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 Sobre a Deficiência Visual

O Papel do Braille no processo de Reabilitação da Pessoa Cega

Renata Salvado & Amaro Costa

NSAnjos - foto de Mário Cruz
C. R. Nossa Senhora dos Anjos - foto de Mário Cruz

A pessoa que perde a visão confronta-se, na maioria das vezes, com graves problemas inerentes à dimensão psicológica e à dimensão funcional. Falamos, nomeadamente, do processo de luto, da perda de autoestima, da alteração do autoconceito, mas também da perda de autonomia nos domínios da comunicação, das tarefas relativas às atividades de vida diária e da orientação e mobilidade (Lifshitz, Hen, & Weisse, 2007; Lundervold, Lewin, & Irvin, 1987).

Neste tempo de confusão, sentido pela pessoa sobre que capacidades se mantêm intactas, que dificuldades surgirão, na sequência da falta da visão, experiencia-se uma fase em que as vidas são vividas como se estivessem “suspensas”. O enfraquecimento no papel ativo na família, no trabalho e na sociedade, juntamente com a convicção de que a medicina já não será capaz de resolver o problema clinicamente, são fatores geradores de um profundo sentimento de tristeza.

É nesta fase, de sofrimento intenso, que muitas pessoas tomam a decisão de iniciar o seu programa de reabilitação. O programa de reabilitação, desenhado pela equipa técnica do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos (CRNSA), tem como base uma entrevista inicial, que permite conhecer o impacto da perda de visão na vida das pessoas e identificar quais as áreas de intervenção que devem ser integradas e, assim, desenvolver capacidades que lhes permitam retomar uma vida ativa, com maior e melhor qualidade e ajustada aos seus projetos individuais.

As áreas de intervenção que compõe o programa de reabilitação são:

  • Comunicação: Braille e Tecnologias de Informação e Comunicação;

  • Orientação e Mobilidade (O.M.): Atividade motora e Orientação e mobilidade;

  • Atividades de Vida Diária (AVD): AVD cozinha, AVD roupa, AVD competências sociais, AVD competências pessoais;

  • Motricidade Fina: área transversal a todas as áreas de reabilitação.


No contexto da intervenção realizada no CRNSA, entende-se, por um lado, que o sistema de leitura e escrita Braille é a única forma da pessoa com cegueira aceder à leitura, continuar a manter as competências linguísticas no que respeita à formação da palavra, à aplicação de regras gramaticais para a construção de frases e de uso de vocabulário (Demirok, Gunduz, Yergazina, Maydangalieva, & Ryazanova, 2019; Graven, 2015). Por outro lado, o Braille deve responder, em termos funcionais, às necessidades das pessoas, nomeadamente no que respeita à organização pessoal e profissional, ao desenvolvimento da capacidade de leitura de palavras isoladas e escrita de palavras em máquina Braille, à utilização da fita dymo e por fim, em pauta Braille (Argyropoulos & Papadimitriou, 2015; Farrow, 2015; Hall & Newman, 1987).

É expectável que, no final do programa de reabilitação, mediante a utilização do Braille, a pessoa seja capaz de organizar diferentes dossiers com documentos pessoais (faturas de água, luz, renda, banco, relatórios médicos, receitas de culinária, entre outros), de organizar géneros alimentares em despensa doméstica identificados com etiquetas, ter acesso à leitura do nome dos medicamentos, de reconhecer e utilizar os números dos elevadores, de realizar a leitura de uma ementa e de aceder à limitada informação que é disponibilizada para uso dos transportes públicos.

A progressão na aprendizagem do Braille depende, essencialmente, de cada um e do significado que é atribuído a esta aprendizagem, estando também relacionada com capacidades individuais, particularmente no que respeita à sensibilidade tátil, à coordenação bimanual, à capacidade de atenção e memorização e orientação espacial (Graven, 2015; Sadato, Okada, Kubota, & Yonekura, 2004).

O Braille é um processo mental complexo que envolve o controlo do movimento dos dedos, o reconhecimento padrão e o processo léxico e semântico (Sadato et al., 2004). Numa fase inicial da aprendizagem é comum que a leitura seja lenta, que o modo de reconhecimento dos caracteres seja moroso, constituindo-se como um processo exigente que obriga a pessoa a ser resiliente e persistente, até adquirir uma rapidez de leitura que lhe seja satisfatória. Este treino progride para uma fase intermédia/ final de leitura de texto em livros e revistas.

Todo este processo complexo de aprendizagem do Braille culmina em resultados positivos para a pessoa, não só na aceitação da cegueira, mas também na melhoria da autoestima e autoconfiança, recuperando a perceção de competência na realização das tarefas quotidianas, marcando uma mudança gradual rumo à conquista de uma autonomia plena (Sadato et al., 2004).

No âmbito do trabalho desenvolvido pelo CRNSA importa, ainda, considerar os benefícios da complementaridade do Braille com as novas tecnologias. Neste contexto, valorizam-se a utilização da linha Braille como um terminal do computador, assim como o notebook, linha de Braille autónoma equivalente ao uso de um bloco de notas. Este pode ainda ser emparelhado com o smartphone, facilitando a utilização do sistema toutch para utilizadores com determinadas dificuldades no uso deste sistema.

Considera-se que as oportunidades de utilização de leitura em Braille são ainda hoje muito reduzidas. Neste sentido, importa que as sociedades promovam esse caminho, sustentando-se nas boas práticas que se tem vindo a verificar em algumas áreas, nomeadamente na cultura, observando-se uma preocupação crescente na etiquetagem Braille em peças de museus. Estes princípios de acessibilidade deveriam ser extensíveis a outros serviços, públicos e privados, como transportes, supermercados, saúde, finanças, hotelaria e turismo.

Apresentam-se, a título de exemplo, algumas das boas práticas de utilização do Braille desenvolvidas internamente no CRNSA, designadamente: a identificação em Braille dos espaços comuns, gabinetes, ecopontos, máquinas de venda automática, eletrodomésticos, géneros alimentares (organizados na despensa pedagógica) e ementa semanal. Em contexto de sessões de orientação e mobilidade, assim como em todas as visitas ao exterior, é feito um incentivo permanente à leitura de Braille, como forma de acesso à informação disponível no ambiente.

Os Planos Individuais de Reabilitação, elaborados no CRNSA, são definidos com base nas potencialidades e dificuldades de cada utente, perspetivando a melhor inclusão na sociedade e visando potenciar a utilização do Braille. Para além desta aplicabilidade geral, sublinham-se outras situações particulares que enfatizam a importância do Braille:

  • como processo de comunicação expressiva e recetiva, em casos específicos de surdocegueira;

  • como ferramenta de organização pessoal e profissional, em situações de reconversão de posto de trabalho;

  • como primeiro código de leitura e escrita na idade adulta, nos casos de alfabetização.


O Braille é, e será sempre, uma ferramenta essencial ao acesso, construção e desenvolvimento do conhecimento no processo de inclusão da pessoa cega, numa sociedade que é lugar de todos e para todos.


Referências Bibliográficas

  • Argyropoulos, V., & Papadimitriou, V. (2015). Braille reading accuracy of students who are visually impaired: The effects of gender, age at vision loss, and level of education. Journal of Visual Impairment & Blindness, 109(2), 107-118. doi:10.1177/0145482X1510900206
  • Demirok, M. S. m. s. n. e. t., Gunduz, N. n. g. n. e. t., Yergazina, A. A. y. m. r., Maydangalieva, Z. A. m. m. r., & Ryazanova, E. L. s. m. r. (2019). Determining the Opinions of Special Education Teachers Regarding the Use of Assistive Technologies for Overcoming Reading Difficulties. International Journal of Emerging Technologies in Learning, 14(22), 141-153. doi:10.3991/ijet.v14i22.11761
  • Farrow, K. R. (2015). Using a group approach to motivate adults to learn Braille. Journal of Visual Impairment & Blindness, 109(4), 318-321.
  • Graven, T. (2015). How blind individuals discriminate braille characters: An identification and comparison of three discrimination strategies. British Journal of Visual Impairment, 33(2), 80-95. doi:10.1177/0264619615571137
  • Hall, A. D., & Newman, S. F. (1987). Braille Learning: Relative Importance of Seven Variables. Applied Cognitive Psychology, 1(2), 133-141. doi:10.1002/acp.2350010206
  • Lifshitz, H., Hen, I., & Weisse, I. (2007). Self-concept, Adjustment to Blindness, and Quality of Friendship Among Adolescents with Visual Impairments. Journal of Visual Impairment & Blindness, 101(2), 96-107.
  • Lundervold, D., Lewin, L. M., & Irvin, L. K. (1987). Rehabilitation of visual impairments: A critical review. Clinical Psychology Review, 7(2), 169-185. doi:10.1016/0272-7358(87)90032-8
  • Sadato, N., Okada, T., Kubota, K., & Yonekura, Y. (2004). Tactile discrimination activates the visual cortex of the recently blind naive to Braille: a functional magnetic resonance imaging study in humans. Neuroscience Letters, 359(1-2), 49-52.

FIM

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O papel do Braille no processo de Reabilitação da pessoa cega
Renata Salvado & Amaro Costa
Centro de Reabilitação de Nossa Senhora dos Anjos

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A Didática do Braille – Compilação das comunicações apresentadas no Seminário comemorativo do Dia Mundial do Braille de 2020
Autor: Núcleo para o Braille e Meios Complementares de Leitura
Editor: Instituto Nacional para a Reabilitação I.P.
Av. Conde de Valbom, 63 | 1069-178 Lisboa | Tel: (+351) 217 929 500 |
Website: www.inr.pt Ano de edição: 2021

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27.Dez.2022
Maria José Alegre