

Homem conduzindo um frade cego -
José de Ribera, séc XVII
Desde os primórdios da humanidade, a pessoa com deficiência vem sendo vista de
uma maneira negativa. Em civilizações nômades, a deficiência, a enfermidade e a
velhice funcionavam como uma barreira à mobilidade do grupo. Se todo o bando
tivesse que deslocar-se de maneira mais lenta devido à redução de mobilidade dos
deficientes, doentes e idosos, isto poderia representar uma ameaça a sua
sobrevivência, fosse pela competição do espaço com outros grupos, ou pelo
iminente risco de ataques de animais selvagens. Então, quando uma comunidade
nômade se deslocava, os doentes, deficientes e idosos eram deixados para trás, e
acabavam morrendo por uma questão de seleção natural. As pessoas costumam se
chocar com esta informação, e acabam tentando se convencer de que este nosso
passado ficou para trás, e que a animalidade do homem já acabou. Entretanto, eu
temo que ao final desta leitura, você tenha a impressão de que continuamos
vivendo em uma civilização nômade, onde a seleção natural ganhou uma nova
roupagem, mas continua existindo com a mesma animalidade.
Alguns animais, quando têm crias doentes, matam os filhotes indefesos. Os
filhotes menos saudáveis são presas fáceis aos predadores, é possível que o
instinto animal seja o de evitar o sofrimento, já que o filhote doente não
poderá caçar comida para si, e acabará sendo devorado por um predador. Ou
talvez, isto tenha uma relação com a melhoria da espécie, elimina-se o filhote
menos saudável, para que ele não possa se reproduzir e propagar sua condição
deficitária. Mas, o que nos interessa aqui, é que algumas sociedades humanas
também passaram a adotar este comportamento, e encontraram uma justificativa
religiosa para defender suas ações. Para algumas comunidades, uma criança que
nascia doente ou deficiente era uma manifestação demoníaca, e deveria ser
eliminada.
Este conceito parte da idéia espiritualística de que todos somos filhos de Deus,
e se somos filhos de Deus, então também podemos ser filhos do Demônio.
Repare que coloquei o Demônio em letra maiúscula, e me justifico.
Para a maior parte das religiões, a representação do mal chega a ser mais forte
e mais importante que a imagem do bem. E por isto, eu o coloco em uma posição de
igualdade.
Um pouco mais tarde, os humanos evoluíram, e deixaram de assassinar seus
"filhotes doentes". Mas decidiram escondê-los, pois a doença continuou
representando uma manifestação espiritualmente negativa. Nesta etapa da
evolução, a pessoa com deficiência era vista como um castigo à família, uma
punição divina aos seus pecados. E por representar uma punição, era considerado
vergonhoso ter uma pessoa com deficiência em casa, e por isso ela deveria ser
ocultada. A partir de então, o deficiente passou a ter o direito de "existir", e
até os dias de hoje, mantém esta condição, a de poder "existir", mas sem o
direito de "ser". Qual a diferença de "ser" e "existir"? Tudo que há no
universo, existe, mas apenas algumas criaturas têm o direito de escolha. Os
objetos "existem", mas não podem "ser", ou seja, ele não pensa, e por isso,
alguém pensa por ele. Eu decido onde coloco minhas roupas, porque elas não têm a
faculdade de decidir por si. Então eu, como penso e decido, além de "existir",
também "sou".
Mas o que é "ser"? "ser" é simplesmente a possibilidade de manifestar os nossos
desejos, o direito de ter uma opinião sobre os fatos e de conduzir nossa vida
segundo nossos conceitos, opiniões e escolhas pessoais. E é neste ponto que a
pessoa com deficiência acaba por ser embarreirada, na possibilidade de
"existir". Mas o que exatamente me faz ser uma pessoa com deficiência? Isto pode
parecer óbvio, porém a diferença entre certas doenças e a deficiência é bastante
sutil.
A título de conceituação, é pertinente que se cite a definição que traz a lei Nº
13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e tem como base a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo
no 186, de 9 de julho de 2008, e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de
agosto de 2009, que define:
-
"Art. 2.º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo
prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
E o que exatamente pode ser considerado uma barreira, tendo em vista minha
afirmação de que a pessoa com deficiência é embarreirada em seu direito de
"ser", além de existir? O mesmo texto legislativo supracitado, traz em seu
artigo terceiro, item 4, a seguinte definição:
-
"IV - Barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que
limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o
exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de
expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, e à circulação
com segurança."
As barreiras enfrentadas pela pessoa com deficiência são inúmeras, e podem ser
divididas em diversos grupos, como barreiras urbanísticas, arquitetônicas,
barreiras nos transportes e nos meios de comunicação, barreiras atitudinais,
barreiras tecnológicas, entre outras. Para o contexto de nossa reflexão, nos
fixaremos nas pessoas com deficiência visual, e quanto às barreiras, tomaremos
como objeto desta apresentação, as barreiras atitudinais, que são, a meu ver,
aquelas que mais fortemente influenciam as condições de "ser" e "existir", e que
determinam as relações de superproteção, cujas conseqüências compõe o tema
inicial desta discussão.
Como definem-se as barreiras atitudinais? Para responder a esta pergunta, trago
novamente o texto do estatuto da pessoa com deficiência, em seu artigo terceiro,
item 4, conforme segue:
-
"e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem
a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e
oportunidades com as demais pessoas;"
As barreiras atitudinais estão embasadas em um contexto histórico, incrustado no
inconsciente coletivo e transmitidos de geração a geração ao longo dos séculos.
Se retornarmos à histórica figura da pessoa com deficiência, podemos compreender
as raízes da superproteção e das relações afetivas danosas que permeiam o ceio
familiar onde se encontra uma pessoa com deficiência, em especial aquela com
deficiência visual, posto que para o inconsciente coletivo, a cegueira constitui
a pior das deficiências, a mais limitante e desastrosa.
Se até pouco tempo, ter uma deficiência representava uma punição divina e todo
deficiente estava fadado ao cárcere de sua casa, transformando-se em um ser
incapaz de socializar-se e desenvolver-se de maneira minimamente normal, não
porque tivesse uma incapacidade mental para tanto, mas sim porque foi submetido
à ausência de convívio social durante toda vida, torna-se compreensível a
ligação que ainda hoje se faz entre a deficiência visual e a incapacidade
mental. Afinal, se até então fomos estigmatizados ao ponto de nos tornarmos
incapazes de conviver socialmente e nos fez desenvolver comportamentos
inadequados ou vergonhosos, instalou-se a idéia de que qualquer deficiente é
incapaz de pensar e decidir por si. Quando, na realidade, o cego desenvolve
comportamentos não aceitos pela sociedade, pelo simples fato de que não pode
construir sua personalidade comportamental a partir da imitação visual, e, pelo
fato de que seus familiares e educadores negligenciam a sua educação.
A educação exige rigor, e a pessoa com deficiência visual, em sua condição
histórica de deficiente mental e coitado, não merece ser cobrada, pois não tem o
mesmo discernimento e não se quer causar um novo sofrimento a ele, posto que ser
cego já lhe faz suficientemente digno de pena e compaixão.
Estes conceitos errôneos, arraigados e difundidos em nossa sociedade, terminam
por dar origem a uma das muitas formas de violência a qual estamos submetidos
diariamente, a discriminação. Para nós que somos deficientes, a discriminação
não consiste de um conceito, mas sim de uma realidade prática, com a qual
convivemos desde a infância e até a velhice.
Entretanto, para os fins desta abordagem, faz-se necessária a análise do
conceito teórico, trazido pelo estatuto da pessoa com deficiência, em seu artigo
quarto, parágrafo primeiro:
-
"§ 1.º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de
distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou
o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos
direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a
recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas."
Repare na expressão, "por ação ou omissão". A omissão, ao contrário da ação, é
muitas vezes camuflada, e acaba passando despercebida. É por meio da omissão que
se cometem os maiores crimes de violação dos direitos da pessoa com deficiência.
A omissão consiste em não evitar, não impedir ou não intervir em situações de
desrespeito aos direitos do deficiente.
Quando se aborda a família de um deficiente visual e se questiona os motivos da
omissão, normalmente as pessoas se justificam por duas bases, o "eu não sabia",
e o "eu só queria proteger".
Quem não sabia, também não procurou saber, e quem superprotege, em detrimento de
proporcionar a possibilidade de o deficiente visual desenvolver-se, baseia suas
atitudes em conceitos radicalistas muito próximos dos grupos extremistas que
afirmam matar em nome de Deus. Superproteger, impedindo que a pessoa se
desenvolva, configura um ato danoso, justificado em uma base positiva, o amor. E
assim se perpetuam as relações humanas. A história fez a sociedade acreditar que
o deficiente visual é incapaz, e este cego, por passar toda sua vida ouvindo
isso, passa a acreditar menos em si, e desistir da luta por seus direitos, ou
por sua liberdade de "ser", para além da condição sub-humana de simplesmente
"existir".
Este processo psicológico, que leva o deficiente visual a acreditar naquilo que
os outros pressupõe sobre ele, está intimamente ligado ao conceito de reforma do
pensamento, popularmente denominado de lavagem cerebral.
Na psicologia, o estudo da reforma do pensamento está enquadrado na esfera da
influência social. A influência social é o conjunto das maneiras nas quais as
pessoas podem mudar atitudes, crenças e comportamentos de outras pessoas, afim
de que elas pensem e ajam da maneira que se deseja.
Os métodos de reforma do pensamento sã muito utilizados pelas campanhas
publicitárias, na intenção de convencer você a comprar algo que você não
precisa, por estar convencido de que aquele produto é fundamental na sua vida.
Existem vários métodos de se influenciar o outro. O método da persuasão lhe faz
crer que você deve fazer aquilo que lhe é dito, pois assim você se sentirá
melhor. O método da submissão pretende que você apenas faça, sem questionar, sem
receber um argumento plausível para sua atitude. Já o método conhecido como
método de educação ou de propaganda, pretende fazê-lo acreditar que tem que agir
de acordo com aquilo que lhe mandam, porque esta é a coisa certa a se fazer.
Contrariando os conceitos já estabelecidos, vou chamar este último método de
método de condicionamento. Estes mecanismos psicológicos são extremamente
empregados por famílias de pessoas com deficiência visual.
A mãe, de modo geral, justifica sua atitude superprotetora nas afirmativas: isto
é para o seu bem; você sabe que este é o certo; se você estivesse em meu lugar,
faria o mesmo. E, depois de algum tempo, a pessoa com deficiência visual deixa
de lutar por independência, deixa de querer sua liberdade, passando a acreditar
que necessita realmente ser protegido ao extremo, que o mundo lá fora é muito
perigoso e que ele não é capaz de cuidar de si, precisando que alguém lhe cuide
e proteja em tempo integral.
Neste ponto, a pessoa com deficiência visual passa a defender a atitude dos
familiares e até mesmo a justificá-los: "minha mãe não me deixa fazer nada, mas
isto é porque ela tem medo que eu me machuque".
Além disso, o deficiente visual passa a sentir-se em dívida com estas pessoas,
afinal elas fazem tudo por ele. E as pessoas normalmente se utilizam desta
estratégia como forma de pressão psicológica e coação, lembrando ao cego, a cada
vez que ele fizer uma tentativa de alcançar alguma independência: "Você é um
ingrato!" - "Nós fazemos tudo por você!" - "Veja como você nos agradece por tudo
que fazemos!" - "Como você imagina viver sozinho se não sabe fazer nada?" -
"Como você vai sobreviver?" - "O que vai comer?" - "Quem lavará suas roupas?"...
E assim, a pessoa com deficiência visual acaba acreditando na impossibilidade da
sua liberdade, e na incapacidade que tem de prover sua própria sobrevivência.
Em situações familiares deste tipo, é extremamente difícil a intervenção de um
profissional da educação especial, posto que o deficiente visual está convencido
de sua limitação e tem medo de tudo. No momento em que um profissional, como por
exemplo um professor de orientação e mobilidade, tenta intervir e tirar este
cego de casa, fazê-lo adquirir alguma autonomia, ele é visto como uma ameaça,
alguém que quer expor o cego a riscos, e que quer causar sofrimento naqueles que
o protegem porque o amam.
Os processos psicológicos desenvolvidos pelas vítimas das relações de
superproteção se assemelham de maneira muito próxima ao processo de ilusão auto
imposta, desenvolvido pelas vítimas da Síndrome de Estocolmo.
A síndrome de Estocolmo foi identificada pelos estudiosos em torno dos anos
1970, e consiste de um processo psicológico no qual o prisioneiro passa a
desenvolver uma relação afetiva com aquele que o mantém aprisionado, e passa
também a defendê-lo e vê-lo como uma espécie de protetor.
Esta síndrome caracteriza toda e qualquer relação onde há um severo
desequilíbrio de poder, na qual alguém constitui um ser todo poderoso, que dita
aquilo que o submetido pode ou não fazer.
Sintomas da síndrome de Estocolmo também foram identificados no relacionamento
entre senhor e escravo, em casos de cônjuges agredidos e em membros de cultos
destrutivos.
Mas como ocorre este processo, que sob o senso comum parece tão absurdo? O ser
humano se adapta muito rápido a uma nova condição, quando esta lhe parece
imutável. Uma pessoa que é raptada costuma tentar fugir nos primeiros dias. Com
a sucessão de tentativas frustradas, e a constante influência do raptor sobre
seus pensamentos, dizendo-lhe que a fuga é impossível, ela passa a conformar-se
com a situação e buscar alguma forma de sentir-se melhor. Este processo é
inconsciente, e funciona como um mecanismo de defesa do cérebro. O constante
sentimento de ódio, raiva, tristeza, e o profundo estresse produzido por tudo
isso, causam um esgotamento mental muito grande e neste momento a pessoa passa a
iludir-se, agarrando-se com fervor ao conforto de todo e qualquer instante em
que existe a ausência de violência física, verbal ou psicológica. Ela passa a
observar seu agressor e compreende que a obediência lhe proporciona momentos de
tranqüilidade. Com o passar do tempo, ela passa a ver o agressor como um ser
bom, e se afeiçoa a ele, numa atitude desesperada de buscar afeto em meio ao
caos. A partir de então, ela passa a identificar-se com o agressor e a
justificar suas atitudes. As pessoas que tentam tirá-la desta situação são
vistas como um perigo, pois querem atacar a pessoa que ela pensa que lhe
protege.
O isolamento do mundo, a inatividade e o desamparo favorecem esta confusão
mental. Este processo é conhecido como ilusão auto imposta, desenvolvido como um
instinto de evitar o pior para si.
A lavagem cerebral e a Síndrome de Estocolmo são muito semelhantes, ambas
constituem relações de poder e submissão anormais, relações que podem ser
afetivas, mas jamais serão saudáveis.
Neste contexto, considera-se primordial a difusão e a conscientização da pessoa
com deficiência visual, de seus educadores e familiares, acerca dos direitos
básicos que lhe são garantidos, em igualdade aos demais cidadãos.
Cabe também a nós, deficientes visuais, lutarmos pelos direitos uns dos outros,
como se fôssemos nós mesmos os afetados. Contra qualquer tipo de ação ou omissão
oriunda da ignorância, nossa maior arma é a educação.
ϟ
título: Laços que Aprisionam: O Cárcere Emocional Estabelecido pelas
Relações de Superproteção
autora: Camila Gandini (Psicoterapeuta e membro da Equipe de Reabilitação do INSS)
in INCLUSÃO & REABILITAÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
VISUAL UM GUIA PRÁTICO Organizador: Prof. Wagner A. R.
Maia
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