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 Sobre a Deficiência Visual

Meu Filho Cego

Edda Sá de Albuquerque
 

Institut National des Jeunes Aveugles - foto de Jane Evelyn Atwood - Paris,1979
Jovem cego - Jane Evelyn Atwood, Paris (1979)

 

ÍNDICE
Apresentação
Prefácio
1. O Choque
2. Infância
3. Os Parentes, a Comunidade, a Escola
 -  A SOCIEDADE, A FAMíLIA E O CEGO
 -  PESQUISAS, FATOS E NÚMEROS - CENSO DOS CEGOS
 -  EDUCAÇÃO DE CEGOS
4. A Integração do Cego

 

APRESENTAÇÃO

Ao escrever este livro, não tive a pretensão de ministrar lições técnicas ou educacionais. Animou-me somente o desejo de dar uma demonstração de que temos dentro de nós uma força propulsora que nos conduz para frente, quando o queremos; de que, com fé, aceitação e otimismo, conseguiremos, sem dúvida, realizar-nos, fazendo de nossos filhos homens realizados e felizes em toda a sua plenitude, mesmo sendo eles cegos ou com deficiências visuais.

"Nada mais fácil que ter um filho. Nada mais imperativo que fazer dele um homem. Nada mais difícil que fazer dele um homem realizado em todos os planos".

 

PREFÁCIO

"OS CEGOS, COMO OS PREDESTINADOS,
ESTÃO MAIS PERTO DO ABSOLUTO".
Mário Graciotti

Muitas mães, nessas latitudes perdidas do globo, devem ter filhos cegos. Crianças com defeito de nascença, outras, decorrentes de moléstias infecciosas, na primeira infância; outras, atacadas pelo glaucoma, síndrome de hipertensão intravascular, sendo praticamente desconhecida a sua origem primária; infecções, tumores intra-oculares, causam o glaucoma que, segundo estatísticas médicas, é responsável por 31,25% dos casos de cegueira, vindo, em seguida, com porcentagem menor, a catarata (opacidade do cristalino, a qual impede a chegada dos raios luminosos à retina), a atrofia do nervo ótico etc., etc.

De acordo com as informações enciclopédicas, a cegueira é, constante nos povos, antigos ou modernos. Ainda existem porcentagens razoáveis, que denunciam como as guerras fazem aumentar o índice de cegos em todos os países em luta.

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Institut National des Jeunes Aveugles


Até o século XVIII, pouco havia a favor da educação e proteção dos cegos. Valentim Hauy, francês, da região de Oise, nasceu, em 1745, e trabalhava como empregado da secção de negócios estrangeiros do governo de sua pátria, quando, por circunstâncias, que não consigo esclarecer, se dedicou a conviver com as crianças cegas, compreendê-las e instruí-las. Foi ele quem inventou a primeira impressão de livros para cegos; em 1784, com 39 anos de idade, fundou, em Paris, uma casa para as crianças cegas, que o governo, depois, oficializou, transformando-a na Instituição Nacional dos Cegos. Valentim não se contentou com essa obra. Foi para Petrogrado, em 1806, e lá fundou uma escola para cegos, o mesmo fazendo em Berlim, em 1817. De coração bondoso e idealista, esse homem ainda deixou um livro, sob o título, "Ensaio sobre a educação dos cegos".

Luis Braille, outro famoso francês, nascido na região de Coupvray, no ano de 1809, filho de um operário correeiro, cegou aos 3 anos de idade. No Instituto Nacional de Cegos, de Paris, aprendeu música e tornou-se grande organista, em várias igrejas de Paris. Chegando a ser professor no referido Instituto, criou um novo sistema de escrita, em pontos salientes, o que deu origem ao admirável sistema Braille, hoje adotado em todo o mundo. Braille morreu ainda relativamente moço, com 43 anos de idade, e a sua cidade natal ergueu-lhe, numa das praças, um monumento, custeado por subscrição nacional. E assim, dois homens do povo puderam servir uma causa nobre e humana: ajudar os cegos a fugir do ócio, da solidão e do desespero!

Tudo isso me vem à memória, porque acabo de ler uma narrativa datilografada de Edda Albuquerque, com este expressivo titulo: "Meu filho cego".

Eu pretendo ser um velho-lobo-das-letras, que milhares de páginas passaram pelos meus olhos e a vivência com a literatura, ao longo de quase meio século, me fornece algum ponto de vista positivo no diagnóstico e classificação das obras que leio.

Este trabalho de Edda Albuquerque, da prestimosa mãe, que teve um filho cego, o Sérgio de seu afeto, é tão natural e fluente, sem nenhum sofisticamento literário, que eu não sei como classificar esta narrativa. ensaio? Memória? Relatório? Diário? Romance?

Surge-me, do espírito, tocado pela autenticidade do que está escrito, uma única palavra, que me parece enfeixar o drama, triste e glorioso, ao mesmo tempo: Confissão! Edda está se confessando perante o leitor, quer dizer-lhe tudo, desde o nascimento de Sérgio, através dos primeiros passos, da assistência continua, do amor presente na vida do filho cego, a fim de arrancá-lo daquela solidão e conduzi-lo à maneira de um homem, para a faixa da produtividade. E com estes capítulos, vividos, didáticos, Edda quer ajudar as mães de outros Sérgios, das inúmeras e incontáveis partes do mundo!

E no decorrer de sua comunicação, singela e comovente, a amorosa mãe de Sérgio estuda muitos dos aspectos desse importante assunto da cegueira, inclusive a sua história, as tentativas para resolvê-la, as várias estatísticas, a legislação, os ensinamentos, as experiências, a técnica dos processos de ensino, enfim, criando um verdadeiro e valioso "vade-mecum", em que se entrelaçam as linhas do intelecto e as do coração.

Este livro, se tornará um companheiro indispensável para todas aquelas mães e pessoas, devotadas nos problemas dos cegos, amando-os, principalmente, porque eles são, na face angustiada da Terra, como os predestinados, que se encontram mais perto do Absoluto, os únicos detentores de uma inimaginável aurora interior!


1. O CHOQUE

Fim do ano. Festas. Comemorações. Final de um ano letivo. Custa-me acreditar que aquele jovem alto, esbelto, de passo firme, que se dirige à mesa para receber o seu certificado de ginasiano, seja o meu filho Sérgio. Para nós, seus pais, que o estamos acompanhando desde os primeiros passos na escola, é uma grande etapa vencida, uma grande vitória! Sei que muitos estão achando exagerada a nossa alegria, o nosso entusiasmo, pelo fato de esse menino terminar o curso ginasial, mas eu explico o motivo da nossa grande felicidade e creio que os que me lêem nos darão sobradas razões: Sérgio é cego de nascença.

Olhando para ele, hoje, nos seus 16 anos, em plena forma física, desenvolto, alegre e comunicativo, faço um retrospecto e relembro tudo o que aconteceu desde o dia do seu nascimento.

Dia 17 de janeiro de 1953: em Fortaleza nasceu nosso segundo filho, pois já tínhamos uma menina com um ano e sete meses. Alegria dobrada. Criança forte, rosada e sadia, com todos os órgãos sensoriais perfeitos, disse o pediatra da maternidade.

Mas, aos três meses de idade, notava-se que algo de anormal havia em seus olhinhos pretos. Consulta ao oculista. E esse nos diz: "Seu filho não enxerga, tem catarata congênita". Ficamos atônitos, estáticos, perplexos, sem nenhuma reação. Meu filho é cego... Por quê? Ainda hoje não sei explicar o que de fato senti naquela hora. Revolta? Medo? Dor? Não sei...

O impacto da notícia atingiu a todos da família e uma tristeza imensa tomou conta dos nossos corações. Voltamos às consultas com outros médicos e todos apontavam um caminho: Campinas, Instituto Penido Burnier, considerado um dos maiores centros de oftalmologia da América Latina. Um raio de esperanças entre as lágrimas.

Seis meses de idade: rumo a Campinas. Depois de examinado por uma junta médica, ficou decidido que ele seria operado. No dia 22 de julho, primeira operação de um olho. Por ser o dia do meu aniversário, eu pensava: quem sabe, Deus me vai dar de presente a visão do meu filho! Oito dias depois, comprovado o êxito da operação, foi operado o outro olho. Tudo muito bem. Ao tirar-lhe a venda, estaria enxergando. E pelos testes a que foi submetido ficou provado que ele via. Que maravilha! Quase não acreditávamos, tão grande a nossa felicidade. Voltamos para nossa terra, esperançosos e felizes.

Nove meses de idade: é acometido de uma infecção ocular dupla. Voltamos às pressas a Campinas e, desta vez, nada poderia ser feito. Tudo estava perdido: Sérgio novamente sem ver e para sempre. Todos os recursos atuais da Medicina não poderiam devolver-lhe a visão. Ficava ele, assim, privado de um dos órgãos sensoriais mais importantes. Que seria dele? Que seria de nós? Que deveríamos fazer diante de uma situação tão grave? Estávamos completamente desolados e desorientados, incapazes de raciocinar. Sabíamos tão-somente que o nosso filho estava cego e para sempre.

Passado aquele período de choque, entramos na realidade e vimos que o caminho a seguir seria enfrentar com coragem o problema, olhar para frente, sem nenhum conflito, sem nenhuma revolta à cegueira do nosso filho. A aceitação das coisas como elas são, quando não podemos modificá-las, é uma das grandes dádivas de Deus, mas para aceitar, teríamos que derrubar todos os preconceitos então existentes em nós em torno da cegueira.

Percebíamos que a maioria das pessoas se enche de sentimentos de compaixão e piedade, vendo um cego como um ser humano extremamente dependente, incapaz de enfrentar a vida, de vencer os obstáculos que se lhe apresentam. De modo geral, ao olharmos principalmente para uma criança cega, quanta dor, quanto constrangimento, e ficamos a perguntar: Como são as crianças cegas? Podem elas divertir-se juntamente com outras crianças videntes? Correr, brincar? Podem elas chegar a casar e constituir família? Como vivem entre os adultos? Meu marido e eu, procurando respostas para essas indagações, sentíamos a nossa grande responsabilidade. Estava entregue em nossas mãos o futuro daquela criança diferente, tínhamos obrigação de criá-la e educá-la como uma criança normal, de fazê-la feliz, sem complexos, sem inibições para que chegasse a ser um adulto realizado. Sob a nossa guarda estava aquele menino, nosso filho querido, e nós jamais poderíamos deixá-lo crescer, desenvolver-se física e mentalmente, sem as condições necessárias para aceitar-se a si mesmo e ser aceito sem reservas pela família e pela sociedade.

Para nossa resignação, deveríamos crer que defeitos físicos não são castigos de Deus, que eles não nos são dados para pagar dividas, pecados nossos ou de nossos antepassados. Deveríamos saber que eles são provenientes da natureza humana que tem suas falhas genéticas comprovadas pela própria ciência; que também a hereditariedade, as doenças e diversos fatores externos são responsáveis por grande número de defeitos físicos, inclusive a cegueira. Mesmo rejeitando esses erros da matéria, sentindo-nos inferiorizados por ver uma pessoa da nossa família com um corpo defeituoso, incompleto, teríamos que refletir, fixar o nosso pensamento mais alto, vendo naquele corpo apenas o veículo portador de uma alma, e essa sim, precisa ser completa, intacta, para usufruir os bens terrenos e depois a Eterna Graça: Deus.

Portanto, só depois de bem compreendidas e apreendidas todas essas condições, poderíamos ficar de fato preparados para aceitar Sérgio tal como era, sem reservas.

Meu marido e eu, sempre unidos, procurando forças nas orações e apoiando-nos reciprocamente, esforçávamo-nos por compreender a nós mesmos. Para nos ajustar à cegueira do nosso filho, fomos também sabendo realmente como deveríamos agir com ele. Sem conclusões precipitadas, íamos descobrindo as nossas próprias atitudes negativas com relação à cegueira e, com esforço e coragem, buscamos sobrepujá-las, para darmos a ele e a nossa filha um verdadeiro amor.

Já completamente seguros dos nossos sentimentos, sem mais temor, enfrentamos a situação decididos a vencer, pedindo a Deus luzes e coragem para superar daí em diante as dificuldades que se nos apresentassem.

Muitas e muitas vezes eu pensei e cheguei a concluir: Serginho é nosso "pára-raios", colocado por Deus em nossas vidas. Por seu intermédio, eu acredito, foram atraídas para nossa família muitas bênçãos do céu; por seu intermédio, conseguimos sempre resolver de maneira positiva os nossos problemas familiares com relação a ele próprio, acertando na sua educação, na sua integração, concorrendo isto tudo para a nossa conformidade com os desígnios de Deus.

O ideal de toda mulher é casar e ter filhos, porém ela só se sente realizada neste ideal quando possui um bom marido e filhos bem educados.

Quais os pais que não desejam acertar na educação de seus filhos? Todos, mas infelizmente muitos não acertam, porque "educar é uma arte que nem todos possuem", diz o Dr. Rinaldo De Lamare. Afirma ele ainda: "os problemas dos nossos filhos são os nossos erros".

E para que nossos filhos não sofram problemas no futuro, devemos cuidar de não cometer erros ao tratarmos de educação. Da mãe, então, se exige muito mais do que do pai, no que se refere à criação dos filhos. Por conseguinte, toda mulher, ao se casar, deveria estar apta para bem cumprir a sua missão de mãe e educadora por excelência.

A ela sempre compete a educação dos primeiros anos e, como nestes anos é que se forma quase que em definitivo o futuro homem, ser-lhe-á dada a responsabilidade do sucesso ou insucesso de seus filhos. Pertencem quase que somente a ela os louros da vitória, quando os seus filhos se tornam adultos felizes, realizados, como lhe pertencem também, quase que exclusivamente, as decepções, quando seus filhos se tornam adultos infelizes ou não realizados.

Por saber de tudo isso, eu chego às vezes a acreditar que já pressentia, embora inconscientemente, que algo estranho iria acontecer na minha vida. Muito jovem ainda, quase adolescente, quando deveria ser despreocupada e feliz, eu já me interessava por todos os problemas educacionais e sofria por não vê-los equacionados e solucionados.

Em casa, éramos onze irmãos, e eu ficava, muitas vezes, prestando atenção ao comportamento de minha mãe em relação a nós, como nos educava, interessada em aprender de logo a educar crianças. Livros que tratavam de educação, de formação, sempre foram meus preferidos. Não admitia jamais a idéia de chegar um dia a ser mãe sem as qualidades, sem as aptidões necessárias para educar bem meus filhos. Paulatinamente, fui-me preparando, atualizando, para que, quando necessário, eu estivesse pronta.

Quando Sérgio nasceu parecia um desafio, vi claramente o quanto foi bom e útil ter-me preparado bem, necessitando apenas, para educá-lo, de um ajustamento emocional e psicológico.

Temos obrigação de nos preparar para bem educar todos os nossos filhos. Temos obrigação de enfrentar galhardamente e suportar sem reclamar as vicissitudes que a vida coloca em nosso caminho. Não permitamos jamais que nossos filhos, principalmente os que possuem defeitos físicos, venham a sofrer dissabores, incompreensões, por não terem encontrado fé e confiança em nós e neles próprios como pessoas humanas.

Para as mães de filhos cegos transcrevo, abaixo, uma carta que o Revmo. Pe. Thomas J. Carrol lhes dirigiu:

"Para o pai e a mãe: Existem muitas coisas que vocês precisam saber a fim de dar à sua criança a vida normal que almejam para ela. Há coisas que vocês devem saber e com as quais outros pais nunca se preocuparam. Na verdade, vocês devem conhecê-las para não se preocupar com as mesmas.

Vocês terão um grande auxilio quando se dirigirem às organizações profissionais para receber conselhos - mas certifiquem-se de que são profissionais. A maioria das pessoas neste serviço não tem outra intenção senão fazer o melhor pelo cego, incluindo sua criança. Recebam nossos conselhos, mas nunca dependam de nós - e nunca deixem sua criança depender de nós.

Lembrem-se, ela pode traçar seu caminho sem excessiva dependência se, exceto por sua cegueira, ela for normal. Vocês poderão duvidar desta possibilidade em certas ocasiões - que ela possa realmente ser normal e independente. Mas, talvez lhes ajude lembrar-se de que o autor deste livro está completamente convencido desta possibilidade.

Seu caçula poderá crescer com esta deficiência, ajustar-se a ela, viver normalmente numa sociedade de pessoas dotadas de visão e alcançar o objetivo para o qual Deus o colocou aqui.

Vocês quererão, certamente, aprender o mais que puder sobre a cegueira e seu significado total e sobre todas as possibilidades de sobrepujá-la - as já existentes e aquelas que serão desenvolvidas no futuro. Mas, mais importante é o que vocês precisam saber sobre um determinado cego -- sua criança - suas reações e sentimentos. Precisarão saber distinguir seus verdadeiros pensamentos e sentimentos daqueles que ela poderá exprimir e também daqueles que vocês possam interpretar como sendo dela e que na realidade vêm das suas próprias mentes e dos seus corações.

Isto significa que vocês, mais do que qualquer um de nós, precisa chegar a uma compreensão madura de si mesmos - porque seu ajustamento à vida e à cegueira da sua criança é muito importantes para o ajustamento dela. Mais do que qualquer outra pessoa, vocês estão envolvidos no desenvolvimento total e no futuro daquela criança; se vocês deixarem de se envolver o suficiente, ela perderá o amparo que precisa para crescer, se vocês se envolverem demais, sufocarão seu crescimento e a estagnarão.

Vocês precisarão saber qual a sua real atitude para com sua criança. (Não tirem conclusões precipitadas; certamente vocês a amam, existem outros fatores). E o que é mais importante depois disto e diretamente ligado a isto, vocês precisam conhecer as suas próprias atitudes para com a cegueira - não apenas as superficiais, mas as mais profundas.

Estas coisas podem ser difíceis para vocês aprenderem por si mesmos. Poderão descobrir algumas, possivelmente, por observar suas próprias reações quando se fala sobre cegueira, quando dizem coisas erradas, quando se compadecem em demasia de sua criança ou a rejeitam. Mas pode ser que, por mais que tentem descobrir seus sentimentos reais, não possam fazê-lo sozinhos. Se assim for, deverá haver organizações na sua vizinhança com pessoal treinado para ajudá-los. Lembrem-se disto: vocês amam sua criança, mas seu amor (se vocês forem como nós outros) é complexo e outras reações são confundidas com ele. Seria surpreendente se algumas das emoções misturadas com seu amor não tivessem relação com a cegueira.

Talvez vocês não admitam isto como um fato, mas provavelmente poderão, ao menos, admiti-lo como uma possibilidade.

Certamente concordam que (ao menos por um momento passageiro e provavelmente muito mais duradouro) a notícia da cegueira de seu filho foi um choque terrível para vocês. Não houve, talvez, um momento de verdadeira revolta com a idéia desta cegueira? E vocês não reagiram, quando a ouviram pela primeira vez, com a mesma reação que os incomoda tanto quanto a vêem em outras pessoas? Se tiveram tais sentimentos, então, talvez, tenham agora alguns momentos de culpa quando vêem outras com os mesmos sentimentos a respeito de seu filho. E possivelmente vocês ainda têm no íntimo, alguns destes. A idéia de tê-los não deve preocupá-los; é apenas humano.

Provavelmente, também haverá ainda outros sentimentos associados ao seu amor por ele. Vocês poderão reagir a estes sentimentos instintivos de choque e compaixão com os de posse, uma posse que interfere com o mais amplo desenvolvimento do amor. E, possivelmente, alguma coisa naquela criancinha que vocês sentem que todos rejeitam, os relembre de outra criança, da qual tinham a mesma impressão - vocês mesmos. Assim sendo poderão identificar-se quase completamente com ela; e, não obstante, pensar o quanto desejam dar-lhe de independência passarão grande parte do tempo protegendo-a, de uma maneira ou de outra, do mundo hostil que nunca deu, a nenhum de vocês, muito amor.

Vocês vêem a possibilidade de existir um certo sentimento confuso em seu amor? Fariam bem em se perguntar como se sentiam em relação às pessoas deficientes, antes de seu filho nascer ou mesmo de ter sido concebido.

Poderão perguntar a si mesmos, como se sentiam em relação às crianças alheias deficientes e aos seus pais. E poderão, também, perguntar-se que espécie de ambição e expectativa tinham para a criança que desejaram viesse um dia. Tudo isso faz parte do quadro agora, porque são partes da situação global dentro da qual vocês receberam a notícia traumática de que sua criança era cega.

Parte da situação, também, é a espécie de sentimentos que vocês possuíam no passado sobre hereditariedade e males hereditários. Isto é verdade mesmo que a hereditariedade nada tenha a ver com a cegueira de seu filho (e as chances são, hoje em dia, muito grandes de nada ter). Se vocês alguma vez tiveram vagas idéias sobre ''sangue mau" transmitindo-se na família; e se tiveram toda espécie de idéias sobre males; se tiveram vocês mesmos a vaga sensação de não serem bons (quando tinham 3, 4, ou 10 anos), então, tudo isto poderá ainda ser fator de perturbação, que de algum modo está incorporado no seu amor pelo seu filho.

Vocês não gostarão de encarar estas possibilidades, mas se elas existem, é muito importante reconhecê-las e sobrepujá-las. Seu esforço total deve ser na direção de um ajustamento perfeito à cegueira de seu filho, para que ele e os seus outros filhos possam também ter um ajustamento perfeito. De seu ajustamento deve surgir um amor perfeito e maduro para com ele e para com todos seus filhos, um amor que contribuirá para o crescimento e independência deles - mesmo uma independência de vocês.

É de magna importância que tenham em mente a diferença entre amor maduro e amor possessivo. O primeiro liberta, o segundo luta sempre para aprisionar e assim sendo nunca deixa nada crescer e sair. O amor possessivo nunca é um amor verdadeiro, mas um substituto neurótico para o amor, encontrado em pessoas que realmente nunca cresceram. Uma parte dele, em -algumas pessoas, é o falso martírio com o qual elas parecem sofrer enormemente pelos seus filhos mas, na realidade, estão usando tudo que podem ou fazem como um outro meio de mantê-los dependentes.

Agora devem saber, sem nenhuma dúvida, que vocês estão livres desta espécie de amor, ao menos nas suas formas mais exageradas. Estas, entretanto, existem em vários graus e, se estiverem inseguros de seus sentimentos mais íntimos, não hesitem em esclarecê-los. Se estiverem interferindo na sua adaptação a seu filho, então, quanto mais cedo forem corrigidos, melhor.

Se problemas psiquiátricos estão envolvidos, então, provavelmente, precisaram de ajuda psiquiátrica, quer seja diretamente de um especialista ou de um assistente social psiquiatra de uma das organizações para cegos. Sejam suficientemente prudentes para procurar uma ajuda psiquiátrica para a compreensão também de suas necessidades espirituais. A combinação de uma boa ajuda espiritual com a psiquiátrica talvez seja necessária para eliminar qualquer sentimento falso que ainda permaneça sobre ser a cegueira de seu filho uma forma de justo castigo divino por algo que vocês fizeram.

Não percam a coragem. Sua criança poderá crescer para uma. vida de total ajustamento com seu ambiente, amando a Deus e aos seus semelhantes (quer sejam cegos ou dotados de visão). Sua chance para isto será grandemente realçada se vocês, seus pais, forem ambos capazes de dar-lhe um amor profundo, maduro e não possessivo - um amor para ela como ela é, enquanto tentam ajudá-la a crescer para algo mais forte e mais independente, exceto em sua dependência a Deus".

Como vocês viram, não são os problemas da criança, mas os dos pais que devem ser solucionados, se quisermos dar àquela uma vida normal.


2. INFÂNCIA

A criança incapaz fisicamente, que sofreu a perda de uma das áreas da percepção sensorial, a visão por exemplo, não é uma criança "especial". Ela terá necessidade de aprender certas habilidades especiais para poder vencer alguns dos efeitos de sua incapacidade física. Uma injustiça enorme, entretanto, cometemos quando olhamos somente para o seu defeito físico e não para toda sua pessoa.

Uma criança considerada anormal pela falta de visão, tendo os mesmos sentimentos, as mesmas emoções, as mesmas necessidades das outras, encontra numa família unida e compreensível, ambiente propício para um crescimento normal e um bom ajustamento social. Para atingir este objetivo todos terão de trabalhar juntos: a família, os parentes e a comunidade.

O lar é o lugar ideal para uma criança em fase de crescimento, portanto, nós cuidamos de dar a Sérgio um lar, onde haveria sempre de encontrar muito amor e segurança. Esforçamo-nos muito para encarar o problema com naturalidade, visando a que jamais ele sentisse insegurança e frustração em nossos atos e atitudes.

Dentro deste comportamento, começamos a formação de sua personalidade.

Sérgio teve uma infância como toda criança normal. Começou a engatinhar aos nove meses, com um ano e dois meses já andava. Gostava (e eu jamais o impedi) de subir nas cadeiras, correr, andar de velocípede nas calçadas.

Era uma criança muito viva e comunicativa, dava-se muito bem com os primos e com qualquer outra criança.

Seus brinquedos sempre foram escolhidos entre aqueles que lhe serviam como auxiliares no aperfeiçoamento de sua percepção auditiva ou tátil: gaitas de boca, apitos, pandeiros, bombos, jogos de dama, de dominó. Quanto aos jogos, ele os aprendeu com muita facilidade e com o pai ou com algum menino da vizinhança jogava e quase sempre saía vencedor. Brincava de esconde-esconde com a irmã, jogava bola e se balançava com volúpia na rede. Passava muitas horas do dia brincando com uma prima pela qual tinha uma dedicação especial. Esta lhe depositava nas mãos os brinquedos que ele às vezes arremessava bem longe. Divertiam-se muito, mas em compensação seus brinquedos tinham pouca duração...

A seu pedido compramos um gravador a pilhas. Gravava tudo que ouvia em casa: o barulho da bomba, com o motor elétrico a puxar água do poço; o tique-taque do relógio da cozinha, o tilintar dos pratos, talheres, copos, etc. Ele se aprazia mais em gravar o canto dos pássaros, quando ia passear nos sítios dos tios, e levantava-se cedo para isso. Um dia chegou a gravar o barulho de formigas num formigueiro gigante. Manejava o gravador com uma facilidade impressionante.

Começara a falar com oito meses e à medida que se desenvolvia no aprendizado da fala, necessitava naturalmente de mais informações táteis e auditivas. Conversávamos com ele sempre em voz clara e corretamente; ele aprendia com alegria e sua pronúncia era bem explicada e correta.

É evidente que a criança começa a formar a imagem mental do que foi percebido pelos sentidos, antes de raciocinar e estabelecer juízos.

Sem a visão, ela não pode perceber muitas coisas, especialmente animais muito pequenos: pulgas, formigas, etc; objetos e animais muito grandes como caminhões, edifícios, cavalos, vacas; e o que está fora do alcance da visão: a lua, as estrelas, etc. Assim, terá que formar imagens mentais através das experiências táteis e auditivas, para assim formar o seu conceito a respeito do mundo que a cerca.

Seus conceitos intelectuais irão se aperfeiçoando à medida que aumentam suas experiências e o número de informações objetivas, sendo, portanto, de grande importância o desenvolvimento da linguagem e descrições claras e concisas do que foi percebido indistintamente.

Os pais e os professores dispõem de recursos, tais como experiências reais, observação das qualidades percebidas pelos sentidos remanescentes (odor, consistência, paladar, formas, dimensões, etc.), para o desenvolvimento intelectual da criança cega, a fim de que ela não venha a usar palavras sem significação. Por exemplo: falar a um cego congênito sobre o pôr do sol em termos de experiências visuais, sem que ele tenha tido a oportunidade de sentir em plena natureza os efeitos de seus raios mais brandos, do seu tênue calor, seria expressar-lhe um fato real, mas sem significação para ele.

E é nisso que consiste o perigo do verbalismo: dar-lhe conceitos abstratos, sem experiências concretas. Evitaremos esse grande problema dando ao deficiente visual experiências concretas, para que ele estabeleça seus conceitos, bem próximos da realidade.

Deixemos que a criança cega "veja" o mundo com seus objetos e pessoas através do tato, da audição, do paladar, do olfato e que as imagens mentais que ela formar sejam derivadas desses sentidos, e não de imagens visuais nossas fornecidas a ela.

Procuramos dar sempre ao nosso filho informações precisas e úteis e por isso necessário se tornava que freqüentemente lhe estivéssemos falando. Era naturalmente pelo tom de minha voz que ele "via" e sentia amor, ternura, repreensão. Era pelo tom da voz das pessoas que "via" e sentia aprovação ou desaprovação a seus atos, de aceitação ou não de sua pessoa.

Ao nos dirigirmos a um cego, ou ao mantermos com ele uma conversação, precisamos estar sempre lembrados de que as nossas expressões fisionômicas não são vistas por ele, e que somente a voz com as suas inflexões, dar-lhe-á uma compreensão exata daquilo que lhe queremos dizer ou transmitir.

O pai tinha uma paciência muito grande em descrever-lhe com todas as minúcias os objetos que ele tocava ou os sons que ouvia. Neste último caso, para fazer melhor associação dos objetos com o som que esses produziam, dava-os na sua mão para ser apalpados, examinados e fazia ainda uma brincadeira: arremessava-os ao chão, um objeto de cada vez, e ele, pelo som, descobria que objeto era aquele.

A sua percepção auditiva se desenvolvia muito bem e, às vezes, nos parecia até surpreendente. Pequenino ainda, gostava de assistir a filmes de desenho animado pela televisão. Durante o filme íamos-lhe descrevendo todas as cenas, e se acontecia assistir a uma reprise, ele sabia, pela música, o que representava exatamente cada cena.

A sua percepção olfativa desenvolvia-se também de maneira satisfatória. Quando saíamos a passear a pé ou de automóvel, ele distinguia tudo pelos odores, e acertava quando passávamos por um jardim florido ou por determinadas ruas por seus odores característicos que só ele sentia.

Em casa, quando me preparava para sair, ele, ao se aproximar do meu quarto, já perguntava: "Para onde a mamãe vai?" Sentia de longe o perfume do pó de arroz, da água de colônia. Tateando minhas roupas sabia que eu vestia um vestido novo e pelo pisar distinguia o som de meus sapatos de salto alto. "Como a senhora está bonita!", dizia ele.

Dentro de casa locomovia-se com facilidade. Mentalmente, gravava todos os lugares dos móveis e, quando desejava se aproximar deles, ia direto, sem titubear. Se eu efetuava alguma modificação na arrumação dos mesmos, necessário se tornava avisá-lo e levá-lo pela mão para verificar as mudanças, mas isso apenas uma vez, e já ele entrava novamente no ritmo. Era um menino muito ativo, não sabia ficar parado um instante sequer, e como correr para frente e para trás era mais
difícil ele "corria", fazendo círculos sempre no mesmo lugar. Parava para ouvir os ruídos ou para sentir os odores e para isso tinha um jeito todo particular: abaixava a cabecinha, virando-a um pouco para um dos lados e automaticamente colocava a sua mão esquerda no olho esquerdo. Quando reclamávamos que aquela postura poderia lhe ser prejudicial, ele respondia que daquela forma se concentrava melhor.

Cuidamos para que ele não adquirisse 'maneirismos', isto é, hábitos e posturas inconvenientes e até prejudiciais à sua formação física e mental.

Com Sérgio aprendemos que é preciso dar a todas as crianças um âmbito mais vasto para as suas experiências sensoriais. Tem muita razão a professora Claire L. Jackson, quando diz que todas as crianças necessitam de boas experiências, sendo preciso que essas experiências sejam fundadas na realidade objetiva. Todas elas precisam ter a oportunidade de fazer e de sentir, de explorar e de experimentar. Todas elas necessitam ter em torno de si adultos que as auxiliem a interpretar e correlacionar. A criança que não pode ver tem necessidade de experiências mais diretas e completas, sempre que possível. Essa necessidade da criança cega nos torna plenamente conscientes do valor de métodos de aprendizado também para as demais crianças. 'Não pegue nisso!" - é um tabu cultural que afasta a criança da realidade e a impede de aprender, acrescenta a professora com muita propriedade.

Diz ainda a mesma professora: "O grande objetivo, que se deve procurar alcançar com todas as crianças, é fazer com que elas desenvolvam a sua autoconfiança e auto-segurança. Todas as crianças precisam formar um bom conceito a respeito de si mesmas para poderem "gostar-se". Toda criança necessita de oportunidade para exercitar a independência pessoal até onde já esteja preparada e que lhe seja permitido fazer tudo aquilo que o seu corpo e o seu espírito desejam. Deve ser capacitada para tornar-se "ela mesma".

A atitude da criança com respeito a si mesma depende quase inteiramente da atitude que tomam em relação a ela as pessoas que a cercam. Sentem-se estas pessoas cheias de temores em relação a ela? Sentem-se ansiosas? São capazes de gostar dela, mesmo quando se comportam mal? Encaram-na como um bebê? Exageram a importância de sua deficiência e de suas limitações, em lugar de confiarem na sua capacidade? Evitam encarar face a face as suas reais limitações ou não a ajudam a viver com essas limitações? Em outras palavras: têm fé nessa criança? Têm a consciência de que a cegueira em si não a incapacita, mas de que os sentimentos que se possam produzir na criança com relação à sua deficiência podem incapacitá-la?

Na escola maternal a criança pode obter experiências muito proveitosas. Terá oportunidade de se enganar sem que por isso a julguem tola. Aqui, como em sua própria casa, ser-lhe-á permitido assumir, compartilhar e conferir responsabilidades: "Deixe-me ajudar", diz a criança. "Eu vou limpar esse leite derramado". "Eu quero passar os bolinhos". "É a minha vez". Coisas assim originam na criança um entranhado desejo de ser útil. O fato de saber que os outros contam com a sua ajuda pode enchê-la de alegria e orgulho. A criança cega precisará muitas vezes da ajuda dos outros, e por isso é importante que lhe sejam dadas responsabilidades de acordo com a sua idade e experiência, das quais possa se desincumbir a contento. Os pais devem, através de sua apreciação honesta, fazer com que estas crianças compreendam a importância tanto da ajuda que recebem, quanto das responsabilidades de que compartilham. As professoras das escolas maternais podem também fazer outro tanto, de maneira que a criança possa se "mexer" à vontade e se desenvolver normalmente.

Um dia um garotinho disse algo a respeito de si mesmo e o que disse é realmente importante, pois expressou os seus sentimentos a respeito de sua própria pessoa.

Trata-se do pequeno Earl. Este, depois de uma manhã movimentada e alegre, disse enquanto descansava estirado na grama: "Estou contente comigo... Gosto de mim!~... E é isto que importa!" Isto marcou o inicio de sua verdadeira independência. Embora não possa ver "com os olhos" não será de maneira alguma incapaz. Sentir-se-á livre, livre para amar os outros, e livre para enfrentar qualquer realidade, por mais dura que seja, porque formou um bom conceito interior a respeito de si mesmo."

Demos sempre a nosso Sérgio as motivações, criamos as situações e aproveitamos as oportunidades, a fim de que ele pudesse treinar bem os seus outros sentidos, para aumentar a eficiência dos mesmos e conseguir assim maiores benefícios para si próprio.

Dizem os entendidos que não existe o chamado "sexto sentido" do cego, que não existe nele maior agudeza dos sentidos do que nas pessoas que enxergam. Em várias experiências feitas entre pessoas cegas e videntes ficou evidenciado que, de maneira geral, não possuem aquelas os sentidos do olfato, do paladar e do tato mais aguçados do que estas.

É necessário que se faça distinção entre a agudeza dos sentidos e a eficiência dos mesmos. Podemos encontrar um aumento na eficiência dos sentidos, mas para isso temos uma dupla explicação: provém ele do resultado da concentração do treinamento, de um autotreinamento e da experiência.

O cego precisa desenvolver bem, através de treinamento e experiências objetivas, os seus sentidos remanescentes e ter confiança neles, para facilitar a recepção e apreensão do que esses lhe podem transmitir.

Nós, que dependemos em excesso da visão, só acreditando naquilo que vemos, temos uma tendência natural para desconfiar de tudo aquilo que nos vem através dos outros sentidos, duvidando das informações e suspeitando da sua validade. Achamos que o cego possui qualidades excepcionais, quando o que de fato acontece é que ele, por necessidade, "usa" os outros sentidos e os treina e aperfeiçoa, adquirindo assim mais facilidade para viver uma vida normal.

Devíamos treinar os nossos outros sentidos, tornando-os eficientes, para não exigirmos demais da nossa visão, provocando muitas vezes por excesso do seu uso, doenças graves e às vezes a cegueira.

O traço marcante da infância de Sérgio foi sua identificação com a música. Desde os primeiros anos de vida ele se deleitava, se transformava ao ouvir os sons de uma melodia. Passava horas seguidas junto ao rádio, batendo numa bandeja de alumínio ou na porta do guarda-roupa acompanhando qualquer ritmo musical.

É pensamento corriqueiro que todo cego é naturalmente um músico, que tem tendências inatas para tocar piano, violão ou qualquer outro instrumento musical. Puro engano: em testes realizados em escolas especializadas, ficou provado que a proporção de cegos com aptidões musicais é mínima. Porém, para alegria nossa e dele próprio, Sérgio estava nessa minoria, pois nasceu músico. Ele possuía dentro de si, no seu espírito, a música. Vinha de dentro para fora e se expandia na superfície, tornando-o imensamente feliz. Que melhor derivativo para uma pessoa cega, de grande vida introspectiva, com um grande poder de concentração, que amar e viver a música? Que bom seria se todos os cegos do mundo pudessem tocar e se dedicar a um instrumento de sua escolha e encher suas vidas, dando vazão aos seus sentimentos através da música! Quanto bem lhes faria!
Para Sérgio, uma das coisas boas era ir conosco fazer visitas aos nossos amigos. Essas visitas se tornavam para ele um prazer muito maior se em alguma das casas visitadas houvesse um piano. Para este se dirigia incontinenti e mesmo sem nenhum aprendizado já tocava alguma melodia. Mais adiante voltarei a falar neste assunto.

Como vêem, sua infância transcorria tranqüila e feliz. Dentro de suas limitações, ele cumpria muito bem as fases do seu desenvolvimento e eu me sentia feliz porque, à medida que se passavam os dias, os anos, verificava que o processamento de sua adaptação ao mundo dos videntes transcorria normalmente, concorrendo para isso a educação acertada que estava recebendo de seus pais.

O tratamento dispensado a ele era igual ao da irmã: na hora de castigar, castigava-se, na hora de elogiar, elogiava-se. Nunca me deixei levar pelo coração, apiedando-me por ele ser cego, quando necessitava corrigi-lo de uma falta ou repreendê-lo por uma travessura inadequada.
Sempre procurei vê-lo no seu todo, isto é, vê-lo antes de tudo como uma criança sem a visão e não antes de tudo ver a sua deficiência visual, para fazer disto motivo para não corrigi-lo quando necessário.

Sempre procurei vê-lo como uma criança com todas as suas características peculiares, necessitando de um pouco mais de apoio e compreensão para bem se desenvolver e superar as suas limitações, sempre me lembrando de que logo mais ele seria um adulto, necessitando portanto ser bem-educado desde aquela época. Jamais lhe disse, mesmo quando estava em dificuldades: "Você não pode fazer isto porque é cego". Jamais fiz por ele coisas comuns da vida diária, deixando-o aprendê-las por si mesmo, ou auxiliando-o. Com paciência e perseverança, fui lhe ensinando a praticar sozinho, de maneira correta, a higiene corporal, a vestir-se, a calçar os sapatos (inclusive dando os laços dos cadarços) e a comer. Cuidei também da sua postura ao ficar em pé, ao sentar-se, ensinei-o a andar em casa, a usar bem as mãos, a fim de perceber todos os empecilhos, evitando cair ou tropeçar.

Seu relacionamento com a irmã não foi difícil, pois a preparamos psicologicamente, para evitar que ela, mesmo como criança que era, se comportasse de maneira incorreta na convivência com o irmão.

Fizemos aos poucos chegar à sua percepção que seu irmão não via, como ela, o mundo, as coisas, com os "olhinhos". Que para ele, "ver" era ouvir os sons e tocar os objetos. Principiamos logo o ajustamento entre os dois, fazendo-a aceitá-lo tal como era. Nos primeiros anos ela não entendia a diferença que havia entre eles e com ele brincava normalmente. No entanto, à medida que crescia em idade e discernimento, ela foi percebendo a diferença existente entre eles e não gostou. Ficava constrangida ao brincar com ele e se furtava em acompanhá-lo nos passeios. Notávamos que ela sofria, assistindo o modo como as pessoas estranhas se dirigiam ao irmão, usando palavras de piedade e compaixão.

Ficamos preocupados e procuramos esclarecê-la de que as pessoas de uma maneira geral reagiam daquela forma, quando viam Sérgio, levadas por um sentimento natural e humano de compaixão ou rejeição, sentimentos estes que ela mesmo, sem o saber, sentia, quando se negava a brincar ou a levar o irmão a passear. Ela, pouco a pouco, foi assimilando o que lhe dizíamos e, com a convivência diária, verificando que o irmão lhe era igual, passou a tratá-lo de modo correto. Juntos brincavam, passeavam e se amavam muito.

E Serginho, como se sentia, sendo ele o centro, ou melhor o alvo de todas as atenções? Pelo seu comportamento, pelas suas reações, notava-se perfeitamente que não se apercebia do que se passava à sua volta e suas atitudes eram as de uma criança normal. Depois, ele foi também tomando conhecimento de que não era igual aos outros porque não via, não enxergava. Perguntava: "E o que é ver?" Como poderá entender o que é "ver" um cego de nascença? Resposta difícil de ser dada e incompreensível para ele.

Emocionalmente preparado, não se preocupou com a diferença que possuía, não ficou chocado, traumatizado, continuou sendo a mesma criança feliz e despreocupada. Nunca se queixou ou reclamou da falta de visão. Com a melhor boa vontade aprendia tudo o que se lhe ensinasse relacionado com a sua conduta de criança diferente. Interessava-se em conhecer tudo sobre o mundo e as pessoas.

Um dia, notamos que havia uma coisa de que ele não gostava, chegando a se zangar: uma pessoa, ao vê-lo, revelou por meio de palavras, compaixão e sofrimento. Com ares de ofendido, respondeu: "A cegueira dos olhos não vale nada, muito pior se eu fosse cego de espírito". Aquele momento foi de alegria para nós, porque ele dava uma demonstração de que se aceitava como era.

E das minhas meditações e vivências, eu concluía que todos devemos mudar a nossa mentalidade com relação ao cego. Temos que crer no grande potencial que é a criatura humana, no seu todo, e não nos devemos deixar abater, não nos devemos deixar levar pela descrença na sua incapacidade, pelo fato de ela possuir um defeito físico. Nós geralmente não compreendemos "os diferentes de nós" por nossa própria inquietude e insegurança. Precisamos saber que, quando uma criança cega é olhada com temor e rejeição, dificilmente poderá superar o efeito nocivo de tais preconceitos. Ela formará de si um conceito confuso e inadequado se verificar que os outros não lhe emprestam o devido valor como uma pessoa. Portanto, ao nos depararmos com uma criança cega, contenhamos os primeiros impulsos de comiseração e rejeição, reflitamos que muitas vezes uma só palavra nossa poderá destruir algo da maior importância que ela possui: a confiança em si mesma.

Diz o Dr. Richard Kanner, Consultor Psiquiátrico da Fundação para o Livro do Cego no Brasil: "Precisamos crer na capacidade de compensação humana. A própria natureza nos dá exemplos disto: se nós tirarmos um rim de um homem, o outro aumentará de volume e passará a suprir a função dos dois. Mesmo quando um órgão é retirado parcialmente, a outra parte após algum tempo substitui a parte retirada. Parece, porém, que nós temos uma certa tendência de complicar a situação do ponto de vista psíquico, entregando-nos a situações de depressão, que não correspondem à realidade. Voltando à biologia, nós vemos que quando é retirado o rim de um doente, durante um certo tempo, este será submetido a uma dieta que dará tempo ao outro rim para assumir o duplo papel, mas depois esse doente passará a comer normalmente. É o que nós costumamos fazer com a pessoa com deficiência física: nós mantemos a mesma em eterna dieta espiritual, com graves repercussões para todo o processamento de adaptação e readaptação".

Partem do coração e do desejo de ajudar a alguém todas estas coisas que estou dizendo sobre a educação dada a Sérgio. Pode parecer a algumas mães que houve de minha parte um preparo especial para a batalha. Não, não houve. Necessitei, sim, de muita coragem e persistência para não fazer de sua cegueira uma tragédia e, no mais, agi como toda mãe que tem obrigação de educar bem os seus filhos.

Por ele ser cego, jamais eu me perdoaria se fracassasse como mãe e educadora por excelência, responsável pelo seu preparo para o futuro, não o colocando no seu devido lugar no mundo dos videntes; jamais eu me perdoaria se um dia o visse desanimado e triste, sem conseguir superar suas próprias dificuldades e limitações, por omissão ou descuido de minha parte.

E para dar-lhe tudo isso, necessário se fazia um pouco mais de esforço para compreender sua deficiência pois, no mais, ele era uma criança como as outras, bastando, portanto, um tratamento igual.

Vale ressaltar que os meus filhos não contavam, como não contam hoje, com a minha permanência em casa o dia todo, pois sou funcionária pública federal.

Comecei a trabalhar ainda solteira e após o casamento, apesar de meu marido não gostar "que a minha mulher trabalhe fora", concordou em que eu continuasse trabalhando.

Pertencemos os dois à mesma repartição e ele também como jornalista, secretariava um jornal dos Diários Associados.

Fazemos parte deste grande grupo sócio-econômico que é a classe média; como a maioria, vivemos de ordenado e, para o padrão de vida que desejávamos manter, era necessária para a elevação do orçamento familiar, a minha ajuda, que nunca neguei.

Na parte da tarde ficavam meus dois filhos na companhia de uma tia minha, que veio residir conosco em 1951, e de uma empregada. Para ela os meus filhos são como netos, a quem dedica amor e carinho, mas este amor e este carinho são dados de forma exagerada e possessiva. Por possuir pouca instrução, não compreendia e não se interessava por métodos de educação. Lembro-me de que, quando foi constatada a cegueira de Sérgio, ela ficou inconsolável e, como a maioria dos parentes, deixou-se levar pela descrença e compaixão. Sendo permanente o seu contato com as crianças, precisei tomar sérias providências a fim de que ela não prejudicasse com seu comportamento e sua ingenuidade, a educação que Sérgio estava recebendo. Aliás, quando ela veio para nossa casa, já havia eu definido sua posição: seria uma querida e estimada pessoa da família que fiscalizaria, na minha ausência, a casa e as crianças, mas jamais eu lhe delegaria competência com relação à educação e à formação dos meus filhos, trabalho que eu e meu marido queríamos para nós.

Não permitiria sua interferência quando se tratasse de resolver problemas relacionados com a família. Quando me ausentasse de casa para o trabalho, ou para viagens, ela seria a guardiã de nossos filhos, mas nunca minha substituta executiva.

É certo que muitas vezes ela fugiu desse comportamento, mas os meninos, com os nossos esclarecimentos, logo a compreenderam e aprenderam a estimá-la sem se deixarem envolver pelas suas atitudes. Sérgio, então, não gostava, não admitia de forma alguma os seus mimos exagerados, os seus cuidados excessivos: rebatia-os com firmeza e às vezes até com aspereza, pois ele parecia sentir naquilo tudo mais amor-compaixão e amor-egoísmo.

Fiz com que ambos entendessem bem que eu necessitava trabalhar e que esperava deles consideração e obediência às minhas ordens e recomendações, principalmente durante minha ausência.

Meu marido, como jornalista, aproveitou várias oportunidades de viajar pelo Brasil e para o exterior e eu quase sempre o acompanhava despreocupada. Ao regressar, sempre encontrava tudo em ordem, os dois no mesmo ritmo de vida.

Eles não me decepcionaram. Pelo contrário: corresponderam à minha expectativa. Minha filha sempre foi muito estudiosa e cumpridora dos seus deveres escolares, devendo terminar este ano o curso normal. Uma das primeiras da classe, desde o curso primário era promovida por média. Com 18 anos, é uma moça ajuizada e compreensiva, e o mais importante: é minha amiga. Mantemos nossos diálogos e ela me atende e me entende, na solução de seus problemas de jovem que vive a época atual. Meu filho Sérgio também é um jovem bem comportado, amigo e compreensivo que acreditou em seus pais sem reservas e nos permitiu fazer dele um rapaz sem temor do presente, esperando do futuro coisas maravilhosas. Está cumprindo bem igualmente os seus deveres escolares, sem nos dar preocupações.

E agora temos mais Eveline, que nasceu após 13 anos do nascimento de Sérgio. Conta atualmente 4 anos de idade, bonita, esperta e inteligente. Com meu marido formam a minha vida, que graças a Deus transcorre feliz.

Os parentes, os amigos e as pessoas que conhecem meus filhos os citam como exemplos de jovens bem educados, bem criados, e eu fico muito vaidosa, é claro...

Muitas vezes eu os ouço dizer: "Mamãe, nós somos muito felizes na vida pela família que possuímos, pela união e compreensão que existem entre nós. Por tudo isto nós agradecemos muito à senhora e ao papai".

Por viver a vida de mãe-funcionária é que eu discordo plenamente de muitas mães que possuem filhos mal-educados e justificam-se a si mesmas apontando como responsável por isso a sua ausência do lar. Não são absolutamente algumas horas, ou mesmo o dia que a mãe passe fora de casa trabalhando, responsáveis pelo mau comportamento e má formação de seus filhos e sim sua incompetência ou seu comodismo.

O que precisam é tomar consciência de que trabalhando fora têm que dar muito mais de si para que haja uma perfeita conciliação entre o seu lar e o trabalho; precisam e é fácil, numa auto-análise, descobrir que são exatamente sua falta de responsabilidade, sua incapacidade de dirigir, sua pouca vontade de educar os filhos
ou sua omissão, as únicas culpadas da falta de educação de seus filhos.

Somos nós, os pais, os únicos culpados dos erros dos nossos filhos, devemo-nos lembrar disso.

Nós, que trabalhamos fora de casa, precisamos dar mais amor, mais energia, mais firmeza de caráter aos nossos filhos nas horas que passamos em casa, para que eles sintam sempre a nossa presença, mesmo quando estamos ausentes.

E para que possamos dar tudo isso, necessitamos de mais coragem, de mais trabalho e de mais disposição.

Não resta dúvida de que ser dona de casa, mãe e ainda funcionária pública, comerciária, operária, ou qualquer outra função, exige de nós uma soma muito maior de sacrifícios, mas, se quisermos, poderemos executar bem todas estas funções, concomitantemente, porque eu acredito em todas nós e sei da nossa capacidade para enfrentar as dificuldades, o trabalho dobrado.

Para as mães que estejam vivendo dificuldades no tratamento com crianças cegas na 1ª infância, vai aqui mais um trecho do livro Cegueira, do Revdo. Pe. Thomas J. Carrol. Homem de grande experiência e profundo conhecedor do problema do cego, nesse livro ele aborda também com profundidade a perda da visão na idade adulta. Para as mães do cego congênito ele dá a seguinte orientação:

"O primeiro é o perigo do berço móvel e do quadrado. Nenhum item no lar pode interferir mais no desenvolvimento sensorial, progresso informativo e crescimento normal da criança cega do que aqueles. Quando seu berço ou quadrado são levados de um canto para outro da sala, de um quarto para outro e para fora, à criança não é dado nenhum meio de orientar-se. Este pequeno mundo que ela sente à volta de si é raramente duplicado na mesma relação com os sons, os quais ela gradualmente aprende a reconhecer e identificar, ou com os aromas, com a sensação do sol entrando pela janela, com a brisa pela porta, ou com o calor de um aquecedor. O quadrado, particularmente, não só impossibilita a orientação, é também uma solitária cela de confinamento, privando a criança cega de todas as oportunidades para exploração necessária, se ela deve conhecer o mundo exterior.

O berço da criança deve, portanto, ser fixado em um lugar, pregado ao chão, se necessário, para impedir que a própria criança se mova. O mesmo quanto ao quadrado (ou cadeiras altas, ou quaisquer destas comodidades). Mas, em geral, seria melhor se a criança cega nunca fosse confinada a nenhuma dessas coisas, exceto na hora de dormir.

Oportunidades para exploração não devem cessar com a idade do quadrado, mas devem ser continuamente desenvolvidas e expandidas. O constante esforço da criança para receber estímulos, deve ser encorajado, não apenas através da sua própria exploração, mas satisfazendo suas necessidades quando são expressas nas infindáveis e embaraçosas perguntas, típicas das crianças da sua idade. Deve-se permitir à criança cega gatinhar na idade de gatinhar, perambular na idade de perambular e trepar na fase de trepar e sua curiosidade nunca deve ser sufocada, mas antes estimulada de todas as maneiras".


3. OS PARENTES, A COMUNIDADE, A ESCOLA

Os outros membros da nossa família, avós, tios e primos, infelizmente, no início, não nos ajudaram positivamente no nosso trabalho relacionado com o ajustamento de Sérgio. Quase todos se deixaram levar pela compaixão, pelo sofrimento, pela descrença e, muitas vezes, eu ficava apavorada, por temer que o comportamento, as atitudes deles prejudicassem ou anulassem o nosso trabalho construtivo. Foi esse também mais um aspecto do problema que nós tivemos que enfrentar e tratar objetivamente, a fim de que Sérgio não pressentisse em suas palavras ou gestos algo diferente daquilo que recebia de seus pais. Agiam eles bem intencionados, é bem verdade, mas nem por isso deixavam de constituir um fator que poderia influir negativamente no processo de ajustamento de Sérgio.

Se em casa ele tinha um ambiente isento de preconceitos, temores, piedade, com fim de dar-lhe estabilidade e autoconfiança, na casa dos parentes recebia muito carinho, mas como este carinho era mesclado de piedade e comiseração, poderia advir-lhe dessa diferença de tratamento um desequilíbrio emocional, prejudicando a formação do conceito que ele estava aprendendo a fazer de si próprio e dos outros.

Procurava então com o meu comportamento, com as minhas atitudes, com o tratamento que eu dava ao meu filho, mostrar aos nossos parentes a minha confiança de que num futuro bem próximo ele seria um jovem bem equilibrado, livre de complexos e auto-suficiente.

Com o passar dos anos, verifiquei, com satisfação, que eles constatavam que tinha base a minha confiança graças às demonstrações do bom desenvolvimento mental de Sérgio, e passaram a acreditar nele como pessoa humana, esquecendo, como seus pais, a sua cegueira. E colaboraram, principalmente, os tios mais jovens e os primos.
E a nossa comunidade que ajuda nos deu? Nenhuma. Não dispunha ela, como não dispõe até hoje, de meios para ajudar aos pais e professores na solução dos problemas educacionais e sociais dos seus filhos excepcionais.

No norte e nordeste do Brasil a incidência de deficientes visuais atinge grandes proporções. São, no entanto, infelizmente, as regiões mais desprovidas de meios para educá-los, instruí-los, habilitá-los ou reabilitá-los.

Em Fortaleza, capital do Ceará, existem apenas dois estabelecimentos no gênero que, apesar dos ingentes esforços dos seus dirigentes, não possuem os requisitos necessários para atingir seus objetivos: dar aos cegos todas as condições necessárias para enfrentar a vida, independentemente, como cidadãos prestantes.

Esses estabelecimentos são o Instituto de Cegos do Ceará, dirigido pelo oftalmologista Dr. Hélio Góes Ferreira, e o Educandário Padre Anchieta, dirigido pelo Professor José Esmeraldino Vasconcelos que, sendo cego, é um exemplo de força de vontade, mantendo, apesar de todas as dificuldades, a sua casa de ensino. O primeiro estabelecimento funciona mais como asilo, abrigando muitos cegos (crianças e adultos), vindos de vários municípios cearenses que recebem assistência de pessoas dedicadas. Funcionam aí escola primária e de alfabetização de adultos. O segundo é uma escola particular, onde as crianças cegas podem fazer o curso primário, já que o seu diretor cego sabe o alfabeto Braille. A maioria dos alunos é de crianças videntes, porque as dificuldades de locomoção e de dinheiro não permitem que crianças cegas a freqüentem.

Ambas, no entanto, contam apenas com o amor e a dedicação dos seus diretores, professores e auxiliares, pois não dispõem de quase nenhum material didático e pessoal especializado.

A falta de escolas e a ausência de professores que tenham pelo menos conhecimento dos caracteres Braille, juntas à incompreensão do povo acerca do cego, concorrem sobremaneira para a impossibilidade da integração do cego no mundo dos videntes. É uma tristeza a evidência desses fatos: "É cego, não pode trabalhar". "É cego, não pode estudar". "É cego, não pode casar, porque não pode sustentar a família". Isso comumente se ouve por aí em fora, enquanto que a grande barreira entre nós e os cegos se torna cada vez mais inacessível, mais intransponível. Como é doloroso isto!

Atualmente se verifica uma arregimentação maior, em torno dos problemas do cego. Em muitos houve uma mudança de mentalidade, um grande número de pessoas já se interessa por eles, mas muita coisa ainda precisa ser compreendida e esclarecida, muita coisa ainda precisa ser feita para que possamos atingir o ideal: dar ao cego, o mundo que não pertence só a nós, mas a ele também.

Vejamos o que nos diz o Revdo. Pe. Thomas de como desenvolver a compreensão do público acerca dos cegos:

"Acredito, de fato, que é preciso fazer um imenso esforço no sentido de desenvolver a compreensão do povo acerca dos cegos. Creio, porém, convictamente, que, antes de tudo, precisamos desenvolver a compreensão entre nós próprios que trabalhamos para os cegos.

Já é tempo de examinarmos cuidadosamente a opinião generalizada, segundo a qual a cegueira é uma deficiência de pequena importância. Já é mais do que tempo de nos afastarmos desta idéia errada. chegou o momento em que todos nós, as obras sociais, os que trabalham com os cegos, todos, enfim, encaremos face a face essa deficiência para analisá-la com realismo. Sei que muitos já conseguiram fazê-lo; não é a estes que estou me dirigindo. Quero apenas dizer que todos nós precisamos nos empenhar nessa tarefa, ao invés de nos furtarmos a ela, alegando não ser a cegueira, afinal de contas, tão ruim assim.

Quando encaramos face a face a cegueira, quando avaliamos devidamente a sua importância e o seu significado, só podemos chegar a uma conclusão: a cegueira é uma deficiência grave e acarreta múltiplas conseqüências: uma experiência dura, frustradora e traumática. Se chegarmos a nos pôr de acordo quanto a este ponto, estaremos capacitados para começar a edificar nossa compreensão comum.

E é bom que assim seja! Mas, é justamente aqui que começam os nossos desacordos. E aqui nos deparamos novamente com aquilo a que me referi como sendo o dilema do trabalho com os cegos. Chegamos a um ponto no desenvolvimento do nosso raciocínio em que se torna imprescindível fazer uma escolha.

Ao terminarmos nossa análise sobre a cegueira, quando já a temos encarado na sua totalidade e nas suas características, quando reconhecemos os possíveis efeitos destrutivos que ela acarreta, aí então poderemos chegar à conclusão de que não há ajustamento possível a ela. A única decisão que poderíamos tomar seria a de construir um pequeno mundo para os cegos - dotando-o de algo que se assemelhe à felicidade - uma vez que tenhamos por impossível a integração deles no mundo das pessoas de visão normal. Poderemos então continuar a bater carinhosamente nas costas dos cegos, a dizer-lhes que conservem a cabeça erguida e que encarem a vida com um sorriso. Nós lhe diremos que, na realidade, as coisas não são tão ruins assim - embora, inteiramente, não acreditemos nisso, como também não esperamos que eles acreditem. Insistimos em que sejam educados em conjunto e que juntos trabalhem e se recreiem. Consideramos pois que devem viver juntos e juntos envelhecerem - é de estranhar, porém, que, apesar dessa mentalidade, não os encorajemos a se casarem entre si. Esforçamo-nos para mimá-los, para nos assenhorearmos deles e para torná-los cada vez mais dependentes de nós.

Avaliamos o sucesso de nossas obras sociais, não pelo número daqueles que deixam de precisar de nós, mas pelo dos que continuam sempre a nos procurar.

O que geralmente procuramos obter para os cegos é aquilo a que poderíamos chamar "benefícios"; pleiteamos em seu favor aquilo a que poderíamos chamar de "legislação de classe". Em tais casos, quando somos cegos, consideramo-nos uma exceção entre os demais, um verdadeiro "homem que se fez por si". Esta situação culmina quando nos apresentamos diante do público formado por pessoas videntes e insistimos com elas em que os cegos devem ser considerados como indivíduos normais.

Esta é uma das alternativas...

Por outro lado, podemos analisar o handicap da cegueira considerando-a múltipla, traumática e devastadora, chegando, porém, a uma solução diferente. Podemos lhes apresentar nossa firme convicção de que, embora a reorganização seja difícil, ela não é impossível - que pode ser realizada, e que pessoas cegas a estão realizando todos os dias. Mais ainda: que o único ajustamento que poderá proporcionar felicidade a uma pessoa cega será aquele que ela conseguir realizar dentro do mundo das pessoas de visão normal. Mais ainda: que nossa tarefa consiste em ajudar as pessoas cegas com verdadeiro espírito de compreensão e com a assistência especializada necessária para que se desenvolvam fortes de corpo e de espírito, para que vivam como membro ativo e participante da sociedade dos que vêem.

É óbvio, portanto, que a assistência deve ser proporcionada aos indivíduos cegos através de profissionais especializados em cada ramo de trabalho ligado a essa deficiência. Quanto aos voluntários, estes não devem ser considerados como escravos nem como proprietários, mas funcionar unicamente como se fossem "olhos substitutos". Se os senhores encaram a cegueira desta forma devem, necessariamente, repelir qualquer medida que tenha por fim segregar e mimar os desprovidos de visão. Devem reexaminar tudo quanto estão fazendo e pretendem fazer para verificar se a cegueira é o motivo real do seu trabalho ou se a verdadeira razão reside em qualquer necessidade ou desejo de sua parte de arrancar as pessoas cegas das áreas sócio-econômicas - sem que, porém, este esforço signifique qualquer apoio ao movimento geral de luta contra as sanções econômicas e sociais.

Esta é a segunda maneira de encarar o nosso problema; quando, pela primeira vez, tomamos este caminho, isto significa para nós um recuo difícil e muitas vezes penoso de todas as áreas em que antes procurávamos obter privilégios especiais para os cegos.

Este é, pois, o dilema, muito simplificado como acontece com todos os dilemas: e eu conheço o modo clássico de encarar um dilema. Aqui, mesmo quando tenhamos removido todas as simplificações, teremos ainda de nos defrontar com uma escolha muito mais difícil.

Exigir que alguém faça essa escolha, é exigir demais; seria não contar com o obstáculo constituído pela natureza humana. E isto é tanto mais verdadeiro, quando se deseja escolher o segundo caminho. O obstáculo da natureza humana se apresentará para muitos de nós. Não estou me referindo aos exploradores, como, aliás, já lhes tenho dito. Não estou, tão pouco, falando dos hipócritas que dizem uma coisa mas acreditam em outra, de acordo com a qual agem. Falo de nós mesmos, os fracos seres humanos, nem sempre certos do terreno em que estamos pisando, sabendo muitas vezes uma coisa, mas sentindo outra muito diferente. E quando falo em "interesses velados", não estou pretendendo ser rigoroso. Posso apenas esperar que aceitem a minha definição que não se destina a pessoas egoístas que apenas defendem seus empregos - mas àqueles que se acham tão encaixados num trabalho de equipe, ou pior do que isso, na edificação de alguma coisa, que se forçaram a si mesmos a acreditar em todos os setores do seu programa. E quer tenha sido boa, quer não, de início, a parte essencial do seu programa, são incapazes de chegar a uma reavaliação verdadeiramente objetiva, à luz das necessidades atuais.

E tenhamos bem em vista a mesma definição, porque é praticamente impossível em qualquer obra social que haja atuado por determinado espaço de tempo (e em algumas que têm atuado por um tempo muito breve) não haja certos programas que reflitam "interesses velados" (mesmo quando esses interesses sejam apresentados apenas pelo nosso orgulho pessoal, o qual nos impeça de admitir que poderíamos ter errado e que teria sido melhor trilhar caminhos novos).

Volto agora à minha afirmação anterior de que nos é impossível estabelecer algo que se assemelhe a um programa de relações públicas, com objetivo de desenvolver a compreensão do público acerca dos cegos enquanto não tenhamos desenvolvido a nossa própria compreensão. Para isto, temos que voltar àquilo a que chamei de dilema.

Nesta encruzilhada, todos têm o direito de escolher qualquer um dos dois caminhos. Ninguém deve influir na escolha de cada um. Que não se diga que a decisão é simples e óbvia. Se escolherem o primeiro, têm todo o direito de o fazer. Se analisarem a cegueira e concluírem que não há nenhum ajustamento possível a ela; se a julgarem tão terrível que a única solução que se ofereça seja a segregação dos indivíduos cegos do mundo das pessoas que vêem, em alguma região indefinida "onde viverão todos juntos e serão todos felizes", estão em seu pleno direito.

Poderão acreditar, se quiserem, que entre o mundo dos cegos e dos videntes existe uma barreira tão forte e tão grande que somente uns poucos seriam capazes de rompê-la. Se este for o ponto de vista dos senhores, se o afirmarem e agirem de acordo com ele, os que defendem o ponto de vista contrário poderão honestamente respeitá-los. Se for assim, se acreditam nisto, e se esta é de fato a sua opinião bem ponderada, neste caso continuem a desenvolver seus programas de segregação sem ter de prestar contas a ninguém. Sejam paternais, bondosos e pacientes! Distribuam esses "benefícios", esses substitutos da felicidade! Mas se, de fato, acreditam nisto, sejam sinceros. Em nome da verdade, nunca, tanto na ocasião de angariar fundos como em qualquer outra ocasião, digam a si mesmos que os cegos são normais em qualquer sentido. Arrependam-se das suas críticas passadas contra os mendigos de esquina: porque tudo o que eles vêm fazendo há muito tempo não é mais do que agir de acordo com esta solução do dilema.

Sim, este é o dilema. Mas é possível escolher a sua segunda solução, como muitos dos senhores já fizeram. Terão então de reconhecer que, por mais dura e terrível que seja a cegueira, ela pode, entretanto, ser superada; que o grande desenvolvimento atual dos nossos conhecimentos científicos nos oferece meios para restaurar em parte e substituir no restante as múltiplas perdas causadas pela cegueira; que as pesquisas científicas objetivas estão nos ajudando através de técnicas e aparelhos, assim como na compreensão do ajustamento visando a encontrar uma restauração e uma substituição melhores e mais completas.

Se esta for a solução que tiverem escolhido, deverão sustentar que o único meio de a pessoa cega poder alcançar a felicidade nesta vida, é fornecendo-lhe a oportunidade de participar como membro ativo da comunidade das pessoas videntes.

Se esta for, em verdade, a escolha dos senhores, o trabalho que têm pela frente será realmente muito grande e a sua parte mais árdua, a de se reformarem a si mesmos".

Prossegue o Pe. Thomas: "Continua ainda a existir o grave problema da semântica. Quais as palavras que devemos empregar?

Não creio que se resolva simplesmente um problema, trocando a palavra "cego" pela palavra "invidente". Este é, positivamente, um modo de tentar fugir da realidade. É inútil mudar o nome de uma "oficina abrigada" para "especializada", quando na realidade ela continua mesmo a ser "abrigada". Tão pouco adianta mudar a palavra "segregação" para "separação", se os indivíduos cegos continuarem segregados da vida normal da família, da sociedade, da recreação, competição e cooperação normais com seus camaradas videntes.

No que se refere à semântica, há especialmente duas palavras que devem ser evitadas. A primeira é "tributação" - e aqui eu me defronto com uma dificuldade de caráter teológico - porque a palavra, pela sua própria natureza e derivação, sugere a idéia de "castigo". A palavra "castigo" conduz diretamente a idéias de pecado e de culpa, o que equivale a admitir-se que o indivíduo cego é responsável pela sua própria cegueira. Esta concepção é um erro evidente por resultar de idéias falsas.

O outro tópico de que temos a tratar, no terreno da semântica, refere-se, mais do que a palavra, a todo um conceito, isto é, o conceito de luz e escuridão.

Estou bem consciente do quanto é controvertida a questão que vou abordar agora, mas vou fazê-lo com pleno conhecimento de causa. Esta questão é, como já disse, controvertida, mas se a estou abordando, é porque se torna necessário, para desenvolver a compreensão do público com respeito à cegueira. Estou firmemente convencido de que, enquanto este falso conceito for um entrave em nosso caminho, não poderemos nem mesmo começar a desenvolver a compreensão do público, e isto porque compreensão é algo mais do que o simples conhecimento, e os problemas emocionais podem obstruir completamente o caminho que conduz ao seu progresso.

Sei perfeitamente que já se passou muito tempo desde que Cutsforth e Chevigny desenvolveram suas idéias sobre esta questão e sei que, com respeito a isto, muitas entidades reagiram apenas pela indignação.

Sei que, depois de tais conceitos terem sido expandidos, surgiram novas entidades as quais deles se utilizavam em títulos, cabeçalhos, nomes e símbolos em sua literatura lamurienta sobre "o mundo da escuridão".

Sei que para muitos dos senhores deve ser dado um golpe final neste conceito que ataca o próprio direito do indivíduo à sua existência.

Desde os primórdios da história, a idéia da escuridão acha-se estreitamente ligada às do mal, da ignorância, e do pecado, como também à intriga, ao terror e ao medo da morte. Tanto assim, que Lúcifer, que era o anjo portador da luz, transformou-se em sua queda no anjo da escuridão e das trevas.

Através da literatura e da tradição humana, a Luz tem sido relacionada com a idéia da própria vida -Phos e Zoe - Lux e Vita - Luz e Vida. A luz tem sido sempre identificada com a bondade, a verdade, e (na maravilhosa teologia do oriente) com o próprio Deus.

Em vista disto, acham os senhores que devem se permitir acreditar que se pode identificar a escuridão com a cegueira, e a luz com a visão, sem que, mesmo involuntariamente, estejam prestando um terrível desserviço aos cegos?

Lembrem-se de que milhares de pessoas irão apoiar a tese de Cutsforth e Chevigny de que uma vida na cegueira não é necessariamente uma vida na escuridão.

Lembrem-se também de que quão poucos de seus clientes e pacientes cegos vivem realmente na escuridão apesar dessa depreciativa definição da cegueira.

Se os senhores tendem a se basear na identificação da luz com a visão, e da escuridão com a cegueira, teremos de admitir que a história, a tradição e a própria natureza humana operam sobre a compreensão do público para fazê-lo acreditar (ou apenas vagamente sentir) que uma vida na cegueira é também uma vida nas trevas, no horror e no pecado.

Prezados colegas, membros da American Association of Workers for the Blind, eu opero já há dezesseis anos nesse nosso campo.

Foram dezesseis anos interessantes, no decorrer dos quais tenho testemunho muito de fermentação de idéias e do progresso concreto. Nestes últimos anos, parece-me, tem havido um verdadeiro surto novo de compreensão, ou pelo menos, de novas idéias em torno da cegueira. Parece-me que, nestes últimos dias, nossos pontos de vista vêm se delineando com uma nitidez cada vez maior e que estamos nos aproximando do momento em que cada um de nós deve tomar a sua posição e cerrar fileiras em torno de suas idéias.

O essencial do trabalho de "desenvolver a compreensão do público em torno dos cegos" acha-se ainda por ser feito embora, creio, a sua realização não se encontre distante. Até certo ponto, podemos considerar este trabalho como sendo o passo final para a emancipação dos desprovidos de visão.

É esta, realmente, uma tarefa imensa e de inestimável importância. Entretanto, o ponto de partida para tudo isto se acha dentro de nós mesmos".

O tema abordado pelo Revdo. Pe. Thomas, contém tantas verdades, que eu desejei ir até o fim nessa transcrição. E espero que consigamos tirar dele o que precisamos para formarmos uma mentalidade mais clara e decisiva para com os cegos.

Voltando ao nosso assunto: a nossa comunidade desprovida de meios e instrumentos especializados para alfabetizar o cego (criança ou adulto), não possuindo recursos para habilitar ou reabilitar o cego adulto, dando-lhe condições para viver na sociedade, faz dele um marginalizado, um peso morto, um revoltado, entregue à sua própria sorte, por culpa desta mesma sociedade.

Para os pais que se conscientizam do problema e desejam proporcionar aos seus filhos instrução e educação especializadas, se possuem recursos financeiros, têm que equacioná-lo da seguinte maneira: saírem com toda a família de sua terra à procura das cidades onde existem estabelecimentos especializados (como nós o fizemos); ou se separarem de seus filhos, enviando-os para internatos dos poucos que possuímos. Os que não dispõem de recursos e que não sabem sequer da existência dessas escolas, têm que se sujeitar a ver suas crianças sem se instruir, sem se preparar ao menos para exercer uma profissão condigna. Quando muito, tornar-se-ão fabricantes de vassouras e espanadores, ou então, por necessidade premente, terão de estender a mão à caridade pública. Mão que pertence a um corpo sadio, apto a trabalhar, desde que lhe dêem treinamento, mas está sem produzir nada porque seu dono é cego. "É cego, não pode trabalhar..."

No momento presente todos nós brasileiros, estamos cheios de esperanças nos destinos de nossa Pátria. O nosso incuto Presidente da República, lançou um brado vigoroso e forte, despertando em nós aquela chama de fé no nosso futuro. Conclamou a todos para que haja uma perfeita integração do homem pelo homem.

Também o senador João de Medeiros Calmon lançou em todo o Brasil a sua campanha "A Década da Educação" e eu estou certa de que entre as muitas leis que constituem a programação desta belíssima campanha, haverá uma especial, exigindo que se cumpram as determinações com relação à educação dos excepcionais.

Haverá então "luz para os cegos, e eles verão".

Não será possível acabar com a cegueira orgânica, mas terminará o mais importante: a cegueira intelectual, a cegueira espiritual. Todos os deficientes terão oportunidade de se tornarem felizes, porque serão úteis a si mesmos e a seus concidadãos.

Que se arregimentem os poderes estaduais e municipais, cerrando fileiras em torno de um desejo comum: propiciar a todas as crianças do nosso imenso Brasil, também às excepcionais, condições de ocupar no cenário da vida o lugar que lhes é devido.

Muitas e muitas vezes, ao olhar para Sérgio, eu fico a pensar: como seria maravilhoso se todos os pais de crianças cegas, pudessem dar a elas o que nós podemos dar ao nosso filho! Precisamos de escolas, precisamos de professores especializados, precisamos de livros para que nossas crianças se instruam, se eduquem, mas, antes de tudo, precisamos dar-lhes algo muito importante: no recesso do nosso lar, com o nosso amor maternal maduro, condições psicológicas e emocionais para que elas possam adquirir fora, isto é, na escola, na sociedade, todos os outros conhecimentos necessários para se tornar adultas.

Precisamos entregar os nossos filhos, especialmente os excepcionais, ao meio social em que irão viver, devidamente preparados, porque somente assim eles estarão aptos a usufruir os benefícios que a própria sociedade lhes dará. Numa palavra - precisamos educá-los.

Jamais devemos querer ou exigir que a escola substitua o lar no que se refere à formação do caráter, da personalidade dos nossos filhos. É ela a nossa auxiliar de valor inestimável. Já que falamos em educação e, particularmente, de educar crianças cegas, por certo que necessitaremos do auxílio de pessoal técnico, de profissionais capacitados, para que, através de uma segura orientação, possamos conhecê-las melhor e dar-lhes um desenvolvimento mental dentro dos ditames da normalidade. Serão eles de grande valia, mas não devemos jamais lhes delegar uma obrigação que só a nós compete. Vejamos o tema Educação dos Cegos, da Professora Terezinha Fleury de Oliveira, trabalho magnífico, sempre atual e que por certo vai elucidar e ajudar a resolver muitos dos problemas educacionais:

"A educação das crianças cegas é a maior responsabilidade da sociedade. Realmente, uma sociedade democrática procura educar todos os indivíduos e todas as classes, sob todos os aspectos, embora, muitas vezes, não realize inteiramente esses propósitos. Há grande número de indivíduos, em nossa sociedade, que fica praticamente excluído dos benefícios dessa educação: entre esses indivíduos encontram-se os excepcionais. Para estes têm-se voltado, ultimamente, as atenções dos educadores e dos legisladores. Muitas perguntas têm sido feitas sobre essas crianças, tanto por parte de professores, assistentes sociais, psicólogos, etc., como também de autoridades. Quem são essas crianças? Que posso fazer por elas? Quão educáveis são elas? Quais são as suas possibilidades e suas limitações? Quais são os seus problemas? Qual a melhor maneira de proporcionar-lhes uma perfeita integração na sociedade?"

Veremos neste trabalho algumas respostas a essas questões, no que se refere precisamente ao grupo de deficientes visuais.

Sendo o Brasil um país democrático, o art. 166 da Constituição reza que a educação é direito de todos e deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais da solidariedade humana.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina o enquadramento dos excepcionais, inclusive, portanto, os deficientes visuais, no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade e, ao mesmo tempo, impõe aos poderes públicos a obrigação de dar aos excepcionais condições adequadas para a sua educação, mediante a concessão de bolsas de estudo. A mesma lei dispõe, outrossim, que devem ser concedidos empréstimos e subvenções a entidades particulares que se dediquem à educação de excepcionais.

A deficiência visual é uma limitação grave, acarretando problemas e distúrbios psicológicos e emocionais tanto quanto qualquer outro tipo de deficiência física. Sendo a cegueira considerada uma incapacidade, podemos defini-la, oftalmologicamenlte, da seguinte maneira: considera-se cego o indivíduo cuja acuidade visual, no melhor olho, após correção ótica, varia de O (nula) até 0,1 e cujo campo visual, no melhor olho, apresenta como maior meridiano o de 20 graus.

Há também outros conceitos dessa deficiência como ausência total de visão, incluindo os totalmente cegos e os parcialmente cegos. Entre os totalmente cegos situam-se aqueles que somente têm percepção de luz. Há, porém, muitos indivíduos que percebem a luz, sem todavia distinguir pessoas de objetos. Outros conceituam como cego o indivíduo que, total ou parcialmente sem visão, não pode ler, mesmo com o auxílio de óculos. A definição de cegueira e ambliopia [acuidade visual que esteja entre 6/60 (0,1) a 18/60 (0,3)], varia de autor para autor e de país para pais.

É necessária a uniformidade de definição, pois só assim facilitaria a assistência, a reabilitação, a educação propriamente dita, bem como as medidas legislativas adequadas; acarretaria também vantagens para as interpretações médicas, estatísticas e outras.

Para facilitar o trabalho com os deficientes visuais, além de uma definição uniforme de cegueira é necessário salientar outros aspectos que deverão ser levados em consideração: idade em que a criança ficou cega, o grau de cegueira e as condições atuais dos olhos. "É geralmente aceito que a cegueira, ocorrendo antes dos 5 anos de idade, priva o indivíduo, gradualmente, do uso da memória visual, embora nenhum estudo experimental tenha sido conduzido para provar essa asserção" - é afirmação de Berthold Lowenfeld.

Somente os indivíduos cegos de nascença, ou que ficaram cegos antes de 5 anos, podem sentir, em toda a sua amplitude, as restrições impostas pela limitação visual. Os indivíduos que perderam a visão depois dos 5 anos podem fazer associações de idéias e basear a sua formação de conceitos nas experiências anteriores ao aparecimento da cegueira, através de comparações. O professor especializado somente poderá auxiliar o seu aluno na formação de conceitos novos se conhecer exatamente a idade em que a criança ficou cega.

O grau de cegueira deverá ser do conhecimento do professor, para que ele possa dar à visão residual de seu aluno, a devida atenção e melhor aproveitamento. Há vários graus de cegueira desde a ausência total da visão até inúmeras graduações de defeitos visuais mais severos que impedem o indivíduo de executar as atividades ordinárias da vida para as quais a visão é essencial.

A Lei n.º 5.991, de 26. 12 . 60, estabelece para o Estado de São Paulo a seguinte definição de cegueira.

"I - Ausência total de visão ou acuidade visual não excedente a 6/60 (0,1) pelos optótipos de Snellem no melhor olho, após correção ótica.
II - Campo visual igual ou menor a 20 graus no melhor olho."

A influência das atitudes do oftalmologista sobre o comportamento de seu cliente é marcante. Dela dependerá o êxito futuro da educação do deficiente visual, pois esta deverá adequar-se às condições de seus olhos. Por esse motivo, o oftalmologista deverá analisar suas próprias reações perante a cegueira e preparar-se psicologicamente para enfrentar a penosa situação de contar a verdade sobre a cegueira de seu cliente. A verdade precisa sempre ser dita. O oftalmologista não deverá deixar-se levar por uma atitude mal compreendida de proteção humana, nem pelo medo das conseqüências que a sua revelação poderá trazer para o cliente, nem pela indiferença quanto à sorte deste. Daí a necessidade do preparo do oftalmologista para que a verdade possa ser dita, de uma maneira suave, mas firme. Deverá mostrar a seu paciente as limitações que a cegueira causa aos seus portadores e indicar os recursos que a comunidade possui para que estes possam superá-las através da educação especializada ou da reabilitação, conforme se trate de crianças ou adultos. O oftalmologista verdadeiramente consciente de seus deveres, fará seu paciente sentir que é possuidor de potencialidade e capacidade que, se devidamente aproveitadas, serão decisivas na reorganização de sua vida e o quanto ele poderá ser útil a si mesmo e à sociedade, apesar de sua deficiência. Muitas experiências e pesquisas têm sido feitas sobre a conveniência ou não de que a verdade seja dita ao paciente. As estatísticas mostraram que o choque, ocasionado pelo prognóstico médico, é muito grande, mas que, quase sempre, a própria violência do choque faz surgir prontamente a reação e, com ela, o desejo de sobrevivência que fará com que o individuo procure reorganizar sua vida de acordo com as novas circunstâncias. Por outro lado, nos casos em que a verdade não é dita, o paciente, iludido, dificilmente poderá reorganizar sua vida, pois não procura adaptar-se às novas circunstâncias por julgar que elas são transitórias.

Conclui-se que somente após o relato verdadeiro do prognóstico médico ao paciente é que se poderá educar com pleno êxito. A educação é um processo dinâmico, exigindo participação direta de dois elementos: educador e educando. Como irá o educando participar, se não tem consciência de deficiente visual?

Pelo que ficou dito podemos avaliar a importância da colaboração do oftalmologista na educação de deficientes visuais. O educador deverá estar sempre de posse de relatórios oftalmológicos de seus alunos, para que possa agir corretamente na educação de
cada um.

Segundo o Dr. Cutsforth, a cegueira em si não acarreta perturbações emocionais e o portador dessa deficiência não vive atormentado por causa da sua incapacidade de ver. Os problemas emocionais que a cegueira cria nascem da situação social e das atitudes tomadas pelos pais videntes em relação à criança cega. Diz Helen Keller: "Não é a cegueira, e sim a atitude dos videntes em relação aos cegos, a carga mais pesada a ser enfrentada".

As metas a serem atingidas pela criança vidente são as mesmas da criança cega, porém o prazo e o processo para atingi-las não são os mesmos, tendo em vista que o deficiente visual deve atingir esses objetivos lutando com a falta de um dos mais importantes sentidos.
A criança deficiente levará mais tempo para tomar conhecimento do mundo físico que a rodeia pois deverá substituir a coordenação visual-motora pela auditivo-motora. Até que sua locomoção e sua coordenação motora se desenvolvam o bastante para que ela possa ter alguma noção das relações especiais, os sons que chegam de longe têm para ela muito pouca significação. A falta de estímulos visuais deverá ser suprida pela apresentação de estímulos adicionais tanto auditivos, quanto táteis, gustativos e olfativos, para que a criança possa se desenvolver como uma pessoa normal e feliz.

Outro problema que poderá surgir na educação da criança cega é o seu retardamento no andar, não propriamente por causa de sua cegueira, mas pela atitude de pais e parentes que a superprotegem, não lhe permitindo a necessária liberdade de movimentos. Quando privamos um individuo de fazer as coisas por si mesmo, no momento em que o seu desenvolvimento físico o permite, estaremos não somente impedindo-o de aprender, mas também o atrasando na sua luta para se tornar uma pessoa bem ajustada e auto-suficiente.

Certos fatos também poderão tornar-se problemas desde que não sejam observados e corrigidos em tempo oportuno: o desenvolvimento da linguagem, a inabilidade em comer e vestir-se sozinho, cuidado com sua toalete, hábitos de trabalho, reações infantis, tais como acessos de raiva, tendência para o isolamento, apego aos pais e familiares, etc. Voltamos a ressaltar: esses problemas, porém, não são ocasionados pela cegueira em si, mas pelas atitudes dos videntes em relação aos portadores de deficiência visual.

É preciso que todos os profissionais e a sociedade de um modo geral considerem a criança deficiente visual como uma criança essencialmente normal, à qual falta apenas um dos sentidos.

Este é o princípio fundamental da moderna educação especializada. As deficiências físicas são apenas aspectos de um todo que é o "ser humano".

A cegueira em si não acarreta anomalia alguma no processo do desenvolvimento normal do indivíduo. A causa da cegueira, no entanto, poderá trazer efeitos nocivos à criança, ocasionando-lhe outras limitações.

O ajustamento à cegueira, nos casos de nascença, depende do tipo de personalidade inata no indivíduo e do efeito do ambiente (familiar e social) sobre essa personalidade. Nos casos de cegueira adquirida posteriormente, devemos acrescentar ainda que este ajustamento depende, também, do modo e extensão de sua capacidade de adaptar-se à realidade, antes do advento da deficiência visual.

A necessidade de suprir a falta de visão com o uso do tato acarreta três limitações básicas ao indivíduo:
a) na quantidade e variedade de conceitos;
b) na possibilidade de observar todas as coisas através do tato (fogo, estrela, formiga, aranha);
c) no controle do ambiente e do próprio eu em relação a este.

Estas limitações afetam os cegos de acordo com a personalidade individual, de diferentes maneiras e em diferentes graus.

Os indivíduos totalmente cegos e aqueles que perderam a visão antes dos 5 anos de idade, precisam construir seus conceitos sobre o mundo, através do uso dos sentidos restantes. Dessa maneira os referidos conceitos serão baseados quase que exclusivamente em percepções táteis, auditivas e experiências cinestésicas. A audição, por si só, não dá idéia concreta dos objetos, embora dê alguma informação sobre a distância e a posição em que os mesmos se encontram em relação a nós. Isto não diminui a importância do sentido auditivo na comunicação verbal e, como meio auxiliar, na locomoção. Uma criança cega ouvindo somente o canto de um pássaro
não poderá avaliar a sua forma, o seu tamanho e outras características físicas; poderá unicamente localizá-lo.

Por sua vez, a percepção tátil não poderá dar ao invisual noções de perspectivas e de cores, as quais só lhe poderão ser fornecidas por intermédio de descrições e comparações, uma vez que a perspectiva e a cor são objetos de percepções características da visão.

Outras limitações da capacidade informativa da percepção tátil advêm de que só se podem obter informações táteis do contato direto com os objetos. Assim sendo, certos objetos, animais e coisas, não podem ser observados pelo fato de serem muito grandes (montanhas, arranha-céus, etc.); outros, por serem muito pequenos ou frágeis (formigas, teia de aranha, etc.); outros por serem muito distantes (lua, estrelas); outros por oferecerem perigo (fogo, líquidos em ebulição, etc.).

Essas noções deverão ser substituídas por informações e descrições comparativas.

Outra importante diferença entre os dois sentidos, tato e visão, reside no fato de que a última está constantemente recebendo estímulos de maneira espontânea, independentemente da vontade do indivíduo. Por exemplo: a simples presença de um brinquedo, em lugar adequado, é suficiente para que a criança o veja, mesmo quando não tenha anteriormente conhecimento da existência de tal objeto.

Contrariamente, a percepção tátil deverá ser sempre provocada através do contato direto dos objetos. Dessa maneira o mesmo brinquedo, a que atrás nos referimos, só poderá ser conhecido pelo deficiente visual quando ele o tiver entre as mãos, o que exige: ou alguém que apresente o objeto ao observador cego; ou que este tenha prévio conhecimento da existência do objeto e do local por mera coincidência. Daí a conclusão de que à criança cega precisa que lhe seja fornecida um número maior de estímulos adicionais para que sua educação e o seu desenvolvimento se processem normalmente. A necessidade dos estímulos adicionais é, mesmo, um dos princípios básicos da educação dos cegos. Esses estímulos adicionais deverão ser proporcionados a todos os sentidos restantes da criança cega. Ela deverá ser levada a tatear, ouvir, degustar e cheirar tudo quanto lhe seja possível. Neste particular é importante salientar o testamento de Diderot, dado dois séculos antes da nossa época: "A educação de cegos deverá basear-se nos sentidos que lhe restam" (Lettre sur les Aveugles à l'usage de Ceux que Voient, 1749).

O conhecimento é adquirido não só através de observações diretas, como foi dito anteriormente, mas também por meio da linguagem. Daí ressalta a enorme importância da comunicação verbal dos indivíduos videntes com os que não vêem, para o desenvolvimento destes últimos. Não só os educadores de cegos, mas também os seus familiares, devem fazer largo uso da linguagem, a fim de prestarem àqueles o maior número possível de informações cuja obtenção foi dificultada pela perda da visão. Para que a linguagem, porém, preencha a sua finalidade informativa, ela deve ser o mais objetiva possível, evitando-se o verbalismo. A criança cega adquire certos conhecimentos através da influência do meio, verbalizando-os. Cabe observar que certos verbalismos são inevitáveis para que a pessoa cega possa conservar e estabelecer relações sociais com os videntes. Por exemplo, os indivíduos devem ter conhecimento das várias combinações sem, porém, perderem de vista a natureza intrínseca destas. Os verbalismos, porém, não devem substituir as noções objetivas, quando estas podem ser dadas utilizando-se todos os sentidos restantes. O educador de cegos deverá ter sempre em mente que os meios de objetivação dos conceitos devem ser usados sempre que possível.

As restrições impostas pela cegueira podem limitar a quantidade e a variedade de idéias e conceitos, mas não determinam qualquer deficiência mental na criança cega. Se tais restrições surgiram, isto será devido à pouca estimulação do meio ou às condições peculiares da mente da criança que a teriam afetado mesmo que ela não fosse cega. Um dos fatos que têm servido para fortalecer a idéia errônea de que a criança cega é portadora de baixo nível mental é ser ela quase sempre encaminhada tardiamente à escola.
Isto é devido à negligência dos pais, superproteção ou falta de conhecimento dos meios educacionais existentes para a criança deficiente visual na comunidade ou mesmo a inexistência desses meios. A esse respeito diz abalizadamente Cutsforth: "se analisarmos a vida do cego, veremos que muitas das limitações, necessidades e distúrbios nela encontrados são devidos às situações criadas pela cegueira e não por falta da visão propriamente dita e que na maior parte das vezes, têm suas raízes nas atitudes tomadas pela sociedade ao encarar essa deficiência física

O profissional competente deverá levar em consideração que toda criança tem seus problemas e que a criança cega não foge à regra. Para que ela possa desenvolver plenamente seus potenciais e sua capacidade de viver equilibrada e ativamente, é necessário que os adultos, à sua volta, tomem consciência de que ela é uma criança como qualquer outra, dotada de força criadora, não obstante os problemas específicos causados pela cegueira e os mecanismos psicológicos em geral, que provocam as formas de reação e o comportamento das crianças cegas. A causa específica do desencadeamento e a frustração são semelhantes aos encontrados em outras pessoas e provocados por causas diferentes.

Resumindo nossa opinião, diremos que todos os fatores que fazem com que a cegueira influa na vida da criança devem ser levados na devida conta por pais e educadores sem que, porém, se exagere a sua importância e sem constituírem motivo suficiente para que não sejam desenvolvidas todas as capacidades de que o indivíduo cego é portador e que lhe permitirão a sua perfeita realização como pessoa e sua integração social.

Como apoio a este conceito, cito Dorina de Gouveia Nowill, quando diz: "a cegueira na vida é uma condição a ser considerada pelos pais e mestres. Ocasiona, no quadro total do indivíduo, limitações e restrições que devem ser devidamente avaliadas, não podendo, porém, impedi-la de gozar de seus direitos, viver e crescer, tornando-se digna do fim para o qual foi criada."


A SOCIEDADE, A FAMíLIA E O CEGO

A cegueira através de todas as fases históricas do desenvolvimento humano sempre despertou muita curiosidade e muita piedade.

A atitude geral da sociedade em relação aos incapacitados e, portanto, também aos cegos evoluiu desde a simples aversão, curiosidade e piedade até o reconhecimento da dignidade humana e o desejo de integrar os incapacitados na sociedade comum e ajustamento que são dados às pessoas normais. Tal evolução pode ser esquematizada, em linhas gerais, da seguinte maneira:

a) eliminação dos incapacitados por serem considerados inúteis à sociedade;
b) amparo movido exclusivamente pela piedade e resultante do advento do Cristianismo;
c) oportunidades adequadas de educação e trabalho dando ao indivíduo condições de desenvolver seus potenciais e contribuir como membro ativo da comunidade à qual pertence.

Na prática, porém, esta evolução ainda não se realizou pois, na maioria dos casos, o cego vive isolado na sociedade e não existe como membro participante da comunidade. Irritabilidade, impaciência, condescendência e piedade caracterizam as reações comuns dos membros da sociedade em face dos deficientes físicos e mentais.

Poucas pessoas têm conhecimento mais profundo das capacidades e limitações dos incapacitados e, portanto, também dos portadores de cegueira. Algumas observações diretas causais, combinadas com narrativas na maior parte das vezes fantasiosas, do comportamento de deficientes visuais deram, em resultado, a formação de conceitos estereotipados sobre os cegos. Esses conceitos são transmitidos de indivíduo para indivíduo, e acabam por ser tidos como verdadeiros pela sociedade.

Encontramos algumas pessoas que consideram os cegos iguais às outras, apesar de não poderem ver. Para outros a cegueira modifica completamente o comportamento, a própria constituição física e mental dos portadores dessa deficiência.

O cego, por esse motivo, encontra-se numa situação muito particular, sendo avaliado do ponto de vista sentimental, percebendo sanções especiais e sendo colocado na posição de dependência reforçada e mesmo de inferioridade.

É de se notar que, muitas vezes, uma atividade rotineira, exercida por uma pessoa cega, é considerado como um comportamento brilhante. Passa-se a considerá-lo um "Gênio".
É o exagero das habilidades normais de qualquer ser humano. Acredita-se, geralmente, que os seres humanos privados de um sentido são, providencialmente, compensados pelo desenvolvimento dos sentidos restantes.

As experiências que têm sido feitas nesse sentido mostraram que não há diferença entre os cegos e os videntes no que se refere à acuidade e ao desenvolvimento dos sentidos. A habilidade dos cegos, que os difere dos demais, aparentemente, em certos aspectos, é devida à prática, ao uso adequado dos sentidos e à atenção dirigida. Segundo Hayes, não há evidência que possa sustentar a teoria da compensação dos sentidos. O mesmo fato acontece com a memória, percepção espacial, habilidade musical que muitas pessoas julgam serem mais desenvolvidas nos cegos. Experiências feitas na Alemanha e nos Estados Unidos demonstram que, dependendo naturalmente das diferenças individuais inatas em todas as pessoas, os deficientes visuais aprendem, pela necessidade, a usar os sentidos adequadamente e com a atenção dirigida.

As atitudes dos videntes em relação aos cegos têm uma influência muito grande e profunda no comportamento destes em relação àqueles e mesmo na sua tentativa de competir com o ambiente que os cerca.

Verifica-se que os padrões sociais e a cultura individual têm sua influência acentuada na formação do nosso conceito de normalidade.

Os incapacitados são influenciados, em seu modo de agir, pela maneira como a sociedade espera que ele se comporte. É a própria sociedade que indica, ou melhor, que força o comportamento individual do cego em relação à comunidade à qual pertence.

Por outro lado, a família, como célula mater da sociedade, influencia grandemente o bom ou mau ajustamento da criança à sua condição de cegueira. Atitudes de rejeição, superproteção, negligência ou aceitação, cuidadosamente estudadas na família, irão proporcionar ao profissional elementos valiosíssimos no estudo do ajustamento e comportamento da criança deficiente visual. Essas atitudes são baseadas nos conceitos sócio-culturais que os familiares tenham a respeito desta limitação e nos problemas pessoais de cada membro da família.

Tanto as atitudes sociais como as atitudes familiares inadequadas exercem influências negativas muito grandes no deficiente visual, dificultando e até mesmo cerceando o seu desenvolvimento integral como individuo capaz, apesar de suas limitações.

Finalmente queremos salientar que a mudança de atitudes da sociedade e da família em relação aos cegos está se processando, lentamente, mas de um modo positivo, através do desenvolvimento de novos conceitos sociais sobre os incapacitados.

Tem contribuído muito para essa mudança de atitudes o trabalho dos profissionais de Serviço Social e de Psicologia. O uso das técnicas do serviço social de comunidade e do Serviço Social de casos têm procurado preparar, tanto a sociedade quanto o indivíduo, para que aquela possa aceitá-lo como seu membro útil e este possa se ajustar bem na família e na comunidade em que vive.

O assistente social consciencioso, diagnosticando e tratando os problemas familiares e do indivíduo cego, terá um papel muito importante no trabalho de equipe com o deficiente visual.

Por outro lado a psicologia estuda os efeitos da cegueira tanto no indivíduo como na sociedade, em ambos os casos procurando diminuir e mesmo atenuar as necessidades e os problemas dos indivíduos e da comunidade em relação à cegueira. O psicólogo transforma-se em um agente indispensável para a completa integração do cego na sociedade.


PESQUISAS, FATOS E NÚMEROS - CENSO DOS CEGOS

Nos últimos tempos, muitas pesquisas têm sido feitas na Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá, sobre os vários aspectos relacionados com a cegueira. Os países acima mencionados possuem órgãos do governo ou entidades particulares que, especificamente dedicados à pesquisa em todos os campos, contribuem sobremaneira para a realização das pesquisas especializadas dentro do campo da cegueira.

No Brasil, infelizmente, não são encontrados esses recursos e muito pouco sabemos sobre o número de cegos existentes, causas e incidência da cegueira, além de outros dados de interesse científico para a educação e reabilitação de cegos. A Fundação para o Livro do Cego no Brasil, em São Paulo, encontra-se empenhada em pesquisas dessa natureza, tendo em vista o número de cegos registrados em seu Departamento de Serviço Social. Esses dados encontram-se em estudos e somente depois de algum tempo poderão ser divulgados.

A descoberta de casos de deficientes físicos e mentais é um dos problemas mais difíceis em todo o trabalho com os incapacitados. Provavelmente a razão desse fato seja a própria sociedade com os seus estereótipos, as atitudes familiares e a ignorância da existência de programas de educação e reabilitação dos incapacitados, ou a própria inexistência desses recursos na comunidade.

O meio mais econômico e básico para a localização de incapacitados seria a realização de um censo nacional de todos os deficientes físicos e mentais. Este censo habilitaria tanto o educador quanto o médico ou outros profissionais a avaliar a extensão de seus respectivos problemas de educação e reabilitação, assim como determinaria a prioridade de atendimento das diversas regiões do Brasil, de acordo com o número de deficientes localizados.

Sob o ponto de vista educacional o censo de incapacitados é o ponto de partida para o planejamento de um programa nacional de educação especializada. Através de seus resultados pode-se avaliar a incidência do número de incapacitados e, entre eles os cegos, no interior ou nas capitais e em determinadas zonas do país.

Nos recenseamentos gerais de 1950 e 1960 não puderam ser feitas, por motivos de ordem técnica, indagações sobre a existência de deficientes visuais. Em 1950, o recenseamento apontou a taxa na população brasileira de 1,474 por 1.000 habitantes, taxa que corresponde àquela encontrada nos países subdesenvolvidos quer quanto à sua organização sanitária, quer quanto ao seu progresso civil. Se a mesma taxa for válida para 1960, a população cega é de aproximadamente 103 . 929 pessoas. É preciso considerar também, de acordo com os técnicos especializados, que o número de amblíopes supera de muito o número de pessoas cegas.


EDUCAÇÃO DE CEGOS

Na antigüidade, noções e princípios místicos levaram a sociedade a uma atitude errônea em relação aos incapacitados, eliminando-os pura e simplesmente. Posteriormente, o Cristianismo trouxe uma valorização da personalidade humana. Os deficientes físicos passaram a ser considerados como seres humanos. Como conseqüência, em 1254, em relação aos deficientes visuais, São Luís, Rei de França, criou a primeira instituição para cegos.

A primeira realização, com finalidade educacional surgiu também na França, com Valentin Haüy, fundador da Instituição Nacional para os Jovens Cegos, em Paris, em 1784. Foi a primeira escola para cegos.

A educação de cegos não acompanhou cronologicamente a evolução havida no campo da educação em geral, muito embora, nos últimos sessenta anos, muito progresso tenha sido realizado. Outras escolas surgiram nesses moldes, em outras partes do mundo.


I - Educação Familiar

A educação inicia-se na época do nascimento da criança. Nesse período, a educação será feita no lar pelos pais e pela família, de um modo geral. Nenhuma escola maternal ou creche será melhor mestre que o próprio lar.

Um dos pontos mais importantes na educação de cegos é o que se refere à educação de pais. Muitas vezes a criança é encaminhada muito cedo para um internato, voltando para o lar já adulto. A experiência de educadores especializados, na II Conferência Internacional de Educadores de Jovens Cegos, em 1957, em Oslo, recomendou: "A criança cega tem o direito a uma vida familiar e, se necessário, de um conveniente lar adotivo. Sua vida não deve ser unicamente dentro de uma instituição".

Necessário se faz, porém, que a família seja orientada de maneira a atingir os objetivos da educação, sem prejuízo de quaisquer das partes.

O choque produzido pela noticia de que seu filho é cego causa aos pais um verdadeiro desequilíbrio emocional, perfeitamente compreensível. Devidamente orientados por pessoal qualificado e especializado, esses pais poderão reagir e capacitar-se de que os problemas de seu filho não diferem dos problemas encontrados pelos pais de crianças de visão normal. Através de orientação segura poderão chegar à conclusão de que seu filho é uma criança como as outras, apenas com uma limitação visual, tendo o mesmo direito de desenvolver-se, educar-se normalmente e tornar-se um membro útil da sociedade, participando dela ativamente de acordo com as suas capacidades e limitações.

A orientação dos pais é um assunto que ainda está em início no Brasil, mas que deve ser incluído em todo o programa de educação especial. Ela poderá ser ministrada através de associações de pais e mestres, grupos de pais, entrevistas com psicólogos, assistentes sociais, oftalmologistas e professores.

Todos esses meios de orientação, entretanto, somente serão eficientes quando feitos por técnicos especializados e só se tornam possíveis quando há reservas de recursos financeiros, por parte do Governo, para o desenvolvimento de um programa educacional bem planejado.

Conforme foi dito, o melhor lugar para a criança cega não é o internato, isto é, escolas residenciais, mas seu próprio lar, onde sua personalidade possa desenvolver-se normalmente. Em seu lar ela está sempre junto de seus pais, ou, pelo menos, de sua mãe. Ela se identifica em relação a seus pais durante toda a sua infância e, assim, o seu ego se desenvolve, aprende a falar e dá às suas emoções um significado certo.

Até recentemente a educação de cegos baseava-se na idéia da segregação, isto é, separação de crianças portadoras de deficiência visual em escolas de cegos, sem nenhuma preocupação em classificá-las de acordo com o grau de deficiência. Esta separação, porém, não permite ampla visão quanto à dinâmica da criança cega, seus sentimentos, suas aspirações e o seu potencial de ajustamento à sociedade, onde ela, quando adulta, terá de viver. Além disso, outros fatos devem ser considerados na segregação de crianças cegas em internatos. Esses fatos, entretanto, não são próprios de ambientes segregados para cegos; são características de qualquer internato seja ele para outro tipo de incapacitados ou para os videntes, contribuindo para reforçar os estereótipos negativos da sociedade. Podemos citar, entre esses fatos, os problemas de ajustamento social e deformações da personalidade. A própria família sofre as conseqüências de segregação da criança cega. A internação pode criar ou alimentar, na família, uma atitude de irresponsabilidade em relação à educação daquela criança.

Convém notar, entretanto, que os modernos serviços educacionais oferecidos aos cegos não podem prescindir das escolas residenciais, em virtude de diversos fatores, como a extensão territorial do país, a falta de recursos materiais e técnicos da comunidade em que vive o educando, etc.

As escolas residenciais de cegos precisam todavia, deixar os padrões do século XVIII e integrar-se nos moldes estabelecidos pelos modernos princípios pedagógicos, combatendo-se e evitando-se a segregação mesmo dentro dela.

De outro lado, acompanhando a evolução geral, dos princípios de educação adequada à comunidade, preparando a orientação filosófica mais moderna e que dentro do ponto de vista humano e social, maior índice de progresso trouxe à educação de cegos: o conceito da integração.

Esse conceito filosófico orienta, atualmente, todos os serviços educacionais proporcionados aos deficientes visuais, quer pelo Estado, quer por entidades particulares, no sentido de dar-lhes a oportunidade de participação integral na vida da família e da sociedade.
Somente essa orientação filosófica pode fazer da educação de cegos um processo dinâmico, onde se considera acima de tudo, o bem-estar e a formação integral do educando, não obstante suas limitações sensoriais.

Seguem-se, abaixo, algumas considerações que ilustram as vantagens trazidas pelo conceito filosófico da integração, para o ensino de cegos e amblíopes:

a) Sob o ponto de vista econômico, entre outros, a criança em um lar comum, onde a renda é pequena, aprende a dar ao dinheiro o seu real valor; passa a ter mais cuidado com sua roupa e seus pertences e participa dos sacrifícios econômicos da família para que tudo possa correr bem.
b) Na escola, a criança cega, ao lado da criança de visão normal, de sua própria idade, da mesma série escolar e nível intelectual, enfrenta uma competição real, sem favoritismos, servindo para estimular1e desenvolver a sua autoconfiança.
c) Na vida em sociedade, aprende a adaptar-se às situações mais variadas possíveis pela necessidade constante de enfrentar novas experiências e ajustar-se a elas. A criança deficiente visual terá oportunidade de estabelecer contatos pessoais com as mais variadas pessoas, no seu caminho para a escola, desde o motorista do ônibus até o diretor do colégio. Aprenderá então a encarar os seus próprios problemas em relação ao modo pelo qual é tratada: superproteção, algumas vezes; com mimo, em outras; com piedade, ainda outras. Mas cada uma dessas condições, boas ou más, positivas ou negativas, é característica e ilustrativa da vida em si mesma. A criança deficiente visual delas se aperceberá e orientará sua conduta tanto com as falhas quanto com os sucessos obtidos.


II - Princípios Básicos da Educação de Cegos

Como decorrência de todos os pontos abordados anteriormente neste trabalho e, principalmente, dos efeitos físicos e psicológicos da cegueira na criança, surgiram alguns princípios básicos que norteiam a educação de cegos.

a) Princípio de individualização - a cegueira não padroniza os indivíduos e o educador, no seu grupo de crianças cegas, encontrará tantas individualidades quantas em outro grupo qualquer de crianças. Todo o educando, seja cego ou não, deve ser tomado por si mesmo. Essa individualização do ensino requer que o professor conheça o maior número de dados possíveis sobre cada aluno. Daí a importância de um trabalho de equipe em que cada um dos profissionais, seja o oftalmologista, o psicólogo, o assistente social ou o professor, colaborem na apreciação de cada caso em particular, através da discussão de seus relatórios. Grau de visão, causa da cegueira, cuidados atuais dos olhos, idade em que surgiu a cegueira, são informes médicos básicos. Conhecimentos gerais sobre a família e o ambiente em que vivem constituem elementos indispensáveis para o planejamento geral da educação da criança de acordo com suas capacidades e tendências.

b) Princípio de concretização - a criança deverá sofrer e reagir ao maior número de experiência na vida diária. Nenhum verbalismo substituirá esse aprendizado realizado diretamente pela própria criança. É a educação para a vida, através da vida - é a formação de vivências. A criança precisa aprender a conhecer pessoas e objetos de acordo com o poder de seus sentidos e deparar-se com situações em que possa demonstrar e formar a sua independência. Sem esse contato direto com o mundo, todos os outros conhecimentos formais poderão ser mal compreendidos e deformados. levando a criança a uma idéia falsa do mundo, absolutamente fora da realidade.

c) Princípio de globalização do ensino e dos sentidos - os conhecimentos novos, em última análise, deverão ser transmitidos de um modo geral, total e único, de maneira a localizar a criança cega numa situação de vida. Essa unidade de conhecimentos ajudará a criança a superar a cegueira na aquisição de novo aprendizado, em que ela não tenha chance de observar em conjunto. Com o ensino ela organizará suas experiências dentro de um todo estruturado pelo aprendizado interior, criando um mundo de fantasia. Outra oportunidade que deve ser dada a toda criança deficiente visual é a de poder observar todos os objetos através de todos os sentidos restantes. Os professores de cegos devem procurar descobrir todas as qualidades auditivas, olfativas, gustativas e táteis, não só nos objetos, como nas situações da vida, que possam ser percebidas e observadas pelos seus alunos. Convém citar, aqui, a grande colaboração dada ao ensino formal pelas excursões e passeios previamente preparados, de acordo com o interesse das crianças e com os ensinamentos dados em classes.

d) Princípio do estímulo adicional - a visão constante estimula os indivíduos a observarem situações e objetos novos. O tato somente será estimulado por contato direto e não só o professor como os pais, deverão fornecer à criança cega o maior número possível de estímulos adicionais, tornando a criança apta a conhecer o mundo que a rodeia, através de sua própria observação e experiências. Isto dar-lhe-á oportunidade de locomoção e de localizar-se em relação ao seu lar, na escola, no bairro, no município, etc.

e) Principio de auto-atividade - a criança, tanto cega quanto vidente, necessita de atividade, de movimentar-se em seu ambiente familiar ou escolar. A perda da visão limita tanto a estimulação como o controle do ambiente mas, apesar disso, a criança invisual precisa ser motivada a movimentar-se. Seus interesses devem ser dirigidos no sentido de desenvolver-lhe o desejo de locomover-se livremente. A criança, pelo estímulo visual aprende a imitar o comportamento e as atitudes das pessoas à sua volta, tanto no lar como na escola. A deficiência visual limita a imitação. Necessário se faz que os padrões sociais de comportamento sejam ensinados à criança cega, cuidadosamente, através de representações artísticas, dramatizações, etc. Estes são os princípios que devem reger a educação dos cegos, aqui apresentados separadamente para estudo, mas que na realidade, na prática, encontram-se intimamente entrelaçados e fundidos quando aplicados no processo educacional.


III - A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE CEGOS

De acordo com os conceitos filosóficos expostos neste trabalho, a educação de cegos pode ser considerada sob dois aspectos: educação segregada e educação integrada.

a) A educação segregada é ministrada em escolas exclusivamente para cegos, que nelas residem e estudam. Nessas escolas muitas vezes encontram-se classes de cegos-surdos, deficientes mentais cegos e classes de conservação da vista para amblíopes.
b) A educação integrada é a que se processa em escolas comuns, onde os cegos estudam com videntes. Até os fins do século XIX, a única maneira de a criança cega educar-se era nas escolas residenciais.

Em 1900, nos Estados Unidos, iniciou-se a colocação do deficiente visual em escolas públicas comuns, mas somente alguns anos mais tarde é que esse tipo de ensino se desenvolveu e propagou-se a outros países. Neste tipo de ensino a criança é mantida na família e freqüenta a escola comum mais próxima da sua residência, juntamente com seus irmãos e vizinhos. Ê atendida nas suas necessidades específicas, ocasionadas pela limitação visual, pela professora especializada, através das classes "braile" ou do ensino itinerante. As classes "braile" são salas de recurso instaladas em escolas públicas que contam com cinco ou mais crianças matriculadas nas classes comuns. São regidas por professores especializados que auxiliam a criança cega, proporcionando-lhe a transcrição para o negro de suas provas feitas em "braile" e a transcrição para o "braile" do seu material de leitura. Por outro lado, ensina a criança invisual a usar corretamente, com técnicas adequadas, o seu material especial: reglete, cubarítimo, sorobã, máquina de datilografia "braile", etc. Providencia, para o professor da classe comum, o material didático necessário para a objetivação do ensino, assim como orienta tanto os colegas de classes como a professora e todo o pessoal do estabelecimento na interpretação do conceito de cegueira, seus efeitos físicos e psicológicos na criança e na maneira de tratá-la adequadamente.

Pode-se avaliar, conseqüentemente o valor de um professor especializado dentro da equipe profissional que atende os casos de cegueira e a necessidade de boa formação técnica do mestre.

Os professores do ensino itinerante também seguem a mesma linha de trabalho profissional especializado, com pequenas modificações. Por fatores de ordens diversas as crianças cegas não são agrupadas em um só estabelecimento de ensino. Desse modo não pode ser instalada a classe "braile". A criança, porém, será atendida por visitas da professora especializada itinerante, que irá até a criança sistemática e periodicamente, com mais assiduidade nos primeiros anos do curso primário e mais espaçadamente no curso ginasial. Além de todas as vantagens já mencionadas no item referente aos conceitos filosóficos que orientam a educação de cegos, podemos mencionar que o lar firma o caráter do indivíduo através do exemplo e ação dos pais sobre os filhos, reforçando e intensificando as suas virtudes e potenciais. Considere-se também que a "a criança de hoje será o profissional de amanhã, que não relutará em aceitar como companheiro de trabalho aquele que provou nas competições escolares o seu valor e sua capacidade, embora seus olhos não pudessem ver" (Dorina de Gouveia Nowill).


IV - A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE CEGOS

A psicologia tem auxiliado com notável eficiência o papel do professor na educação de crianças portadoras de deficiências visuais. Em muitos outros países da Europa e da América do Norte, a psicologia, como auxiliar indispensável da educação em geral, é um fato de rotina. Assim sendo, os cegos também contam com os benefícios que essa nova ciência pode proporcionar, à sua educação e, conseqüentemente, a seu bom ajustamento social.

Na educação, a psicologia proporciona a avaliação completa da personalidade do educando cego, de suas tendências e aptidões, através de testes os mais variados.

Após essa avaliação, o aluno será devidamente orientado para o tipo mais adequado de educação, seja ela no ensino tradicional ou no ensino ativo, em classes "braile", de ajustamento, em escolas residenciais, no ensino itinerante ou no ensino domiciliar. A psicopedagogia dirá, também, se aquele aluno avaliado tem necessidade de determinadas atividades para o seu bom desenvolvimento mental, equilíbrio emocional para seu treinamento sensorial, etc.

É o psicopedagogo que, em colaboração com o professor especializado, deve estudar a adaptação de material e exercícios para o treinamento das capacidades específicas como, por exemplo, a memória, a imaginação, o fator especial e outros.

A orientação dos pais, no que se refere à educação de seus filhos deficientes visuais, com a finalidade específica de facilitar o trabalho da criança na escola, é, também função da psicopedagogia.

Outra colaboração valiosíssima da psicopedagogia à educação especializada é dada na orientação vocacional. Posteriormente à avaliação psicológica, o adolescente cego será encaminhado para as mais diversas atividades, de acordo com suas tendências e aptidões, evitando-se, dessa forma, futuros maus ajustamentos profissionais.

Quando surgem os casos de crianças-problema, é ainda a psicologia que vai resolver qual será o tratamento adequado a cada caso. Usando de recursos como a ludoterapia, o psicodrama, etc., o psicólogo ajudará a criança a resolver suas situações problemáticas e conseqüentemente, o rendimento escolar e o ajustamento social e familiar dessa criança sofrerão modificações, uma vez que a mesma terá conhecimento das causas de seus problemas e dos meios de corrigi-los ou saná-los.

A psicologia e a educação de cegos, caminhando pari passu, conseguirão, num período de tempo relativamente curto, transformar a família e a sociedade, crivadas de estereótipos da cegueira, em ambientes férteis e propícios à completa integração dos cegos.


Educação de Amblíopes

Focalizaremos neste item apenas a maneira pela qual deverá ser processada a educação de amblíopes.

A II Conferência Internacional de Educação de Jovens Cegos, realizada em 1957, em Oslo, Noruega, concluiu:

1. necessidade de uma definição de ambliopia;
2. que os amblíopes deverão ser educados como "parcialmente cegos" e não como "cegos";
3. que todos os meios auxiliares precisam ser proporcionados ao amblíope para que sua visão residual possa ser utilizada com eficiência;
4. que, para serem atingidas essas finalidades, deverá haver contínua pesquisa nas técnicas de aproveitamento da visão residual, aperfeiçoamento e adaptação de material didático adequado; pesquisa de meios óticos auxiliares; colaboração estreita entre oftalmologistas e professores.


A Conferência Interamericana para o Bem Estar dos Cegos realizada em 1961, na Guatemala, recomenda que a educação de amblíopes deverá ser feita nas escolas comuns, juntamente com os videntes. Os amblíopes, assim matriculados, serão atendidos através do ensino itinerante, por professores qualificados, especializados.

Verifica-se através dessas conclusões, que a educação de amblíopes deve ser cuidadosamente planejada pelo professor especializado, em estreita colaboração com o oftalmologista, com o psicólogo e com o assistente social, e deverá ser ministrado em conjunto com os videntes.


Educação de Cegos portadores de Deficiências Adicionais

Muitas são as crianças cegas portadoras de deficiências ocasionadas por outros fatores, alheios à própria cegueira. Cada criança, assim afetada, tem problemas diferentes e deve ser tratada individualmente, de acordo com a sua maior necessidade e com a deficiência mais grave. Entre essas crianças portadoras de dupla deficiência, encontramos os cegos-surdos e os deficientes mentais cegos.

Freqüentemente essas crianças estudam em Classes Especiais localizadas em escolas residenciais para cegos, muito embora devessem ser educadas, tomando-se por base a sua deficiência mais grave.

O papel do professor e da família na educação das crianças duplamente deficientes, é muito importante, principalmente pela colaboração que um pode dar ao outro.

A criança assim afetada, deverá receber a mesma orientação, tanto no lar quanto na escola, e essa colaboração mútua dará à criança oportunidades maiores para sua educação, evitando-se o perigo da regressão no período das férias. A Psicologia poderá ser importante auxiliar na educação dos duplos deficientes fornecendo o seu QI e as bases para o treinamento dos sentidos e da coordenação motora.

A educação de crianças portadoras de dupla deficiência exige a dupla especialização do professor. O mestre, nestes casos, precisa ser firme, estável, convincente, bom e compreensivo. Deve confiar no seu trabalho e, principalmente na criança, aceitando a lentidão e a limitação da aprendizagem, para não se sentir angustiado e frustrado. Infelizmente, algumas crianças profundamente atrasadas, não podem ser educadas. Podem, porém, ser treinadas, com muito tempo, paciência e esforço, a comer, tomar banho, a se vestir e a se entender com os outros. Podemos acrescentar ainda que tudo o que se aprende para a educação da criança normal, poderá ser aplicada na educação de crianças duplo-deficientes, com ligeiras adaptações, especiais para cada caso.

A educação de cegos no Brasil foi iniciada no século XIX, quando D. Pedro II fundou a 1ª escola residencial para cegos, Instituto Imperial dos Meninos Cegos, hoje Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, a primeira a ser instalada na América do Sul. É até hoje, a única escola oficial para cegos, mantida pelo Governo Federal. Muitas outras escolas residenciais surgiram posteriormente. Todavia, todas elas seguem os padrões tradicionais estabelecidos por Valentim Haüy, no século XVIII. Entre esses internatos, podemos citar o Instituto Padre Chico, em São Paulo; Instituto Santa Luzia, em Porto Alegre; Instituto São Rafael em Belo Horizonte; Instituto dos Cegos da Bahia; Instituto de Cegos Adalgisa Cunha, da Paraíba; Instituto de Cegos do Ceará, Fortaleza.

Apenas alguns deles, na época atual, perderam um pouco da sua característica de asilo, transformando-se verdadeiramente em instituições educacionais.

A experiência do ensino integrado de cegos no Brasil, com características profissionais e baseada em leis, foi iniciada em São Paulo, por Dorina de Gouveia Nowill, professora de cegos, com cursos de especialização nos Estados Unidos da América do Norte.

Em 1950, em caráter experimental, foi instalada no Instituto de Educação Caetano de Campos com 5 alunos cegos matriculados nas classes comuns, a 1ª classe Braile do Estado de São Paulo.

Em 1953, devidamente oficializada pela Lei 2287, de 3.9.1953, regulamentada pelo decreto nº 26.258, de 10-8-1956, continuou em funcionamento com número maior de alunos e havendo a criação de outra classe nesse mesmo estabelecimento de ensino. posteriormente, outras classes foram sendo criadas para atender às necessidades dos alunos cegos, tanto na capital como no interior. Em 1957, devido às condições topográficas e necessidades maiores das crianças cegas foi criado experimentalmente o ensino itinerante, oficializado, em 1960, através da Lei nº 5.991, de 26 de dezembro de 1960, que regulamentou a educação de cegos e amblíopes e a carreira de professor especializado no Estado de São Paulo.

Seguindo o exemplo de São Paulo, outros Estados estão iniciando o ensino integrado de cegos, podendo ser citados os da Bahia, Guanabara, Mato Grosso, Pernambuco e Alagoas. É de se esperar que dentro de pouco tempo a educação integrada seja uma realidade em todo o território nacional.

Paralelamente, observa-se a mudança que as instituições de cegos estão procurando efetivar em relação aos padrões tradicionais, transformando-se em verdadeiras casas de ensino, atualizando seus métodos e princípios pedagógicos.

O Brasil, contando com poucos recursos financeiros para a educação em geral, destina pouquíssima ou nenhuma verba para a educação de excepcionais, que passam a contar somente com algumas subvenções oficiais esporádicas e recursos particulares.

Além do problema financeiro, a educação especializada de excepcionais em geral, conta com outro sério e grave problema: número de técnicos especializados insuficiente para atender às necessidades reais desses ramos da educação.

A formação de professores, assistentes sociais, psicólogos e outros profissionais especializados, é mínima ou praticamente inexistente no Brasil muito embora seja preconizada em todas as conclusões dos mais antigos e recentes congressos internacionais de educação de cegos.

Para a educação de cegos, somente em São Paulo, capital, é que encontramos um centro de treinamento de pessoal realmente organizado de maneira regular, em caráter científico. O curso de formação de professores especializados de cegos é um curso oficializado, e estabelecido por leis, decretos e atos. Decreto-Lei nº 16.392, de 2-12-1946 - ato nº 23, de 13-5-1949, ato nº 30, de 26-6-1948 -Decreto nº 24.606- A - 31-5-1955 e Decreto nº 39.957, de 4-4-1962. Pertence ao Instituto de Educação Caetano de Campos, com a duração de um ano e constando das seguintes matérias: Efeitos Psicológicos da Cegueira, Anátomo-Fisiologia, Patologia dos Olhos e Prevenção da Cegueira, Orientação Vocacional e Reabilitação, Metodologia, Braile e Artes Aplicadas.

Todavia, a Lei de Diretrizes e Bases, dedicando o Título X à educação de excepcionais e o Plano Trienal de Educação, distribuindo verbas às Secretarias Estaduais de Educação, além do crescente desenvolvimento do Centro de Treinamento em São Paulo, proporcionarão meios técnicos e financeiros para o incremento da especialização de técnicos em benefício da educação de excepcionaiS.


1 - A Experiência em São Paulo

Em março de 1946, foi organizada por iniciativa de Dorina de Gouvêa Nowill e Adelaide Reis de Magalhães, em São Paulo, uma entidade particular sem fins lucrativos, cuja finalidade principal era a divulgação do livro em caracteres "braile": Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Com a expansão de seus serviços, a fim de atender às necessidades dos deficientes visuais em todas as idades, foram criados, nessa Fundação, diversos
departamento e serviços.

Surgindo a preocupação de atender o educando cego tanto na escola pública quanto na família e a necessidade de especialização de maior número de técnicos dentro do campo da cegueira, a Fundação para o Livro do Cego no Brasil procurou firmar um Convênio com a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação, o que foi feito, em 1955 - Decreto nº 24.714, de 6-7-1955 - prorrogado pela Lei 5.989, de 20-12-1960 modificado em 17-1-1961. Dessa colaboração mútua criou-se na Fundação o Departamento de Educação Especializado, órgão de Orientação, estímulo e planejamento da rede de unidades especiais de educação de cegos no Estado de São Paulo.

Esse Departamento possui, além da chefia, o setor de pesquisas, o setor de biblioteca tiflológica e sala de gravações, o museu pedagógico, o setor de divulgação científica e traduções, o setor de educação física, o setor de educação de deficientes audiovisuais, secretaria e duas classes, uma para educação de adultos e outra para educação de deficientes mentais cegos.

Suas funções são exercidas por pessoas qualificadas, selecionadas e devidamente especializadas. São atribuições do Departamento de Educação Especializada:

1. atendimento dos alunos através dos professores de classes Braile, de ajustamento, preparatória e do ensino itinerante.
2. Fornecimento de material especial (regletes, cubarítimos) sorobãs, papel para escrita braile e para amblíopes, lápis e cadernos para amblíopes) além de material didático cedido pelo museu pedagógico.
3. Programar e ministrar aulas individuais e coletivas de ginástica corretiva e fisioterapia.
4. Realizar pesquisas educacionais em colaboração com o IBGE, para localização de amblíopes e cegos nos diferentes municípios.
5. Orientação aos pais, através de entrevistas e organização de uma Associação de Pais e Mestres.
6. Orientação aos professores especializados através de supervisão, empréstimo de livros pela biblioteca tiflológica, publicação de revista pedagógica "Lente" e reuniões pedagógicas mensais.
7. Formação e treinamento de professores através do Curso de Especialização em Ensino de Cegos do Instituto de Educação Caetano de Campos que, por motivos de ordem técnica, funciona na sede da Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Realiza treinamento de professores de educação física, trabalhos manuais, bibliotecários, entre outros, recebendo bolsistas de todos os Estados do Brasil e também do exterior, como do Chile, Bolívia e Uruguai.
8. Colabora com outros Estados da União fornecendo técnicos para orientar novos programas de educação de cegos e amblíopes a serem instalados, no momento, através da Campanha Nacional de Educação dos Cegos.

O Convênio entre a Fundação para o Livro do Cego no Brasil e a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação criou também um Departamento de Orientação Psicológica, cujas funções principais são a psicopedagogia e a orientação vocacional.

Todo indivíduo cego ao ser encaminhado pelo Departamento de Educação Especializada, vem acompanhado de um relatório do médico oftalmologista, do assistente social e do psicólogo, tendo sido o seu caso avaliado em uma reunião de equipe, da qual participa, também um professor especializado. Essa avaliação da equipe é que dará o rumo a ser seguido pelos profissionais que trabalharão com aquele indivíduo.

Uma vez colocada a criança ou o adolescente, no tipo de educação que mais lhe convenha, o professor especializado iniciará o seu trabalho de educação propriamente dita, além da orientação aos professores das classes comuns.

A Fundação para o Livro do Cego no Brasil, trabalhou junto aos legisladores e poderes públicos e conseguiu fazer promulgar diversas leis, já anteriormente citadas, que regulamentam o ensino de cegos e amblíopes e a carreira do professor especializado.

No ano de 1963 a Fundação para o Livro do Cego no Brasil está atendendo a 173 alunos deficientes visuais matriculados ou preparando-se para a matrícula nas escolas públicas da capital e interior do Estado, sendo neste número também incluídos os alunos adultos e os portadores de deficiências adicionais.

No momento a Fundação está fazendo uma reavaliação de seus processos e métodos educativos. Uma das conclusões preliminares a que chegaram os profissionais foi a necessidade de um preparo mais cuidadoso e intensivo do individuo na fase pré-escolar, no que se refere ao treinamento sensorial e da coordenação motora.

Dessa necessidade nasceu o ensino domiciliar para crianças ou mesmo adolescentes portadores de cegueira congênita ou adquirida, que precisam de um período de treinamento sensorial e motor intensivos, antes da sua matrícula na escola comum. O professor especializado vai à casa do aluno, uma ou duas vezes por semana, e prepara-o para a sua integração na classe comum, sanando o que poderia, mais tarde, tornar-se um obstáculo para a sua educação integral.

Em caráter experimental foi criada uma classe preparatória, centralizando esse trabalho de treinamento sensorial e motor.

A base de todo o trabalho de criação e instalação de classes "Braile" e centros de ensino itinerante nos municípios do interior é a pesquisa para localização de cegos e amblíopes. Em 1956-1957, a Fundação realizou um trabalho na Capital localizando 1.489 cegos e 1.132 amblíopes. Ainda na Capital, somente entre os alunos matriculados nas escolas estaduais, foram localizados 2.102 casos de crianças com deficiência visual, num total de 229.177 alunos testados. De 1959 até 1963 foram realizadas pesquisas em São Carlos, Catanduva, Guaratinguetá, Ribeirão Preto, Botucatu, São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano do Sul, Mauá, Diadema, Ribeirão Pires e Bauru (12 municípios), tendo sido testados 353.883 alunos e localizados 1 . 502 possíveis amblíopes. Os alunos classificados como possíveis amblíopes são posteriormente encaminhados para exame oftalmológico. Com exceção dos municípios da Capital, de Catanduva e Bauru cujos resultados dos exames médicos não foram ainda tabulados, foram encontrados 13 crianças cegas e 45 amblíopes, posteriormente encaminhadas a professores especializados para o atendimento educacional adequado. Das 1.502 crianças examinadas pelos oftalmologistas 440 foram relacionadas como portadoras .de deficiências visuais graves, passíveis de correção e que não se enquadravam na definição oftalmológica de ambliopia ou cegueira. Além de ser um processo mais científico e eficiente para a avaliação exata do local em que deverão ser instaladas as classes, para atender o maior número de alunos deficientes visuais, a pesquisa tem um valor muito grande para a prevenção da cegueira, conforme demonstram os números acima referidos.

A Fundação realiza esses trabalhos de pesquisa em colaboração com o IBGE e com a Secretaria da Educação, através de seus agentes de estatística, delegados de ensino, diretores, professores e educadores sanitários:

Nos municípios, conta com a colaboração dos Prefeitos, Câmaras, Rotarianos, Lyons locais, além dos oftalmologistas e outras autoridades.

A Fundação, com essas pesquisas faz um verdadeiro trabalho social à comunidade, esclarecendo-a e alertando-a sobre os problemas ocasionados pela cegueira, pedindo a sua participação e proporcionando, finalmente, atendimento educacional adequado a seus membros deficientes visuais.

No que se refere à educação de crianças amblíopes, o Departamento de Educação Especializada da Fundação tem procurado atendê-la de acordo com as suas necessidades, através da orientação de professores especializados itinerantes e do fornecimento de material apropriado ao seu uso. Incentivou a pesquisa de ajudas óticas, conseguindo estimular a firma D. F. Vasconcelos, para a adaptação de um aparelho norte-americano "Magnifyier". Esse aparelho amplia três vezes o tamanho do eixo, projetando-o numa tela à altura dos olhos do seu leitor. A firma D. F. Vasconcelos fez o primeiro aparelho, estando agora interessada em novos estudos para a sua fabricação em série, visando também o seu barateamento de custo. As telelupas, para uso dos amblíopes, foi uma realização de D. F. Vasconcelos por iniciativa da Fundação. Além desses aparelhos, vários estudos foram realizados e agora estão sendo aprofundados para solucionar o problema da impressão de livros em caracteres aumentados. Atualmente, os livros didáticos estão sendo transcritos em máquinas de datilografia de tipos aumentados por Voluntários. Aos alunos amblíopes são oferecidos os serviços prestados através de todos os departamentos da Fundação como o material escolar necessário às suas condições visuais.

Quanto à educação de crianças cegas portadoras de deficiências adicionais o Departamento de Educação Especializada procura ministrá-la através de professores duplamente especializados, em classes de ajustamento para deficientes mentais cegos ou no setor de educação de deficientes audiovisuais. Convém salientar que a 1ª classe para crianças cegas-surdas no Brasil, encontra-se instalada no Instituto de Cegos Padre Chico, em São Paulo, com a colaboração da Campanha Nacional de Educação dos Cegos e do Serviço de Educação de Surdos e do Departamento de Educação do Estado de São Paulo (Hoje já não existe mais essa classe).

Para que a educação de cegos possa ser realizada com amplo sucesso, precisa-se ainda salientar o trabalho anônimo, mas eficiente, dos voluntários quer na transcrição de livros em caracteres braile ou em tipos aumentados, quer na função de ledores ou, ainda, como acompanhantes para atividades sociais e outras as mais diversas.

Um fato de grande relevância para a educação é a impressão de livros didáticos e de ficção em caracteres braile pela Imprensa Braille da FLCB. Esses livros são distribuídos gratuitamente a todos os Institutos de Cegos do Brasil, de Portugal, às bibliotecas braile e a todos os particulares que façam seus pedidos. Em 1962 e até junho de 1963 foram doados 34.217 obras didáticas, de ficção e exemplares das Revistas "Relevo" e "Relevinho" num total de 38.432 volumes no valor industrial de Cr$ 12.408.940,60.

A Imprensa Braile da FLCB foi a primeira a editar um dicionário da língua portuguesa.

Outro meio auxiliar de educação de cegos no Estado de São Paulo é proporcionado pela Fundação através de sua Biblioteca Circulante e Serviços de Copistas Voluntários. Os voluntários transcrevem para o braile os livros didáticos e de ficção solicitados pelos alunos, desde que ainda não tenham sido editados pela imprensa. Esses livros circulam por todo o Estado de São Paulo e às vezes até pelos Estados vizinhos, permanecendo com os educandos, durante o ano letivo. Posteriormente os volumes são remetidos à Biblioteca que os redistribui novamente a outros alunos.

No que se refere às escolas residenciais, o Estado de São Paulo possui uma das melhores no gênero, muito embora necessitando de uma maior adequação às necessidades de seus alunos. É o Instituto de Cegos Padre Chico dirigido internamente por Irmãs de Caridade e contando com uma diretoria externa leiga. Essa instituição recebe crianças desde a idade pré-escolar, dos dois sexos, proporcionando-lhes educação de nível elementar e médio (ginásio), além de alguma formação profissional adquirida pelo Ministério da Educação e Cultura. O Corpo docente do curso primário conta com professores especializados pelo Curso de Especialização em Ensino de Cegos do Instituto de Educação Caetano de Campos, já mencionado anteriormente. Outras instituições são encontradas no Estado de São Paulo, todas elas com características tradicionais de "abrigo", muito embora possuam cursos de alfabetização de adultos ministrados geralmente por pessoas deficientes visuais, sem formação profissional, sem praticamente objetivos educacionais.

A Prefeitura Municipal de São Paulo, em sua Biblioteca Infantil (sede) possui uma secção braile - Sala Dorina de Gouvêa Nowill - que proporciona leitura de ficção a crianças e adolescentes, além de procurar a integração dos deficientes visuais nas atividades recreativas que prepara para seus freqüentadores de visão normal.


A Experiência da CNEC no Âmbito Nacional

A Campanha Nacional de Educação de Cegos é um órgão do Ministério da Educação e Cultura, instituída pelo Decreto nº 33.236 de 1-8-1958 e modificada pelo Decreto nº 48.252, de 31-5-1960.

Destina-se à orientação e planejamento de programas oficiais ou particulares de educação e reabilitação de cegos, ao estimulo de novas iniciativas dentro desse campo, bem como ao preparo de técnicos, pela concessão de bolsas de estudos. Assiste financeiramente, de acordo com seu orçamento, às iniciativas de ordem pública e particular visando o bem estar social do cego, assinando convênios com Secretarias de Educação dos Estados e instituições particulares.

Onerando a verba de 1962 assinou 53 Convênios com finalidades educacionais, atendendo os Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Guanabara, Bahia, Ceará, Pernambuco, Pará, Paraíba, Espírito Santo, Minas Gerais e Alagoas. Nesse ano forneceu 37 bolsas de estudo para o preparo técnico de 4 assistentes sociais, 25 professoras, 1 professora de trabalhos manuais, 2 bibliotecários, 2 psicólogos, 1 técnico de locomoção, 2 técnicos para atividades da vida diária, tendo sido contemplados os Estados de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Bahia, Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso, Pernambuco, Guanabara, Ceará e Paraíba.

A CNEC, apesar de sua pequena dotação orçamentária, muito tem conseguido até o momento, tendo instalado um Centro de Reabilitação em São Paulo, local escolhido porque apresentava condições técnicas mais favoráveis. Quanto ao ensino integrado, conseguiu positivar os serviços governamentais de educação especializada nos Estados da Bahia, Alagoas, Pernambuco e Guanabara. O preparo de pessoal, supervisionado por técnicos especializados, tem sido uma de suas máximas preocupações.

Através da orientação adequada ou pelo planejamento cuidadoso e técnico especializado, além do apoio financeiro e preparo de pessoal qualificado, a CNEC pretende colocar em prática um plano de educação de cegos para todo o Brasil.

Esse plano constará:

1. da reforma e atualização dos padrões das instituições residenciais regionais. As escolas residenciais atenderão crianças cegas de uma região geográfica pré-determinada e as do Estado onde está situada (apenas as da zona rural ou órfãs) preparando-as para as adaptarem à vida em sociedade e devolvendo-as o quanto antes à comunidade de onde vieram para junto de suas famílias. Essas escolas residenciais deverão, assim, proporcionar a essas crianças, facilidades de aprendizagem de atividades da vida diária, treinamento para a mobilidade, locomoção e orientação vocacional.
2. Criação em todas as Secretarias de Estado de Negócios da Educação, de Serviços Governamentais de educação de cegos e amblíopes, nos moldes do que é feito em São Paulo.
3. Criação de bibliotecas braile, junto às escolas residenciais regionais.
4. Fornecimento de bolsas de estudos para preparo de profissionais qualificados, em todos os setores de trabalho dentro do campo: professores de educação física, trabalhos manuais, atividades da vida diária, locomoção, assistentes sociais, psicólogos e bibliotecários.

Para a implantação desses itens a CNEC solicitaria a colaboração dos poderes públicos e particulares, comprometendo-se a financiar a maior parte das atividades, no início dos trabalhos, através da assinatura de convênios. Por outro lado, colocaria à disposição dos interessados, os seus consultores de educação e reabilitação, além de outros profissionais contratados, de acordo com as necessidades específicas de cada função solicitada pelos interessados.

Todavia para um completo êxito desse plano, a CNEC tem necessidade absoluta e premente da realização de um censo de cegos, que é de fato o ponto de partida para qualquer trabalho honesto, eficiente, profissional e científico.

Tudo isso seria feito se a CNEC dispusesse de um bilhão de cruzeiros.

No campo da educação propriamente dito, poderiam ainda ser criados cursos de educação de adultos em todas as oficinas e abrigos de cegos; financiamentos poderiam ser oferecidos para a aquisição de material didático especializado de cegos e amblíopes, assim como regletes, máquinas de datilografia comuns, cubarítimos, sorobãs, gravadores e fitas magnéticas, além de papel para escrita braile e papel e lápis para amblíopes, aparelhos de uso pessoal, como por exemplo: relógio braile, despertadores, bengala longa, etc., jogos individuais e de grupo adaptados; utensílios de uso doméstico, como a balança de cozinha, etc. Poderia proporcionar também facilidade de importação de material inexistente no Brasil e finalmente, financiar a impressão de livros didáticos regionais, em braile, pelas imprensas do país.

No campo da reabilitação, sem entrar em seara alheia, e, acredito sem possibilidade de erro, a CNEC poderia:

1. Transformar os velhos abrigos de cegos em obras geriátricas e oficinas protegidas de trabalho para cegos, com os recursos profissionais modernos de serviço social, orientação profissional, educação de adultos, locomoção, a agência de colocação, etc.
2. Criação de centros de reabilitação nas regiões mais necessitadas e populosas, que oferecessem condições técnicas e de comunidades mais favoráveis.


Conclusões Gerais

Do exposto podemos chegar às conclusões de caráter geral:

1. A educação é direito de todos. De acordo com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em seus artigos, a educação dos excepcionais deve ser enquadrada como fato de rotina e não de favor.
2. A família e a comunidade precisam conhecer objetivamente o excepcional como pessoa igual às outras, educável, com direitos e deveres, capazes de serem útil a si e a comunidade, apesar de suas limitações, sendo necessário que se lhes dê idênticas oportunidades educacionais às concedidas aos fisicamente normais.
3. Há necessidade urgente de estabelecimento de uma definição uniforme e geral de conceito da incapacidade e da cegueira em nosso caso.
4. O estabelecimento de um conceito filosófico norteador da educação especializada, flexível às inovações científicas atuais tendo em vista que a educação é um processo dinâmico, e um fator dominante no problema de integração do incapacitado na sociedade.
5. O conhecimento do número exato dos deficientes físicos e mentais em todo o território nacional através da criação do Censo Nacional de Excepcionais, realizado, no mínimo de 10 em 10 anos é fator básico para o inicio de qualquer programa educacional de excepcionais.
6. A inclusão da educação de excepcionais nos programas Estaduais de educação como cláusula obrigatória dos convênios assinados dentro do Plano Trienal de Educação Nacional, pelos Secretários de Educação de todos os Estados brasileiros, deve ser considerada pelas autoridades como fato rotineiro.
7. Para que a educação de excepcionais seja processada com garantias de continuidade é preciso também, que se promulguem leis neste sentido.
8. A necessidade premente de preparo de técnicos em cada especialização se faz sentir para a organização completa das equipes profissionais em todos os Estados do Brasil.
9. Para que os itens anteriores possam ter a unidade necessária, torna-se imprescindível a criação de um órgão, departamento, Serviços ou uma Fundação Central de Educação Especial, com finalidade normativa, de pesquisa e de ajuda financeira aos programas de educação e reabilitação de incapacitados em todo o território nacional.

Este trabalho procurou interpretar a cegueira em todos os seus aspectos dentro do campo educacional, de maneira não muito extensa porém focalizando seus pontos básicos. Procurou legalizar a educação de cegos como está sendo feita e como deveria ser feita no Brasil.

Essa interpretação para que possa surtir os efeitos necessários e benfazejos, deverá atingir toda a comunidade: órgãos do governo, organizações particulares, poderes legislativos, a imprensa falada e escrita. Os profissionais que se encontram presentes neste simpósio, naturalmente, são os que menos precisam dessa interpretação.

Os falsos protetores e "educadores" de cegos procuram constantemente deturpar a opinião pública, criando os estereótipos da cegueira, fazendo do cego um indivíduo incapaz e digno somente de caridade. Esses estereótipos são muito proveitosos aos desígnios desonestos desses indivíduos que visam somente aos seus interesses pessoais explorando a incapacidade física ou mental, fazendo do excepcional a fonte inexaurível de seus rendimentos financeiros.

A única solução existente é promover a educação de cegos nos moldes dos planos traçados neste trabalho. Estaremos assim educando a comunidade pela demonstração prática daquilo que é capaz de realizar um indivíduo como outro qualquer, que é apenas portador de uma deficiência - a deficiência visual".

Depois da leitura dessa bonita exposição feita por uma professora especializada e de tão grande gabarito, espero que os que me lêem estejam cientes da valiosa contribuição que representam seus conhecimentos para todos nós, pais de crianças deficientes visuais.

E dentro do espírito de tudo o que foi dito, quero neste exato momento lhes fazer um apelo: do fundo da minha alma eu lhes peço, mães que têm filhos com defeitos físicos, sejam esses na visão, na audição ou em qualquer outra parte do corpo, não se desesperem, não se revoltem, não se envergonhem de seus próprios filhos. Dêem-lhes amor maduro e terno. Não os oprimam. Não os abafem. Não os tolham na expansão do desenvolvimento de suas capacidades, que lhes permitirão se realizar como pessoas humanas. Ajude-os a se ajudarem a si mesmos.

Com minha vivência, com a minha própria experiência nestes anos, eu lhes posso dizer com convicção: nós podemos educar bem os nossos filhos cegos. Não resta dúvida de que é um árduo e difícil trabalho, que temos que enfrentar uma dura batalha, contra tudo e às vezes contra todos, para conseguirmos colocá-los nos seus devidos lugares neste mundo que não pertence só à nós, mas a eles também. Porém é do nosso dever e nós temos de cumpri-lo bem, para nos sentirmos felizes.

E muitas vezes vocês indagarão como eu: por que nós, os pais de crianças excepcionais somos considerados extraordinários quando conseguimos integrá-los na vida, quando com isto cumprimos tão somente o nosso dever? Por que, após essa luta que enfrentamos contra a descrença e a compaixão dos nossos semelhantes, se saímos vitoriosos, são eles que nos julgam verdadeiros heróis, e só com este julgamento a nosso respeito se consideram satisfeitos e felizes consigo mesmos? Por que temos também que lutar contra a falta de escolas especializadas, onde eles possam se instruir ou adquirir conhecimentos para se tornarem cidadãos dignos da terra que lhes pertence?

Todas as respostas a estas perguntas encontram-se na falta de solidariedade humana, na incompreensão dos homens, e na falta de ajuda sobretudo financeira de nossos governantes.

Se cada um procurasse dar um pouco de si para auxiliar na solução dos problemas de cada um, nós não teríamos que lutar sozinhos, nós não seríamos chamados de "heróis" porque "vencemos" uma batalha, cujos adversários são nossos irmãos.

Já nos basta a luta que enfrentamos com nós mesmos para aceitarmos a nossa missão. Não nos tornem mais difícil a caminhada. Ajudem-nos, dando-nos a nós e a eles principalmente um crédito de confiança e lhes daremos em troca, eu lhes garanto, criaturas humanas bem preparadas intelectual, moral e espiritualmente e todos juntos formaremos uma sociedade sadia e venturosa.


IDADE ESCOLAR

Era chegada a hora de pensarmos mais objetivamente na escola. Sérgio estava com 6 anos, deveria iniciar os seus estudos.

Como não possuía a nossa cidade escolas especializadas, assim como também nas escolas comuns não existiam professores com conhecimento do braile e como não desejávamos uma separação dele naquela idade, quando era ainda necessária a consolidação de nossas atitudes com relação a ele, assim como também devíamos aumentar as oportunidades de mútua compreensão e amor entre ele e nós, ficamos num verdadeiro dilema. Quando estávamos à procura de uma solução satisfatória, por coincidência feliz, viemos a São Paulo e aqui visitando a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, tomamos conhecimento pela primeira vez do que existia para os cegos. Nesta visita tivemos também a grata oportunidade de conhecer Dorina de Gouvêa Nowill, presidente da FLCB e Diretora Executiva da Campanha Nacional de Educação de Cegos e exemplo de mulher forte, pois cegando aos 17 anos de idade não se deixou abater, e é ela a demonstração viva de que o cego não é uma criatura dependente, marginalizada.

Em conversa que mantivemos com ela, expusemos todas as nossas dificuldades e todo o drama que estávamos vivendo. Ela com todos os seus conhecimentos, com a vivência e experiência adquiridas no constante labutar com esses problemas nos daria com certeza uma sábia orientação. "Não se separem do seu filho", nos disse e prosseguiu, "procurem um professor particular e nós aqui remeteremos todo o material didático necessário e livros". "Continuem a educação do Sérgio como começaram, estão indo muito bem. Com relação à escola, evitem a segregação o mais que puderem, mantenham o maior tempo possível o seu filho no lar em contato com a família. Deixem-no crescer e formar a sua personalidade no meio familiar e no convívio com pessoas videntes. É o melhor".

Aceitamos e concordamos com a sua orientação, pois coincidia exatamente com o nosso ponto de vista e começamos a procurar um professor ou melhor uma pessoa capaz de dar ao Sérgio os primeiros conhecimentos do Braile. Vocês podem bem imaginar como estávamos atarantados e preocupados, atônitos e apreensivos na expectativa de solucionar bem o problema. Tudo era surpresa.

Depois de várias buscas, conhecemos por intermédio de um amigo e colega de seu pai, no jornal, um rapaz cego recém-chegado do Rio de Janeiro, onde terminara o curso ginasial no Instituto Benjamin Constant. Ele aceitou de bom grado ser o professor de Sérgio. Ficamos felizes com a solução de tão difícil problema e passamos daí em diante a viver na expectativa da primeira aula. Sérgio então não falava em outra coisa.

Quando o Sr. Sebastião Belarmino (o professor) chegou pela primeira vez a nossa casa, encontrou todos curiosos e emocionados para ver Serginho, estudar pelo sistema Braile. Ele estava muito animado e alegre, portando a sua primeira cartilha, recebido da FLCB, assim como também o material didático para a escrita.

Diariamente pela manhã, o professor acompanhado de um guia (um menino) vinha a nossa casa, onde durante duas horas dava aula. Em poucos meses, Serginho já estava lendo e escrevendo suas lições, fazendo cópias e ditados.

Era verdadeiramente surpreendente e empolgante ver os pequeninos dedos, passando por cima de uns pontos em relevo e dizendo em voz alta, corretamente, o que estava escrito no livro. Que felicidade! Sérgio estava lendo! Uma das maiores barreiras estava vencida!

Para os parentes e pessoas do nosso círculo de amizades era também desconhecido o alfabeto dos cegos e tornaram-se quase uma rotina suas presenças em nossa casa para verem Sérgio ler. Ele não se fazia de rogado, com presteza e satisfação, ia apanhar a cartilha para lê-la, deixando a todos admirados. Eu lhes digo, francamente, que, até hoje, ainda fico deveras empolgada ao presenciar Sérgio lendo e intimamente rendo minhas homenagens a Louis Braille, o inventor deste maravilhoso sistema de leitura e escrita para os cegos.

Falarei agora, sobre Louis Braille e o sistema inventado por ele, pois sei que uma grande maioria de pessoas desconhece completamente o assunto. Vejamos alguns dados: Louis Braille, nasceu na França, em 4 de fevereiro de 1809 e faleceu em 6 de janeiro de 1852, com 43 anos de idade.

Perdeu a visão aos 3 anos de idade em conseqüência de um acidente. Fez rapidamente progressos notáveis, na escola especial e aos 20 anos era auxiliar do Diretor. Lecionou geometria, álgebra (suas matérias prediletas) e música. Foi também organista em diversas igrejas de Paris.

Desde 1829 que o sistema Braile é conhecido. Os sistemas de caracteres latinos em relevo e outros empregados anteriormente não haviam dado resultados satisfatórios. A instrução literária e musical dos cegos baseava-se, em grande parte, em métodos orais, sendo impossível uma escrita tátil. O alfabeto de Braille em troca tornava-se facilmente legível com o dedo. A ordem dos pontos em diferentes posições, para representar determinadas letras e grupos de letras, deu à educação dos cegos uma ordem e estabilidade até então desconhecidas.

Braille convenceu-se que podia aplicar o seu método universalmente à música e às outras matérias, e ficou comprovada sua adaptação a todos os fins.

Ainda se idealizaram e empregaram outras formas de sinais em relevo, mas a superioridade do sistema Braile baseia-se em ser uma obra genial. Só ele como cego poderia ordenar os pontos em grupos que correspondessem exatamente às necessidades do sentido cio tato.

O sistema Braile originou-se de certo modo da escrita sonográfica (por meio de sons) de Charles Barbier, mas este depois rendeu homenagens a Louis Braille, pela invenção do seu sistema, reconhecendo a superioridade da invenção.

Tem por base o sistema Braille, seis pontos em relevo, colocados na seguinte posição vertical de duas colunas, numerados de cima para baixo e da esquerda para a direita: 1,2,3 e 4,5,6.

Conforme a junção ou não de um pontinho com outro, sem sair daquela posição, formam-se 63 sinais, usados para a leitura, matemática, geometria, álgebra e musica.

As letras acentuadas diferem das comuns ou simples, são feitas com outros pontos. Por exemplo a letra e simples é de uma forma e a acentuada é de outra. Existem convenções para a escrita dos números e letras maiúsculas, assim como abreviaturas, a fim de tornar menor certas palavras e conseqüentemente menor o livro. Para vocês terem uma idéia, um livro escrito por extenso no sistema Braile, se à tinta ele possui 430 páginas, depois de transcrito passará a ter 5 volumes, num total de 980 páginas.

Existe uma regulamentação sobre o uso do sistema Braile no Brasil pela Lei 4.169, de 4 de dezembro de 1962; "oficializa as convenções Braile para uso da escrita e leitura dos cegos e o Código de Contrações e Abreviaturas Braille". E antes já existia uma uniformização dos códigos de abreviaturas para línguas de um mesmo tronco, com a criação pela UNESCO do Conselho Mundial de Braile, e cada ano que se passa com o desenvolvimento atingido pela educação de deficientes visuais, novos estudos são feitos com o fim primordial de facilitar o mais possível a escrita e leitura do sistema Braile, meio de comunicação dos cegos.

Para escrever manualmente, o cego usa a reglete e o punção. Na reglete é colocado o papel (papel especial, o comum não serve) e o punção é o "lápis". Existe também máquina de escrever Braile, mas somente de fabricação estrangeira, portanto de difícil aquisição. Para fazer cálculos matemáticos são usados o cubarítimo e o sorobã.

Sérgio possuía todo esse material didático, fornecido pela Fundação para o Livro do Cego no Brasil, menos a máquina de escrever que viria a adquirir depois.

Em menos de um ano, fez a alfabetização, mas o Sr. Belarmino, por motivos particulares suspendeu as aulas e nos vimos novamente à procura de professor.

Enquanto aguardávamos uma solução, a fim de que ele não ficasse sem estudar completamente, sua irmã que na época fazia o 4º ano primário e eu continuamos a ensinar-lhe, dentro de nossas possibilidades: transcrevi toda a sua cartilha à tinta acima dos caracteres Braille, para poder lê-la e lhe ditar as lições; sua irmã, por sua vez, conseguiu dar-lhe bastantes conhecimentos, brincando de escola, e ele, para nossa satisfação, continuou se desenvolvendo intelectualmente, aprendendo bem todas as lições. Assim se passaram oito meses e nada de se conseguir um novo professor. Resolvemos então, contando com a boa vontade e interesse do Diretor do colégio, "Christus", Dr. Roberto de Carvalho Rocha, homem jovem, mas de larga visão, matriculá-lo nesse estabelecimento, no 2º ano primário.

Apesar de todo o esforço e dedicação da professora, não tinha Sérgio o aproveitamento desejado, uma vez que na classe era apenas um aluno-ouvinte. Não podia exercitar-se na leitura e principalmente na escrita Braile e isto muito o prejudicava. Seus deveres, a professora os escrevia num caderno comum, para que eu em casa lesse
para ele. Eu mesma escrevia à tinta suas respostas. Havia também outro fator mais importante: a falta de aceitação e compreensão dos seus colegas videntes, assim como o despreparo da professora, trazendo para Sérgio e para nós os problemas: para ele prenúncios de desajustamento e para seus pais medo de que ele fosse prejudicado no seu auto-conceito. Para que não se agravasse essa situação, retiramo-lo do colégio.

Entramos em contato com o Instituto de Cegos do Ceará, e através de pessoas que lá trabalhavam, conhecemos os Srs. Galvino e José Esmeraldino Vasconcelos, ambos cegos, com curso ginasial completo no Instituto Benjamin Constant.

Depois de entendimentos, ficou acertado que o sr. Galvino daria aulas particulares a Sérgio em nossa residência, mas somente duas vezes por semana. Era um professor exigente e compenetrado e com ele Serginho fez com muito aproveitamento o 3º e 4º anos primários. Para fazer o 5º ano primário, ele teria que se matricular num estabelecimento de ensino, por ser exigida a freqüência escolar. Desta vez, porém, para alegria nossa, não teríamos nenhum problema, pois Serginho encontraria no Educandário Padre Anchieta o Sr. José Esmeraldino, que além de criador e diretor dessa escola, seria seu professor. Quanto a esse Educandário, há uma particularidade muito interessante e boa, apesar de dirigido por cego, a maioria dos alunos é vidente. Assim os poucos alunos cegos ali matriculados estudavam sempre com a assistência efetiva do professor cego, pois todas as outras professoras eram videntes.

Esses dois homens vêm trabalhando em prol do bem-estar dos cegos no Ceará, dando a sua valiosa colaboração, inclusive com os seus exemplos de força de vontade, superando todas as dificuldades.

Ao Sr. Sebastião Belarmino e a estes dois professores a nossa eterna gratidão, pois foram eles os precursores da luz intelectual e espiritual, na alma do nosso filho.

Como não era reconhecido oficialmente o Educandário Pe. Anchieta, ao terminar o 5º ano, Sérgio não seria promovido à 1ª série ginasial, teria que se submeter ao exame de admissão em outro estabelecimento.

Voltamos ao "Christus", onde mais uma vez contamos com a boa vontade do seu diretor, e lá Sérgio, e outro colega (cego também) prestaram o exame.

Ambos foram colocados em uma sala, separados dos demais alunos (videntes) e uma professora lia em voz alta os quesitos da prova e eles escreviam as respostas numa máquina de escrever Braile e, à medida que iam resolvendo os quesitos, diziam em voz alta, à professora e esta, por sua vez os escrevia em tinta no papel comum da prova. Numa turma de 100 alunos, todos videntes, ambos tiraram os primeiros lugares. A maior nota de português foi de Sérgio; sua redação foi elogiada por todos os professores, a autenticidade de suas palavras era tal que jamais se poderia supor que tivessem sido escritas por uma criança cega. Tinha ele e tem ainda muita facilidade para expressar-se e nós procuramos cultivar-lhe este pendor, trazendo-o sempre bem informado de tudo e sobre tudo. A palavra sempre lhe fluiu fácil, e não se fazia de rogado quando em reuniões familiares para comemorarmos aniversários ou qualquer outra festividade, era chamado para fazer uma saudação, ou uma breve oração. É conhecido como o "orador oficial" da família.

Voltando ainda ao exame, o seu colega tirou a maior nota de matemática, e veio estudar no Instituto Benjamin Constant no Rio de Janeiro. Foram ambos verdadeiras "vedetes" no colégio, os jornais os entrevistaram e publicaram também os seus retratos, os pais dos outros alunos, os alunos, todos os crivavam de perguntas e ficavam admirados de ver-lhes o desembaraço e a inteligência.

Sérgio enquanto cursava o primário, freqüentava também o Conservatório de Música, pois como disse anteriormente, sempre teve facilidade para tocar piano. Aos nove anos de idade já havia aprendido a executar sozinho (de ouvido) algumas músicas, mas desejando ampliar os seus conhecimentos musicais, começou no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, onde encontrou na pessoa da professora Vanda Ribeiro Costa uma dedicação e um interesse fora do comum. Sem saber o Braille, sem especialização, ela conseguiu com amor e paciência transmitir-lhe oralmente os conhecimentos musicais que achava necessário. Era a sua maior fã e incentivadora e dizia sempre que ele seria um grande músico.

Dona Vanda era chamada por Sérgio de "minha mãe da música", não sendo esquecida por ele que até hoje lhe dedica um carinho todo especial.

Com ela, Sérgio, aprendeu teoria musical e técnica de piano, mas teve logo que suspender as aulas, porque não havia mais possibilidade de, no Conservatório, aumentar os seus conhecimentos, ninguém sabia o Braile, por conseguinte tinha que parar. Mas ele continuou indo ao Conservatório, para cantar e acompanhar o coral nos seus ensaios, ajudando D. Vanda a descobrir os desafinados, pois ele possui ouvido musical.

Era sempre convidado para tocar em festas no colégio onde a irmã estudava, no colégio onde eu estudei, inclusive me acompanhando ao piano e nas festas da nossa Paróquia. Em casa sempre havia pessoas que vinham especialmente ouvi-lo tocar e ficavam todos admirados com a sua facilidade de execução. Qualquer música que conhecesse, quando solicitado, imediatamente tocava com arranjos de sua autoria e improvisando.

Compôs diversas músicas, mas como não podia copiar, as esquecia. Dentre elas, porém, se sobressaiu um samba para o Carnaval, cujo titulo é "Promessa de Folião". Com o incentivo de pessoas amigas, ele mesmo a gravou nos estúdios da Rádio local (Fortaleza) dos Diários Associados e, depois por intermédio do Diretor dessa mesma estação de Rádio, foi ela levada para o Rio fie Janeiro e gravada por um cantor de lá. Algumas vezes tivemos a satisfação de ouvi-la nas emissoras locais... ficou por aí...

Cada dia víamos com alegria que ele se desenvolvia bem, mental e espiritualmente. Era uma criança amadurecida, precoce mesmo, ávida de conhecimentos e com grande poder de assimilação. Para satisfazer a sua constante curiosidade tínhamos que estar atualizados sobre todos os assuntos. A cada momento, nós víamos com alegria que desapareciam dos olhos das outras pessoas a tristeza e a descrença ao vê-lo, porque ele se comportava como uma criança normal, autêntica.

Em fins do ano de 1964, aconteceu um fato que movimentou toda a família: após doze anos do nascimento de Sérgio, estava eu à espera de um filho. Foi uma grande novidade. Francamente, não desejávamos, principalmente eu, outro filho, mas agora era fato consumado e como tal aceito.

A família toda ficou contente e em alvoroço, especialmente Eliana e Sérgio, na expectativa de mais um irmãozinho. Para o último, então, causou um verdadeiro impacto a notícia. Começou a me crivar de perguntas. Já iniciara a dar a ambos as informações sobre o processo da criação humana. Eliana já era uma mocinha e para ela não tive dificuldade nas explicações; quanto a Sérgio foi mais difícil, com perguntas de todo o tipo e a toda hora... "Como a sra. sabe que está grávida? Como as crianças nascem? Fui lhe respondendo todas com informações adequadas ao seu entendimento.

Entusiasmado e interessado, acompanhou a minha gravidez querendo saber tudo. Gostava de apalpar o meu ventre e nele colocar o ouvido para ouvir e sentir os movimentos do bebê. Sentia temor e apreensão por mim, julgando que eu sofria por estar naquele estado e me cobria de carinho e atenções. Quando eu me sentia mal, ele dizia: "os filhos precisam querer muito às suas mães, para pagar esse sofrimento". Aliás, não gostava de saber que alguém em casa estava doente, de modo especial a minha pessoa. Era pródigo de solicitudes, procurando me dar o mais rápido possível, um remédio que curasse. Cuidava também de sua própria saúde e, por sua própria iniciativa era levado sempre ao médico e tomava qualquer remédio que lhe fosse receitado. Para ele era horrível a doença e para nós insuportável vê-lo doente, acamado, parado e ainda sem nada ver...

Em agosto de 1965, dia 12, nasceu Eveline: forte, sadia e perfeita, veio aumentar a alegria do nosso Lar. Os irmãos ficaram contentíssimos com a sua chegada. Deus no-la enviava para não ficar muito vazia a nossa casa, com a saída de Sérgio, pois já nos preparávamos para enviá-lo para São Paulo.

Durante os meses de espera, quisera saber de mim sobre o seu próprio nascimento e quais tinham sido as nossas reações ao sabermos de sua cegueira. Contei-lhe tudo, sem esconder nada. Ele escutava, tirava as suas conclusões e algumas vezes emitia a sua opinião, mas graças a Deus, via-se perfeitamente que não sofria, estava conformado, já se aceitara a si mesmo.


O INÍCIO DA ADOLESCÊNCIA - O GINÁSIO

Sérgio aos 12 anos de idade, vencia a primeira grande etapa: terminara o curso primário.

Já era sabido que não havia condições para ele fazer, em Fortaleza, o seu curso ginasial. Não havia mesmo nenhuma possibilidade. O nosso desejo era que ele fizesse o curso ginasial numa escola especializada, para poder se preparar bem, com um total aproveitamento nos estudos e aprendendo a usar cada vez melhor os instrumentos adequados para o seu perfeito ajustamento.

A solução seria mandá-lo estudar em outro Estado, e foi exatamente o que resolvemos. Demos preferência a São Paulo, porque lá moravam há muitos anos pessoas da família: três irmãos do meu marido e suas respectivas famílias, e assim Sérgio não ficaria tão sozinho.

Entramos em contato com parentes de uma ex-Superiora do Instituto Padre Chico (cearense por sinal) que residem em Fortaleza e através deles tivemos informações sobre esse estabelecimento. Ficou decidido que Sérgio ficaria interno, saindo todos os fins de semana para a casa dos tios. Ficaria interno, é bem verdade, mas a segregação para ele a esta altura, já não nos preocupava tanto, pois, graças a Deus e aos nossos esforços, ele estava com a sua personalidade formada. Os alicerces estavam bem estruturados e não havia porque temer o seu desmoronamento. Não haveria mais possibilidade de nenhum abalo nos seus conceitos. Se a parte mais importante e mais difícil de sua educação, ele a havia formado entre videntes, no mundo em que ele iria viver, tínhamos certeza de que não abalaria a sua formação a permanência de alguns anos entre seus iguais. Disso estávamos certos e dentro deste espírito de confiança, começamos os preparativos para a viagem.

Esta nossa decisão de mandar Sérgio estudar em outro Estado, longe dos pais, causou um verdadeiro impacto entre os parentes. Não concordaram, em absoluto, com a nossa idéia, com raras exceções. Muitos deles, parece incrível, chegaram a me achar desumana, por eu ter a "coragem", como diziam, de me separar do meu filho cego. Para a tia-avó, que residia conosco, então, que era toda desvelo e cuidados, foi uma verdadeira catástrofe. Ela não se conformava com a separação e, na sua concepção, ele deveria viver eternamente junto aos seus pais, porque não teria jamais possibilidade de fazer sua vida sozinho. Chorava pelos cantos da casa, escondida para que não a víssemos, pois bem sabia que não a apoiávamos.

Concorreu para reforçar nossa decisão, não só a vontade de Sérgio em continuar os estudos, como também o fato de ter ele inteligência e capacidade de conseguir situações melhores no futuro, sendo mais bem preparado. Para ele também seria uma nova experiência. Longe dos pais, teria maiores oportunidades de se afirmar e aprender desde logo a ser mais independente. Eu tive mesmo coragem, mas a verdadeira coragem e força de vontade para sobrepujar a separação, e enfrentar as ponderações apresentadas pelos parentes, porque eu tinha a convicção de que estava agindo corretamente. Eu não devia conscienciosamente, por egoísmo, para ter sempre perto de mim o filho cego, privá-lo de nada que lhe frustrasse ou interrompesse a trajetória de sua vida que se prognosticava de sucessos. A razão falou mais alto do que o coração. Assim era necessário e assim foi feito.

Na primeira quinzena de fevereiro de 1966, saímos de Fortaleza, de automóvel, rumo a São Paulo, para levarmos Serginho a fim de interná-lo no Instituto Padre Chico. Eram quatro os seus acompanhantes: o pai, o Dr. Barbosa, amigo nosso, sua irmã e eu.

Fizemos uma viagem muito boa e divertida, apesar da tensão que existia entre nós. Ele tomava parte atuante em todas as brincadeiras e à medida que lhe descrevíamos as paisagens e cidades que víamos, ele as ia registrando no seu gravador. Ele mesmo teve a idéia, e fazia sozinho entrevistas gozadíssimas com os tipos característicos de cidades por onde passávamos. Onde quer que descêssemos era ele o centro de atração, pela sua cegueira é bem verdade, porém mais, muito mais, pela sua vivacidade e extroversão. Era um menino espontâneo e comunicativo.

Durante toda a viagem se interessava em saber tudo, em conhecer o que existia ao seu redor. Vejam este exemplo: quando saímos de Fortaleza, era nosso desejo passar pelo Rio de Janeiro, mas depois verificamos a impossibilidade de isso acontecer, pois iria atrasar a nossa chegada a São Paulo. Para ele foi uma contrariedade, pois era seu desejo "ver" aquela cidade.

Chegamos à capital paulista após uma semana de viagem e ficamos hospedados na casa de um de seus tios, o que seria responsável mais diretamente por ele, enquanto permanecesse no internato.
No dia seguinte, fomos ao Instituto de Cegos Pe. Chico para acertarmos os detalhes finais da internação de Sérgio.
Logo de início tivemos uma magnífica impressão: tudo muito limpo, jardins bem cuidados, denotando um ambiente de ordem e paz, o que aliás, para nós, não constituiu surpresa, vez que os familiares da Irmã Pontes, residentes em Fortaleza, já haviam nos dado as melhores referências sobre o Instituto.

Ao penetrarmos naquele casario enorme, ao ver as salas de aula, o pátio do recreio, o refeitório, aqueles imensos corredores brilhando de tão limpos, senti um misto de tristeza e alegria. Tristeza pela saudade e por ter que me separar dele. Alegria por saber que Serginho encontraria ali o ambiente adequado para bem se formar intelectual e moralmente. Mas eu lhes digo sinceramente, eu não sofria mais com essa separação, porque julgava-a inevitável, pois permanecendo em nossa cidade, jamais ele poderia chegar ao que desejávamos: tornar-se cada vez mais, apto a enfrentar sozinho as dificuldades que se lhe apresentassem, a superar suas limitações e sentir-se sempre mais feliz consigo mesmo.

O meu desejo de vê-lo realizar-se era tão grande, que eu não me lembrava nem de sofrer a sua ausência.

Ele estava bem disposto e feliz. Queria "ver" tudo e saber de tudo com relação à escola.

Depois de conversarmos com a Irmã Superiora, fomos levados à presença da Assistente Social para uma entrevista, primeiramente conosco e depois com Sérgio. Satisfeitas todas as exigências, foi feita sua matrícula.

Vejamos um pouco da história desse estabelecimento de ensino: o Instituto de Cegos Padre Chico é uma entidade de ensino para cegos normais. Único na sua especialidade em todo o Estado de São Paulo. Em todo o Brasil só existem mais dois estabelecimentos idênticos, um em Belo Horizonte e outro em Porto Alegre.

Nasceu ele da generosidade dos corações paulistas, em resposta ao apelo do Dr. José Pereira Gomes, em 7 de setembro de 1927. As autoridades estaduais, municipais e eclesiásticas acolheram com interesse e entusiasmo a idéia da fundação de um instituto para cegos e proporcionaram todo o amparo possível.

O Arcebispo de São Paulo, D. Duarte Leopoldo, encarregou um grupo de senhoras para concretizarem a feliz idéia, e assim em 7 de outubro de 1927, Sua Excia. já presidia a primeira reunião. Grandes vultos da sociedade paulista acorreram com seus auxílios: D. Elza Paula Souza ofereceu o terreno, subordinando essa doação à denominação de PADRE CHICO a ser dada ao futuro instituto, em memória do Mons. Francisco de Paulo Rodrigues. Em 21 de abril de 1928, o conde Vicente de Azevedo doou mais um terreno para ali ser erguido um pavilhão com o nome de D. Antônio Alvarenga. Em 27 de maio de 1928, foi lançada a primeira pedra do novo estabelecimento e, em 4 de novembro de 1929, lançou-se a primeira pedra da Igreja, cuja padroeira é Sant'Ana, oferta de D. Ana do Amaral Borges, que guarda os despojos mortais do Mons. Francisco de Paula Rodrigues (Padre Chico).

Com vultosas quantias dos Srs. Conde de Lara, Dr. Antônio de Castro Prado e a cooperação do povo foi o Instituto inaugurado a 29 de setembro de 1929. Construíram-se as primeiras oficinas que começaram a funcionar em 15 de fevereiro de 1930.

Atualmente conta o Instituto com 1 Igreja, 10 pavilhões, 1 piscina, 2 oficinas industriais e 2 galpões, uma área de 16.000 m2.

A direção interna do Instituto foi entregue às Filhas da Caridade de São Vicente de Paula, sendo sua atual superiora a Revda. Irmã Apoline Camargo.

A entidade é dirigida por uma Diretoria não remunerada, composta de Assistente Eclesiástico (Delegado da Cúria Metropolitana), Presidente, Vice-Presidente, 1ª e 2ª Secretárias, 1ª e 2ª Tesoureiras, escolhidas entre as sócias ativas, por eleição de 3 em 3 anos, ou então por nomeação feita pelo Sr. Arcebispo de São Paulo. A atual Diretoria é a seguinte, nomeada e empossada em abril de 1967, por S. Excia. Revma. D. Agnelo Rossi:

Assistente Eclesiástico: Pe. João Bosco Galvão Camargo
Presidente: Filomena Pucci Reale
Vice-Presidente: Lúcia Venere Décourt
1ª Secretária: Olenca Reda Macedo Pio
2ª Secretária: Elvira da Conceição Pires
1ª Tesoureira: Maria Padilha Camargo (Irmã)
2ª Tesoureira: Isaura Lopes Cazzali

A Instituição tem por finalidade educar e instruir crianças de QI normal, de todas as classes sociais sem distinção de raça ou credo religioso.

As crianças são acolhidas gratuitamente, recebem educação e instrução especializadas (pré-primária, primária, ginasial orientadas para o trabalho, artes industriais, educação doméstica, datilografia, locomoção e música e toda assistência (médica, dentária, alimentar, material escolar, etc.).

Funciona o Instituto de Cegos Pe. Chico em regime de internato, semi-internato e externato, para crianças de ambos os sexos em idade escolar. A sua matricula total, atualmente é de 230 alunos, sendo 120 do sexo masculino e 110 do sexo feminino.

Através de seu pessoal especializado e de seus órgãos técnicos, conta a instituição com: Serviço Social, Serviço de Psicologia, Serviço Médico, Serviço Odontológico, Setor de Fonoaudiologia e Setor Educacional.

O curso primário conta com atividades extracurriculares, como o Clube do Cuidado e o Clube de Leitura. Procurando atender às suas necessidades, conta o curso primário com sala de material pedagógico, biblioteca e sala para aulas de modelagem.

O curso ginasial especial para cegos, com Fiscalização Federal, seguindo a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino, foi transformado em ginásio orientado para o trabalho, com opção federal, recebendo orientação direta da Inspetoria Seccional de São Paulo. Em decorrência desta transformação foram introduzidas as áreas de Artes Industriais e Educação Doméstica. Conta em suas instalações com sala ambiente para Geografia, sala de Ciências, salas ambientes para Educação Doméstica e Oficinas de Artes Industriais. Como atividades extracurriculares conta o curso ginasial com o Grêmio Estudantil "Castro Alves".

Possui o Instituto como cursos complementares: curso de locomoção, curso de datilografia em duas modalidades: datilografia comum e datilografia Braile; cursos musicais que compreendem: Banda composta de 46 elementos, coral misto, conjuntos musicais, cursos de piano, violino, de acordeão, de violão e de iniciação musical por meio da Bandinha Rítmica, onde os pequeninos ingressam no mundo da musica.

As atividades diversas são: Associação dos Ex-Alunos, Associação de Pais e Mestres, Grupo Escoteiro, Cristo Rei e 2 Bibliotecas: sendo 1 em caracteres Braile e 1 comum. A primeira possui 624 livros, 275 títulos, 388 Revistas e 11 títulos; a segunda vive em constante atualização para servir ao seu corpo docente.

Procura ainda o Instituto orientar e encaminhar os seus alunos no após escola (primária) de acordo com suas inclinações e aptidões e outros cursos ou SENAI. Este mantém um Departamento especializado na colocação de cegos na Indústria: não só selecionando-os como os preparando e acompanhando-os durante um determinado tempo.

Como puderam verificar, os cegos do Brasil encontram no Instituto de Cegos Pe. Chico todas as condições necessárias à sua formação integral.

Era então nesta escola que ficaria nosso Sérgio, mas nós estávamos tranqüilos em deixá-lo aí, porque tínhamos certeza de que havíamos conseguido através do nosso amor e dedicação formar a sua personalidade livre de traumas e conflitos; estávamos tranqüilos porque tínhamos certeza de que nenhuma influência negativa conseguiria penetrar no seu espírito, procurando modificar de alguma forma o conceito que ele formava de si mesmo e dos outros.

Nesse novo ambiente ele por certo muito teria que aprender.

Depois de uma permanência de dez dias em São Paulo, regressamos a nossa casa, sentindo que deixávamos nessa cidade um pedaço de nós mesmos.

Na despedida ele não chorou, porque dissera, eu soube depois, que não queria demonstrar fraqueza, mas nós com um nó na garganta, quase não podíamos falar.

A volta para casa foi bastante diferente e aí o ambiente era de tristeza. A saudade dele era muito grande. Eliana, então, chorava e reclamava a falta do irmão e companheiro de folguedos. Passamos daí em diante, a viver da espera de suas notícias. Era um dia de alegria quando tínhamos nas mãos uma cartinha sua. Nos fins de semana ao sair para a casa do tio, ele ditava e a tia escrevia a carta. Talvez seja uma falha minha, porém até hoje não sei o Braille.

Vejam alguns trechos de suas cartas, para que possam aquilatar a sua maneira de pensar, de sentir a vida e de se expressar: "... minha vida aqui tem sido boa, embora as saudades me atormentem a cada momento, mas como sei que tudo isso é para o meu próprio bem, procuro compreender sempre que as mesmas apertam. Espero recompensar esses dias de tristeza com tudo que vocês esperam de mim, isto é, boas notas, bom comportamento, para que no futuro possa ter algum valor perante a sociedade".

Outra carta: - "... aqui tudo muito bem, minha vida no colégio tem transcorrido normalmente, já começando a aparecer as primeiras notas 10. Quanto à música, vai indo às mil maravilhas, pois à custa de estudos, consegui decorar os sinais musicográficos em Braile, significando que posso ler algumas músicas. Esqueci-me de dizer, no domingo passado fui passar o dia na casa do Ercílio (noivo da prima) e de lá fui até a casa do maestro do Instituto Pe. Chico, onde toquei bastante piano, acompanhado pelo Luizinho (filho do Maestro) que é cobra na bateria. O Maestro firmou-se na idéia de nos levar ao Canal 7, para tocarmos na "Jovem Guarda", pois o duo saiu perfeito. No mais, é só saudade, que não me deixará nunca, saudade de tudo e de todos, mas assim é a vida, quem não sofre não vive".

Em outra carta ele diz - "Folguei muito contente em saber que compraram outro carro, melhor do que o que possuíamos. Cuidado "velho" com os "papagaios". Mandem me contar tudo sobre o desenvolvimento da Eveline".

Como vêem, era ele um menino perfeitamente integrado e interessado em saber tudo que se relacionasse com a família. E acima de tudo era muito conformado, como puderam constatar pelas suas palavras.

Nas férias de julho, ele viajou sozinho de avião para passá-las conosco em Fortaleza. Chegou todo compenetrado, se julgando um homenzinho.

No aeroporto, toda a família foi recebê-lo com muita alegria e o pai levou até um fotógrafo para tirar-lhe uma fotografia e publicá-la no jornal, com notícia de sua chegada.

Estávamos ansiosos para ouvir, de viva voz, sobre sua vida no colégio, perscrutar bem suas reações emocionais com relação à separação e saber quais os seus pontos de vista sobre a permanência distante da família.

No decorrer da conversa, notamos o quanto lhe estava sendo difícil ficar separado do nosso convívio.

Estava exatamente na adolescência, quando se evidenciam novos aspectos da personalidade, atravessando esta perigosa época de transição, necessitava, portanto, de nossa presença ativa e atuante e além do mais, era-lhe insuportável a saudade que sentia de nós, de sua casa. E nós, também, já havíamos verificado a impossibilidade de continuarmos separados, não só pela saudade, mas também pelo desejo e necessidade de continuar a dar-lhe pessoal e diretamente a nossa assistência. Evidenciamos que a mudança de ambiente, somada à fase difícil de transição que ele estava atravessando, poderia adiar por um período mais longo o desenvolvimento do seu processo de integração e nós não queríamos absolutamente que isso acontecesse. Se era necessária a nossa presença permanente, se assim o exigiam as circunstâncias da vida como constatamos, estávamos dispostos a mais um sacrifício, a fim de chegarmos à meta que nos tínhamos proposto.

Se, no início do ano, ao deixá-lo, já vislumbrara seu pai a impossibilidade de suportarmos a separação, daí em diante começava aquela idéia a se transformar em realidade: viríamos todos morar em São Paulo.

Foi essa mais uma decisão que tomamos, depois de estudarmos e discutirmos em família. Era o certo. Nada nos impedia de concretizarmos esse desejo, essa necessidade que sentíamos de permanecermos todos juntos.

Sérgio à medida que se inteirava do assunto e da nossa resolução, ficava ora feliz, ora preocupado, apreensivo e triste, por se achar o causador da modificação nas nossas vidas. Ele sofria por sentir nos familiares a incompreensão, a falta de conformação com a nossa saída do convívio deles. Sim, de fato, algumas pessoas da família não compreenderam ou não queriam compreender o nosso gesto, a razão do nosso proceder, por egoísmo, talvez, ou pela falta que lhe faríamos. Outros, no entanto nos compreenderam e nos louvaram: sofreriam pela saudade, pela ausência. Meus irmãos, então, que sempre tiveram em mim uma amiga e conselheira a quem recorriam quando necessitavam, não se conformavam com a separação, mas sabiam da necessidade que eu tinha de acompanhar meu filho.

Para evitarmos que Sérgio ficasse traumatizado ou com algum sentimento de culpa, mostramos-lhes através de palavras convincentes que decidíamos acompanhá-lo, não só por ele e para seu próprio bem, mas também por nós mesmos, para a nossa própria felicidade. Não deveria ele, de forma alguma, se preocupar com a incompreensão e a falta de apoio de alguns, quando em sua casa, seus pais e sua irmã estavam tranqüilos e felizes por já terem solucionado definitiva e conscientemente o problema: o de a família permanecer junta, lutando "um por todos e todos por um", num só caminho da vida. Que a separação só traria prejuízos para ele e para nos. Sabíamos exatamente o que queríamos e possuíamos muita força, muita coragem e muita fé.

Magoou-me a atitude de alguns parentes, porque eu gostaria naquela hora de receber estímulos e compreensão, mas como estava por demais preocupada e não dispunha de tempo para pensar e sofrer por outro assunto, os ignorei, os esqueci.

Saudades. Incompreensões. Tínhamos que esquecer para não sofrer, porque não podíamos nos afastar daquilo que já estava determinado e acertado. Deixaríamos a nossa gente, a nossa terra, os nossos amigos, a vida boa e provinciana de nossa cidade onde éramos bem relacionados e estimados; deixaria o pai o jornal onde dedicara a maior parte de sua vida (27 anos) e que era "a menina dos seus olhos", para enfrentarmos a vida difícil e anônima de uma cidade gigante e fabulosa, mas nada nos intimidava, nada nos importava se tínhamos um dever a cumprir. Custasse o que custasse, estávamos firmes e inabaláveis para levarmos avante o cumprimento do que mais desejávamos na vida: o bem dos nossos filhos e particularmente a integração de Sérgio e isso só seria possível com a família reunida.

Ao voltar Sérgio para São Paulo, no final das férias, (viajou sozinho novamente), já levava a certeza de nossa ida, definitivamente, para aquela cidade. Para ele e para nós, foi mais suportável a separação, porque já antegozávamos a felicidade de não mais nos separarmos.

Começamos os preparativos para a mudança, dentro de um clima tenso e desencorajador. Nós dois estávamos praticamente sozinhos, mas muito bem apoiados um no outro.

Um mês antes da viagem, já recebíamos homenagens dos parentes com almoços e jantares e do nosso círculo de amizades com banquetes como o dos colegas da Repartição onde trabalhávamos e da qual, na época, o meu marido era dirigente; como o dos colegas do jornal onde houve discursos, emoções e lágrimas. Particularmente fomos homenageados pelos amigos, todos desejosos de nos mostrar o quanto nos estimavam e quanto sentiam a nossa ausência; recebemos também homenagem de colegas jornalistas através de citações nas colunas sociais e de crônicas belíssimas publicadas nos jornais da cidade. Aqui está uma delas, de uma cronista amiga que com suas palavras de carinho e amizade nos tocou fundo o coração: "Corações que amam", de Adísia Sá:

"Dias atrás lia eu uma noticia que muito me emocionou: tratava-se de algo que me encheu o coração de alegria, porque dizia respeito ao filho de um velho companheiro.

É a história da vida deste infante, eu a acompanho com profundo carinho e calor humano porque é de lutas, de grandeza e heroísmo.

Um menino sem a luz dos olhos, sem a visão, sem o poder da claridade é uma lição de humildade para todos os homens, principalmente quando a criaturinha cresce e não se abate, pelo contrário se agiganta e se humaniza mais e mais, sem tragédia, sem pobreza de alma, sem pieguismo, sem mutilações espirituais.

A página da vida do jovem cego é também escrita com a elevação moral de seus pais, dia a dia acrescentando mais capítulos grandiosos e de profunda significação humana para quem a acompanha atentamente como eu.

Antônio e Edda Albuquerque não sonham sequer com esta minha atenção silenciosa, mas real e autêntica: os admiro e respeito pela envergadura moral que representam nesta luta em que se encontra seu filho.

Eu vi e senti e acompanhei a tragédia desde os primeiros instantes, quando se abateu sobre o lar do companheiro e foi recebida com um conformismo, com uma aceitação, com um estoicismo tão elevados e puros, que não sei se ali foi tida mesmo como tragédia.

Vi e senti e acompanhei a trajetória do casal em busca da cura para o filho. E eu sabia quão dolorosa é esta vida, porque também já passei por sofrimento igual na doença da sobrinha amada. Sendo que minha dor, pobre dor de tia, não se compara à do pai e à da mãe.

E fui, depois, assistindo aos progressos do jovem de alma cultivada e de espírito em pleno enriquecimento. E quando ele esteve na televisão tocando piano, eu me alegrei com sua vitória, chorando também a felicidade vivida por seus pais.

Foi quando li a grande notícia sobre o moço, em São Paulo, brilhando e perfeitamente situado na grande metrópole.

Claro que meu coração se encheu de alegria e mesmo sem cumprimentar o velho companheiro e sua mulher, intimamente cantei hosanas e entoei o "magnifícat".

Hoje lendo o Adauto, tomei conhecimento, não de fato rotineiro e comum, mas de grande e imensurável amor.

Antônio Moreira Albuquerque vai embora para São Paulo, isto é, deixará de vez o nosso Estado, abandonará tudo que aqui fez e ganhou, arrancará todas as raízes plantadas na terrinha e nos corações conterrâneos e partirá ao encontro do filho amado.

E os Albuquerque não só têm este filho, no que torna mais eloqüente a prova de amor que dão neste instante não ao ser de suas entranhas, mas a todos nós, coitados entes de Deus, tão pequeninos nas nossas virtudes e tão exagerados nas nossas pobrezas.

Depois me digam se o mundo está perdido, se não é grande o homem e imensurável o seu poder de amar? Quando falam na desagregação da família e no controle da natalidade, eu penso comigo: não existirá força alguma que domine o coração humano e suste a sua capacidade de amar.

E não é justo que busquemos prova disto no distante espaço do tempo ou das áreas geográficas: aqui, aqui entre nós está o amor que ousa gritar alto e concretizar-se em forma de pai e em imagem de mãe".

E para nós que partíamos, nos davam eles com estas demonstrações de solidariedade um conforto espiritual muito grande.

Chegou finalmente o dia da partida: saímos de Fortaleza nos primeiros dias de fevereiro (dia 5) de 1967, viajando de automóvel. Éramos cinco: Sérgio, que se encontrava de férias, o pai, um tio que ia passear em São Paulo, eu e a Rita, nossa empregada. Permaneceriam por algum tempo ainda em Fortaleza: Eliana, Eveline e Titia.

Apesar de não ter sido uma viagem de passeio nem por isso deixou de ser divertida e agradável. Sérgio não cabia em si de contente, e novamente fez as suas gravações que se constituíram num verdadeiro diário de viagem, que até há bem pouco tempo ao ouvi-las recordávamos todos os momentos vividos pela família durante aqueles dias.

Após uma semana de viagem, chegamos a São Paulo, ficando hospedados na residência do tio, seu correspondente antes e aí permanecemos até quando alugamos uma casa. Tarefa esta muito difícil, solucionada somente depois de um mês de procura. Era de nossa preferência uma casa nas imediações do Instituto Pe. Chico, mas, infelizmente, não encontramos. Como necessitávamos resolver também o problema de colégio para Eliana tivemos que optar por uma próxima ao seu colégio, com a desvantagem de ser distante do Instituto, o que nos obrigaria a levá-lo e apanhá-lo diariamente, tarefa difícil para nós, no inicio. A casa ficava no Tatuapé, mais propriamente no Parque São Jorge, trabalhávamos no centro - Praça da República e o Instituto Pe. Chico no Ipiranga, por aí vocês bem podem imaginar o entrançado que fazíamos todos os dias neste trânsito de São Paulo.

Com a casa alugada, veio o resto da família de Fortaleza, e eis que todos juntos, iniciamos uma nova vida após um ano de luta, preocupações e sofrimento. Estávamos nos sentindo um pouco mais calmos e tranqüilos, mas ao mesmo tempo nos preparando para novas investidas.

Os primeiros meses de adaptação foram difíceis. Apesar de já termos visitado a capital bandeirante varias vezes, não a conhecíamos bastante, para, agora, como seus moradores, nos movimentarmos livremente. Tínhamos que aprender a viver nesta cidade gigantesca, nós que tínhamos vivido a maior parte da existência na nossa provinciana capital cearense, cercados de parentes e amigos. O nosso aprendizado teria que ser feito paulatinamente para que não sofrêssemos muito as diferenças.

Principiamos a trabalhar na Repartição e recebemos do chefe e dos demais colegas demonstrações de solidariedade e muitas atenções. Todos procuravam nos dar apoio e ajuda moral e assim pouco a pouco fomos penetrando na vida da grande cidade, conhecendo os seus segredos, as suas artimanhas, as suas dificuldades, querendo nos assenhorear dela para nosso próprio bem-estar e da família.

Vocês não podem avaliar: foi uma dureza. Mudança total de vida. Renda familiar menor. Ausência de parentes e amigos. Saudades... mas eu lhes garanto uma coisa, a nossa vontade de ficar juntos e vencer era bem maior do que tudo isso.

E a ordem era: comprar só o necessário. Diminuir os gastos. Equilibrar a receita com a despesa. E íamos com estes preceitos, andando para frente com coragem, unidos, esperando dias melhores... e apesar das agruras, das dificuldades, nos sentíamos recompensados por vermos a felicidade de nossos filhos. Sérgio então feliz demais e, a toda hora, nos agradecia por estarmos com ele. Procurava retribuir com o interesse cada vez maior nos estudos.

Que mais poderíamos desejar?

Chegou o fim do ano de 1967. Concluímos que nos sentíamos mais firmes, que nossas condições psicológicas estavam bem melhores, levando em conta que durante todo esse ano, nós passamos por duras provas que nos abalaram profundamente. Tivéramos nós momentos de verdadeiro desânimo e exaustão, chegando muitas vezes a desejarmos voltar atrás. Tivéramos que combater tudo isso, exigindo de nós mesmos muita força de vontade, muito domínio e equilíbrio, muito discernimento, e, nessa luta, houvera forçosamente de nossa parte um desgaste psíquico muito grande.

Apesar de as modificações no nosso "modus vivendi" terem sido quase que radicais, o processamento de nossa adaptação ao novo ambiente ia se fazendo progressivamente bem, porque outro não era o nosso desejo senão equilibrar material e espiritualmente a nossa vida para que pudéssemos dar aos nossos filhos condições de uma vida tranqüila.

O ano escolar transcorrera bem para Eliana, mas para Sérgio fora razoável, pois ficara ele para segunda época em História. Com isto fiquei muito aborrecida no princípio, para depois constatar que não havia motivos para tanto, tendo em vista que o ano fora de muitas transformações emocionais para ele...

Ganhara ele de presente de um amigo da família, uma passagem de avião para passar as férias do fim do ano em Fortaleza, junto aos parentes, não o fez, por causa do exame de segunda época. Ficou contrariado e tomou como castigo a não realização dessa viagem.

Natal. Entrada do Ano, Os cearenses comemoraram estas festas entre os paulistas e, quase como paulistas.

O início do ano de 68 já nos trazia melhorias financeiras: começamos, meu marido e eu, a trabalhar em horário integral e, como conseqüência, a renda familiar aumentara e, assim voltamos a dar aos nossos filhos mais conforto e nós ficamos mais tranqüilos.

As férias do mês de julho, Sérgio passá-las-ia em Fortaleza, usando aquela passagem de avião, depois que cumprisse bem no primeiro semestre suas obrigações escolares.

Foi e voltou desacompanhado. Levou seu gravador e durante as viagens realizou entrevistas inteligentes e interessantes com os companheiros de viagem, inclusive os tripulantes, e estes na descida em Fortaleza, gravaram para ele, sem que ele notasse uma bonita despedida. Todos os entrevistados ficaram seus amigos, e bem impressionados com a sua personalidade. Essas impressões foram reveladas através de palavras elogiosas e de verdadeira admiração: - "Nunca eu vi em toda a minha vida um jovem de 15 anos com uma formação cultural, como a sua. Sinto-me empolgado com a profundidade das suas respostas e com sua facilidade de se expressar. Quero que seus pais tomem conhecimento dessas minhas palavras, como também quero parabenizá-los por terem um filho como você", palavras de um medico, companheiro de viagem. E, sempre que ouvimos palavras como essas, ou sabemos do conceito que pessoas estranhas fazem de Sérgio, nós nos sentimos perfeitamente compensados de todo o sacrifício que fizemos e em paz com as nossas consciências.

Em fins de 1967, compráramos um piano para ele, já que havíamos vendido o outro em Fortaleza. Ele sentia muito a falta do seu querido instrumento e não queríamos que Sérgio dele se privasse por mais tempo. Cada dia que passava, tocava com mais desenvoltura, mais técnica. De improviso fazia arranjos para qualquer música.

Passou a ser integrante de um conjunto de jovens como organista, harmonizador e arranjador, pois aprendeu com facilidade a tocar o órgão e onde quer que o conjunto se apresentasse a sua figura chamava a atenção de todos.

O conjunto foi desfeito no segundo semestre de 68, mas logo ele passou para outro, onde ficou algum tempo. Sempre com entusiasmo e feliz porque estava fazendo o que mais gosta.

Terminou com boas notas a 3ª série ginasial.

Completara ele 15 anos em janeiro de 68, estando, portanto, num período bastante difícil de sua adolescência, necessitando muito de nossos cuidados.

Cada idade da pessoa humana é marcada por uma característica diferente na sua personalidade. Cabe aos pais e professores conhecê-la, percebê-la na época devida e procurarem dar apoio e tolerância, se bem que a evolução de cada um não dependa só dos pais e professores, requerendo também auto-educação que decorre do próprio temperamento e exemplos do ambiente.
As principais características desta idade (15 anos), segundo os psicólogos são:

a) crescente consciência e percepção do eu;
b) nascente período de independência e
c) lealdade e adaptação ao lar, ao colégio e à comunidade, estando todas elas subordinadas ainda às particularidades desta idade difícil.

Nos Estados Unidos o adolescente de 15 anos é denominado "sophomore", da palavra grega sophomórico, que quer dizer "sábio e tonto". Os aspectos mais importantes do 15 são a sua progressiva sensibilidade e irritabilidade, reveladas por resistências, aversões e desconfiança. O 15 sabe que existe como pessoa humana e decide-se a lutar por sua independência. Tem o aspecto sério, tranqüilo e reflexivo, preocupa-se analiticamente, principalmente com os detalhes.

Procura nessa idade, aperfeiçoar a alma, não no sentido religioso, mas no conjunto de fenômenos psíquicos relativos ao sentimento, à vontade e à inteligência.

A tendência maior é separar-se da família. Resiste a tudo que signifique restrição. Detesta ser considerado como criança. Gosta de estar longe da família, o que deixa preocupados os pais menos esclarecidos, por julgarem que a família se desagrega, que a unidade familiar está sendo abalada. Mas o 15 nada mais faz do que proteger sua posição e seu prestígio de independência na opinião dos seus companheiros.

Existe a chamada "crise dos 15", revelada por curto período de desânimo e desespero, provocados por autocrítica. Tudo isso porque o 15 se esforça por compreender seus próprios sentimentos e pensamentos. Enfim, o 15 tenta manter a sua personalidade, buscando a chave do que realmente sente e quer ser; e esta solução depende da própria natureza do individuo, e independe de todo o esforço dos pais e professores. Feliz o que se encontra a si mesmo.

Sexualmente o 15 é um homem. É a idade da 1ª namorada.

Nós percebíamos as mudanças que se verificavam em Sérgio: de alegre e comunicativo que era passou a ser calado, introvertido e a gostar do isolamento. Ao chegar em casa da escola, dirigia-se apressadamente para a mesa a fim de jantar e de imediato corria para o seu quarto; no colégio entre as contemporâneas arranjou uma namorada; manifestou grande desejo de aprender locomoção para "se emancipar", como dizia ele. Se o pai reclamava com ele pelo seu comportamento, ele dizia: "papai, o mal é da idade, tenha paciência que logo passara.

Sempre nos preocupamos e principalmente nesta época, com a falta que Sérgio sentia e reclamava muito de amigos jovens com quem ele pudesse sair para passear e conversar.

Socialmente falando, o seu meio era muito restrito e nós não podíamos encontrar uma solução adequada, vez que éramos moradores novos numa grande cidade, onde o relacionamento com as pessoas se torna muito difícil. Ele próprio, por sua vez, não contava com seus colegas de colégio, pois todos eram cegos e internos. No colégio mesmo, onde ele ficava o dia todo, não poderia encontrar em nenhum dos colegas uma correspondência eqüitativa de conhecimentos, de opiniões, a fim de que pudesse manter uma conversa, um diálogo, ou discutirem assuntos relativos a eles mesmos ou procurarem juntos uma solução para os problemas próprios da idade. Quase todos eles pertenciam a uma classe social diferente da nossa e viviam internados, isolados do mundo exterior, sem nenhum contato com os jovens videntes, não podiam jamais corresponder a Sérgio no que ele desejava. Eles nada tinham para dar, porque eram todos produtos de um ambiente segregado.

Todos os pais precisam saber do seguinte: educar uma criança cega em uma escola segregada pode ter sérios e duradouros efeitos maléficos na formação de sua personalidade, porque:

1. priva a criança do amor natural ou, ao menos, do reconhecimento daquele amor de seus pais;
2. tira dos pais a oportunidade de compreender seu filho durante os anos de crescimento;
3. afasta-o dos irmãos, diminuindo assim as oportunidades de mútua compreensão e amor;
4. cria uma lacuna entre a criança cega e seus pais e irmãos dotados de visão e assim torna impossível emocionalmente educá-la para este mundo;
5. prejudica a habilidade da criança para competir e cooperar com as de visão, como terá de fazer no futuro, pelo fato de afastá-la da competição e cooperação durante seus anos de formação;
6. forma na criança um forte sentimento de minoria que é desenvolvido pela segregação;
7. torna-a (e às outras crianças cegas) diferente aos olhos das crianças dotadas de visão, privando-a de futuras oportunidades de ser aceita entre elas;
8. em geral diminuindo o número e qualidade de suas experiências.

Todos esses argumentos são por demais convincentes para aqueles pais que podem com algum esforço evitar forma total a segregação. Muitos dirão: Mas, como poderei dar a instrução devida a meu filho ou a minha filha cega, a não ser internando numa escola? É de fato muito difícil senão impossível dar uma resposta específica a essa pergunta, porque a solução melhor a ser alcançada só se pode determinar depois de uma análise completa dos meios disponíveis para a instrução, de um estudo da situação familiar e das relações entre a criança cega e outros membros da família; um conhecimento da criança em particular, com suas forças e fraquezas emocionais e intelectuais e também um conhecimento da comunidade da qual a criança vem e à qual será devolvida.

Infelizmente aqui no Brasil, onde o número de escolas especializadas é mínimo, não podem os pais na sua grande maioria ter outra escolha. Não existe outra alternativa: ou o filho estuda numa escola segregada ou não estuda. Então o que devem fazer os pais para pelo menos diminuir os efeitos funestos da segregação nos seus filhos? Antes de tudo, prepará-los bem, psicológica e emocionalmente, na infância, antes de entregá-los às escolas especializadas, porque todos devem estar lembrados que estas dão às crianças cegas, teoricamente bem a educação, mas nunca poderão ser substitutas dos pais no que se refere à formação de suas personalidades. Devem o mais que puder levar suas crianças para o convívio do lar nos fins de semana e, durante estas permanências com seus filhos, procurarem conversar bastante com eles, inteirando-os de tudo que se relaciona com o mundo exterior e fazendo-os participar da vida da família e da comunidade. Devem estar em contato permanente com os professores, para que por intermédio deste intercâmbio, saibam das dificuldades dos seus filhos na escola e auxiliem-nos a realizar bem a sua formação intelectual. Para os que não podem dar isto tudo de que falei antes, por não possuírem preparo, dêem muito amor e compreensão e as suas presenças o mais que puderem. É o mínimo, mas pode ser o máximo.

Durante estes três anos que estive em contato com o Instituto Pe. Chico, pude constatar com tristeza os malefícios da segregação, principalmente naquelas crianças que foram entregues ao estabelecimento e nunca mais viram os seus pais. Transformaram-se em jovens completamente marginalizados, tensos, revoltados, incapazes de, fora daquele meio em que vivem, saberem viver. São completamente apáticos, desinteressados de aprenderem sobre tudo que os cercam no mundo exterior, porque o desconhecem. Apesar da dedicação das Irmãs e dos professores que lhes dão assistência e preparo intelectual, falta-lhes algo muito importante e oportunidade de se tornarem verdadeiros meninos no convívio familiar, recebendo carinho e compreensão de seus pais.

Nos fins de semana, sempre procuramos trazer a nossa casa alguns dos contemporâneos de Sérgio e o seu
colega de classe (este se acha entre os que foram abandonados pela família) para exatamente dar-lhe a oportunidade de conviver com uma família e conhecer um pouco da vida, mas a permanência era pequena demais e quase nada adiantava.

Por permanecer Sérgio o dia todo no colégio não tinha companheiros videntes para juntos participarem de atividades sociais. Somente nos fins de semana ele se encontrava com gente jovem vidente, nos ensaios do conjunto, ou à noite quando havia bailes. Mas era muito pouco, levando-se em conta a necessidade que sabíamos ele sentir de uma permanência maior com os jovens de sua idade. Ficava ele depois das aulas, nos fins de semana e principalmente nas férias em casa sem ter nada para fazer, reclamando o seu isolamento, a sua não participação nas atividades jovens da nossa comunidade. Se, em Fortaleza, havia mais facilidade para ele sempre estar em contato com os primos e amigos com quem brincava, passeava e conversava, não havia escola especializada para estudar. Aqui em São Paulo onde ele encontrou os meios para estudar, já não conta com companheiros para se divertir. Nada, portanto, na vida é completo...

Aos jovens videntes de qualquer comunidade eu faço um pedido: nos auxiliem a resolver este difícil problema. Bastaria tão somente que procurassem se aproximar dos jovens cegos dando-lhes compreensão e solidariedade. Devem estar lembrados de que todos os jovens são iguais nas aspirações, nos ideais, como também têm os mesmos problemas, as mesmas dificuldades e que para compreender um jovem nada mais indicado do que outro jovem. Para que então este afastamento, ou melhor esta falta de aproximação entre um e outro?

Vocês podem perceber que a inibição maior é da parte do vidente que do próprio cego. Já falei antes, mas volto a frisar aqui: nós que enxergamos, tememos (eu já não temo mais) tudo que é relacionado com a cegueira, como tememos também todos os efeitos da cegueira, em conseqüência disso, não consideramos nossa atitude para com ela e não a enfrentamos influenciados por conflitos emocionais, o que torna quase impossível tomarmos uma atitude normal.

Como sabemos, o medo traz a repulsa, mas, como não queremos admiti-la por acharmos errado, repudiar um deficiente, nós a encobrimos, nos apiedando do cego, do defeituoso fisicamente e assim separamo-lo do nosso meio e ao mesmo tempo aliviamos a nossa consciência.

Meditem os jovens videntes sobre tudo isso e procurem tirar do coração qualquer temor, qualquer sentimento de piedade e dêem um pouco de si mesmos, aproximando-se dos jovens cegos e, todos juntos, de mãos dadas, lutem pelo bem comum. Fiquem certos de que não se decepcionarão, de vez que possuem as mesmas afinidades.

Contribuam com a sua amizade e compreensão para a perfeita integração do jovem cego na sociedade. Como sabem, é exatamente nesta fase da vida - a juventude - que há maior necessidade de entrelaçamento, de relacionamento entre vocês mesmos.

Só um jovem possui a capacidade de dar a outro jovem a amizade, a compreensão de que ambos necessitam. Ajudem-nos, pois precisamos de vocês para dar aos nossos filhos, seus companheiros, algo de importante: solidariedade.

Voltamos ao nosso assunto anterior: o que mais desejava Sérgio, era aprender locomoção, a fim de poder se tornar independente. Como só seria permitido esse aprendizado quando ele estivesse na 4ª série ginasial, por não ter ainda 18 anos de idade, procurou ele mesmo resolver o seu problema de outra forma: conheceu na escola um rapaz, que era como ele semi-interno, morador no nosso bairro, que se locomovia com facilidade, pois possuía um pouco de visão em um olho, e combinou com o mesmo de voltarem juntos à tarde para casa, a fim de não haver necessidade de seu pai trazê-lo. Com isso ele demonstrava iniciativa própria e nos dava prova de sua autoconfiança.

A partir daí conhecemos o jovem Edvaldo, sergipano, 18 anos de idade, de família humilde e numerosa (13 irmãos), pai operário e mãe verdadeira heroína.

Esse rapaz é um exemplo de força de vontade e de coragem, pois apesar de sua falta de visão, além de estudar, trabalhava, como vendedor de guloseimas para os alunos do IPC, a fim de ajudar o pai na manutenção da família.

Ficou então com ele acertado o seguinte: como a sua casa era distante da nossa, pela manhã ele iria com o Sérgio de automóvel para o Instituto, e à tarde ele e Sérgio viriam até nossa casa, de ônibus. Desse contato diário nasceu entre ambos uma boa camaradagem. Sérgio tinha agora um companheiro com quem podia conversar e discutir os seus problemas, pois o Edvaldo apesar de não pertencer à sua classe social, é um rapaz de boa formação e bastante ajuizado.

Passados uns meses que o Edvaldo freqüentava nossa casa fui surpreendida com uma sua revelação. Ele me disse com muita emoção: - "eu não tenho palavras para agradecer à senhora e a toda família pelo muito que fizeram por mim. Depois que os conheci, aprendi a viver, eu me transformei completamente, adquiri confiança em mim mesmo e me sinto apto a enfrentar qualquer situação na vida. Como a senhora deve ter verificado eu era um rapaz inibido, medroso, sem coragem sequer de fazer uma visita, de manter uma conversação, mas depois desta convivência com Sérgio e com sua família, eu me sinto feliz, porque consegui conhecer a mim mesmo e aprendi a confiar nas outras pessoas. Muito obrigado por tudo. Deus lhe pague".

Sinceramente, eu fiquei surpresa e feliz ao ouvi-lo e agradeci a Deus por ele ter me dado oportunidade de ajudar a alguém.

Atualmente ele trabalha numa fábrica, emprego que conseguiu através do SENAI. Lá é um operário dos mais eficientes e muito estimado pelos patrões e colegas.

Sempre que tem uma folga nos visita. Nos fins de semana sai com Sérgio para passear e procura por todos os meios demonstrar-nos o seu reconhecimento, a sua gratidão.

1969 - Início do ano - Há dois anos que nos encontramos fazendo parte da vida paulista, procurando cada dia mais nos adaptar melhor.

Verificamos com alegria que a nossa vinda para cá havia sido por demais acertada, que não poderíamos de forma nenhuma, se tivéssemos permanecido em nossa terra natal, cumprir tudo o que nos tínhamos proposto. Ao vermos Sérgio cada vez mais integrado, nos sentíamos compensados plenamente de todas as dificuldades, canseiras e preocupações que sofremos nestes 2 anos.

Iria ele realizar agora o seu grande desejo: aprender locomoção. Com a nossa autorização a professora começou a ensinar-lhe a usar a bengala e após 4 meses de treinamento, estava ele capaz de andar sozinho. No segundo semestre desse mesmo ano já podia ele ir só para o Instituto e voltar para casa, tomando duas conduções para cada viagem. Muitas vezes, por prazer, ia só, à cidade fazer compras ou visitar a família que hospeda a sua namorada, que é cega e estuda na mesma escola. Estava ele cada vez mais desembaraçado, desinibido, mais feliz por se sentir independente. E nós também.

Prometera ao se iniciar o ano, que terminaria a 4ª série sem exames e tudo fazia crer que cumpriria o prometido, pois eram boas todas as suas notas bimestrais.

Aproximava-se o fim do ano e entre alegre e triste, ele via o término do seu curso: alegre por vencer mais uma etapa e triste por ter que deixar o Instituto Pe. Chico que aprendera a amar.

Em fins de novembro começaram as despedidas: primeiramente dos pequenos, depois dos médios e por último da sua turma, os maiores, com um coquetel organizado por eles mesmos com ajuda da professora de Economia Doméstica. Despediu-se também do Coral com um discurso de agradecimento à sua Diretora e a todos os seus componentes e no final tocou ao piano a música "Melodia Imortal" dizendo ele "esta música simboliza a minha amizade imortal pelo querido Instituto Pe. Chico".

Dezembro - dia 6 - Chegou finalmente o dia da formatura. Houve na escola um almoço de despedidas. À tarde, às 16 horas, Missa de Ação de Graças na Capela do Estabelecimento. Ao término da Missa, foi ele entrevistado por um repórter do jornal "A Folha de São Paulo". Assim falou: "Com a nova pedagogia, o aluno se tornou ativo e o professor passivo. Por isso o ginásio ficou agora mais fácil. Eu gosto de escrever e acho que atualmente a profissão de jornalista se tornou mais dinâmica. Além disso gosto de me mexer. Pretendo ser além de músico, jornalista".

Em seguida dirigiram-se os 6 formandos (2 homens e 4 mulheres), acompanhados pelas madrinhas ou padrinhos, para o Salão Nobre do Instituto, onde receberiam os seus certificados. Esse estava superlotado de alunos, professores, convidados e parentes dos formandos. No palco muito bem ornamentado estava a mesa constituída da Diretoria do Instituto Pe. Chico e de todos os professores do Ginásio. Constou o programa do seguinte: Abertura da Sessão Solene pelo Presidente da Mesa, que dirigiu algumas palavras aos concludentes. Entrega dos Certificados. Discurso da Oradora da Turma. Discurso da Paraninfa. Belíssimas músicas interpretadas pelo Coral e, finalmente, o Hino do Instituto cantado pelo corpo docente e discente.

Na saída, abraços de parabéns e de despedidas.

Sérgio estivera todos estes últimos meses, antecedentes ao final do ano, vivendo de emoções e mais emoções e, no dia da formatura, ao se dirigir com a sua madrinha à mesa diretora para receber o seu certificado, estava muito comovido e nós, seus pais e sua irmã, nos sentíamos por demais emocionados e felizes. Eu, particularmente, naquela hora, agradecia a Deus todas as graças recebidas e intimamente dizia: Vencemos.

Em nossa casa fizemos uma festinha com bolos, salgados e champanha para comemorarmos entre parentes e amigos a vitória de Sérgio, ou melhor, a nossa vitória.

Enquanto Sérgio estudava no Instituto Pe. Chico, freqüentava semanalmente a Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato. Esta pertence à Prefeitura Municipal e possui uma sala "Braille", onde os cegos encontram sempre que necessários livros didáticos ou livros de ficção, romances, etc. Lá um grupo de senhoras se dedica, além das funcionárias, a transcrever livros para o sistema "Braile". O cego pode recorrer à sala Braile em qualquer tempo que queira e terá por parte de todas aquelas senhoras a maior colaboração e ajuda.

Dois dias por semana vai um ônibus da Prefeitura apanhar os alunos do Instituto Pe. Chico e os leva até a Biblioteca, a fim de lá passarem a tarde e para que os mesmos possam ler os livros que desejem e participem mais de atividades extracurriculares.

Como o número de cegos que chegam ao curso colegial é muito reduzido pelas grandes dificuldades que se lhe apresentam, não compensa a Fundação para o Livro do Cego publicar livros para esse curso, então os alunos do 2º ciclo que desejarem um livro, o solicitam à Biblioteca e prontamente as suas copistas entram em ação e o transcrevem o mais rapidamente possível.

Existe ai também a Academia Juvenil de Letras, que funciona nos moldes da Academia Paulista de Letras, cujos membros (meninos e meninas) são escolhidos e votados entre os candidatos que desejam a ela pertencer. Pelos seus estatutos, três cadeiras pertencem a cegos ou deficientes visuais.

Em 1970, recebeu o titulo de melhor acadêmica do ano e o Troféu Monteiro Lobato, da Prefeitura Municipal de São Paulo, a jovem Sueli Barbosa, cega.

Esta academia que vem funcionando desde 1968, foi fundada e é orientada até hoje pela funcionária Magdalena Carneiro Maia.

Sérgio faz parte dela e já tem apresentado diversos trabalhos, tendo como tema a música e tudo que dela emana e no fim do ano recebeu um prêmio como um de seus melhores membros.

Em todas as festividades da Biblioteca e da Academia é convidado a tomar parte efetiva e atuante: tocando piano ou órgão ou acompanhando um coral por ele organizado.

Como membro da Academia e pela palavra fluente que tem, já por diversas vezes, deu entrevistas à imprensa falada e escrita, sempre se saindo muito bem. A Diretora da Biblioteca e a Orientadora da Academia encontram na pessoa de Sérgio um colaborador eficiente e ativo quando solicitado e isto acontece muitas e muitas vezes.

Foi na Biblioteca que Sérgio conseguiu a sua máquina de datilografia Braille. Comprou-a de Da. Diva, uma das funcionárias da sala Braile que a recebera como doação de uma senhora copista que antes de falecer, dissera para fazer uso dela como desejasse.

Sabedora que era do desejo de Sérgio de possuir uma máquina dessa espécie, Da. Diva lhe ofereceu esta grande oportunidade. Para ele foi uma alegria enorme, pois não gostava de escrever à mão, encontrando mesmo uma certa dificuldade e com a máquina a escrita seria muito mais fácil e rápida.

A máquina de datilografia Braile se compõe de nove teclas: seis que correspondem aos pontos da escrita, uma para espaço, uma para maiúsculas e uma para tabulador. Escrevendo manualmente, o cego para fazer por exemplo, a letra é, tem que fazer de um por um os seis pontos. Na máquina ele escreve essa mesma é feita de uma só vez, bastando bater as seis teclas juntas. Como vêem, com a máquina há muito mais rapidez e a escrita sai mais correta e mais perceptível ao tato, já que há mais uniformidade no relevo dos pontinhos.

Sérgio aprendeu a usá-la com facilidade e nas aulas escrevia os seus apontamentos e fazia a sua correspondência para os amigos e colegas cegos... e para sua namorada.

No Brasil não existe fabricação desse tipo de máquina e nem quem as venda, são elas americanas ou européias, e a sua importação para particulares torna-se difícil e onerosa, mas a Fundação Para o Livro do Cego no Brasil e a Biblioteca, ou melhor, a Prefeitura, de vez em quando as compra para o uso de suas copistas, e o cego que a desejar, poderá através dessas entidades, aproveitar essas oportunidades e comprar uma para si.

Além de escrever na máquina de datilografia Braile, Sérgio também aprendeu a escrever na máquina de datilografia comum, quando estava no Instituto Pe. Chico, de forma que no Colégio São Luís todas as suas provas eram feitas nessa máquina, facilitando extraordinariamente a correção das mesmas pelos professores, dispensando assim a presença de professor especializado.

A aprendizagem da máquina de datilografia comum pelo cego é de um valor inestimável, pois facilita a comunicação sob todos os aspectos.


SEGREGAÇÃO: um grande mal

A pessoa cega não pode ser vista como um fenômeno isolado, mas como diz o célebre Thomas Wolfe: "Eu sou.., uma parte de tudo quanto tenho tocado e de tudo quanto me tem tocado..." Daí se conclui que, para a perfeita integração do cego no mundo da visão, necessário se torna um real interesse de ambas as partes, isto é, dos cegos e dos videntes em pôr abaixo as barreiras que dificultam essa integração.

Precisamos ter em mente que a nossa atitude, o nosso comportamento com relação à pessoa cega influem, repercutem nela como uma reflexão, e ela tende sempre a ter aquele quantum de autoconfiança e a ter em relação a si própria e a sua deficiência, aquelas atitudes que refletem a opinião reinante no ambiente em que vive.

O inter-relacionamento familiar é fator básico numa situação individual, daí a necessidade de conhecermos a inter-relação dos membros de uma família para podermos chegar a uma compreensão do problema. A família influencia, de forma marcante, na formação da personalidade do individuo, por conseguinte os pais devem ter em mente que o seu comportamento com relação à cegueira tem uma grande influência no desenvolvimento de suas crianças. Serão eles os pioneiros na colocação da criança no mundo em que ela irá viver e é dessa colocação que depende um futuro feliz ou infeliz da mesma.

O número de famílias capazes de criar uma criança deficiente, desenvolvendo nela o senso de independência dentro das suas limitações naturais, é, infelizmente, muito pequeno. As razões disto derivam da natureza da nossa cultura. A família, em sua grande maioria, reage de várias maneiras, indo desde a rejeição e a não aceitação emocional até à superproteção e à indulgência. As duas últimas são as mais comuns das reações em face de crianças deficientes. Todos esses são fatores negativos que atingem a pessoa cega, tirando-lhe o seu natural desejo de participar de uma vida social.

Se acontecer depois que essa mesma pessoa, ou melhor essa criança tenha que estudar numa escola segregada, vocês já pensaram qual será o seu futuro?

Desde a infância até a maturidade, todos os indivíduos apresentam as mesmas necessidades biopsicosociais e a cegueira não altera de forma nenhuma essas necessidades básicas. Sendo satisfeitas essas necessidades básicas das crianças, não lhes será difícil realizar o seu ajustamento social posteriormente.

Devem ser dadas aos cegos todas as oportunidades de participar com os de visão normal de atividades sociais, a fim de que eles possam verificar a importância de suas limitações e a sua capacidade de superá-las dentro da sociedade das pessoas de visão normal. E também para que possam aprender a aceitar as suas limitações e funcionar com todo o seu potencial dentro de uma apreciação realística do seu próprio valor, vendo aumentar a estrutura de sua auto-imagem.

O primeiro trabalho como já vimos é realizado em casa, com os pais, depois vem a escola. Nesta, os pais encontrarão por certo, uma ajuda de real valor no que se refere à educação. Para os cegos, de todos os processos de educação que existem (tais como escolas residenciais segregadas e classes braile), o ensino itinerante é o mais adequado porque permite às crianças cegas integrarem-se no ambiente de educação dos indivíduos de visão normal, de vez que a educação num ambiente segregado, torna mais difícil o seu ajustamento posterior na sociedade. É esta portanto a melhor fórmula a ser usada pelos pais que desejam ver seus filhos bem-educados e ajustados.

As escolas residenciais só se justificam quando as crianças requerem o uso intensivo de serviços especiais, que só podem ser realizados num ambiente onde esteja reunido um certo número de crianças com os mesmos problemas. São elas de grande valia para as crianças cegas, cujos pais não possuem nenhuma orientação competente no sentido de aceitarem inteiramente os seus filhos, oferecendo então uma atmosfera emocionalmente mais sadia do que aquela de que poderia gozar em seus próprios lares.

Devem os pais, no entanto, conservar os seus filhos consigo, procurando conhecer os preceitos de higiene e de educação em relação aos problemas das crianças deficientes a fim de se prepararem bem para executarem o seu trabalho junto a elas. Assim agindo tornarão possível a seus filhos continuarem a usufruir da convivência familiar, ao mesmo tempo em que eles são educados num ambiente competitivo de pessoas de visão normal.

As classes "braile" são outro processo usado para educação dos cegos. Teoricamente elas devem ser apenas o lugar em que os estudantes cegos recebem instruções em "braile" e em outros setores, especialmente relacionados com a sua cegueira, enquanto seguem o curso regular de uma escola comum para alunos videntes. Na prática, elas costumam funcionar parcial ou totalmente como substitutas das classes regulares de ensino.

O professor da classe "braile" nesta situação se defronta com o problema de ter de receber ao mesmo tempo as questões relacionadas com a cegueira de várias crianças, ao mesmo tempo em que tem de ensinar em uma mesma classe a alunos diferentes em series de curso. Desta forma o trabalho do professor se torna muito difícil, fazendo com que a atuação das classes "braile" se torne mais superprotetora do que educativa.

Esperava-se dessa escola a eliminação da segregação produzida pela escola residencial, mas o fato de precisar reunir um certo número de crianças para formar as classes "braile", faz com que muitas delas tenham de freqüentar escolas diferentes das que freqüentam seus irmãos e amigos e contribui para dificultar a sua integração social e educacional, o que não deixa de ser outro tipo de segregação.

O grupo segregado na escola residencial está materialmente separado do resto da comunidade, mas produz uma atmosfera agradável e favorável ao seu desenvolvimento, embora artificial em face do mundo real. O grupo segregado nas classes "braile" sofre todas as desvantagens da segregação das escolas residenciais e mais a permanente consciência de não poder obter a total aceitação do meio escolar, onde se situa a classe "braile".

O ensino itinerante, como processo de educação, permite à criança cega gozar do ambiente do lar e da escola. Cursando ela a mesma classe que seus irmãos ou amigos, sem a presença de outras crianças cegas, será fácil o seu relacionamento, ampliando-se os seus contatos com pessoas videntes e concomitantemente o seu ajustamento social.

O professor itinerante funciona como um consultor, orientando os outros professores sobre os problemas e as capacidades dos alunos cegos; sobre os recursos especiais de que poderão lançar mão para atender a esses estudantes e como usar tais recursos; sobretudo o que venha contribuir para o progresso educacional e o ajustamento social desses estudantes, diminuindo dessa forma a necessidade de atenções especiais por parte dos professores comuns.

O professor itinerante age como um supervisor dos estudantes sob seus cuidados, auxiliando-os no aprendizado do "braile" e a compensarem a sua falta de visão com o uso de material e técnicas especiais. Providenciar livros transcritos em "braile" e nos livros para os alunos do curso primário escrever a mão em sistema comum, de maneira que cada palavra em "Braile" tenha as letras correspondentes escritas à tinta, possibilitando ao professor dirigir a leitura dos estudantes cegos, como o faz com os demais estudantes.

Ele mantém uma ligação entre a escola e os pais das crianças bem como orienta esses pais na maneira correta de encontrar e ajudar a seus filhos. Deve sempre estar a par dos serviços especiais que podem ser úteis a seus alunos e quando necessário, deve estar preparado para confeccionar o material a ser utilizado quando este não existir à sua disposição na comunidade.

Se forem criadas condições para o desenvolvimento do ensino itinerante para cegos em toda extensão em que ele se faz necessário, se os programas para escolas residenciais forem reestruturados de forma a funcionarem como complementação à educação de todas as crianças, seria possível a realização do ideal de proporcionar-lhes educação realmente compatível com as suas necessidades e capacidades.

Concluindo: uma criança que teve de seus pais na primeira infância uma boa educação e que recebeu na escola a complementação necessária, por certo aprenderá a superar todas as dificuldades e num futuro bem próximo será um adulto que saberá viver bem.

Durante os três anos que tive de contato com o Instituto Pe. Chico, conheci de perto os efeitos nocivos da segregação. Nos fins de semana, como já disse anteriormente, sempre que possível, trazíamos para nossa casa, colegas de Sérgio, e verificávamos com tristeza a diferença existente entre eles e o nosso filho. São todos uns jovens apáticos, sem conhecimento da vida e seus problemas peculiares e muitas vezes fiquei a pensar como seria posteriormente o ajustamento deles no mundo dos videntes.

São criados num ambiente de abnegação, de assistência solícita e carinhosa, é bem verdade, mas lhes falta, e isso ninguém lhes pode jamais dar, algo de importante e vital: um lar formado de pais e irmãos, onde aprendessem a viver no mundo que lhes pertence e usufruir todos os benefícios.

Não conhecem nada da vida. Não conhecem a competição, não aprendem a adaptar-se às mais diversas situações ou condições que a vida lhes ofereceria no dia-a-dia.

Ao saírem do internato se sentirão por certo completamente inibidos, desarvorados, incapazes de imediato de aceitarem, compreenderem ou resolverem os problemas que se lhes apresentem.

São plantas de estufa, quando dela retiradas, fenecem... morrem...

Muitos pais não se apercebem, não conhecem e nem mesmo procuram conhecer os maléficos efeitos da segregação e deixam que seus filhos pequenos permaneçam anos a fio nesse regime, sem procurarem uma melhor forma de educá-los ou instruí-los.

Que pode dar em troca uma criança criada longe do lar, aos pais, à família, ou à sociedade? Nada.

É de estarrecer o que diz o Dr. Spitz sobre esse problema. Os conhecidos estudos desse médico de Nova York, demonstram que as crianças privadas do carinho maternal não têm nada a dar e não sabem dar. Não aprendem nem a andar, nem a falar, nem a sorrir, nem a comer sozinhas. Provaram ainda que as frustrações afetivas levam facilmente à neurose e ao crime, à incapacidade de amor e de viver em grupo. Não chegam a formar consciência, porque não formaram o coração. O amor inadequado também entrava o desenvolvimento normal. A rejeição inicial, por exemplo, leva a criança a transferir para o mundo suas experiências infelizes de afeto materno. Quantos pais hoje recebem mal seus bebês, são frios e hostis, egoístas e duros, não lhes aceitam o sexo, nem as suas deficiências! Está visto que os pequenos hão de procurar se vingar. Hão de procurar desesperada e inadequadamente compensações à sua fome de carinho. Incomodam, fazem sofrer, decepcionam, gozam os aborrecimentos forjados pelos seus ressentimentos de infância.

Não basta à criança ser amada, ela precisa também aprender a amar e isto requer tempo e clarividência. Amar a si mesmo através da aprovação dos pais e dos professores e das atividades que revelam dons, a fim de poder elaborar um conceito favorável de si mesmo. Dentro das alegrias comunitárias, a crianças marca facilmente seu lugar no grupo e adquire confiança em si mesma, quando tem de si um bom conceito.

Amar aos outros progressivamente, praticando atos de altruísmo. Se os pais derem exemplo de generosidade, ela os imitará e se identificará com os sentimentos de boa-vontade para com o próximo.

A relação amorosa pais-filhos é a âncora primeira que fixa o pequeno ao mundo e o predispõe a amá-lo. Sem esta relação, a criança não se afeiçoa nem a pessoas, nem a idéias. Faltam-lhe motivos suficientes para sair de si, pensar no outro, se esforçar. Flutua como barco sem leme. Cão sem coleira, sem rumo e sem gosto, bate as estradas da vida projetando seu instinto destruidor".

Juntamente com o Sérgio, concluíram o curso ginasial no Instituto Pe. Chico, somente outro jovem e quatro moças.
Foi esse rapaz cego, órfão de mãe, atualmente com 20 anos, deixado pelo seu pai no Instituto, com a idade de dois anos e meio. Jamais foi visitado ou procurado por ele ou por qualquer outro membro da família. Durante 14 anos permaneceu no internato, tendo só alguma oportunidade de sair para alguns fins de semana em nossa casa e passar férias na casa de um outro colega de internato, no interior do Estado de São Paulo. Por circunstâncias da vida esse rapaz passou a fazer parte da nossa família.

Querendo continuar os estudos e dispondo de uma bolsa de estudos oferecida por um estabelecimento escolar, achou-se ele em sérias dificuldades para levar avante o seu desejo. Informados pela Superiora do que se passava, tomamos a resolução de levá-lo para nossa casa, a fim de lhe proporcionar a continuidade de seus estudos.

É ele o protótipo do segregado, conseqüentemente com todas as suas características e estamos nós desenvolvendo com ele um trabalho difícil de ajustamento, ensinando-lhe a obter autoconfiança, a superar a sua deficiência, conformando-se com ela, ensinando-lhe o mais importante, a se integrar na vida e a amar-se a si mesmo. Iniciamos o nosso trabalho com coragem, procurando dar-lhe as condições necessárias de ser feliz na vida, desejando arrancar as suas peias para se tornar independente. Mas a luta ainda vai ser muito grande, porque nele as raízes da revolta e da descrença estão muito arraigadas, muito profundas... "Gostaria de ser como o Sérgio, mas não posso" - diz ele, nos seus momentos de sofrimento e de dificuldades e nós com o nosso apoio e compreensão vamos estimulando-o, encorajando-o na escalada de sua integração: ensinando-lhe a participar da vida da família e a vencer o medo, a apatia.

Os dois (Sérgio e ele) farão o curso colegial (1º clássico) em um dos melhores colégios de São Paulo - o Colégio São Luís. Lá, por certo encontrarão a compreensão e a amizade de todo o corpo docente e discente do estabelecimento, pois este Colégio tem por norma matricular todos os anos, alunos cegos, no curso colegial ou melhor, dá bolsas para bons alunos que terminam o curso ginasial no Instituto Pe. Chico. Para eles será muito bom, pois terão oportunidade de conviver com colegas videntes, aprendendo a concorrer com jovens do mesmo nível intelectual, numa competição real, sem favoritismo, o que servirá para estimular e desenvolver a autoconfiança e a obtenção do pleno sucesso na realização do seu ajustamento.

Sérgio está por demais feliz e desejoso de corresponder sempre às nossas expectativas no que se refere aos estudos. Tem procurado auxiliar no que pode o colega a enfrentar os problemas concernentes à vida familiar que ele está tendo agora e, principalmente dando exemplo de um jovem alegre, conformado e que tem confiança em si mesmo e no seu futuro.

Se todos vocês vissem, como eu vejo agora, a tremenda necessidade que sente este rapaz de vencer as pressões que diariamente pesam sobre ele; se todos vocês vissem os seus tremendos apelos para conseguir superar os obstáculos e as dificuldades para o seu ajustamento; se todos vocês vissem o seu sofrimento, a sua dor pela falta de seu pai, de sua mãe, jamais permitiriam disso eu tenho certeza, se separarem de seus filhos, deixando-os residir em escolas, afastados do convívio familiar.

E lhes digo: não conseguimos fazer nada, era infelizmente, muito tarde, tarde demais e nós não tínhamos em absoluto condições de nos entregarmos de corpo e alma na batalha de sua integração.

Ele não pôde ficar conosco, não conseguiu adaptar-se ou integrar-se na vida familiar, no mundo aqui fora. Apesar de todos os nossos esforços, de toda a nossa boa vontade, não houve meios de fazê-lo querer viver a vida com independência. Teve que voltar a residir no Instituto Pe. Chico, seu antigo meio ambiente. Faria o seu curso colegial num estabelecimento do Estado, nas proximidades do Instituto. Voltou a sua velha morada e assim terá que ser, uma vez que jamais conseguirá modificar a sua maneira de pensar com relação ao mundo dos videntes, pois a sua personalidade formou-se por demais egocêntrica, exclusivista e por isso completamente fechada em si mesma, inabordável, difícil de aceitar ensinamentos, sugestões para aprender a viver. Antes que tudo se transformasse num mal maior, resolvemos cortá-lo pela raiz e estamos em paz com a nossa consciência.

Serginho, no entanto, continua no Colégio São Luís, fazendo o 1º ano colegial (clássico) e para satisfação dele e nossa, está indo muito bem nos estudos e superando também as dificuldades de relacionamento com os colegas.

Em conversa com os professores e o Padre dirigente espiritual do curso colegial, soubemos que ele está acompanhando bem toda a classe e depois isto foi constatado pelas suas notas bimestrais, que foram boas.

No dia 7 de agosto de 1970 começou ele a estudar música em "braile" com D. Nancy, professora especializada, pertencente à FLCB, trabalha ela na Imprensa Braile, juntamente com o professor Zoilo Lara, na transcrição em caracteres "Braile" de livros de teoria musical e músicas, para qualquer instrumento.

Fim do ano de 1970. Sérgio terminou o 1º ano colegial, promovido para o 2º ano com boas notas. Continua estudando música e tocando em bailes com o conjunto.

No colégio é integrado, tem muitos amigos, tomando parte ativa em tudo. Fora do colégio, passeia, faz roda de samba, se diverte como qualquer jovem de sua idade.

No segundo semestre de 1971, após ter participado de um Festival de Música Popular dos bancários, foi convidado por amigos seus, bons compositores, a tomar parte do Festival da Canção em Passos - Minas Gerais, defendendo uma música de autoria de Dom, da dupla "Dom e Ravel", e de Domingos Leone, disc-jóquei da Rádio Bandeirante.

Cantou a música "Só o amor constrói", acompanhando-se ao piano e com a orquestra, com arranjo e vocalização de sua autoria. Foi a música classificada em 1º lugar e ele considerado o melhor intérprete. Logo depois foi contratado por Dom e Ravel para integrar o seu conjunto como organista e arranjador.

Até que enfim aparecia a oportunidade ansiosamente esperada. O primeiro passo estava dado para a realização do seu maior desejo: dedicar-se cada vez mais à música, penetrando no cenário da vida artística brasileira. De imediato começou o seu trabalho: ensaios e mais ensaios, depois as apresentações em shows, televisão e bailes. Logo em seguida as viagens, visitando diversas cidades do interior de São Paulo, várias Capitais, inclusive Fortaleza, na inauguração do Ginásio Coberto Paulo Sarazate. Sérgio voltava à sua terra natal, como organista de uma dupla cearense, que naquele ano era sucesso, mas na verdade, a grande "vedete" foi ele, sendo solicitado para entrevistas em jornais e televisão, o que fez com desembaraço e inteligência. Para os parentes e amigos foi uma festa a sua presença e ele estava muito feliz.

Em conseqüência dessas viagens ele não pôde continuar a estudar, era o preço... Paciência, ou uma coisa ou outra. Ele sendo jovem, de certa forma não seria prejudicado, porque com o seu trabalho, estava definindo de uma vez e se integrando numa profissão que ele sempre sonhara.

Esteve com Dom e Ravel até fins de 71. Depois passou a trabalhar com Eduardo Araújo e Silvinha, mas aí, além de pianista e organista, era também arranjador.

Com eles também vieram as viagens e novamente Fortaleza, os shows e apresentações em televisão.

Em outubro daquele ano, Eduardo Araújo lançou um LP onde constava entre as músicas, uma da autoria de Sérgio e de seu amigo Domingos Leone, porém o mais importante aconteceu nesse disco: Sérgio se revelava como arranjador. Na gravadora RCA Victor, a sua presença já era notada e a sua palavra ouvida com interesse.

Começaram a surgir gravações e mais gravações com diversos cantores de outras gravadoras também, porque todos sabendo do bom trabalho de Sérgio o queriam como arranjador e acompanhante de suas músicas, no piano ou no órgão. Daí em diante ele verificou que poderia trabalhar sozinho e em novembro de 72 deixou Eduardo Araújo. Com o campo de trabalho se esboçando promissor, ele permanecendo aqui poderia voltar a estudar também, e assim no início de 73, já estava de volta ao colégio, continuando o curso clássico (2º ano) que ele interrompera, e em pleno progresso no seu trabalho musical.

O nosso telefone quase não pára de tocar: são cantores, compositores, gravadoras e amigos a procura de Sérgio. É um vai e vem constante de pessoas em casa e o seu circulo de amizade e admiradores se avoluma cada vez mais. Como ele está feliz!

Durante os anos de 72 e 73 ele participou também de diversos Festivais, apresentando composições suas e algumas vezes foi classificado em primeiro lugar. Com ele está sempre o compositor e cantor Milton Carlos, ganhador também de primeiros lugares e para quem Sérgio produziu um disco com arranjos seus, lançado no fim de 73.

Em fevereiro de 73, Sérgio começou a trabalhar para uma gravadora do Rio, a "Top-Tape" e em outubro era lançado por ela um disco de músicas só orquestradas e nele Sérgio pôde demonstrar toda a sua versatilidade artística, pois além de compositor, ele fez produção, arranjos e mixagem.

O maestro Salinas que copia para ele as partituras dos diversos instrumentos usados nos seus arranjos, fala com muita admiração do talento e da sensibilidade musical e artística de Sérgio.

O seu ano letivo correu sem atropelas e este ano está fazendo o 3º ano clássico no colégio Anglo Latino. No colégio é considerado um aluno fora de série em português, as suas redações são elogiadas pelo professor que as lê inclusive em outras classes, como exemplo de estilo e gosto artístico. O seu relacionamento com os colegas é bom, não sem antes ter passado por aquela fase de rejeição e de choque por parte deles, videntes.

Anda só de ônibus ou de táxi para toda parte e é tão independente que tem uma chave de casa somente dele, podendo chegar ou sair na hora que desejar ou que permitirem os seus compromissos.

Já teve duas namoradas firmes e uma delas morando em Jacarezinho (PR). E ele quando podia ia de ônibus passar com ela os fins de semana. Está sempre cercado do carinho e da amizade de muitas amigas e Lãs.

Em casa é aquele filho bom e amigo, aquele irmão alegre e carinhoso. Com Eliana se dá maravilhosamente, um é confidente do outro e vice-versa e quando estão juntos é um bate papo constante. Com Eveline se transforma numa criança brincalhona para acompanhá-la na sua tagarelice de menina de oito anos.Com seus pais é sempre preocupado em corresponder de forma centuplicada o que lhe damos de amor e compreensão.

Nossa casa é um permanente viveiro de jovens alegres que se irmanizam e se humanizam pela música.

O Novo Ano já se anunciava e com ele grandes esperanças e grandes projetos para Sérgio, e quem sabe logo mais ele será conhecido, nacionalmente como compositor-arranjador.

Os prognósticos são otimistas e se Deus quiser, Sérgio poderá mostrar a muita gente o seu valor como artista, confirmando a sua capacidade de luta e de integração e nós seus pais nos sentimos muito felizes, porque plantando em terreno fértil, já vemos a maturação de bons frutos.

Durante todos esses anos, ele esteve e continua até hoje na Academia Juvenil de Letras, não como acadêmico efetivo, pois já tem 21 anos, mas como colaborador. Nas festividades, nas reuniões mensais ele participa sempre com a sua música e também fazendo palestras e conferências.

Voltei a falar na Academia, porque foi em uma de suas reuniões (a do fim do ano) que Sérgio conheceu Mansa, com quem está namorando firme, com intenções de casamento. Ele se encontra num mundo de felicidade porque Mansa é como diz a sua "alma gêmea". Ambos possuem os mesmos gostos, as mesmas afinidades e espiritualmente se completam. Ela é professora de flauta e breve terminará o curso de piano e para o ano os dois pretendem ingressar na Faculdade de Música onde farão o curso de Composição e Regência.

Ficaram noivos no dia 16 de julho e possivelmente se casarão em 16 de julho de 75, dia de nossas Bodas de Prata.

E nós vemos felizes a concretização de nossos sonhos: Sérgio se preparando para a realização de sua vida como homem com uma mulher vidente e possuidora de qualidades ideais para ser sua companheira para o resto da vida.

"O casamento para o jovem cego, assim como para o dotado de visão é um dos maiores problemas. Qualquer um sabe sobre a conveniência do casamento para pessoas cegas, apesar de algumas pessoas ficarem impressionadas com a idéia do cego casar-se. Outros acham que é justo os cegos casarem-se entre si, mas os que tentam discutir as princípios envolvidos, limitam-se apenas aos externos, enquanto outros fatores mais básicos são freqüentemente esquecidos ou ignorados.

A cegueira, por si mesma, não é razão para não se casar, como provam centenas de casamentos bem sucedidos, entretanto fatores da realidade reforçam a idéia de que pelo menos uma das partes do casal deveria possuir visão.

A unidade familiar, o isolamento familiar e a independência familiar, tudo sofre um grande teste quando ambos, marido e mulher são cegos, por necessitarem de muita ajuda fora de si mesmos, pois parentes, amigos ou vizinhos tomam parte nos assuntos familiares - nem que seja apenas lendo correspondências. Se existir crianças para serem educadas, a visão é apenas algumas vezes essencial e é natural que esta seja a de ao menos um dos pais. Pode-se reconhecer que muitos casais, ambos cegos, consigam criar uma excelente família, mas precisam ambos possuir grande maturidade emocional e esta não é dada, nem tirada pela cegueira em si, ela é muito mais importante do que os outros fatores da realidade.

Na discussão da questão do casamento, não podem ser ignoradas as implicações emocionais da cegueira em relação à própria pessoa cega e ao público vidente. Para o casamento de uma pessoa cega e o casamento com uma pessoa cega, ambos pedem o mesmo grau de maturidade emocional, que o exigido para as pessoas de visão entre si.

Os fatores emocionais devem ser levados em conta pela pessoa cega no que diz respeito à educação das crianças. O pai cego deve ter a habilidade de manter-se no papel de pai, de se fazer respeitar pelos filhos, quando já crescidos compreenderem que seu pai é "diferente". Tanto o pai como a mãe não encontrarão problema em educar as crianças, desde que sejam realmente maduros e equilibrados emocionalmente".

Em síntese é esta a opinião abalizada do Revdo. Pe. Thomas, com quem concordamos plenamente. E por isso, nos sentimos tranqüilos agora, ao vermos Sérgio namorando uma moça vidente, equilibrada e madura que com ele formará um casal capaz de se amarem e de se entenderem muito bem, constituindo-se numa família bem sucedida, e que saberão educar com acerto os seus filhos.


O SEU PERFIL

17 de janeiro de 1974 - Sérgio está completando 21 anos de idade. É um jovem alto, esguio, de cabelos pretos e revoltos, mais ou menos compridos, boca grande encimada por um pequeno buço, dentes bonitos, olhos fechados, porque as pálpebras já não se abrem mais. Usa óculos escuros, o que muitas vezes no primeiro momento faz passar despercebida a sua cegueira. Fisicamente ele é assim. Psíquica e emocionalmente é normal, pois conseguiu superar a sua falta de visão. É alegre, comunicativo, impulsivo e independente. Encara os fatos da vida com critério realista, tem capacidade de analisar com muita sensatez e acerto qualquer situação moral e revela-se compreensivo, tolerante e generoso. Sabe o que quer e porque quer e tem confiança em si mesmo. O seu comportamento em nada se difere dos outros jovens: gosta de ter amigos e amigas para conversar e passear, firmando desta forma a sua personalidade a fim de conquistar maior experiência humana e social, além dos limites do lar. Quando permanece em casa não pára, um instante: toca piano, ouve música, compõe, prepara os seus arranjos, "vê" filmes na televisão (à noite), conversa, discute e se interessa por tudo o que se passa com a família, a sociedade e o mundo e procura estar atualizado com todos os assuntos, quer brasileiros quer internacionais; preocupa-se com a sua aparência física e sempre que vai sair para passear, fazer visitas ou a festinhas, pede a ajuda da irmã moça, a fim de que esta o arrume dentro dos ditames da moda atual.

É impressionante o seu poder de comunicação: com facilidade faz amizades e mesmo antes disso com a sua palavra fácil se dirige às pessoas para pedir informações ou entabular uma conversa.

No seu rosto falta-lhe a expressão do olhar... mas em compensação não lhe falta em sua boca rasgada um riso franco e comunicativo e assim ele vai vencendo na vida, feliz consigo mesmo e nos tornando também felizes.


COMO EDUCAR

A criança cega recém-nascida, com exceção da vista, em nada mais difere das outras crianças. Desde o primeiro dia de sua existência tudo o que se relaciona com cuidados deve ser aplicado também ao bebê cego. Nada difere em educação das crianças normais.

Não há diferença, portanto, entre um bebê que vê e o que não vê, nos primeiros dias, quando a criança que enxerga absorve inconscientemente os efeitos da luz. Porém, quando a criança começa a tomar conhecimento do mundo que a cerca através do ouvido e da visão, então aí deve se iniciar a educação especial da criança cega. Essa falta de um dos principais sentidos, deverá ser equilibrada por medidas planejadas, que se baseiam no uso adequado dos outros: ouvido, tato, paladar e olfato. Para os pais, inicia-se uma grande batalha que exigirá por certo paciência e abnegação: integrar a sua criança na comunidade.

Na idade de três a quatro semanas é que aparecem as diferenciações: o bebê que enxerga se vira no berço atraído pela luz de vela, estica os braços para pegar o chocalho e percebe que batendo nele, produz um som. O bebê cego não percebe nada disto, porque nada o atrai. A criança cega brinca menos e movimenta-se muito pouco e essa falta de movimentos na primeira infância resulta numa certa rigidez de comportamento e movimento nos anos futuros. A criança torna-se apática, desajeitada e dependente. Será muito difícil recuperar o atraso dos primeiros anos de vida. A mãe juntamente com os outros membros da família não deve poupar esforços para provocar a reação e atividade de sua criança cega.

Todas as impressões sensoriais transmitidas à criança devem corresponder à sua escala de desenvolvimento. A criança deve compreendê-las e assimilá-las, senão elas perdem seu valor. Devem, portanto, ser provocadas pelas tarefas apropriadas à idade dela.

Como são tarefas difíceis de realizar, não perca a paciência, não reclame ou repreenda a criança. Fale com amor e ternura. O menor sucesso deve ser louvado, a fim de que a criança não tenha sentimentos de inferioridade. Você assim lhe dará autoconfiança e coragem para resolver tarefas mais difíceis. Ela se formará bem física e psiquicamente. Em tudo ela se assemelhará à criança que vê, perdendo gestos ou atitudes acanhados e inibidos, e se desenvolverá harmonicamente como ser humano, nessa trindade: corpo-espírito-alma.

A educação da criança cega começa nos primeiros dias da sua existência. Já que não existem estímulos visuais, os sentidos do tato, audição e olfato devem ser desenvolvidos ao máximo.

Deixe que ela ouça na sua voz, o amor que ela não pode ver. Todos os membros da família devem falar com ela, a fim de que aprenda a diferenciar o tom de voz de cada um, combatendo o tédio e desenvolvendo as suas forças incipientes.

Desde o berço, as suas mãos devem ter tudo que procuram. Brinquedos os mais variados ela deve possuir, principalmente os que emitem sons que lhe agucem o ouvido, além de lhe fortalecer as mãos.

Não permita que ela fique permanentemente em seu berço, leve-a sempre a passear ao ar livre, as impressões auditivas que a criança receberá são de grande necessidade. Já nessa idade, isto é, aos nove meses, já se torna mais do que necessário tirar a criança do marasmo e da preguiça, senão ela ficará apática, não aprende a usar os sentidos e isto lhe causará um prejuízo enorme para o seu futuro.

Para o fortalecimento do seu corpo a criança cega não pode prescindir da ginástica, desde os primeiros meses, portanto, deve exercitar os seus membros. A mãe verificará o estado de saúde do seu filho e principiará com os exercícios dentro de ritmo regular: diariamente, na mesma hora, acompanhando-os com sons ritmados ou cantando uma canção infantil para despertar o interesse da criança.

Para uma criança cega recomendamos antes de tudo os seguintes exercícios:

1. Para fortalecer as articulações dos braços e das mãos, dos músculos do abdômen e do peito deite a criança de costas e levante-a devagar até ficar em posição sentada. A criança segura suas mãos e você a levanta devagar.
2. Fortalecimento dos músculos dorsais e das coxas. A criança fica deitada de bruços com a cabeça encostada de lado em situação alternante. Ombros e peito devem ficar bem encostados.
3. As pernas exigem exercícios cuidadosos num ritmo cada vez mais acelerado, dobrando e esticando-as.
4. Veja que a criança se movimente na mesa quando deitada de costas ou de bruços, num movimento imitando a natação a seco.
5. Para fortalecer os pés deixe a criança levantar-se na ponta dos pés. Como as crianças cegas raramente assumem essa posição naturalmente, procure um estimulo como por exemplo uma maçã em cima de um móvel que a criança possa alcançar nessa posição.
6. Uma criança cega raras vezes fica de cócoras, o que deve ser estimulado.
7. Carregue sua criança no colo, de modo que sua cabeça fique na altura da sua, e que as pernas da criança enlacem a cintura da mãe. Assim estabelece-se um contato mais íntimo, face a face.
8. Favoreça exercícios de engatinhar o que é muito importante para o desenvolvimento corporal. É mais importante engatinhar do que sentar.
9. Movimentos naturais, raros em crianças cegas devem ser estimulados: rolar, engatinhar, deslizar, trepar, saltar, correr, etc. A criança repetirá os exercícios enquanto estiver com vontade. Todos esses exercícios visam preparar a criança cega para o futuro jogo de movimentos.

À criança devem ser ensinados bons hábitos de higiene, parte intrínseca dos cuidados corporais. Como ela não sabe ainda controlar os seus músculos, as suas reações são sempre inadequadas, daí a necessidade de ensinar-lhe o que se exige dela e a criança dirá quando tiver seus desejos fisiológicos, primeiro ao responder uma pergunta pertinente, depois por iniciativa própria. Não deixá-la totalmente à vontade "nessas ocasiões" e não castigá-la quando não for "bem sucedida". Se ela volta a praticar hábitos infantis já superados, não a censure, mas pelo contrário, anime-a a retomar seus bons hábitos. Encoraje-a sempre, pois ela precisa de amor e coragem.

A criança cega não deve ser carregada nos braços, além do tempo necessário, desde que ela fique em pe pelo seu próprio esforço, acostume-a a prescindir do seu auxílio. Ela se agarrará mais aos móveis, objetos, ou às paredes. Faça com que ela siga o tom de sua voz numa sala onde não possa cair ou ir de encontro a algum obstáculo, assim ela aprenderá a andar sozinha numa direção certa. Tome cuidado especial com a postura do corpo, ensinando-lhe a postura correta, fazendo-a apalpar o corpo de outra pessoa.

Comece bem cedo a ensinar à criança a prática de vestir-se ou despir-se, para que ela se torne o quanto antes independente. Comece pelo mais simples como apalpar meias e gradativamente, com muita paciência ensine-a a abotoar e desabotoar, a formar laços etc. Repita até que a criança domine todos os movimentos, até que conheça peça por peça do seu vestuário e saiba usar cada uma acertadamente.

Comer e beber de modo certo têm também que ser ensinado à criança cega, pois como ela desconhece a forma dos talheres e não vê a comida no prato, não pode imitar nenhum exemplo. Não a ajude a levar a comida à boca, se já sabe fazer sozinha. Antes de tudo, explique-lhe o uso dos talheres, a posição da cabeça, os movimentos dos dedos e das mãos. Comece a usar uma colher e posteriormente aprenderá a manejar o garfo e a faca. Ensine-lhe o seguinte:

1. Apalpar com o garfo a disposição dos alimentos no prato;
2. Juntar as diversas partes com a colher e inclinar o prato para juntar a comida;
3. Levar a colher à boca em posição horizontal;
4. Não vir de encontro à colher com a boca;
5. Sentir com os lábios ou a língua se a comida não é quente demais;
6. Não encher a boca demais;
7. Fechar os lábios ao mastigar;
8. Seguir as normas de bom comportamento nas refeições. O manejo de copos, taças, pratos e talheres deve ser leve. Ensine-a a não seguir com a boca a posição do copo. Com o devido cuidado ela aprenderá a encher o copo sem derramar o conteúdo.

Ordem e regularidade são os maiores mandamentos e uma vez que a criança se acostumou com um ritmo e uma certa ordem, não a perturbe com contra-ordens.

Ao tirar a roupa a criança a colocará de forma que, ao querê-la vestir novamente, a encontre na mesma seqüência e no mesmo lugar onde sempre a coloca.

Cuide sempre bem de sua aparência pessoal, não a deixando desleixada e suja.

A criança não ensinada a proceder sozinha, dependerá sempre dos outros, o que é um grande mal. É melhor prevenir do que remediar... A criança cega "vê" com o ouvido, por isso é necessário conversar e falar com ela. A linguagem é um dos maiores meios de comunicação e para o cego que não pode ver os órgãos da fala, convém sempre falar com clareza e corretamente. Como ela só conhece os objetos novos, conjugando a fala ao conceito dos objetos, ela terá primeiramente que apalpá-los e depois saber-lhe os nomes.

Precisamos enriquecer o vocabulário da criança e levá-la a conhecer os objetos pela sua forma, pelo som e outros pelo olfato, integrando-os na sua vida.

O ouvido pode substituir a vista que falta, por isso, devemos explorar o mais possível as fontes acústicas. É preciso que a criança cega aprenda a conhecer bem os sons de tudo que a cerca. Isso acompanhado sempre de uma explicação verbal, freqüentemente repetida, aumentará seus conhecimentos, integrando-a no meio em que vive.

Os cegos devem ouvir música, o mais possível, porque desde cedo a criança cega demonstra sensibilidade ao ouvir uma melodia que lhe dá um certo bem-estar e poderá despertar nela um talento musical cuja evolução poderá desempenhar um fator importante na vida futura. Não confundir ouvido aguçado com ouvido musical, pois possuir um bom ouvido não é o mesmo que ouvido musical.

Se a criança apresenta interesse e talento pela música, devemos cultivar essa tendência.

"O tato é o olho do cego", daí a necessidade primordial de desenvolver esse sentido o mais possível, desde a mais tenra idade. Comecemos com os brinquedos que o bebê reúne no seu berço, que ele apalpa, põe na boca e com os quais se diverte. Deixemos que a criança se movimente livremente dentro de casa, conhecendo todos os compartimentos, depois ela mesma tomará a iniciativa de alargar o seu círculo de exploração. Deixemo-la apalpar os móveis e as paredes, não esquecendo, no entanto de uma explicação verbal sobre os mesmos.

O paladar e o olfato enriquecem as impressões que a criança obtém do seu ambiente. Devem ser cultivados, pois eles são reveladores também de possíveis perigos.

Todos os sentidos devem ser exercitados e treinados, tornando-os meios de reconhecimento e comunicação, fazendo com que o mundo fique interessante, excitante e misterioso e ainda para que o cego perca aquela posição estática e rígida.

A criança precisa aprender a orientar-se sozinha e os pais devem ajudá-la a libertar-se do auxílio de terceiros, tornando-a cada dia mais independente.

Comece pela sua casa, mostrando-lhe e orientando-a onde os objetos se encontram e ensine-lhe a descobrir a relação entre um quarto e outro. Aproveite as andanças pela casa para chamar a sua atenção sobre novos obstáculos e sobre certos objetos pelos quais poderá se orientar melhor em suas idas e voltas.

Depois de familiarizada com a casa a criança será levada ao quintal ou ao jardim onde um novo mundo se abre para ela. Chame sua atenção sobre a grama, as árvores e ensine-lhe os nomes. Explique-lhe todos os detalhes topográficos, mostre-lhe os caminhos cobertos de areia, pedregulho ou de cimento e faça-a sentir as diferenças. E só depois de bem memorizados estes, ensine-lhe novos caminhos.

Desde que ela se mostre hábil, poderá penetrar no mundo externo. Mostre-lhe as ruas e o caminho que deve tomar. Com boa orientação técnica, a criança poderá usar uma bengala, para sentir os obstáculos e evitá-los em tempo ou poderá deixar-se seguir pelo canto da calçada. Nunca segure a criança com força, inibindo os seus movimentos, guie de leve, deixe-a andar sozinha, e acompanhe de perto seus passos.

Para que as pessoas cegas usem a mímica e a linguagem dos gestos, precisam aprender a dominá-las. Toda criança deve e pode aprender essa habilidade. Perde ela com uma educação bem orientada a expressão facial sem vida e a ausência total de gestos, características das pessoas cegas, torna-se mais atraente e mais simpática e as outras pessoas a acharão mais acessível. Para conseguir isto, recomendam-se os seguintes exercícios:

1. Tirar o chapéu para saudar alguém, fazer uma reverência, apertar a mão de modo natural, sem constrangimento.
2. Ensinar a virar o rosto na direção da pessoa com quem se fala.
3. Inclinar a cabeça em caso de afirmação, e virá-la em caso de negação.
4. Aprender a indicar direções ou objetos com o dedo.
5. Aprender a bater numa porta, numa mesa, etc.
6. Levantar a mão em sinal de ameaça.
7. Sacudir de ombros acompanhando o gesto com a mão.
8. Bater palmas e usar as mãos em forma de concha para gritar.
9. Abanar com a mão, com o lenço.
10. Acompanhar estes gestos com movimentos adequados do corpo e por palavras.
11. Não exagerar nunca, manter a naturalidade, antes esboçar um gesto do que exagerá-lo.

A criança cega deve diferenciar-se o mínimo somente da criança normal, para isso hábitos próprios à cegueira (congênita) devem ser erradicados o mais cedo possível, a fim de que não se alastrem pela vida toda.

Os hábitos típicos de uma pessoa cega são:

1. Exercer pressão sobre o globo ocular com um dedo. Com isto, o cego quer provocar um estimulo nervoso substituindo o estímulo causado pela luz.
2. Descansar a vista sobre os braços deitados em cima da mesa.
3. Movimentos rápidos com objetos perante os olhos que ainda preservam um resíduo visual. O cego vê uma sombra em movimento de um modo muito difuso, o que lhe causa alegria, constituindo este fenômeno um substituto para a vista.
4. Fazer caretas, movimentando a testa, esticando os músculos da face, boca, olhos e do rosto em geral.
5. Brincar e fazer tremular as mãos.
6. Mexer com a boca e o nariz.
7. Mexer no rosto.
8. Jogar os braços.
9. Balançar as pernas.
10. Balançar o corpo quando em pé ou sentado, curvando-se para frente.
11. Girar em torno de si próprio sem deixar o lugar.
12. Gesticulações exageradas ao falar, com as mãos e as pernas.
13. Dar pulos de um modo inseguro.
14. Inclinar o corpo na direção das ondas sonoras.
15. Esticar a cabeça, inclinando-a de um lado.
16. Menear a cabeça.
17. Deixar a cabeça inclinada de um modo frouxo.
18. Andar aos pulos.
19. Inclinar a cabeça para trás e estender os braços exageradamente ao andar.
20. Ficar em pé ou sentado em posição curva e com o peito encolhido.
21. Assumir uma posição relaxada com os joelhos frouxos.
22. Esfregar as mãos ou bater nos joelhos movendo a cabeça e o torso simultaneamente em caso de excitação íntima.

Para que a pessoa cega possa viver no mundo dos videntes, esse mundo que lhe pertence, tem que procurar nele se integrar, sem fazer alarde do seu defeito, assumir os seus deveres normalmente, dando assim aos videntes a oportunidade de aceitá-lo com naturalidade.

Devemos, portanto, ensinar às crianças cegas boas maneiras:

1. Quando deve tirar o chapéu.
2. Como deve cumprimentar uma pessoa.
3. Que deve bater na porta antes de entrar num quarto.
4. Que vire o rosto em direção da pessoa com quem fala.
5. Que deve cobrir o rosto com a mão ou com o lenço quando tosse, espirra ou boceja.
6. Como assoar o nariz com o lenço.

Eduquem a criança cega desde a mais tenra idade, fazendo-a cultivar seu autocontrole, seu amor à verdade, à pontualidade, à independência, à polidez e respeito, para lhe facilitarmos sua integração na vida comunitária.


4. - A INTEGRAÇÃO DO CEGO

Em São Paulo, o cego ou deficiente visual pode se integrar mais rapidamente, pois além de contar com o povo, que possui uma mentalidade mais evoluída em relação à cegueira, aceitando-a e ajudando-a com mais naturalidade, conta também com muito mais recursos técnicos e especializados para auxiliá-lo na sua formação intelectual e social.

Tem sede aqui a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, a casa mestra de todos os programas para o deficiente visual, pois sua presidente, Da. Dorina de Gouvêa Nowill, é também Diretora Executiva da Campanha Nacional de Educação de Cegos (CNEC), órgão do Ministério de Educação e Cultura, que trata com propriedade dos problemas do cego; existe ainda a sala Braile da Biblioteca Infanto-Juvenil Monteiro Lobato, da Prefeitura Municipal, onde os cegos encontram livros didáticos para os cursos primário, ginasial, colegial e superior, copiados pelas funcionárias ou por seus copistas voluntários; e a Fitoteca da Liga Feminina Israelita do Brasil, que executa trabalho de gravações de livros, apostilas, etc., em fitas mini-cassetes. Estas fitas são emprestadas, gratuitamente, sendo responsável por este setor a Sra. Kaete Heymann, que pessoalmente faz a entrega para os seus clientes. Existem mais de 70 livros gravados, de assuntos diversos, somente para adultos.

Tanto a Biblioteca como a Fitoteca atendem a pedidos de cópias ou gravações de livros inexistentes na Fundação para o Livro do Cego no Brasil.


O SENAI: participação do cego na mão-de-obra paulista

Para a habilitação ou reabilitação do cego ou deficiente visual, no campo industrial, possui a capital paulista um Serviço de Adaptação Profissional de Cegos, sob inteira responsabilidade do Departamento Regional do SENAI, que o localizou na sua Divisão de Seleção e Orientação Profissional.

Nasceu esse Serviço em 1953, após a histórica visita de Helen Keller ao Brasil. Numa reunião na Sede da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), com a presença de industriais e de grande número de pessoas interessadas no trabalho de integração do cego, ganhou corpo a iniciativa mais feliz e positiva que já se fez no Brasil para habilitar ou reabilitar pessoas cegas ou deficientes visuais no campo da indústria.

A finalidade precípua do Serviço é realizar o aproveitamento de pessoas cegas em diferentes setores da produção industrial. Os fins principais visados pelas atividades do Serviço são quatro, constituindo um processo que, se bem ajustado em todas as suas etapas, resulta na integração social de dezenas de brasileiros cegos.

São estas as atividades executadas:

1. estudar, descrever, classificar e caracterizar ocupações industriais compatíveis com a condição de cegueira;
2. recrutar, registrar e encaminhar pessoas cegas interessadas no trabalho industrial;
3. mediante a vaga oferecida, escolher uni candidato, apresentá-lo à firma e realizar seu treinamento no emprego;
4. realizar, após a colocação, o seguimento técnico do trabalhador colocado, verificando seu ajustamento geral ao trabalho. Completadas essas etapas, encerra o caso e o empregado cego da indústria e o seu empregador somente recorrem ao SENAI se houver acontecimentos imprevistos.

Atualmente, o Serviço está muito desenvolvido, já tendo realizado um trabalho excelente. O prof. Geraldo Sandoval de Andrade, chefe do Serviço, já tem visitado outros Estados, convocado por quase todos os Departamentos Regionais do SENAI para orientá-los na instalação desse Setor.

O trabalho realizado pelo SENAI difere fundamentalmente de outros trabalhos para pessoas cegas. Ele não tem o menor cunho assistencial, ao contrário, visa a completa integração social e profissional das pessoas que orienta.

São atendidos cerca de 80 casos novos por mês pelo Serviço de Adaptação Profissional. Os candidatos são submetidos a testes psicológicos e se forem aprovados, permanecem e freqüentam um curso teórico de 30 horas, dado em duas semanas. Geralmente este curso é ministrado para turmas grandes, 4 vezes ao ano.

Depois disso, o candidato é colocado e o treinamento prático é realizado na própria indústria que o empregou, na máquina onde ele trabalhará.

O trabalhador cego é tratado como todos os outros dentro da indústria, tem os mesmos direitos e deveres. É obrigado a bater o ponto, a tomar refeições junto com os outros, participar de todas as atividades sociais, etc. Os índices de produtividade estabelecidos para pessoas normais deverão ser atingidos por trabalhadores cegos e isso foi comprovado nestes vinte anos, pois não houve nenhum caso em que essa produtividade fosse abaixo do nível satisfatório.

A admissão e demissão também são feitas regularmente, dentro da lei trabalhista.

A fábrica não se responsabiliza pelo problema de locomoção do trabalhador cego, que deverá ser resolvido por ele mesmo, mas esta é uma das três condições exigidas para o cego ingressar no Serviço de Adaptação, isto é, o cego deverá saber andar só, com a sua bengala. As outras duas são: ter saúde normal e perfeita sanidade mental.

Quanto à questão de acidentes, estudos realizados provam que as pessoas cegas estão menos sujeitas a eles do que as outras pessoas normais, porque possuem maior regularidade de hábitos, não se afobam, não têm movimentos confusos, pois sua integridade física depende disso. Em vinte anos de serviço do SENAI, só dois casos de acidentes leves foram registrados, mas por falha mecânica, não humana.

De acordo com o Prof. Sandoval, a tarefa fundamental do Serviço é uma Pesquisa de Mercado e Promoção de Emprego de deficientes visuais, pois se não houver trabalho e as empresas não se acostumarem à idéia de empregar pessoas cegas, de nada resultará todo o esquema de trabalho montado.

Atualmente, mais de 200 empresas industriais empregam candidatos do Serviço de Adaptação Profissional, o que mostra os resultados de vinte anos de trabalho incessante.

Uma equipe de analistas do SENAI já classificou e experimentou diversos grupos de ocupações industriais que podem ser exercidas pelos cegos de ambos os sexos, com êxito. São eles:

1. embalagens (21 tipos diferentes);
2. operações com máquina (13 tipos);
3. pré-montagens (6 tipos);
4. montagens (21 tipos)
5. e 41, tipos de ocupações diversas.

Necessário se torna que os outros Estados do Brasil, pelos seus industriais, sigam o exemplo de São Paulo, dando a oportunidade de seus conterrâneos cegos se tornarem trabalhadores eficientes, produzindo na sua terra natal, aumentando a sua produtividade e conseqüentemente o seu engrandecimento.

Deveria cada Estado, cada Município, evitar, por todos os meios necessários, o êxodo de seus filhos, dando-lhes os meios necessários, os instrumentos adequados, para que todos trabalhem e vivam felizes, dentro dos seus limites territoriais.


PROGRAMADOR DE COMPUTADOR, uma nova profissão que surge para o cego

Em fins de 1969 dois rapazes idealistas e inteligentes, sofrendo na própria carne, o problema da integração, porque são cegos, resolveram procurar uma profissão de nível técnico que pudesse ser exercida pelos deficientes visuais, que como eles tivessem um maior preparo intelectual. Daí nasceu a idéia de estudarem
programação de computadores. No início as empresas do ramo não se interessaram pela idéia, mas um funcionário da Bourroughs, Henrique Rosenfeld, prometeu ajudá-los.

Em setembro, ele começou então a dar aulas para Domingos Sessa Neto e Márcio Quedinho. Depois de preparados, os dois procuraram emprego, o que foi muito difícil, porque as empresas não acreditavam na capacidade do cego em programar e não queriam se arriscar, admitindo-os.

Finalmente Domingos conseguiu emprego na SERPRO, e através da sua atuação eficiente, provou exatamente o contrário, passando então a gozar de muito conceito e começou a receber propostas para trabalhar em outras empresas, e já está de mudança para o grupo Big Univest que lhe ofereceu salário bem vantajoso.

Durante o tempo que estudaram com Henrique, os dois decidiram promover outros deficientes visuais, que como eles, não tinham uma profissão.

Criaram, no início de 1970, o IBIS - Instituto Brasileiro de Incentivos Sociais - entidade que visa promover e adaptar sócio-economicamente os cegos.

Através do IBIS, eles deram um curso de computação em caráter experimental. O curso durou três meses, foi ministrado para doze cegos e quatro deles já são técnicos em linguagem Assembler.

Depois desse curso, Domingos entrou em contato com várias firmas de computação, entre elas a ITT, e aí conheceu Antônio Acras Filho, chefe do Centro Educacional da empresa.

Desse encontro feliz e proveitoso, foi concretizada a idéia de ser ministrado um curso pela ITT: curso de alto nível e de dimensão nacional para formar bons profissionais em programação. Surgia então, naquele dia a grande oportunidade para o deficiente visual, abrindo novas possibilidades de emprego dentro do campo da tecnologia. O sonho de Domingos e Márcio, começava a se transformar em realidade.

O curso tem a duração de seis meses, divididos em duas etapas: nos três primeiros meses é ministrada a parte teórica prática e, nos restantes, apenas a prática, onde os alunos desenvolvem programas de computador.

Os professores Domingos e Márcio fizeram uma preparação muito grande e trabalhosa, pois todas as etapas de um curso normal de programação tiveram que ser adaptadas.

Os próprios testes de seleção, que eram basicamente visuais, foram transformados em questões onde cada pergunta tem várias alternativas semelhantes.

O código Braile, que não comporta certos componentes da linguagem computacional, (como símbolos matemáticos, por exemplo) tiveram que sofrer uma série de modificações.

Restava ainda o maior problema: o programa rodado em computador sai numa linguagem com caracteres normais, conseqüentemente, o cego, depois de submeter um programa seu ao computador, não poderia lê-lo na listagem. Finalmente foi encontrada uma solução: foi elaborada uma sub-rotina que permitirá ao computador converter também a linguagem comum em caracteres Braile. Assim sairão duas listagens: a usual (em letras) e a em braile (em pontinhos).

Terminado o curso, os cegos levarão consigo todo o material necessário ao exercício da profissão. Quando estiverem empregados (na própria ITT ou seus clientes), eles então pagarão os custos desse material à empresa, para que ela possa investir novamente.

Acredita o sr. Antônio Acras Filho que a ITT consiga o seu objetivo ao promover esse curso, porque ele acredita na capacidade do cego em se tornar um profissional de gabarito, dentro do campo de programação de computador.
 

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Foi entregue ao Exmo. Sr. Presidente da República um memorial dos representantes dos cegos brasileiros.

Esse memorial eu transcrevo na íntegra, para que todos tomem conhecimento dele.

O Conselho Nacional Para o Bem-Estar dos Cegos, órgão de coordenação e orientação da assistência aos deficientes visuais no Brasil, representando o pensamento e as aspirações dos deficientes visuais brasileiros e de suas instituições filiadas, neste momento em que Vossa Excelência enceta brilhante arrancada para o desenvolvimento de nossa Terra, pede vênia para respeitosamente apresentar à alta consideração de Vossa Excelência o que segue:

1. Em todos os países do mundo efetiva-se trabalho meritório no sentido do aproveitamento econômico-social dos deficientes visuais, já que não se pode mais ignorar a sua capacidade de trabalho em todos os setores da atividade humana.
2. Lá encontramos os deficientes visuais ocupados em diversos misteres, desde as profissões liberais até a execução das atividades diversas em fábricas e oficinas.
3. Da mesma forma, no Brasil, de há muito os deficientes visuais lutam para abandonar a vida de mendicância que tanto depõe contra os nossos anseios de povo em franco desenvolvimento. Conscientes do seu valor e da sua responsabilidade, vêm há muito reclamando o lugar que de justiça lhes cabe ao lado daqueles que se ocupam em construir a grandeza de nossa Pátria.
4. Para a concretização do seu patriótico anseio, os deficientes visuais clamam em primeiro lugar pelo amparo das nossas leis, que lhes possa garantir os meios da sua subsistência. E é com a esperança de consegui-lo que vêem os deficientes visuais brasileiros, respeitosamente, pleitear do alto espírito de patriotismo e solidariedade humana de Vossa Excelência:

a) Regulamentação do Decreto-Lei n.º 5.895 de 1943, que consubstancia diversas reivindicações dos deficientes visuais brasileiros;
b) Revisão da Lei 1.711, com a modificação no Art. 178 do item 3 que considera incapacitado o indivíduo portador de cegueira, eliminando a condição de cegueira como incapacidade para ocupar cargos no serviço público e readaptando através diagnósticos médicos aqueles funcionários que tenham condições de serem recuperados;
c) Determinar às empresas particulares ou de economia mista a admissão em seus quadros de servidores de, no mínimo, um elemento deficiente visual devidamente habilitado em cada cem servidores normais;
d) Determinar que os produtos manufaturados pelos deficientes visuais em suas instituições legalmente constituídas tenham preferência na aquisição pelos órgãos governamentais;
e) Determinar que os hospitais federais, autárquicos e estaduais, a exemplo do que se observa na Guanabara e em São Paulo, aproveitem em seus quadros de massagistas elementos deficientes visuais devidamente habilitados para tal função.

5. Senhor Presidente, ao recorrerem a Vossa Excelência, para respeitosamente pleitear as concessões acima enumeradas, apoiam-se os deficientes visuais brasileiros e suas instituições filiadas não só na preocupação de Vossa Excelência já publicamente manifestada no sentido do aproveitamento de deficientes físicos, mas também no brilhante Parecer n.º 322 de 13 de abril de 1966, exarado pelo Exmo. Sr. Consultor Geral da República, Dr. Adroaldo Mesquita da Costa (itens 9 e 11).

O Conselho Nacional Para o Bem-Estar dos Cegos depõe nas mãos de Vossa Excelência as esperanças mais almejadas dos seus concidadãos que, mesmo privados da visão, não querem nem podem ser marginalizados nesta hora em que, unidos, todos buscamos de alguma forma contribuir para o engrandecimento do nosso querido Brasil".

Muito se tem feito, nos últimos anos principalmente, pela integração do cego.

Muita coisa já foi conquistada no campo sócio-econômico, no entanto, o mais valioso, o mais necessário para o cego é conquistar no dia a dia, a compreensão e a amizade do vidente.


ORIENTAÇÕES PRÁTICAS PARA QUEM ACOMPANHA UM CEGO

Uma pessoa cega tem como você os mesmos sentimentos e direitos, por isso procure compreendê-la a fim de melhor orientá-la.

Antes de tudo não lhe demonstre compaixão pois isto a inferioriza, impedindo-a de sentir-se à vontade no ambiente em que se encontra. Siga, portanto estas normas práticas:

1. - Ao caminhar com ela ofereça-lhe delicadamente o braço, não a empurre e ela seguirá naturalmente os movimentos do seu andar.
2. - À mesa explique-lhe os pratos que compõe a refeição; se houver necessidade, ofereça-se para cortar os alimentos, descascar as frutas e explique-lhe onde se acham os talheres e copos.
3. - Ao conversar com ela fale-lhe diretamente, não através de terceiros. Converse normalmente pois ela é capaz de entender tão bem quanto você.
4. - Se você vive com ela ou está no mesmo ambiente de trabalho, não deixe as portas, móveis ou objetos delicados fora dos lugares costumeiros. Se os mudar de lugar avise-a.
5. - Encontrando-a sozinha não lhe dirija brincadeiras de mau gosto. Converse com ela a respeito de assuntos que interessem a todos. Deixe que espontaneamente ela lhe fale de sua cegueira.
6. - Quando lhe explicar direções, use os termos: DIREITA ou ESQUERDA.
7. - Oferecendo-lhe urna cadeira, coloque-lhe a mão no espaldar ou no encosto. Ela se sentará normalmente.
8. - Em lugares desconhecidos, descreva-lhe o ambiente ou a paisagem, para que ela como você possa participar dos encantos do mundo exterior.
9. - Cumprimentando-a, tome sempre a iniciativa de apertar-lhe a mão. Se você fizer assim não só se sentirá feliz, como fará feliz a um de seus irmãos (IPC).


BIBLIOGRAFIA
CARROL, Thomas J., Pe - Cegueira.
SCHMIDT, Maria Junqueira - A Família por Dentro.
DELAMARE, Rinaldo - Nossos Filhos - 2 aos 16 anos.
REVISTA LENTE - 1963, Fundação para o Livro do Cego no Brasil.
HELMERS, Wilhelm - Como devo Educar meu Filho Cego?
RELATÓRIO DO INSTITUTO Pe. CHICO - 1969.



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MEU FILHO CEGO
EDDA SA DE ALBUQUERQUE
Editora Cupolo
1969 

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19.Out.2016
publicado por MJA