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 Sobre a Deficiência Visual

Organização de Ensino e Adaptação Curricular para Alunos com Deficiência Visual

Antonio Paulino de Oliveira Júnior & Marta Sueli de Faria Sforni
 


Aula de Geografia na Perkins School
 

Formas de organização de ensino e adaptação curricular em classes regulares para alunos com deficiência visual

Na pesquisa de campo realizada, procuramos identificar como os professores das classes regulares promovem as adaptações para a aprendizagem dos alunos com deficiência visual. Os sujeitos da pesquisa foram três professoras regentes e uma auxiliar de turma. Dentre as regentes, duas ministram aulas para alunas com cegueira (professoras A e B) e uma atua com um aluno com baixa visão acentuada (professora C). As letras do alfabeto (A, B e C) serão referências para a identificação dos sujeitos da pesquisa, como forma de preservação de suas identidades. A professora A ministra aulas no 2º ano; a professora B atua no 8º ano e a professora C leciona no 4º ano do Ensino Fundamental.

Além dos dados das entrevistas, tivemos acesso, durante as observações, a algumas situações nas quais as professoras realizaram algum tipo de adaptação no conteúdo e nas avaliações dos alunos com deficiência visual.

A professora B relatou um procedimento feito para a avaliação de sua aluna com cegueira, estudante do 8º ano:

A gente sempre, na medida do possível, busca estar adaptando as atividades e, assim, uma coisa que eu não fazia e comecei a fazer um dia desses, eu preparei uma prova e sempre, a mesma prova que eu dou para os demais, eu peço para que a professora da sala de recursos redija e, no momento da prova, eu aplico a mesma prova para todos, inclusive para essa aluna. Assim, eu faço sempre.

Depois, ela (a aluna) retoma com a professora da sala de recursos as questões que ficam. Às vezes, não dá tempo para estar realmente retomando. Só que, em uma dessas atividades, eu preparei e aí a professora da sala de recursos me chamou a atenção, ela disse assim: “- Mas professora, será que ela vai conseguir até aqui? E realmente, o que é essencial daqui?” Então, eu me questionei realmente, o que é essencial? Então, “enxuguei” algumas coisas e fiz algumas adaptações e, sempre que eu julgo necessário, eu busco o que é essencial daquilo para estar trabalhando com ela. É assim que eu estou desenvolvendo minhas aulas, acertando em alguns momentos, errando em outros.


“Enxugar” questões de avaliações, com a justificativa de que a aluna não conseguirá resolver é uma prática que pode contribuir para o empobrecimento do currículo escolar.

O mais adequado seria a existência de uma forma de comunicação que assegurasse que a questão pudesse ser compreendida pela aluna, mantendo-se o mesmo conteúdo presente na avaliação dos demais estudantes.

A professora afirma que a prova é a mesma para todos, mas, como podemos perceber, o critério para a avaliação é diferenciado. No entanto, como destaca Vygotski (1997), a pessoa cega possui as mesmas condições de desenvolvimento que qualquer outra sem deficiência, a diferença encontra-se na forma como ela aprende. Essa afirmação nos leva a refletir que a forma de elaboração da avaliação deve ser diferenciada, mas o conteúdo avaliado deve ser o mesmo, a diferenciação está apenas no modo de apresentar o conteúdo e no modo de o aluno manifestar a sua aprendizagem.

Também pudemos perceber esse tipo de adaptação quando a professora A fez o seguinte comentário: “O conteúdo é o mesmo, mas assim, são menos questões, entendeu? A gente dá uma modificada na prova dela” (da aluna com cegueira). A dificuldade está em reconhecer até que ponto não são retiradas questões essenciais ou consideradas “mais difíceis”, mantendo-se aquelas que, supostamente, não exigiriam muito domínio teórico por parte do aluno com deficiência visual.

Um tipo semelhante de adaptação também acontece nas avaliações do estudante com baixa visão acentuada. Como pode ser verificado na entrevista com a professora C:

Pesquisador: - Como são realizadas as avaliações com o aluno com baixa visão?

Professora C: - As avaliações dele eu faço, às vezes, até igual as dos outros. Só que, não dou aquela cobrança igual a dos outros, porque eu sei o limite dele. Então, se ele não consegue fazer, ou compreender aquele momento, eu vou, em outro momento, e a gente vai e senta junto, mas não tem muito de conteúdo diferenciado, eu não sei de repente se eu estou errada.

Pesquisador: - Você não diferencia o conteúdo?

Professora C: - Não, é sempre o que tem para um, tem para os outros, só que ele tem que ser letra ampliada, porque, se eu for passar no quadro, demora mais para ele compreender.

Pesquisador: - Ele tem mais tempo para realizar a avaliação?

Professora C: - Tem mais tempo sim, às vezes, a gente vem e eu fico no recreio, às vezes, outra criança vem ajudar.

Pesquisador: - Mas é ele quem faz?

Professora C: - Sim, é ele! A gente só ajuda.

Pesquisador: - O critério de avaliação e as notas são as mesmas para todos e para ele?

Professora C: - Não, a gente dá a nota do jeito que está na prova, só que, não pode ser aquilo lá, é diferenciado. Então, a gente coloca a nota ali, tudo certinho, mas a gente sabe que aquilo lá é só pra estar ali, porque tem que estar no livro as notas, entendeu? Mas a gente sabe que não pode reprovar.


Aqui podemos identificar uma diferenciação nos critérios de avaliação, a professora menciona a situação de não poder reprovar o aluno e que as notas por ele obtidas não são consideradas para a sua média final.

Outro fator a se destacar é a “ajuda” prestada ao aluno durante a avaliação. Vigotsky (2009) explica que o nível de desenvolvimento da criança pode ser observado pelas atividades que ela consegue realizar sem a colaboração de outra pessoa, o que ele denomina como zona de desenvolvimento real. A ajuda ou colaboração, para Vigotsky, deve ocorrer no intuito de contribuir para que o aluno, posteriormente, consiga realizar, sozinho, a atividade que, inicialmente, foi realizada em colaboração.

Como no exemplo citado pela professora C, são mencionados a prorrogação do tempo e o recurso da ampliação das letras da avaliação, o que, em princípio, deveria ser suficiente para suprir as necessidades visuais do aluno, possibilitando plenas condições para a realização da avaliação sem colaboração. Entendemos, nesse caso, que a “ajuda”, por ela citada, coloca seu discurso em contradição. Isto é, ao mesmo tempo em que afirma que o aluno realiza, sozinho, a avaliação, ela menciona a “ajuda”, que se refere não ao sentido de suprir as necessidades causadas pelo comprometimento visual, mas nos faz supor que são ajudas para suprir as dificuldades de resolver as questões constantes das avaliações.

No caso da aluna da Professora A, que não apresenta domínio da leitura e escrita do Braille, também verificamos adaptações curriculares que visam “resumir” o conteúdo, destacando apenas os tópicos mais importantes em detrimento do todo. Segundo a professora auxiliar da turma da Professora A:

Na sala de aula, a Professora A explica e passa no quadro. O que ela passar no quadro, eu leio e ela (Aluna A) digita na máquina dela. É ela mesma que escreve. Então, enquanto eu vou ditando para ela eu já vou resumindo. Estou ficando boa em resumo, sabe? Porque sempre tem bastante coisa no quadro e, para ela pegar tudo aquilo lá, não dá tempo, ela não vence copiar tudo. Então, já vou resumindo, pegando os tópicos mais importantes e ela já vai anotando tudo, e depois ela leva para a casa dela e, quando vai ter a avaliação, ela lê em casa, estuda igual aos outros e traz pronto (Grifos nosso).


Mais uma vez, a adaptação ocorre não no sentido de suprir as necessidades causadas pela ausência da visão, mas em razão de outras necessidades que estão ligadas à aprendizagem da aluna. Caso ela conseguisse dominar a escrita do Braille em sua máquina, esse “resumo” feito por outra pessoa não aconteceria. Assim, verificamos que a forma encontrada pela professora para viabilizar o estudo da aluna com cegueira foi a de diferenciar o conteúdo ao invés de diferenciar a organização do ensino.

No caso da ausência da visão, o tipo de adaptação que julgamos necessária é a substituição de atividades para as quais o emprego da visão é imprescindível.

Podemos citar, por exemplo, atividades na disciplina de artes visuais, nas quais se exigem observações e interpretações de imagens e paisagens; ou pintar representações de obras de artistas renomados. É evidente que, para um aluno com deficiência visual desenvolver a percepção de imagens ou aprender a analisar a estética das artes visuais, não é possível pela via sensória da visão.

No entanto, como bem afirma Vygotski (1997), os sentidos, por eles mesmos, não garantem a aprendizagem. Isso significa que a ausência da visão não impede a apropriação de determinados tipos de conteúdo pela pessoa cega. Vygotski sustenta que o professor deve buscar formas de mediação do conhecimento e do conteúdo escolar, combatendo os fatores sociais e barreiras impostas pela ausência da visão.

De acordo com Leontiev (2004), o conteúdo escolar e os conceitos estão fixados na linguagem, nos instrumentos simbólicos e físicos. Por isso, para uma pessoa com cegueira que tenha adquirido a linguagem oral e o Braille, o processo de aprendizagem torna-se mais fácil do que para outra que não os adquiriram. Dessa forma, como o conhecimento encontra-se enraizado na linguagem, a ausência da visão não impossibilita, totalmente, a aprendizagem de conteúdos referentes a artes visuais, apenas deverão ser ensinados por outras vias.

O ensino de artes visuais, como no exemplo anterior, pode ser organizado para o aluno com deficiência visual por meio de outros tipos de atividades, como a leitura de textos que expliquem as tendências e os estilos de artes, a importância dos movimentos artísticos para a sociedade em dado momento histórico, as técnicas empregadas em cada estilo e seu significado.

Assim, entendemos como adaptação curricular para alunos com deficiência visual, a substituição de determinados tipos de atividades que exigem o aporte visual para a aprendizagem. A exclusão de conteúdos não se configura como uma prática adequada para o desenvolvimento do aluno com deficiência, já que os conteúdos das diferentes áreas do conhecimento fazem parte do repertório cultural da humanidade e são necessários ao desenvolvimento de todos os sujeitos.

Considerações finais

As orientações que os documentos oficiais trazem para a realização das adaptações e diferenciações no processo de ensino dos alunos com deficiência não apresentam preocupações vinculadas à aprendizagem de conceitos pelos alunos. A preocupação está em ampliar o acesso e a permanência dos alunos, tomando como princípio o desenvolvimento espontâneo antecessor à aprendizagem. Isto é, visa adaptar o currículo e os conteúdos àquilo que o estudante consegue realizar e não ao que ele, potencialmente, seria capaz de aprender.

Nos dados coletados na pesquisa de campo, a adaptação curricular não foi desempenhada, de fato, como ferramenta de contribuição para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos com deficiência visual. “Enxugar” o conteúdo ou facilitar a realização de avaliações não são práticas indicadas para alunos com deficiência visual, quando se tem em vista o seu desenvolvimento. Parece ter ficado mais forte entre os professores a ideia de flexibilização curricular em detrimento da concepção de adaptação curricular.

Quando há a necessidade de realizar adaptações no conteúdo ou nas atividades, devem ser considerados os critérios para substituí-los, não para suprimi-los sob a justificativa de que não podem ser apreendidos pelos alunos com cegueira ou com baixa visão. São necessárias, de fato, as alterações no modo de organizar o ensino e de avaliar o aluno, no sentido de tornar o conteúdo mais acessível ao estudante com deficiência, mas as alterações não podem empobrecer o conteúdo ou eliminá-lo com a intenção de facilitar o processo de escolarização do aluno com deficiência visual.

O conhecimento acerca do modo como as adaptações curriculares ocorrem no cotidiano da sala de aula alertam para a necessidade de que, nesse processo, seja conferida maior atenção aos conceitos essenciais de cada componente curricular, de modo que a escolarização tenha maior impacto na formação dos estudantes com deficiência.


nota: O nome de Vygotski tem sido grafado de diferentes formas em diversas publicações: Vigotsky, Vygotski, Vigotski e Vygotsky. Neste artigo, optamos por manter a grafia original de cada publicação.

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excerto de

Critérios e formas de adaptação curricular para alunos com deficiência visual na rede regular de Ensino
autores:
- Antonio Paulino de Oliveira Júnior, Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá e Pedagogo do Departamento de Educação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - Campus de Campo Mourão &
- Marta Sueli de Faria Sforni, Doutora em Educação pela USP, Pós-doutorado na Faculadade de Educação da Unicamp, Professora do Departamento de Teoria e Prática da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da Universidade Estadual de Maringá.

fonte: Educação em Foco, ano 21, n. 34 - mai./ago. 2018 - p. 263-281
 

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18.Jan.2023
Maria José Alegre