas: o momento
do desenvolvimento.
A transformação da escola não é, portanto, uma mera exigência da inclusão
escolar de pessoas
com deficiência e/ou dificuldades de aprendizado. Assim sendo, ela deve ser
encarada como um
compromisso inadiável das escolas, que terá a inclusão como conseqüência.
A maioria das escolas está longe de se tornar inclusiva. O que existe em geral
são escolas que
desenvolvem projetos de inclusão parcial, os quais não estão associados a
mudanças de base
nestas instituições e continuam a atender aos alunos com deficiência em espaços
escolares semi
ou totalmente segregados (classes especiais, escolas especiais).
As escolas que não estão atendendo alunos com deficiência em suas turmas de
ensino regular se
justificam, na maioria das vezes, pelo despreparo dos seus professores para esse
fim. Existem
também as que não acreditam nos benefícios que esses alunos poderão tirar da
nova situação,
especialmente os casos mais graves, pois não teriam condições de acompanhar os
avanços
dos demais colegas e seriam ainda mais marginalizados e discriminados do que nas
classes
e escolas especiais.
Em ambas as circunstâncias fica evidenciada a necessidade de se redefinir e de
se colocar em
ação novas alternativas e práticas pedagógicas, que favoreçam a todos os alunos,
o que implica
na atualização e desenvolvimento de conceitos e em metodologias educacionais
compatíveis com
esse grande desafio.
Mudar a escola é enfrentar uma tarefa que exige trabalho em muitas frentes.
Destacaremos as
transformações que consideramos primordiais, para que se possa transformar a
escola na direção
de um ensino de qualidade e, em conseqüência, inclusivo.
Temos que agir urgentemente:
-
colocando a aprendizagem como o eixo das escolas, porque escola foi feita para
fazer com que todos os alunos aprendam;
-
garantindo tempo e condições para que todos possam aprender de acordo com o
perfil de cada um e reprovando a repetência;
-
garantindo o atendimento educacional especializado, preferencialmente na própria
escola comum da rede regular de ensino;
-
abrindo espaço para que a cooperação, o diálogo, a solidariedade, a criatividade
e o espírito crítico sejam exercitados nas escolas por professores, administradores,
funcionários e alunos, pois são habilidades mínimas para o exercício da verdadeira cidadania;
-
estimulando, formando continuamente e valorizando o professor, que é o
responsável pela tarefa fundamental da escola - a aprendizagem dos alunos.
Em contextos educacionais verdadeiramente inclusivos, que preparam os alunos
para a cidadania e
visam o seu pleno desenvolvimento humano, como quer a Constituição Federal (art.
205), as crianças e adolescentes com deficiências não precisariam e não deveriam estar mais de
fora das classes comuns
das escolas de ensino regular de Educação Infantil e do Ensino Fundamental,
freqüentando classes e
escolas especiais.
Novas práticas de Educação Infantil e Ensino Fundamental proporcionam benefícios
escolares
para que todos os alunos possam alcançar os mais elevados níveis de ensino,
segundo a capacidade
de cada um, como nos garante a Constituição.
Há diversas opções de cursos para atender às mais diversas aptidões e o Ensino
Fundamental é
apenas a base dos demais níveis de escolaridade. Nesta diversidade vamos
encontrar os cursos
profissionalizantes, os destinados a jovens e adultos, o Ensino Médio e o
Superior.
No intuito de entender melhor o que a inclusão representa na educação escolar de
todo e qualquer
aluno e, especialmente para os que têm deficiências, é preciso esclarecer o que
as escolas comuns
que adotam o paradigma inclusivo defendem, priorizam e no que mudaram para se
ajustarem a ele.
Para melhorar as condições pelas quais o ensino é ministrado nas escolas comuns,
visando universalizar o
acesso, a permanência e o prosseguimento da escolaridade de seus alunos, ou
seja, a inclusão incondicional
de todos os alunos nas turmas escolares, não há mágicas. Mas a adoção de
alternativas educacionais, que
felizmente já estão fazendo parte da organização pedagógica de escolas de
algumas redes de ensino
brasileiras tem revelado a possibilidade de as escolas se abrirem
incondicionalmente às diferenças!
Seguem as medidas mais gerais, de natureza administrativa e pedagógica, que
estão levando as
escolas comuns ao caminho de um melhoramento contínuo do ensino e, portanto, à
inclusão.
2. Mudanças na organização pedagógica das escolas
Uma das mais importantes mudanças visa estimular as escolas para que elaborem
com autonomia e de
forma participativa o seu Projeto Político Pedagógico, diagnosticando a demanda.
Ou seja, verificando
quem são, quantos são os alunos, onde estão e porque alguns evadiram, se têm
dificuldades de
aprendizagem, de freqüentar as aulas, assim como os recursos humanos, materiais
e financeiros disponíveis.
Esse Projeto implica em um estudo e um planejamento de trabalho envolvendo todos
os que compõem
a comunidade escolar, com objetivo de estabelecer prioridades de atuação,
objetivos, metas e
responsabilidades que vão definir o plano de ação das escolas, de acordo com o
perfil de cada uma:
as especificidades do alunado, da equipe de professores, funcionários e num dado
espaço de tempo,
o ano letivo.
Sem que a escola conheça os seus alunos e os que estão à margem dela, não será
possível elaborar
um currículo escolar que reflita o meio social e cultural em que se insere. A
integração entre as áreas
do conhecimento e a concepção transversal das novas propostas de organização
curricular transformam
as disciplinas acadêmicas em meios e não em fins da educação escolar. As
propostas curriculares
reconhecem e valorizam os alunos em suas peculiaridades étnicas, de gênero,
cultura; partem de
suas realidades de vida, de suas experiências, de seus saberes, fazeres e vão
sendo tramadas em
redes de conhecimento que superam a tão decantada sistematização do saber.
Embora ainda muito incompreendida pelos professores e pais, por ser uma novidade
e por ainda
ser pouco difundida e aplicada nas redes de ensino, a implantação dos ciclos é
uma outra solução
a ser adotada, quando se pretende que as escolas acolham a todos os alunos, sem
discriminações.
De fato, se dermos mais tempo para que os alunos aprendam, eliminando a seriação
e a reprovação
nas passagens de um ano para o outro, estaremos adequando a aprendizagem ao que
é natural
e espontâneo no processo de aprender e no desenvolvimento humano, em todos os
seus aspectos.
Não se pode imaginar uma educação para todos quando constituímos grupos de
alunos por séries,
por níveis de desempenho escolar e determinamos para cada nível objetivos e
tarefas adaptadas.
E, mais ainda, quando encaminhamos os que não cabem em nenhuma dessas
determinações
para classes e escolas especiais, argumentando que o ensino para todos não
sofreria distorções
de sentido em casos como esses!
Essa compreensão equivocada da escola inclusiva acaba instalando cada criança em
um locus
escolar arbitrariamente escolhido e acentua mais as desigualdades, justificando
o fracasso escolar,
como problema exclusivamente devido ao aluno.
Embora uma nova maneira de formar as turmas escolares não baste para promover a
inclusão, a
organização das turmas escolares por ciclos é ideal para que se possa entender o
funcionamento ativo
dos alunos frente a situações-problema: cada um faz seu caminho diante de
diferentes tipos de desafios
escolares. As séries escolares são uma reminiscência do ensino escolar baseado
na falsa idéia de que
as turmas organizadas por séries são homogêneas. É, sem dúvida, a
heterogeneidade que dinamiza os
grupos, dando-lhes vigor, funcionalidade e garantindo o sucesso escolar.
Precisamos nos conscientizar de
que as turmas escolares são e sempre serão desiguais, queiramos ou não.
A aprendizagem como o centro das atividades escolares e o sucesso dos alunos
como a meta
da escola independentemente do nível de desempenho a que cada um seja capaz de
chegar
são condições básicas para se caminhar na direção de escolas acolhedoras. O
sentido
desse acolhimento não é a aceitação passiva das possibilidades de cada aluno,
mas o de
sermos receptivos aos níveis diferentes de desenvolvimento das crianças e dos
jovens. Afinal,
as escolas existem para formar as novas gerações e não apenas alguns de seus
futuros
membros, os mais privilegiados.
A inclusão não implica no desenvolvimento de um ensino individualizado para os
alunos que
apresentam déficits intelectuais, problemas de aprendizagem e outros
relacionados ao desempenho
escolar. Na visão inclusiva, não se segregam os atendimentos escolares, seja
dentro ou fora das
salas de aula e, portanto, nenhum aluno é encaminhado a salas de reforço ou
aprende a partir
de currículos adaptados. É uma ilusão pensar que o professor consegue
predeterminar a extensão
e a profundidade dos conteúdos a serem construídos pelos alunos, assim como
facilitar as
atividades para alguns, porque, de antemão já prevê a dificuldade que possam
encontrar para
realizá-las. Na verdade é o aluno que se adapta ao novo conhecimento e só ele é
capaz de
regular o seu processo de construção intelectual.
Em síntese, cabe ao educando individualizar a sua aprendizagem e isso ocorre
quando o ambiente
escolar e as atividades e intervenções do professor o liberam, o emancipam,
dando-lhe espaço
para pensar, decidir e realizar suas tarefas, segundo seus interesses e
possibilidades. Já o
ensino individualizado, adaptado pelo professor, rompe com essa lógica
emancipadora e implica
em escolhas e intervenções do professor que passa a controlar de fora o processo
de aprendizagem.
Desejamos que as intervenções do professor sejam direcionadas para
desequilibrar, apresentar
desafios e apoiar o aluno nas suas descobertas, sem lhe retirar a condução do
seu próprio
processo educativo.
A inclusão não prevê a utilização de práticas de ensino escolar específicas para
esta ou aquela
deficiência, mas sim recursos, ferramentas que podem auxiliar os processos de
ensino e de aprendizagem.
Os alunos aprendem até o limite em que conseguem chegar, se o ensino for de
qualidade, isto é, se
o professor considerar as possibilidades de desenvolvimento de cada aluno e
explorar sua capacidade
de aprender. Isso pode ocorrer por meio de atividades abertas, nas quais cada
aluno se envolve na
medida de seus interesses e necessidades, seja para construir uma idéia,
resolver um problema ou
realizar uma tarefa. Esse é um grande desafio a ser enfrentado pelas escolas
regulares tradicionais,
cujo modelo é baseado na transmissão dos conhecimentos.
O trabalho coletivo e diversificado nas turmas é compatível com a vocação da
escola de formar
as novas gerações. É nos bancos escolares que aprendemos a viver entre os nossos
pares, a
dividir as responsabilidades e repartir as tarefas. O exercício dessas ações
desenvolve a cooperação,
o sentido de se trabalhar e produzir em grupo, o reconhecimento da diversidade
dos talentos
humanos e a valorização do trabalho de cada pessoa para a obtenção de metas
comuns de um
mesmo grupo.
Os
tutores têm sido uma solução muito bem-vinda a todos, despertando nos alunos
o hábito de
compartilhar o saber. O apoio ao colega com dificuldade é uma atitude
extremamente útil e
humana que tem sido pouco desenvolvida nas escolas.
Os modos de avaliar a aprendizagem são outro entrave à implementação da
inclusão. Por isso,
é urgente substituir o caráter classificatório da avaliação escolar, através de
notas e provas, por
um processo que deverá ser contínuo e qualitativo, visando depurar o ensino e
torná-lo cada
vez mais adequado e eficiente à aprendizagem de todos os alunos. Essa medida já
diminuiria
substancialmente o número de crianças e adolescentes que são indevidamente
avaliados,
encaminhados e categorizados como deficientes nas escolas regulares. Esse tópico
será
tratado neste documento, com mais detalhes, posteriormente.
Além das sugestões referentes ao ensino nas escolas comuns do ensino regular,
uma
educação de qualidade para todos implica em mudanças relativas à administração e
aos
papéis desempenhados pelos membros da organização escolar. Neste sentido é
primordial
que seja revista a gestão escolar e essa revisão implica:
a) que os papéis desempenhados pelos diretores e coordenadores mudem e que o
teor controlador,
fiscalizador e burocrático dessas funções seja substituído pelo trabalho de
apoio e de orientação
ao professor e à toda comunidade escolar;
b) que a gestão administrativa seja descentralizada, promovendo uma maior
autonomia pedagógica,
administrativa e financeira dos recursos materiais e humanos das escolas, por
meio dos conselhos,
colegiados, assembléias de pais e de alunos.
Com essas mudanças na administração escolar, o aspecto pedagógico das funções do
diretor,
dos coordenadores e dos supervisores emerge. Deixam de existir os motivos pelos
quais esses
profissionais ficam confinados aos gabinetes, às questões burocráticas, sem
tempo para conhecer
e participar do que acontece no dia-a-dia das salas de aula.
3. Como ensinar a turma toda?
Que práticas de ensino ajudam os professores a ensinar os alunos de uma mesma
turma,
atingindo a todos, apesar de suas diferenças? Ou, como criar contextos
educacionais capazes
de ensinar todos os alunos?
Ensino disciplinar ou ensino não-disciplinar?
Escolas abertas às diferenças e capazes de ensinar a turma toda demandam uma
re-significação
e uma reorganização completa dos processos de ensino e de aprendizagem usuais,
pois não se
pode encaixar um projeto novo em uma velha matriz de concepção do ensino
escolar.
Para melhorar a qualidade do ensino e conseguir trabalhar com as diferenças
existentes nas salas
de aula, é preciso enfrentar os desafios da inclusão escolar, sem fugir das
causas do fracasso e da
exclusão. Além disso, é necessário desconsiderar as soluções paliativas
sugeridas para esse fim.
As medidas normalmente indicadas para combater a exclusão não promovem mudanças.
Ao contrário,
visam mais neutralizar os desequilíbrios criados pela heterogeneidade das turmas
do que potencializá-
los, até que se tornem insustentáveis, forçando, de fato, as escolas a buscar
novos caminhos
educacionais, que atendam à pluralidade dos alunos.
Enquanto
os professores da Educação Básica persistirem em:
-
propor trabalhos coletivos, que nada mais são do que atividades individuais
realizadas ao
mesmo tempo pela turma;
-
ensinar com ênfase nos conteúdos programáticos da série;
adotar o livro didático como ferramenta exclusiva de orientação dos programas de
ensino;
servir-se da folha mimeografada ou xerocada para que todos os alunos as
preencham ao
mesmo tempo, respondendo às mesmas perguntas com as mesmas respostas;
-
propor projetos de trabalho totalmente desvinculados das experiências e do
interesse dos
alunos, que só servem para demonstrar a pseudo-adesão do professor às inovações;
-
organizar de modo fragmentado o emprego do tempo do dia letivo para apresentar o
conteúdo
estanque desta ou daquela disciplina e outros expedientes de rotina das salas de
aula;
-
considerar a prova final como decisiva na avaliação do rendimento escolar do
aluno;
não teremos condições de ensinar a turma toda, reconhecendo as diferenças na
escola.
As práticas listadas configuram o velho e conhecido ensino para alguns alunos, e
para alguns
alunos em alguns momentos, em algumas disciplinas, atividades e situações de
sala de aula.
Dessa forma, a exclusão se alastra e se perpetua, atingindo a todos os alunos,
não apenas os que
apresentam uma dificuldade maior de aprender ou uma deficiência específica.
Porque em cada sala
de aula sempre existem alunos que rejeitam propostas de trabalho escolar
descontextualizadas, sem
sentido e atrativos intelectuais. Há os que sempre protestam, a seu modo, contra
um ensino que não
os desafia e não atende às suas motivações e interesses pessoais.
O ensino para alguns é ideal para gerar indisciplina, competição, discriminação,
preconceitos
e para categorizar os bons e os maus alunos, por critérios que são, no geral,
infundados.
Já o ensino para todos desafia o sistema educacional, a comunidade escolar e
toda uma rede
de pessoas, que se incluem num movimento vivo e dinâmico de fazer uma educação
que
assume o tempo presente como uma oportunidade de mudança do alguns em todos, da
discriminação e preconceito em reconhecimento e respeito às diferenças. É um
ensino que
coloca o aluno como foco de toda a ação educativa e possibilita a todos os
envolvidos a
descoberta contínua de si e do outro, enchendo de significado o saber/sabor de
educar.
Ainda hoje, vigora a visão conservadora de que as escolas de qualidade são as
que enchem as
cabeças dos alunos com datas, fórmulas, conceitos justapostos, fragmentados. A
qualidade
desse ensino resulta da superioridade e da supervalorização do conteúdo
acadêmico em todos
os seus níveis. Sem dúvida, o conteúdo curricular é importante, mas não é o
único aspecto que
se deve esperar de uma educação de qualidade, principalmente quando estamos
falando de
etapas iniciais da Educação Básica: a Educação Infantil e o Ensino Fundamental.
Persiste a idéia de que as escolas consideradas de qualidade são as que centram
a aprendizagem
nos conteúdos programáticos das disciplinas curriculares, exclusivamente,
enfatizando o aspecto
cognitivo do desenvolvimento e que avaliam os alunos, quantificando
respostas-padrão. Suas
práticas preconizam a exposição oral, a repetição, a memorização, os
treinamentos, o livresco, a
negação do valor do erro. São aquelas escolas que estão sempre preparando o
aluno para o futuro:
seja este a próxima série a ser cursada, o nível de escolaridade posterior ou o
vestibular!
Ao contrário, uma escola se distingue por um ensino de qualidade capaz de formar
pessoas
nos padrões requeridos por uma sociedade mais evoluída e humanitária , quando
consegue
aproximar os alunos entre si, tratar os conteúdos acadêmicos como meios de
conhecer melhor
o mundo e as pessoas que nos rodeiam e ter como parceiras as famílias e a
comunidade na
elaboração e no cumprimento do projeto escolar.
A proposta pedagógica inclusiva norteia-se pela base nacional comum (LDBEN) e
referenda a
educação não-disciplinar (Gallo, 1999), cujo ensino se caracteriza por:
-
formação de redes de conhecimento e de significações em contraposição a
currículos apenas
conteúdistas, a verdades prontas e acabadas, listadas em programas escolares
seriados;
integração de saberes decorrente da transversalidade curricular e que se
contrapõe ao consumo
passivo de informações e de conhecimentos sem sentido.
-
descoberta, inventividade e autonomia do sujeito na conquista do conhecimento;
ambientes polissêmicos, favorecidos por temas de estudo que partem da realidade,
da identidade
social e cultural dos alunos, contra toda a ênfase no primado do enunciado
desvinculado da
prática social e contra a ênfase no conhecimento pelo conhecimento.
No ensino para todos e de qualidade, as ações educativas se pautam por
solidariedade, colaboração,
compartilhamento do processo educativo com todos os que estão direta ou
indiretamente nele envolvidos.
4. E as práticas de ensino?
Nas práticas não-disciplinares de ensino predominam a experimentação, a criação,
a descoberta,
a co-autoria do conhecimento. Vale o que os alunos são capazes de aprender hoje
e o que
podemos lhes oferecer de melhor para que se desenvolvam em um ambiente rico e
verdadeiramente
estimulador de suas potencialidades. As escolas devem ser espaços educativos de
construção
de personalidades humanas autônomas, críticas, nos quais as crianças aprendem a
ser pessoas.
Nelas os alunos são ensinados a valorizar as diferenças, pela convivência com
seus pares, pelo
exemplo dos professores, pelo ensino ministrado nas salas de aula, pelo clima
sócio-afetivo das
relações estabelecidas em toda a comunidade escolar.
Escolas assim concebidas não excluem nenhum aluno de suas salas de aula, de seus
programas,
das atividades e do convívio escolar mais amplo. São contextos educacionais em
que todos os
alunos têm possibilidade de aprender, freqüentando a mesma turma.
5. Que tipos de atividades e quais os processos pedagógicos?
Para ensinar a turma toda, deve-se propor atividades abertas e diversificadas,
isto é, que
possam ser abordadas por diferentes níveis de compreensão, de conhecimento e de
desempenho
dos alunos e em que não se destaquem os que sabem mais ou os que sabem menos. As
atividades são exploradas, segundo as possibilidades e interesses dos alunos que
livremente
as desenvolvem.
Debates, pesquisas, registros escritos, falados, observação, vivências são
alguns processos pedagógicos
indicados para a realização de atividades dessa natureza. Por meio destes e
outros processos, os
conteúdos das disciplinas vão sendo chamados, espontaneamente, a esclarecer os
assuntos em
estudo. Esses assuntos são centrais e constituem os fins a que se pretende
alcançar em planejamentos
escolares não-disciplinares. As disciplinas nos apóiam para elucidar os temas em
estudo e são
importantes nesse sentido.
6. Como realizar a avaliação?
A avaliação do desenvolvimento dos alunos também muda para ser coerente com as
demais
inovações propostas. O processo ideal é o que acompanha o percurso de cada
estudante, do
ponto de vista da evolução de suas competências, habilidades e conhecimentos. A
meta é
mobilizar e aplicar conteúdos acadêmicos e outros meios que possam ser úteis
para se chegar
a realizar tarefas e alcançar os resultados pretendidos pelo aluno. Apreciam-se
os seus progressos
na organização dos estudos, no tratamento das informações e na participação na
vida social.
Desse modo, muda-se o caráter da avaliação que, usualmente, se pratica nas
escolas e que tem
fins meramente classificatórios. Temos interesse em levantar dados para
compreensão do processo
de aprendizagem e aperfeiçoamento da prática pedagógica.
Para alcançar sua nova finalidade, a avaliação terá, necessariamente, de ser
dinâmica,
contínua, mapeando o processo de aprendizagem dos alunos em seus avanços,
retrocessos,
dificuldades e progressos.
Vários são os instrumentos que podem ser utilizados para avaliar, de modo
dinâmico, os caminhos
da aprendizagem, como: os registros e anotações diárias do professor, os
chamados portfólios e
demais arquivos de atividades dos alunos e os diários de classe, em que vão
sendo colecionadas
as impressões sobre o cotidiano do ensino e da aprendizagem. As provas também
constituem
opções de avaliação desejáveis, desde que haja o objetivo de analisar, junto aos
alunos e os seus
pais, os sucessos e as dificuldades escolares.
É importante também que os alunos se auto-avaliem e nesse sentido o professor
precisa criar
instrumentos que os exercitem/auxiliem a adquirir o hábito de refletir sobre as
ações que realizam
na escola e como estão vivenciando a experiência de aprender.
Esta é, sem dúvida, uma lacuna que a escola precisa preencher, pois temos
dificuldade de analisar
e de julgar a nossa produção intelectual, até mesmo nos níveis mais avançados de
ensino.
Dependemos muito da avaliação do professor sobre os nossos trabalhos e não a
contrapomos com
a nossa. A auto-avaliação deve levar o aluno a perceber o que conseguiu
acrescentar ao que já
sabia e conhecer as suas dificuldades no sentido de assimilar novos dados e o
que é preciso
superar para ultrapassá-las.
7. Finalmente...
Para ensinar a turma toda, parte-se da certeza de que as crianças sempre sabem
alguma coisa,
de que todo educando pode aprender, mas no tempo e do jeito que lhe são
próprios. É fundamental
que o professor nutra uma elevada expectativa pelo aluno. O sucesso da
aprendizagem está em
explorar talentos, atualizar possibilidades, desenvolver predisposições naturais
de cada aluno.
As dificuldades, deficiências e limitações precisam ser reconhecidas, mas não
devem conduzir
ou restringir o processo de ensino, como habitualmente acontece.
Independentemente das diferenças de cada um dos alunos, temos de passar de um
ensino
transmissivo para uma pedagogia ativa, dialógica e interativa, que se contrapõe
a toda e qualquer
visão unidirecional, de transferência unitária, individualizada e hierárquica do
saber.
O professor deixa de ser um palestrante, papel que é tradicionalmente
identificado com a lógica
de distribuição do ensino. Esta lógica supõe que os alunos ouçam diariamente um
discurso, nem
sempre dos mais atraentes, em um palco distante, que separa o orador do público.
Para ensinar a turma toda, o professor não utiliza o falar, o copiar e o ditar
como recursos
didáticos pedagógicos básicos. Ele partilha com seus alunos a construção/autoria
dos conhecimentos
produzidos em uma aula, restringindo o uso do ensino expositivo. Em sua sala de
aula os alunos
passam a interagir e a construir ativamente conceitos, valores e atitudes.
Esse professor arranja e explora os espaços educacionais com seus alunos,
buscando perceber
o que cada um deles consegue apreender do que está sendo estudado e como
procedem ao
avançar nessa exploração.
Certamente um professor que engendra e participa da caminhada do saber com seus
alunos,
como nos ensinou Paulo Freire (1978), consegue entender melhor as dificuldades e
as possibilidades
de cada um e provocar a construção do conhecimento com maior adequação.
Um dos pontos cruciais do ensinar a turma toda é a consideração da identidade
sócio-cultural
dos alunos e a valorização da capacidade de entendimento que cada um deles têm
do mundo
e de si mesmos. Nesse sentido, ensinar a todos reafirma a necessidade de se
promover
situações de aprendizagem que formem uma trama multicor de conhecimentos, cujos
fios
expressam diferentes possibilidades de interpretação e de entendimento de um
grupo de
pessoas que atua cooperativamente.
Os diferentes sentidos que os alunos atribuem a um objeto de estudo e as suas
representações
vão se expandindo e se relacionando e revelando, pouco a pouco, uma construção
original de
idéias que integra as contribuições de cada um, sempre bem-vindas, válidas e
relevantes.
As diferenças entre grupos étnicos, religiosos, de gênero etc. ensejam um modo
de interação
entre eles, que destaca as peculiaridades de cada um gerando, naturalmente,
embates necessários
à construção da identidade dos alunos.
O professor, neste contexto, não procurará eliminar as diferenças em favor de
uma suposta
igualdade do alunado. Antes, estará atento à singularidade das vozes que compõem
a turma,
promovendo a exposição das idéias e contrapondo-as todo tempo, provocando
posições críticas
e enfrentamentos próprios de um ensino democrático.
Sem estabelecer uma referência, sem buscar o consenso, mas investindo nas
diferenças e na
riqueza de um ambiente que confronta significados, desejos e experiências, o
professor garante
a liberdade e a diversidade das opiniões dos alunos. Ele deverá propiciar
oportunidades para o
aluno aprender a partir do que sabe e chegar até onde foi capaz de progredir.
Aprendemos quando resolvemos nossas dúvidas, superamos nossas incertezas e
satisfazemos
nossa curiosidade.
8. Dúvidas mais freqüentes
As respostas são a má sorte das perguntas. Maurice Blanchot
São válidas as retenções entre um ciclo e outro, ou entre uma série e outra,
para quem não alcançou notas
mínimas?
O simples fato de existir avaliações, em que uma nota mínima é exigida para a
promoção, já reflete que
a escola continua adotando padrões conservadores de avaliação. Isto porque a
nota mínima representa
a intenção que alguma padronização é necessária naquela escola e um rendimento
mínimo é esperado
de todos os alunos. Nesse momento, começam as exclusões e não apenas de crianças
com deficiência.
Assim, as avaliações com o fim de reter o aluno devem ser repensadas pelos
sistemas de ensino porque
elas deveriam refletir as habilidades alcançadas para o aluno seguir em frente,
e não o contrário.
Para seguir em frente, o aluno precisa encontrar sempre práticas de ensino
adequadas à diversidade.
Por outro lado, ainda que não se altere o sistema de avaliação, é indispensável
que mude o olhar
do professor ao corrigir as provas, levando sempre em conta as peculiaridades de
cada criança
que compõe a sua turma. Finalmente, é importante lembrar que quando falamos
nesse acesso
incondicional a todas as séries, estamos nos referindo ao Ensino Fundamental.
Mas não é importante que um mínimo de aprendizado seja exigido para se passar
adiante?
É necessário que se espere o máximo de aprendizado dos conteúdos curriculares
ministrados,
mas com respeito às limitações naturais de todos os alunos. A forma tradicional
de se fazer
avaliações não leva em conta esses limites e faz com que a criança fique retida
porque não
aprendeu certos conteúdos, o que é injustificado e inconstitucional no Ensino
Fundamental. A
experiência demonstra que não é a repetência que vai fazer com que o aluno
aprenda, mas sim
o estímulo contínuo e a valorização de suas potencialidades. Cada série/ciclo é
uma nova oportunidade
de aprendizado e deve oferecer os conteúdos de forma rica e plural, para que
todos os alunos se
identifiquem e aprendam a seu modo.
Em algumas escolas a não-repetência tem sido um desastre. É isso o que a
educação inclusiva defende?
Acreditamos que o insucesso em algumas escolas locais deve-se ao seguinte fato:
práticas de ensino
conservadoras e turmas consideradas homogêneas. Melhor explicando: a
não-repetência é um dos
fatores que fazem com que exista uma diversidade intelectual muito grande na
sala de aula, que
passa a ser heterogênea. O problema é que muitos professores continuam dando
aula como se a
turma fosse homogênea, como se os alunos ainda fossem peneirados antes e com
isso excluídos
(vestibulinhos, repetências, evasões etc). Felizmente, essas situações não podem
ocorrer mais.
Para que a diversidade seja bem atendida e para que a não-repetência dê bons
resultados em todos
as séries/ciclos, é imprescindível que haja uma natural revisão e interligação
de conteúdos de modo
que os alunos tenham o tempo todo acesso aos diversos componentes curriculares.
Assim, não faz
diferença se alguma criança não aprendeu, por exemplo, divisão com resto no
segundo ano, porque
nos próximos anos ela vai continuar tendo oportunidade de aprender esse conteúdo
e outros mais.
A educação inclusiva preconiza um ensino em que aprender é um ato não linear,
contínuo,
fruto de uma rede de relações que vai sendo tecida pelos aprendizes, em
ambientes escolares
que não discriminam, não rotulam e oferecem chances incríveis de sucesso para
todos, dentro
das habilidades, interesses e possibilidades de cada aluno.
A escola prejudica os alunos sem deficiência ao proporcionar tantas chances de
aprendizado
durante o Ensino Fundamental?
Um ensino que contempla e acolhe todos os alunos não poderá ser prejudicial a
ninguém. Uma
escola em que todos os alunos são bem-vindos tem como compromisso educativo
ensinar não
apenas os conteúdos curriculares, mas formar pessoas capazes de conviver em um
mundo plural
e que exige de todos nós experiências de vida compartilhada, envolvendo
necessariamente o
contato, o reconhecimento e valorização das diferenças. Este conhecimento
potencializa a educação
escolar, em seus objetivos e práticas e, assim, também é mais um meio de
aprimoramento do
ensino para todos os alunos.
Por outro lado, é bom lembrar que não são os alunos com deficiência que
prejudicam o bom
andamento do Ensino Fundamental e dos demais níveis. Ao contrário, a presença
deles enseja
mudanças substanciais nas práticas escolares, pois de nada adianta transmitir
conteúdos, sem
significado, descontextualizados da experiência de vida do aluno e que
rapidamente serão esquecidos.
O Ensino Fundamental é essencial no caminho que os alunos vão trilhar para
chegar a um Ensino
Médio bem sucedido, ao ensino profissionalizante e a Educação Superior.
Crianças com graves comprometimentos podem ser incluídas?
Um aluno com grandes limitações provavelmente não vai aprender tudo o que outros
colegas poderão
assimilar durante o processo educativo escolar, mas ele vai se beneficiar da
convivência social e pode
se beneficiar também, a seu modo e segundo suas possibilidades intelectuais, dos
conteúdos curriculares
trabalhados na sua sala de aula.
Casos extremamente graves de alunos em situações próximas a da vida vegetativa
não são
público nem das atuais escolas chamadas de especiais. Na maioria das vezes estão
recebendo
tratamentos relacionados à área da saúde. Mas se, em algum momento, esses alunos
puderem
freqüentar um ambiente escolar, este deve ser o da escola comum do ensino
regular, onde
conviverão com pessoas da sua idade e serão estimulados a aprender aquilo que
lhes for possível.
As experiências práticas de inclusão têm sido bem sucedidas?
Nos locais em que houve de fato uma mudança no modo de se organizar
pedagogicamente o
processo escolar para todos os alunos, a inclusão foi, é e será bem sucedida.
Onde não houve
essas mudanças, mas apenas o acesso de alunos com deficiências e/ou dificuldades
de aprender,
a inclusão não acontece.
Trata-se de se adotar novas medidas para atender às diferenças de todos. Medidas
essas que não
sejam excludentes, tais como as provas e outras avaliações de caráter
classificatório, o ensino
disciplinar, a fragmentação dos tempos escolares em séries, entre outras muito
conhecidas e
praticadas ainda em nossas escolas! Não há como acolher todos os alunos em
escolas que
selecionam, reprovam, marginalizam o ensino de alguns alunos em classes e
programas à parte
dos demais colegas.
Destacamos também que o sucesso da inclusão tem a ver com a inversão de uma
idéia e de
práticas e ensino que são usuais para se atender às diferenças em uma turma de
alunos. Tratase
do ensino individualizado. Esta prática também passou a ser um dos motivos pelos
quais:
a) criticam-se as salas de aula mais numerosas, quando nelas existem alunos com
deficiência;
b) valorizam-se as escolas com turmas de poucos alunos em todos os níveis de
ensino.
Não é possível individualizar o ensino para quem quer que seja, na medida em que
não podemos
controlar de fora o processo de compreensão de outra pessoa. O que é individual
e intransferível
é a aprendizagem, que é própria do aprendiz, não é ditada nem comandada,
definida ou adaptada
por ninguém de fora, a não ser pelo sujeito do conhecimento, no caso, o aluno.
Ao professor cabe
ensinar, ou seja, disponibilizar o conhecimento de forma aberta, ampla e
flexível, de modo que
o aluno o assimile livremente, de maneira original, regulado por seus interesses
e possibilidades
de adaptação e jamais mantido pelo que o professor defina, em função de uma
falsa concepção
de que ele sabe o que falta, o que é possível ao aluno captar de um assunto, de
uma atividade,
de uma situação de ensino qualquer de fora.
Em síntese, aprender é tarefa do aluno, independentemente do nível de
conhecimento a que ele
for capaz de ter acesso. Ensinar é tarefa do professor, que deve disponibilizar
o conhecimento,
desafiar o aluno no processo de reconstrução dos saberes e apoiá-lo nas suas
dificuldades e em
todo o momento em que se fizer necessária a sua intervenção.
ϟ
Cap. II da obra 'O Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns da Rede Regular' autoras:
Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Luisa de Marillac P. Pantoja & Maria Teresa
Eglér Mantoan
Brasília:
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2004.
Δ
12.Jan.2018 publicado por
MJA
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