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 Sobre a Deficiência Visual

O Jardim Sensorial: um Recurso para a Estimulação Sensorial de Surdocegos

Carla Susana Pinheiro de Carvalho

excerto


Menino cego num Jardim | fotografia: Centro de Reabilitação Visual de São José de Rio Preto

 

O que é um Jardim Sensorial?

O surgimento destes jardins, inicialmente tinha como público-alvo pessoas com deficiência visual, sendo o seu principal propósito, o de proporcionar aos utilizadores a possibilidade de estimular os outros órgãos dos sentidos que não se encontravam afectados.

Recorrendo aos vários elementos que integram este tipo de jardins, todos os sentidos são estimulados. Sobretudo, no caso das situações em que as perdas sensoriais são degenerativas, a estimulação dos sentidos que não estão comprometidos, poderá ser útil para que estes sujeitos tenham mais informação acerca do meio ambiente onde se encontram.

Principais objectivos do Jardim Sensorial

▪ Oferecer novas respostas de atendimento.

▪ Criar espaços agradáveis e apropriados que promovam a estimulação sensorial.

▪ Criar locais de aprendizagem, de desenvolvimento de competências e de lazer.


Características do Jardim Sensorial

O Jardim Sensorial foi planeado tendo em conta as características dos seus utilizadores (pessoas portadoras de surdocegueira) e o seu objectivo: a estimulação dos sentidos.

Os canteiros encontram-se a uma altura que permite o livre acesso a todos os visitantes, nomeadamente os que se encontrem em cadeira de rodas.

Neles podemos encontrar um leque variado de plantas decorativas, medicinais e aromáticas que permitem a estimulação ao nível da visão, tacto, paladar e olfacto. Existe ainda uma zona de lazer/relaxamento.

O USO DE OUTROS SENTIDOS

A capacidade visual é essencial ao desenvolvimento e aprendizagem de qualquer ser humano, particularmente no processo de integração da informação recebida e na coordenação dos movimentos. Ela permite à pessoa planear para onde quer ir, o que quer alcançar e quais os obstáculos a evitar. As crianças com limitações visuais têm dificuldades em se movimentar por sua própria conta, necessitam do apoio de outros para tomar decisões e para que as encorajar a mover-se. Dependendo do grau da perda visual, a criança poderá conhecer o ambiente que a rodeia, explorando o local, e intuir o tamanho e a forma dos objectos usando o tacto. As suas dificuldades têm um forte impacto no seu desenvolvimento emocional, podendo deixá-la insegura e com receio das coisas (Easterbrooks et al, 2009). Quanto à audição, Vianna (n.d.) refere que este órgão dos sentidos permite que as crianças com deficiências visuais recebam informações sobre o mundo a sua volta, pois as pessoas que as rodeiam podem descrever o lugar, os objectos e, até mesmo, situações que ocorrem, fazendo-as sentir mais seguras.

Bruce, Nelson e Silberman (2004) mencionam que devido às limitações sensoriais, a pessoa surdocega está praticamente isolada, a não ser que esteja próxima ou em contacto físico com outra pessoa. No caso da surdocegueira ser congénita, estes autores referem que essa condição sensorial impede os indivíduos de receber informação dos sentidos de distância, pelo que têm de utilizar o tacto com principal órgão de aprendizagem, desenvolvendo também os sentidos do paladar e do olfacto como veículos de acesso ao mundo que os rodeia. Tratando-se de uma pessoa com surdocegueira adquirida, a pessoa terá a possibilidade de desenvolver o outro sentido de distância que não está afectado, ou seja, se a pessoa for surda ou tiver perda auditiva, poderá utilizar a visão como principal veículo de aprendizagem e de interacção com o meio envolvente. Pelo contrário se a pessoa for cega ou tiver baixa-visão, poderá utilizar a audição e o tacto como veículos de recolha de informação e de aprendizagem.

Vianna (n.d.) refere que a estimulação dos resíduos auditivos é de extrema importância para as crianças surdocegas. Através dos resíduos auditivos podem integrar o som na sua vida, complementando as informações recebidas pelos outros sentidos. É de grande importância que estas crianças se mantenham num ambiente sonoro, e que as pessoas com quem interagem possam emitir sons da fala, mesmo usando uma comunicação não-verbal, ou seja, mesmo estando a comunicar com uma pessoa surdocega, recorrendo à língua gestual, à dactilologia ou a outro sistema de comunicação, o interlocutor deve utilizar em simultâneo a linguagem oral.

Na sua obra, Moss (2005) cita McLinden e McCall (2002), referindo que o uso activo do tacto como meio de procurar e receber informação denomina-se tacto háptico, sendo o sistema háptico definido como um sistema de percepção orientado para a discriminação e para o reconhecimento de objectos que são manipulados em vez de serem apenas observados. Através do sistema háptico temos a percepção de um leque variado de particularidades que caracterizam os elementos existentes no meio ambiente em que estamos inseridos, nomeadamente a vibração, a textura da superfície, a secura/humidade, a temperatura da superfície, a forma, a aspereza/suavidade, o peso, a elasticidade e a flexibilidade. A autora menciona ainda que o sentido do tacto possui algumas particularidades, pode ser: i) activo, quando sentimos a brisa do vento na nossa cara e o calor do Sol ou ii) não activo, quando sentimos as vibrações de um automóvel que está perto de nós, dentro do qual toca o rádio em volume alto; pode ser também iii) interactivo, quando abraçamos, cumprimentamos com um beijo ou quando damos um aperto de mão ou iv) não interactivo, quando cruzamos os braços, quando massajamos uma cãibra na perna ou quando tomamos banho.

Para os indivíduos surdocegos o tacto é o principal sentido que lhe permite aceder à informação. Como nos diz Daniel Alvarez 1: “O meu mundo começa e acaba na ponta dos meus dedos”. Perante esta afirmação tomamos consciência do papel fundamental que o sentido do tacto tem na vida da pessoa surdocega. Através deste sentido a pessoa pode localizar, reconhecer e identificar formas; detectar tamanhos, pesos, texturas, temperaturas, etc., podendo inclusive ter acesso a informação em suporte de papel, desde que esta tenha sido escrita em Braille. Estimulando adequadamente a capacidade táctil e tendo em conta as características da pessoa, podem desenvolver-se competências que promovam o conhecimento seguro e eficaz do ambiente que a rodeia, colmatando parcialmente a falta da visão.

Quanto ao sentido do olfacto, este é um sentido muito específico, que varia de pessoa para pessoa. Rodríguez-Gil (2004) relata que ao nível da surdocegueira, frequentemente nos deparamos com pessoas surdocegas que possuem o sentido do olfacto muito apurado para compensar o uso limitado da visão e da audição. O sentido do olfacto tem um papel muito importante nesta população, pois através dele os indivíduos surdocegos podem identificar pessoas, lugares, objectos e actividades.

Brown (2004) menciona que o sentido do olfacto fornece ao indivíduo surdocego informação significativa e vital. Algumas crianças surdocegas manifestam dificuldades na utilização deste sentido, outras demonstram não possuir consciência deste sentido, apesar de aparentemente este estar intacto e a funcionar. Noutros casos, o indivíduo demonstra de forma clara que o sentido do olfacto lhe proporciona informação importante que lhes permite, por exemplo, identificar o local onde está. Todas as pessoas são hipersensíveis a certos odores e a certas intensidades de odor. Embora algumas crianças surdocegas possam demonstrar essa hipersensibilidade com reacções adversas óbvias, outras possivelmente não têm essa capacidade por, como já referido, não possuírem este sentido ou não terem consciência dele, sendo necessário por parte dos profissionais que com eles trabalham, alguma sensibilidade na exposição a certos aromas.

O JARDIM SENSORIAL

São vários os relatos, que datam a década de 90, como a época em que terão começado a surgir os primeiros Jardins Sensoriais. Segundo Leão (2007, p. 39), “ (…) actualmente sabe-se que existem jardins dessa natureza no Brasil (Rio de Janeiro), Alemanha (Berlim), Japão (Kyoto), Polónia (Warsaw), Inglaterra (Londres), entre outros locais, (…) podendo surgir a cada dia novos espaços”.

O surgimento destes jardins, inicialmente tinham como público-alvo pessoas com deficiência visual, sendo o seu principal propósito, o de proporcionar aos utilizadores a possibilidade de estimular os outros órgãos dos sentidos que não se encontravam afectados.

Recorrendo aos vários elementos que integram este tipo de jardins, todos os sentidos são estimulados. Sobretudo, no caso das situações em que as perdas sensoriais são degenerativas, a estimulação dos sentidos que não estão comprometidos, poderá ser útil para que estes sujeitos tenham mais informação acerca do meio ambiente onde se encontram.

Um jardim sensorial pode proporcionar uma variedade de experiências. Para Corrêa (2009, pp. 35-36) “Além do benefício propiciado para pessoas que apresentam diferentes deficiências (deficientes visuais, surdocegos, deficientes motores com alteração de marcha, pessoas com défice cognitivo e de equilíbrio); o jardim pode beneficiar também pessoas que necessitam de relaxamento e de contacto com a natureza para aliviar o stress (…)”. Esta opinião é também partilhada pela Horticultural Therapy Association of Victoria Inc. (2010) 2 segundo a qual, os jardins sensoriais têm um valor terapêutico, pois a sua frequência permite às pessoas portadoras de deficiência terem contacto com a natureza num ambiente seguro. Os jardins sensoriais podem contribuir para o bem-estar físico e emocional, podendo ser locais agradáveis que permitam relaxar, reflectir, meditar, contemplar e conversar.

Segundo Moore e Worden (2003) os jardins sensoriais podem ser construídos em espaços de pequena ou grande dimensão, podem ser públicos ou privados. As autoras referem ainda que estes espaços podem ser construídos com o propósito de estimular apenas um órgão dos sentidos (e.g., Jardins de Aromas) ou estimular vários órgãos dos sentidos, existindo para isso diferentes zonas, direccionadas para a estimulação de cada sentido. Tendo em conta este objectivo, Moore e Worden (2003) e a Horticultural Therapy Association of Victoria Inc. (2010) apresentam algumas sugestões para estimular os sentidos, os quais passaremos a apresentar:
 

− audição: poderá recorrer-se à colocação de gaiolas com aves, sinos, “espanta-espíritos”, fontes/quedas de água, colocar plantas que com o vento produzem sons (e.g., bambus). Sugerem ainda que se os caminhos sejam revestidos com materiais que produzam som ao passar (e.g., gravilha);

− tacto: poderão ser cultivadas plantas com folhas de diferentes texturas, que sejam resistentes ao manuseamento frequente. O chão do percurso poderá também ser revestido com diferentes materiais;

− olfacto: poderá recorrer-se à plantação de ervas aromáticas (chás, temperos e perfumes), devendo evitar-se que estes canteiros fiquem muito próximos uns dos outros a fim de se evitar uma mistura de odores no ar;

− paladar: poderão ser utilizadas algumas das plantas aromáticas, como também poderão ser plantadas árvores de fruto ou plantas/arbustos que produzam frutos (e.g., morangueiros, framboeseiro, groselheira, etc.);

− visão: poderão ser cultivadas plantas de formas variadas, que produzam flores de cores e formatos variados.


A Horticultural Therapy Association of Victoria Inc. (2010) defende que os jardins sensoriais devem ser planificados de forma a encorajar a interactividade. Para atingir este propósito, fazem algumas alusões:


− Os canteiros devem estar a uma altura que permita o livre acesso a todos os visitantes, nomeadamente os que se encontrem em cadeira de rodas, que queiram tocar ou cuidar das plantas com facilidade;

− Os assentos devem ser colocados, tendo em conta as características dos frequentadores do espaço. Deve existir espaço suficiente ao seu redor para que possa caber uma cadeira de rodas ao lado;

− Os corredores devem serpentear o espaço. Esta disposição desafia o visitante a abrandar e olhar em redor.


No que concerne aos elementos que devem existir neste espaço, Moore e Worden (2003) referem que num jardim sensorial, não devem existir apenas plantas; nele podemos encontrar caminhos, bancos, pérgolas, muros, etc.

Para a construção dos caminhos, as autoras sugerem que se utilizem diferentes tipos de materiais (pedra, madeira, etc.), os quais deverão variar ao longo do percurso. A largura do caminho deve ter no mínimo 48 polegadas 3 (120 cm), sendo a largura de 60 polegadas (150 cm) a medida ideal para o acesso de cadeiras de rodas. Quanto à sinalética utilizada no espaço, as autoras consideram que se as diferentes zonas do jardim sensorial estiverem identificadas, o visitante sente-se motivado a interagir. Para identificar esses locais, é sugerido que se criem etiquetas em Braille com o nome das plantas; podendo ser utilizado um código de cores que evidencia os diferentes sentidos associados a cada planta. Essas etiquetas podem ser colocadas em locais acessíveis.

Tendo em conta as características da população que irá visitar o jardim sensorial, a escolha das plantas que irão estar acessíveis requer alguns cuidados. Chimenthi (n.d.) 4 recomenda que “na escolha de espécies para jardins sensoriais, é fundamental que sejam evitadas aquelas espécies que possuem espinhos, como as roseiras, algumas bromélias e suculentas. Também devem ser evitadas algumas plantas munidas de substâncias tóxicas, como espinho-de-cristo16 e comigo-ninguém-pode17, dentre outras”. Leão (2007, p.39) refere que “nos jardins sensoriais, deve-se enfatizar a utilização de espécies vegetais que se destacam pela textura, pelo perfume, pela forma das folhas, dos caules, das flores, dos frutos e das sementes (…)”.





 


FIM

 
NOTAS:
1  Daniel Alvarez - Surdocego adquirido Espanhol (surdo desde os 4 anos e cego desde os 30). Chefe da Unidade Técnica de surdocegueira da ONCE e Presidente da Associação de Surdocegos de Espanha. http://www.asocide.org/.
2  http://www.betterhealth.vic.gov.au/bhcv2/bhcarticles.nsf/pages/Gardens_for_the_senses?open.
3  1 polegada = 2,5 cm (http://www.pat.patches.nom.br/down/Impressos/tabela1.pdf). 
4  http://www.forumdaconstrucao.com.br/conteudo.php?a=16&Cod=130.


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excerto de:

O JARDIM SENSORIAL: UM RECURSO PARA A ESTIMULAÇÃO SENSORIAL DE SURDOCEGOS
autora: Carla Susana Pinheiro de Carvalho
Dissertação apresentada à Escola Superior de Educação de Lisboa para obtenção do grau de mestre em Ciências da Educação
Mestrado em Educação Especial
INSTITUTO POLITÉCNICO DE LISBOA
ESCOLA SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DE LISBOA
2011
fonte: https://repositorio.ipl.pt/
 

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2.Dez.2022
Maria José Alegre