
Aula de Geografia na Perkins School
Formas de organização de ensino e adaptação curricular em classes regulares
para alunos com deficiência visual
Na pesquisa de campo realizada, procuramos identificar como os professores das
classes regulares promovem as adaptações para a aprendizagem dos alunos com
deficiência visual. Os sujeitos da pesquisa foram três professoras regentes e
uma
auxiliar de turma. Dentre as regentes, duas ministram aulas para alunas com
cegueira
(professoras A e B) e uma atua com um aluno com baixa visão acentuada
(professora
C). As letras do alfabeto (A, B e C) serão referências para a identificação dos
sujeitos
da pesquisa, como forma de preservação de suas identidades. A professora A
ministra
aulas no 2º ano; a professora B atua no 8º ano e a professora C leciona no 4º
ano do
Ensino Fundamental.
Além dos dados das entrevistas, tivemos acesso, durante as observações, a
algumas
situações nas quais as professoras realizaram algum tipo de adaptação no
conteúdo
e nas avaliações dos alunos com deficiência visual.
A professora B relatou um procedimento feito para a avaliação de sua aluna com
cegueira, estudante do 8º ano:
-
A gente sempre, na medida do possível, busca estar adaptando as atividades e,
assim, uma coisa
que eu não fazia e comecei a fazer um dia desses, eu preparei uma prova e
sempre, a mesma
prova que eu dou para os demais, eu peço para que a professora da sala de
recursos redija e,
no momento da prova, eu aplico a mesma prova para todos, inclusive para essa
aluna. Assim,
eu faço sempre.
-
Depois, ela (a aluna) retoma com a professora da sala de recursos as questões
que ficam. Às
vezes, não dá tempo para estar realmente retomando. Só que, em uma dessas
atividades, eu
preparei e aí a professora da sala de recursos me chamou a atenção, ela disse
assim: “- Mas
professora, será que ela vai conseguir até aqui? E realmente, o que é essencial
daqui?” Então,
eu me questionei realmente, o que é essencial? Então, “enxuguei” algumas coisas
e fiz algumas
adaptações e, sempre que eu julgo necessário, eu busco o que é essencial daquilo
para estar
trabalhando com ela. É assim que eu estou desenvolvendo minhas aulas, acertando
em alguns
momentos, errando em outros.
“Enxugar” questões de avaliações, com a justificativa de que a aluna não
conseguirá
resolver é uma prática que pode contribuir para o empobrecimento do currículo
escolar.
O mais adequado seria a existência de uma forma de comunicação que assegurasse
que a questão pudesse ser compreendida pela aluna, mantendo-se o mesmo conteúdo
presente na avaliação dos demais estudantes.
A professora afirma que a prova é a mesma para todos, mas, como podemos
perceber,
o critério para a avaliação é diferenciado. No entanto, como destaca Vygotski
(1997),
a pessoa cega possui as mesmas condições de desenvolvimento que qualquer outra
sem deficiência, a diferença encontra-se na forma como ela aprende. Essa
afirmação
nos leva a refletir que a forma de elaboração da avaliação deve ser
diferenciada,
mas o conteúdo avaliado deve ser o mesmo, a diferenciação está apenas no modo de
apresentar o conteúdo e no modo de o aluno manifestar a sua aprendizagem.
Também pudemos perceber esse tipo de adaptação quando a professora A fez
o seguinte comentário: “O conteúdo é o mesmo, mas assim, são menos questões,
entendeu? A gente dá uma modificada na prova dela” (da aluna com cegueira). A
dificuldade está em reconhecer até que ponto não são retiradas questões
essenciais ou
consideradas “mais difíceis”, mantendo-se aquelas que, supostamente, não
exigiriam
muito domínio teórico por parte do aluno com deficiência visual.
Um tipo semelhante de adaptação também acontece nas avaliações do estudante com
baixa visão acentuada. Como pode ser verificado na entrevista com a professora
C:
-
Pesquisador: - Como são realizadas as avaliações com o aluno com baixa visão?
-
Professora C: - As avaliações dele eu faço, às vezes, até igual as dos outros.
Só que, não dou aquela cobrança igual a dos outros, porque eu sei o limite dele. Então, se ele
não consegue fazer, ou compreender aquele momento, eu vou, em outro momento, e a gente vai e senta
junto, mas não tem muito de conteúdo diferenciado, eu não sei de repente se eu estou errada.
-
Pesquisador: - Você não diferencia o conteúdo?
-
Professora C: - Não, é sempre o que tem para um, tem para os outros, só que ele tem que ser letra ampliada, porque, se eu for passar no quadro, demora mais para ele compreender.
-
Pesquisador: - Ele tem mais tempo para realizar a avaliação?
-
Professora C: - Tem mais tempo sim, às vezes, a gente vem e eu fico no recreio, às vezes, outra criança vem ajudar.
-
Pesquisador: - Mas é ele quem faz?
-
Professora C: - Sim, é ele! A gente só ajuda.
-
Pesquisador: - O critério de avaliação e as notas são as mesmas para todos e para ele?
-
Professora C: - Não, a gente dá a nota do jeito que está na prova, só que, não
pode ser aquilo lá, é diferenciado. Então, a gente coloca a nota ali, tudo certinho, mas a gente
sabe que aquilo lá é só pra estar ali, porque tem que estar no livro as notas, entendeu? Mas a
gente sabe que não pode reprovar.
Aqui podemos identificar uma diferenciação nos critérios de avaliação, a
professora menciona a situação de não poder reprovar o aluno e que as notas por ele obtidas
não são consideradas para a sua média final.
Outro fator a se destacar é a “ajuda” prestada ao aluno durante a avaliação.
Vigotsky (2009) explica que o nível de desenvolvimento da criança pode ser observado
pelas atividades que ela consegue realizar sem a colaboração de outra pessoa, o
que ele denomina como zona de desenvolvimento real. A ajuda ou colaboração, para
Vigotsky, deve ocorrer no intuito de contribuir para que o aluno, posteriormente, consiga
realizar, sozinho, a atividade que, inicialmente, foi realizada em colaboração.
Como no exemplo citado pela professora C, são mencionados a prorrogação do
tempo e o recurso da ampliação das letras da avaliação, o que, em princípio,
deveria ser suficiente para suprir as necessidades visuais do aluno, possibilitando
plenas condições para a realização da avaliação sem colaboração. Entendemos, nesse
caso, que a “ajuda”, por ela citada, coloca seu discurso em contradição. Isto é, ao
mesmo tempo em que afirma que o aluno realiza, sozinho, a avaliação, ela menciona a
“ajuda”, que se refere não ao sentido de suprir as necessidades causadas pelo
comprometimento visual, mas nos faz supor que são ajudas para suprir as dificuldades de resolver
as questões constantes das avaliações.
No caso da aluna da Professora A, que não apresenta domínio da leitura e escrita do
Braille, também verificamos adaptações curriculares que visam “resumir” o conteúdo,
destacando apenas os tópicos mais importantes em detrimento do todo. Segundo a
professora auxiliar da turma da Professora A:
-
Na sala de aula, a Professora A explica e passa no quadro. O que ela passar no quadro, eu leio e ela (Aluna A) digita na máquina dela. É ela mesma que escreve. Então, enquanto eu vou ditando para ela
eu já vou resumindo. Estou ficando boa em resumo, sabe? Porque
sempre tem bastante coisa no quadro e, para ela pegar tudo aquilo lá, não dá tempo, ela não vence copiar tudo. Então, já vou resumindo, pegando os tópicos mais importantes e ela
já vai anotando tudo, e depois ela leva para a casa dela e, quando vai ter a avaliação, ela lê em casa, estuda igual aos outros e traz pronto (Grifos nosso).
Mais uma vez, a adaptação ocorre não no sentido de suprir as necessidades causadas
pela ausência da visão, mas em razão de outras necessidades que estão ligadas à
aprendizagem da aluna. Caso ela conseguisse dominar a escrita do Braille em sua
máquina, esse “resumo” feito por outra pessoa não aconteceria. Assim,
verificamos que a forma encontrada pela professora para viabilizar o estudo da aluna com
cegueira foi a de diferenciar o conteúdo ao invés de diferenciar a organização do ensino.
No caso da ausência da visão, o tipo de adaptação que julgamos necessária é a
substituição de atividades para as quais o emprego da visão é imprescindível.
Podemos citar, por exemplo, atividades na disciplina de artes visuais, nas quais
se exigem observações e interpretações de imagens e paisagens; ou pintar
representações de obras de artistas renomados. É evidente que, para um aluno com deficiência
visual desenvolver a percepção de imagens ou aprender a analisar a estética das artes
visuais, não é possível pela via sensória da visão.
No entanto, como bem afirma Vygotski (1997), os sentidos, por eles mesmos,
não garantem a aprendizagem. Isso significa que a ausência da visão não impede a
apropriação de determinados tipos de conteúdo pela pessoa cega. Vygotski
sustenta que o professor deve buscar formas de mediação do conhecimento e do conteúdo
escolar, combatendo os fatores sociais e barreiras impostas pela ausência da
visão.
De acordo com Leontiev (2004), o conteúdo escolar e os conceitos estão fixados
na linguagem, nos instrumentos simbólicos e físicos. Por isso, para uma pessoa
com cegueira que tenha adquirido a linguagem oral e o Braille, o processo de
aprendizagem torna-se mais fácil do que para outra que não os adquiriram. Dessa forma, como o
conhecimento encontra-se enraizado na linguagem, a ausência da visão não
impossibilita, totalmente, a aprendizagem de conteúdos referentes a artes visuais, apenas
deverão ser ensinados por outras vias.
O ensino de artes visuais, como no exemplo anterior, pode ser organizado para o
aluno com deficiência visual por meio de outros tipos de atividades, como a
leitura de textos que expliquem as tendências e os estilos de artes, a importância dos
movimentos artísticos para a sociedade em dado momento histórico, as técnicas empregadas em
cada estilo e seu significado.
Assim, entendemos como adaptação curricular para alunos com deficiência visual,
a substituição de determinados tipos de atividades que exigem o aporte visual
para a aprendizagem. A exclusão de conteúdos não se configura como uma prática adequada
para o desenvolvimento do aluno com deficiência, já que os conteúdos das
diferentes áreas do conhecimento fazem parte do repertório cultural da humanidade e são
necessários ao desenvolvimento de todos os sujeitos.
Considerações finais
As orientações que os documentos oficiais trazem para a realização das
adaptações e diferenciações no processo de ensino dos alunos com deficiência não apresentam
preocupações vinculadas à aprendizagem de conceitos pelos alunos. A preocupação
está em ampliar o acesso e a permanência dos alunos, tomando como princípio
o desenvolvimento espontâneo antecessor à aprendizagem. Isto é, visa adaptar o
currículo e os conteúdos àquilo que o estudante consegue realizar e não ao que
ele, potencialmente, seria capaz de aprender.
Nos dados coletados na pesquisa de campo, a adaptação curricular não foi
desempenhada, de fato, como ferramenta de contribuição para a aprendizagem e
desenvolvimento dos alunos com deficiência visual. “Enxugar” o conteúdo ou
facilitar a realização de avaliações não são práticas indicadas para alunos com
deficiência visual, quando se tem em vista o seu desenvolvimento. Parece ter ficado mais
forte entre os professores a ideia de flexibilização curricular em detrimento da
concepção de adaptação curricular.
Quando há a necessidade de realizar adaptações no conteúdo ou nas atividades,
devem ser considerados os critérios para substituí-los, não para suprimi-los sob
a justificativa de que não podem ser apreendidos pelos alunos com cegueira ou
com baixa visão. São necessárias, de fato, as alterações no modo de organizar o
ensino e de avaliar o aluno, no sentido de tornar o conteúdo mais acessível ao estudante
com deficiência, mas as alterações não podem empobrecer o conteúdo ou eliminá-lo com
a intenção de facilitar o processo de escolarização do aluno com deficiência
visual.
O conhecimento acerca do modo como as adaptações curriculares ocorrem no
cotidiano da sala de aula alertam para a necessidade de que, nesse processo,
seja conferida maior atenção aos conceitos essenciais de cada componente curricular,
de modo que a escolarização tenha maior impacto na formação dos estudantes com
deficiência.
nota: O nome de Vygotski tem sido grafado de diferentes formas em diversas
publicações: Vigotsky, Vygotski, Vigotski e Vygotsky. Neste artigo, optamos por
manter a grafia original de cada publicação.
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excerto de
Critérios e formas de adaptação curricular para alunos com deficiência visual na
rede regular de Ensino
autores:
- Antonio Paulino de Oliveira Júnior, Mestre em Educação pela Universidade
Estadual de Maringá e Pedagogo do Departamento de Educação da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná - Campus de Campo Mourão &
-
Marta Sueli de Faria Sforni, Doutora em Educação pela USP, Pós-doutorado na Faculadade de Educação da
Unicamp, Professora do Departamento
de Teoria e Prática da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação
(mestrado e doutorado) da Universidade
Estadual de Maringá.
fonte:
Educação em Foco, ano 21, n. 34 - mai./ago. 2018 - p. 263-281
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