
Olhos - Muller Sziami
RESUMO Este artigo responde a uma questão chave tratada por ocasião do Colóquio
“Ver e Não Ver”, investigando a natureza da percepção tátil, sobretudo naqueles
indivíduos cegos de nascença. O percurso adotado, ainda que dialogue com algumas
teorias, opta por uma linguagem mais solta, menos comprometida com o rigor
científico, trazendo para a discussão, vivências da minha própria infância.
Norteia-se por uma concepção chave, explorada em minha tese de doutorado, a qual
caracterizei como “mundividência tátil”, para explicar um modo tátil de
pensarperceber o mundo.
INTRODUÇÃO
Eu gostaria de iniciar essa minha comunicação partindo de duas constatações
importantes, as quais tiveram impactos profundos no desenvolvimento da visão de
mundo dominante na cultura ocidental: A primeira diz respeito ao fato de que a
ciência tradicional excluiu ou relegou a um plano inferior os sentidos do olfato
e do tato, habilitando o olho e o ouvido como os sentidos prioritários na
inquirição do mundo e na produção de conhecimento sobre a realidade.A segunda
constatação diz respeito também ao movimento científico-cultural que não
considerou a premissa da diferença, do singular, privilegiando uma racionalidade
classificatória, homogeneizante, padronizadora.
Conforme nos diz Restrepo (1998, p. 31): Frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o
conhecimento dos exteroceptores, ou receptores à distância, como são a vista e o
ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual. Condicionante tão certo que os
Padres da Igreja e o próprio Santo Tomás conceberam o céu como um paraíso visual
onde teríamos por toda a eternidade a visão beatífica de Deus, excluindo a
possibilidade de um céu táctil, sentido que também haviam censurado na terra.
Assim como a nossa cultura científica relegou o tátil e o olfativo, a lugares
inferiores na hierarquia de produção de saber, do mesmo modo abdicou da
diferença em favor da homogeneidade, da normalidade, da padronização. Ora, como
podemos abdicar da diferença se ela se inscreve como nossa própria assinatura
genética no mundo biológico? Cada um de nós contém um arranjo único no modo como
nossos genes se multiplicaram, se reduplicaram. Em cada cérebro humano, os
arranjos de sinapses e conexões, o modo como se realizam, são únicos para cada
indivíduo.
Felizmente, o século XX retoma, em alguns trabalhos, a importância do sentido
tátil, sobretudo por via das contribuições das ciências cognitivas e
neuro-linguísticas, ao mesmo tempo em que correntes filosóficas, psicológicas
e fenomenológicas reabilitam a premissa da diferença e a importância de que a
mesma seja levada em conta nos processos complexos/plurais.
Da exposição dessas duas constatações, eu gostaria de extrair duas idéias-chave:
a idéia da confluência dos sentidos e a da diferença como possibilidades para
a construção de um diálogo rico e consequente entre o código tátil e o código da
visualidade.
O que percebemos quando não vemos? Queria contemplar essa questão partindo de um
caminho que, em princípio, parece não ter nada a ver com o caminho
acadêmico-científico. Queria pensar nessa questão com o auxílio de concepções
como “mistério”, “intervalo” e “zona de sombra”.
Gosto dessas concepções vagas, isentas de cientificidade, porque elas me ajudam
a repercutir essa questão dentro de mim mesma, no meu nicho particular onde sou
pessoa cega e de onde parto para perceber o mundo. Gosto dessas concepções
porque elas me conduzem ao lugar da emoção, da afetividade, da poética e da
estética, da memória e das recordações.
Por isso, trarei para esse colóquio algumas evocações da infância. Evocações
que guardei como verdadeiras relíquias, porque agora sei que elas são fruto de
um esforço ainda que rudimentar de compreensão, de percepção, de palpação do
mundo por uma criança que nasceu cega, e que, dotada de um aparelho
neuro-sensório motor cujo principal portão perceptivo era a experiência tátil,
exercitava a tarefa de perceber/apreender/interpretar/estar nesse mundo.
Antes das evocações, permitam-me breves considerações acerca desse conjunto de
conceitos que eu chamei de “mistério”, “intervalo”, “zona de sombra”.
Não é curioso que o que mais nos impressiona, o que mais nos fascina, o que mais
nos instiga, são as coisas, os fenômenos, tudo aquilo que não podemos ver?
Fenômenos, coisas, teorias, que parecem estar envoltos em uma zona de mistério,
um intervalo de incomunicação, um lugar de sombra?
A nossa cultura, o nosso planeta, o nosso universo não está pleno de coisas que
não podemos tocar, nem ver? Nossas ciências, nossa religião, nossa arte, não
intentam, ao longo da cultura, construir verdadeiros edifícios ideais para
tratar dessas naturezas misteriosas e, principalmente a partir do século XX,
aparatos tecnológicos que nos permitam sondar esses fenômenos até então
inalcançáveis?
Curiosamente, o desvelamento do mundo parece nos desafiar com o mistério, com
o intervalo entre o conhecido e o não conhecido, uma zona de sombra onde fica
sempre um resíduo a ser comunicado, interpretado, explicado. Uma zona de “não
vidência” que anima e impulsiona a nossa experiência de conhecer, compreender,
interpretar, tocar.
Fiz todo esse percurso para chegar à cegueira. Para pensar a cegueira do mesmo
modo como a cultura a pensou. A cegueira como um mistério, uma zona de sombra,
um hiato, um intervalo, uma situação de incomunicação.
E não apenas o senso comum pensou a cegueira como um mistério. A ciência também
o fez. A ciência cuidou de estabelecer teorias que desapropriavam o sujeito
cingido pela condição da cegueira de qualidades como a imaginação, a formulação
de imagens, uma percepção adequada de mundo.
A ciência, a arte, a religião, ao longo das nossas tradições culturais,
mergulharam este sujeito cingido pela condição da cegueira em uma permanente
“noite de trevas”, em um lugar de sombra, de silêncio e de mistério.
Entretanto, em todo o mundo, ao longo da cultura humana, a pessoa cega esteve de
braços dados com a questão que esse colóquio agora traz para debate. Ao longo da
cultura, nós realmente nos perguntamos: O que percebemos quando não vemos?
Mesmo agora, com nosso corpo, com nossas mãos, com nossos olhos abertos ou
fechados à brisa da manhã, mesmo agora nos perguntamos sobre o que percebemos
quando não vemos.
Eu me pergunto sobre isso desde sempre. Por isso, resgato essas duas evocações
da minha infância, ambas muito significativas, ambas plenas da minha fala
interior sobre essa questão.
A LIÇÃO DAS PEDRAS
Eu tinha quatro anos quando, numa manhã, me defrontei duramente com o ver e o
não-ver. Foi uma experiência difícil. Uma criança que nasceu cega, aos quatro
anos, provavelmente, de forma muito íntima, introjetou a idéia de que é uma
criança cega, face aos gestos, às verbalizações da família. Mas essa criança
ainda não compreende a diferença entre o ver e o não-ver.
Naquela manhã, eu estava brincando no pátio da minha casa, onde havia uma fileira de pedras perto da parede da cozinha, todas pouco menores que eu. E, de
repente, eu dei pela presença das pedras, sem as tocar. Senti a presença delas
na minha face, e fiquei maravilhada com aquilo. E comecei a dançar e a pular
diante das pedras, repetindo - Eu vejo! Eu vejo!
E, de repente, um salto maior, a cabeça abaixada, e choquei-me violentamente
contra uma pedra, encerrando à dor e à sangue a minha primeira lição de ver.
O DIÁLOGO COMO MISTÉRIO
Pouco tempo depois, aos cinco anos, talvez, lá estava eu às voltas com a terra,
as pedras, às voltas com o mistério. Eu atritava pedaços de pedras, somente para
sentir o cheiro daquelas faíscas que elas geravam. Cheiro de fogo diferente, uma
espécie de fogo antigo que me ligava ao mistério do princípio do mundo, ao
princípio da criação das coisas. Pesava a terra entre as minhas mãos de menina,
e me perguntava de que matéria ela era feita. Sentia o vento a anunciar a chuva,
e me perguntava como chovia, como fazia sol, como ventava.
E o meu cérebro, obediente máquina de pensar, produziu uma resposta para essas
minhas indagações. O meu cérebro providenciou para mim um corpo sensível, todo
tátil. O meu cérebro inventou uma montanha com sua base rugosa, cheia de
arbustos. O meu cérebro fez com que eu escalasse aquela montanha e encontrasse,
lá no alto, gavetas que eu podia abrir, para fazer chover, para fazer sol, para
fazer ventar.
Tivesse a ciência tradicional tido acesso a essas minhas evocações, tivesse a
pedagogia tradicional conhecido, numa sala cheia de crianças da minha idade, que
enxergassem, essas minhas rudimentares percepções do mundo, e eu provavelmente
seria alvo de um sentimento de compaixão, de piedade, por estar tão longe da
verdade.
Essas reminiscências, porém, exibem a riqueza do universo perceptivo de uma
criança cega, brotando do interior de si mesma, ou forjando-se na interação do
seu corpo com o ambiente à sua volta.
Na primeira evocação, o que eu vivenciei foi o que poderíamos chamar de
percepção cinestésica, ou o que eu chamaria de percepção por proximidade, em que
os objetos, aqueles tangíveis ao tato, de acordo com o deslocamento de ar e a
sua posição no espaço, em relação a nós próprios, geram uma espécie de sombra,
ou o que eu chamo de uma espécie de “presença” que pode comunicar-se
principalmente à nossa face.
Na segunda evocação, que eu chamaria de palpação do intangível, o processo
brotou do interior. Eu forjei algo parecido com uma espécie de lenda, pondo em
curso um processo de fabulação, tão próprio à condição humana, em todas as
culturas.
Uma espécie de simbolização, de representação, uma explicação rudimentar para
aqueles fenômenos que não são tangíveis ao tato e que, portanto, só podem ser
acessados por via da visualidade. Apropriar-se do mundo, a partir de uma
montanha que eu pudesse escalar, simbolizava, posso compreender agora, a minha
concepção tátil do conceito de grandeza. Criar gavetas que pudessem ser abertas
para a chuva, o sol, o vento, era a minha simbolização para o impalpável que eu
queria tocar, possuir, guardar, comandar.
Observando a questão por esse prisma, é possível entender que a minha teoria
rudimentar não era assim tão pobre. Ela estava plena de uma fala tátil, que na
falta da experiência da visualidade, brotava em símbolos de substância,
grandeza, altitude, distribuição no espaço, de fenômenos impalpáveis que na
minha imaginação eu podia agora comandar.O perceber, dentro do não-ver, exibe,
pois, uma transação. Uma transação permanente entre o corpo, o espaço e os
eventos do mundo.
O perceber, dentro do não-ver, é um permanente trabalho, envolvendo o contato
com a experiência, os fenômenos do mundo, e um aparelho neurosensóriomotor
crucialmente dependente de um modo tátil de pensar/perceber, aquilo que em
minha pesquisa de doutorado eu chamei de “mundividência tátil”(BELARMINO,2004,
p.110) e que, por ocasião da defesa, o professor José Luís Lima aprimorou para
“tactognose”.
Não vou aqui me alongar falando a respeito do modo tátil de percepção do mundo,
embora ressalte que seja de fundamental importância que as escolas dêem voz a
esse sujeito cingido pela condição da cegueira, para que ele mesmo possa exibir
a sua “fala tátil”, uma fala corporal e simbólica, que se estrutura a partir do
detalhe, da proximidade, do toque, da cinestesia, esse fenômeno tão complexo e
que por si só mereceria muito debate.
Queria falar, sobretudo, da percepção do impalpável, do intangível, do não
sensível ao tátil. Eu poderia falar de nuvens e estrelas, ou do encontro mágico
do oceano com a linha do horizonte. Poderia falar do pôr-do-sol, tingindo o céu
de vermelho vivo, visto do meio do rio, na praia do Jacaré, no meu adorável
litoral paraibano. Coisas que, para uma pessoa cega de nascença, estão
completamente inacessíveis, gerando, em nós, uma espécie de fome de ver, o
exercício do cérebro a imaginar, a criar algo, algo que esteja posto no lugar
dessa ausência das imagens “reais”.
E foi munida com essa “fome de ver”, que eu fui buscar alimento para essa
percepção do intangível, do impalpável. E estudando a cegueira, percebi que para
uma pessoa cega de nascença a percepção do mundo depende crucialmente daquilo
que a semiótica chama de “sistemas de corporificação de coisas em texto”.
Esses sistemas são a literatura, a arte, a comunicação. É através da literatura
que eu vejo corporificado em texto o pôr-do-sol, o céu estrelado, a beleza de um
arco-íris.
Mas não precisaria ir tão longe para falar de algo concreto que nos é
intangível ao tato. Poderia refl etir sobre algo muito mais próximo de nós: a
escrita, o livro. Não é curioso que esse dispositivo feito de papel costurado,
que diz tudo ao sistema da visualidade, esteja completamente inacessível a uma
pessoa cega?
Eu abro um livro, sinto o seu cheiro, toco nas suas páginas e me defronto com um
grande oceano branco, uma página lisa e macia.
Isso era verdadeiro até meados do século XIX. Aí veio o Braille, esse grandioso
sistema corporificador de escrita visual em escrita tátil.
Seis pontos e suas 63 combinações, e então nosso mundo alargou-se, e nós pudemos
tocar o intangível.
O século XXI nos apresenta outro desenvolvimento magistral, conjugando Braille e
tecnologia, e criando importantes plataformas de corporificação de coisas em
texto.
O perceber, dentro do não-ver, exige, pois, um exercício de mergulho na
realidade tátil, pela via da educação, da arte, da psicologia, da cultura, a fim de que se estabeleça a premissa da colaboração, da dialogicidade, da confl
uência entre os sentidos humanos, para que, então, a lenda pessoal de uma
criança cega possa ganhar cada vez mais o enxerto da experiência, da realidade.
REFERÊNCIAS
-
BELARMINO, J. Aspectos comunicativos da percepção tátil: a escrita em relevo
como mecanismo semiótico da cultura. 2004. Tese (Doutorado)__Programa de
Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2004.
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RESTREPO, L. C. O direito à ternura. Petrópolis: Vozes, 1998
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Joana Belarmino de Sousa | Jornalista. Doutora em Programa de Pós Graduação em Comunicação Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor titular da Universidade Federal da Paraíba. Endereço: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes - Campus I, Departamento de Comunicação. Campo Universitário Castelo Branco III. CEP: 58059900 - Joao Pessoa, PB - Brasil.E-mail: pandora00@uol.com.br
NOTA: Esse artigo é fruto de uma intervenção que fiz por ocasião do Colóquio “Ver e Não-Ver”, realizado no Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro, em outubro de 2008. O trabalho ora publicado, quase não sofreu alteração, a não ser aquelas próprias da formatação, ou pequenos acréscimos que clarificaram melhor algum ponto da comunicação. Manteve-se em todo o texto, o tom coloquial que caracterizou a intervenção e o resultado
final exibe apontamentos, pistas para refl exão, trilhas a serem aprofundadas e debatidas no curso de outros trabalhos.
Também de Joana Belarmino, ler neste site o texto Seis Pontos de uma Revolução Sistémica
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