

imagem: Como se atravessa a rua sem ver?
Todos nós conhecemos alguém que tem um péssimo sentido de orientação ou que não
sabe seguir as indicações mais simples, mas que é sempre encarado como uma
exceção. Afinal, partimos do princípio que todas as crianças vão crescer e
chegará o dia em que irão sozinhas para a escola ou que um adulto pode chegar ao
emprego, ao supermercado ou ao ginásio sozinho. Ou seja, a capacidade de ir de
“A” a “B” é vista como algo que aprendemos naturalmente e sem aulas formais.
Vamos aprendendo por tentativa e erro, ao longo do tempo e pela observação. Pelo
menos é assim quando temos boa visão que nos permite observar outras pessoas e
identificar ruas, edifícios e portas que nos informam onde estamos. Quando temos
uma deficiência visual (D.V.) podemos precisar de aulas formais para desenvolver
ou recuperar esta competência.
É natural que os pais de uma criança com D.V. tenham dúvidas sobre como o seu
filho pode circular sozinho quando existem tantas barreiras e perigos. E é
natural que um adulto que sempre reconheceu onde estava através da visão, não
conheça a sua cidade através dos outros sentidos. Com o apoio de um técnico de
orientação e mobilidade (O.M.) a criança pode adquirir esta competência e ir
ganhando independência ao mesmo ritmo que os seus pares normovisuais. Por sua
parte, um adulto que perdeu a visão pode recuperar a sua independência,
deslocando-se na cidade sozinho, e continuar a ser visto como um familiar,
colega ou amigo capaz.
Neste processo o técnico de O.M. é um facilitador: alguém que percebe como se
desloca vendo pouco ou nada. Um técnico sabe como tirar proveito da informação
disponível através dos outros sentidos e como criar um mapa mental dos locais em
que a pessoa reside, estuda, trabalha e se diverte. Compete ao técnico ajudar o
cliente a adquirir ou a aperfeiçoar os seus conhecimentos neste campo. Uma
componente do trabalho é verificar que o cliente presta atenção à informação à
sua volta e interpreta a mesma, distinguindo entre uma rua e outra pelos
cheiros, o sentido do trânsito e o tipo de passeio. Outra componente é ajudar o
cliente e os seus familiares a ultrapassar os receios. Os familiares não se
limitam aos pais dos clientes mais novos, mas também incluem os parceiros e os
filhos dos mais velhos, que colocam perguntas tais como, “Como é que o meu pai
vai atravessar a avenida sem ver?”. Por vezes o técnico é a única pessoa no
processo que acredita que o seu cliente se vai tornar independente ou recuperar
a independência.
Quando somos novos aprendemos muito sobre o mundo pela observação, tal como a
diferença entre um candeeiro e um semáforo ou a natureza de uma rotunda. Esta
aprendizagem é feita pela observação no carrinho de bebé e ou no banco de trás
do automóvel. Algo que uma criança com D.V. dificilmente faz. Os pais desta já
respondem a muitas perguntas descabidas do público e é compreensível que não
parem para mostrar objetos na rua aos filhos. Poucas pessoas têm paciência para
enfrentar os olhares e comentários de estranhos quando incentivam o filho a
apalpar pilaretes e papeleiras. Consequentemente haverá lacunas no conhecimento
da criança com D.V. e compete ao técnico de O.M. ajudar a preencher as mesmas
enquanto mostra aos pais e aos educadores e professores da criança o seu papel
neste processo.
No caso de um cliente adulto tais lacunas não existem e até ao momento da perda
da visão, possivelmente, deslocava-se de A até B com facilidade, muitas vezes
sem pensar no assunto. E desde que adquiriu a sua D.V. provavelmente encontrou
algumas estratégias para continuar a movimentar-se. Compete ao técnico facilitar
a aprendizagem de outras estratégias e mostrar que uma pessoa com D.V. pode ir
sozinha a sítios novos com confiança e em segurança. É de salientar que
“sozinha” não significa circular sem interagir com ninguém – é perfeitamente
aceitável pedir informações a terceiros ou ter ajuda para atravessar ruas
movimentadas.
No seu trabalho o técnico deve ter sempre presente a noção que O.M. não é uma
disciplina mas uma competência. Uma competência é algo que aprendemos com
prática e muitas vezes ignoramos os ensinamentos dos instrutores. Podemos
alertar várias vezes uma criança a ter cuidado com os dedos quando bate num
prego com um martelo, mas normalmente a aprendizagem envolve lágrimas. Com muita
prática a tarefa torna-se automática e podemos bater em pregos e conversar ao
mesmo tempo. Por isso, o papel do técnico é estar presente enquanto a pessoa com
D.V. pratica as técnicas e estratégias de O.M. e aprende por si só.
Então, o trabalho do técnico de O.M. é assim tão simples: fica a olhar enquanto
outros aprendem? Em parte, a resposta é sim porque o técnico vai gastar mais
tempo a observar do que a falar e vai pedir ao cliente para avaliar o seu
próprio desempenho antes de dar uma opinião. Pode nem sequer chegar a dar uma
opinião: simplesmente concordar e propor que se repita o exercício. A arte de
ensinar O.M. é transmitir a ideia que é fácil deslocar-se num mundo com pouca ou
nenhuma visão: o cliente não deve sentir que está numa aula. Esta abordagem é
importante com crianças porque estas têm de aprender a ganhar responsabilidade
pelas suas deslocações: têm de perceber que vão usar os novos conhecimentos fora
das aulas, no seu dia-a-dia. E é importante que o cliente adulto não sinta que
voltou à escola ou à estaca zero e fazê-lo acreditar nas suas capacidades. Acima
de tudo, o papel do técnico é garantir que o cliente sente que está a aprender e
que vai atingir os seus objetivos.
Embora seja um facilitador, um técnico de O.M., ao longo da formação, vai
aumentando o grau de exigência e o cliente terá de cumprir rigorosamente as
regras de segurança se quer receber um aval positivo do técnico. E quando este
trabalha com crianças, por vezes será o adulto mais exigente que a criança
alguma vez conheceu. Eventualmente será a primeira pessoa a dizer “mostra-me o
caminho” em vez de “segura na minha mão”. A primeira que vai deixar a criança
virar para o lado errado e esperar para ver como reage quando se perde. Mas ao
mesmo tempo o técnico terá de ser um dos professores preferidos do aluno porque
a criança tem de gostar das aulas e aplicar os conhecimentos no dia-a-dia. Neste
campo um técnico de O.M. tem algumas vantagens: está disposto a investir tempo
em explicar como o mundo funciona; acredita nas capacidades do aluno; ajuda-o a
crescer e fazer as coisas que os seus colegas com visão fazem. E pode ser uma
das poucas pessoas que falam com a criança sobre a sua imagem, como os seus
comportamentos e linguagem corporal podem ser interpretados pelos colegas,
professores e público em geral. Por exemplo, é aceitável tocar no cabelo da tia
para conhecê-la melhor, mas não no cabelo do passageiro à sua frente no
autocarro. Se andas com as costas direitas e a cabeça erguida e demonstras uma
boa técnica de bengala, o público vai pensar que sabes o que estás a fazer e não
vão incomodar-te com muitas ofertas de ajuda desnecessárias.
Além de facilitador, um técnico de O.M. é um prestador de serviços. Os seus
clientes pretendem um serviço personalizado e normalmente terão ideias próprias
sobre aquilo que querem aprender. O técnico apenas tem de seguir a velha máxima
“O cliente tem razão”, incluindo a segunda parte que apenas o dono da loja ou
restaurante recorda “até certo limite”. Ocasionalmente um técnico terá de
arranjar maneira de dizer que os objetivos do cliente são demasiado ambiciosos
ou a sua técnica de bengala é um perigo para os outros.
Esta designação pode ajudar o técnico a perceber que é o cliente que define os
objetivos. Não existe um programa que todos têm de cumprir. Umas pessoas
precisarão de conhecer a rede de metro de Lisboa e outras onde para a única
camioneta que passa na aldeia, umas querem aprender a usar os novos sinais
sonoros nas passadeiras e outras terão de andar em ruas sem passeios. Tal como
em qualquer área, quando o prestador ganha experiência torna-se mais fácil
encontrar soluções para um grande leque de pedidos. Esta experiência pode ser
uma fonte de motivação também, em particular para adultos porque o técnico pode
explicar que já teve um caso semelhante ou até mais difícil, e a pessoa com D.V.
já executa a solução diariamente sem preocupações.
Já foi referido que uma competência é algo que podemos aprender sem aulas
formais e que o técnico apenas preenche as lacunas nos conhecimentos do cliente.
Também foi referido que os pais, os educadores e professores têm um papel neste
processo. Será que qualquer pessoa com uma boa dose de paciência e um sentido de
orientação pode ensinar O.M. a um familiar ou amigo? A resposta é que podem
contribuir, reforçando os ensinamentos do técnico e permitindo à pessoa com D.V.
pôr em prática os novos conhecimentos. Mas sozinhos não vão longe. Por um lado,
quase todos nós temos dificuldade em aprender com as pessoas mais chegadas. Por
exemplo, no infantário as crianças mostram comportamentos e capacidades que não
são aparentes em casa, e são poucas as pessoas que conseguem ensinar a/o
esposa/o a conduzir. Por outro lado, a perda da visão pode ter deixado as
pessoas mais chegadas fragilizadas e incapazes de permitir à pessoa com D.V.
correr riscos ou ser exigente com ela. E mais ainda, um técnico tem
conhecimentos que permite perceber quando um objeto na rua é meramente uma
barreira e quando é um potencial ponto de referência. Sabe quais as informações
que uma bengala pode transmitir e como se pode orientar sem ver o mundo à sua
volta. Há vantagens em contactar um profissional.
Ao longo deste artigo foi usada a expressão técnico de O.M. e ela aparece em
pelo menos um decreto-lei, mas se tentar inscrever-se como tal no Centro de
Emprego vai ser informado que esta profissão não existe em Portugal. A profissão
(ofício?) não é regulamentada e nunca foram definidas habilitações profissionais
ou académicas. É compreensível quando não existem cursos profissionais
homologados neste campo e ao nível superior atualmente existe apenas um curso de
25 horas e este é designado formação contínua para professores.
Existe uma ou outra profissão regulamentada que pode defender a posição que a
O.M. encaixa no âmbito desta profissão. Contudo, os seus cursos de formação não
incluem módulos sobre O.M. e alguns nem sequer falam no tema da D.V. Os
terapeutas ocupacionais, psicomotricistas e outros profissionais que concorrem
para o lugar de técnico de O.M. na ACAPO reconhecem que não estão devidamente
preparados e contam com a formação interna que recebem.
Em alguns países europeus e nos EUA existem habilitações académicas no campo de
O.M., por vezes fazendo uma distinção entre professores, que vão trabalhar
apenas com crianças em escolas, e técnicos que trabalham com os adultos em
serviços de reabilitação. O curso típico é uma pós-graduação oferecida por um
departamento de psicologia ou de educação especial.
Porém, podemos perguntar se é necessário existir um curso académico ou se
eventualmente seria melhor um curso profissional. Durante duas décadas no Reino
Unido existiam apenas cursos profissionais onde o principal critério de seleção
era ser adulto. A ideia era formar pessoas que tinham muitas experiências de
vida e assim poderiam facilmente criar empatia com os clientes, na sua maioria
pessoas idosas. Um adulto que perdeu a visão pode mostrar resistência a aceitar
os conselhos de um jovem recém-licenciado.
Mas não vale a pena discutir os prós e contras dos diversos tipos de formação
porque não há procura. Até uma pessoa ter um contato prolongado com pessoas com
deficiência nem sabe que esta profissão (ou ofício) existe. A maioria dos
candidatos para cursos de psicomotricidade, terapia ocupacional e afins,
pretende trabalhar em clínicas e hospitais onde vão vestir uma bata e ajudar
pessoas a recuperar de doenças e acidentes. Não se imaginam a andar na rua, à
chuva, a olhar para uma pessoa que está à procura de um candeeiro que indica
onde está a passadeira. Regra geral, descobrem a O.M. ou depois de trabalhar em
outros ramos ou quando andam à procura do emprego e se deparam com um anúncio da
ACAPO. Não significa que quando ocupam o lugar não vão dar o melhor, não vão
estudar o assunto, não vão aplicar a sua formação de base. Fazem tudo isso e
podem transformar-se em grandes técnicos de O.M. Simplesmente significa que não
há uma série de jovens à procura de cursos nesta área. A Faculdade de
Motricidade Humana de Lisboa, que desde os anos 70 ministrou, esporadicamente,
pós-graduações em O.M., deixou de oferecer a versão mais recente do curso por
falta de candidatos. Agora apenas oferece um módulo dentro de um curso sobre
envelhecimento e mobilidade.
No curto prazo a solução pode ser introduzir módulos sobre O.M. nos cursos
superiores sobre psicomotricidade, terapia ocupacional e afins, com a opção de
especialização na fase de mestrado. Resultaria em técnicos mais bem preparados
mas infelizmente não existem ofertas de emprego neste campo. O número de
técnicos de O.M. em Portugal não deve chegar a vinte, dos quais onze trabalham
na ACAPO. Mesmo se existissem cursos, valeria a pena investir num que não tem
saída profissional? Até mais câmaras seguirem o exemplo de Torres Vedras e
criarem gabinetes de apoio à D.V. ou até mais clínicas optarem por oferecer
serviços neste campo, as ofertas de emprego vão ser escassas.
Podemos ter certeza que continuará a haver procura por parte das pessoas com
D.V. e tudo indica que a ACAPO continuará a ser a entidade que oferece apoio em
mais pontos do país e emprega mais técnicos nesta área. Sem expetativas da
abertura de novos cursos, por enquanto teremos de apostar na formação interna
para assegurar uma resposta habilitada.
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Orientação e Mobilidade: uma “profissão” com futuro?
autor: Peter Colwell, Técnico de Acessibilidade na ACAPO
Revista Louis Braille
Data/edição N.º20 | 2016
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