
Há que promover no trinómio humano em referência (pai-mãe-filho cego), na família
e comunidade envolvente, um
conjunto de circunstâncias/valores humanos e materiais
para o bem-estar biopsicossocial, biossociocognitivo, mental
e cultural.
Há todo um trabalho de intervenção precoce, a envolver a
família nessa intervenção, que tem de começar a operar-se
desde o berço sob a orientação prática de equipas
multidisciplinares com as ajustadas competências e treino
para intervirem com precisão, de forma saudável e frutífera
para o bebé e pais, ou familiares.
«Pela investigação desenvolvida e pelos conhecimentos que
se foram reunindo sobre o desenvolvimento da criança é
hoje possível afirmar que o investimento feito ao nível da
saúde da educação e do apoio social nas idades precoces é
uma das melhores formas de garantir um desenvolvimento
equilibrado e harmonioso, bem como o progresso das
sociedades.
Entende-se por intervenção precoce todas as formas de
proporcionar às crianças em idades precoces (entre os 0 e
os 6 anos) e às suas famílias os apoios e os recursos
necessários de forma a potencializar ao máximo o processo
de desenvolvimento e o funcionamento familiar pela
importância que o mesmo tem no desenvolvimento da
criança.
A intervenção precoce visa intervir a três níveis: como forma
de prevenção dos problemas desenvolvimentais, intervindo
mesmo antes do nascimento e desde os primeiros anos de
vida; como forma de minorar os danos desenvolvimentais,
intervindo logo que os problemas e as necessidades sejam
detetados, favorecendo a precocidade da deteção dos
fatores de risco; e, como forma de acompanhar e
desenvolver programas de intervenção que possam
contribuir para potencializar ao máximo as capacidades e
competências da criança, tendo em conta as suas
necessidades especiais.
Os autores têm chamado a atenção para o número de casos
crescente que emergem da identificação precoce das
crianças e das famílias em risco e para a necessidade de se
implementarem modelos de atendimento que enquadrem as
situações de risco e as crianças com necessidades
especiais por via das perturbações desenvolvimentais,
recomendando-se que se estruturem modelos de
atendimento multidisciplinares que incluam, numa ação
concertada, as famílias, os técnicos, os cuidadores e a
comunidade em geral.»
(Rasteiro, 2017a).
O acompanhamento e intervenção no desenvolvimento
de uma criança cega, pela complexidade de
dificuldades a que obriga, não pode ser comparável ao
processo seguido para a criança normovisual. O bebé
normovisual aprende e vai organizando o seu caos
cognitivo, muito por imitação, vendo fazer, conciliando
nessa organização o que vê, o que pergunta e o que
lhe é respondido. O bebé cego não tem essa
possibilidade visual. É necessário criarem-se
alternativas audiotáteis e sociocognitivas,
socioeducativas, afetivoemocionais... pondo o bebé, ao
longo da sua coevolução cognitiva e
educomunicacional, a assimilar e a exercitar conceitos,
saberes, por treino, aprendizagem, no convívio familiar
(e alargar esse convívio à comunidade), sendo um
imperativo ético e humanizante mostrar-lhe tudo o que
o bebé poderia ver, mas que não pode ver, desde que
acorda até adormecer, havendo a necessidade de, sem
descanso, lhe desenvolver e refinar a
multissensorialidade, para assim suprir o mais possível
o facto de estar privado do sentido da visão.
I.7. Teoria da Variabilidade Tiflopercepcional
A nossa “teoria da variabilidade tiflopercepcional” é um
projeto teórico-empírico, prático, práxico, para se
exercitar e aprofundar, com a pessoa cega, a sua
autonomia e independência locomocional, no
relacionamento e interação ecolocalizacional, espacial
e distal. Os principais sistemas sensoriais do ser
humano deverão merecer, todos e não apenas, em
regra, o mais absorvente (a visão), a necessária
educação e, nessa medida, o implícito desenvolvimento
somatossensorial e sinestésico, no caso, com especial
enfoque nos bebés cegos, nas pessoas cegas. Há que
desenvolver, aprofundar e aplicar a teoria da
variabilidade tiflopercepcional (envolvendo nos projetos
e exercícios bebés cegos, pessoas cegas e
normovisuais), utilizando, explorando e rentabilizando
ao máximo os sistemas sensoriais, incluindo as
modalidades vestibular e proprioceptiva, no seio do
sistema somatossensorial e da sinestesia, no processo
de apreensão, compreensão e intercompreensão
multissensorial e sociocognitivo (tanto quanto possível
em analogia com a visão), de acordo com o grau de
“continuidade” ou de “descontinuidade” da modalidade
sensorial ou modalidades sensoriais que se utilizarem.
Estamos a pensar no facto de podermos olhar
intencionalmente, ou não, para as coisas de forma
contínua ou descontínua (mas vendo-as sempre que
quisermos, dirigindo para lá o olhar) e de podermos
apenas ouvir coisas, sons de coisas (desde que elas
emitam som e que o possamos ouvir), de modo
“contínuo” ou “descontínuo”, por exemplo no caso dos
sons das mesmas permanecerem audíveis (a ouviremse) continuamente, com
interrupções ou deixarem de
se ouvir.
Se, neste enquadramento e situação, testarmos
crianças cegas e normovisuais, pessoas cegas e
normovisuais, facilmente nos aperceberemos das
diferenças na precisão locomocional e direcional de
umas (utilizando a audição) e de outras (utilizando a
visão).
Por exemplo:
Se colocarmos um bebé cego (que já anda), ou uma
criança cega, a dirigir-se ao pai ou à mãe, que o chama
ou a chama (uma, duas ou três vezes...) a distâncias
variáveis, de cinco a vinte, até cinquenta metros ou
mais (tendo em conta o grau de precisão do sistema
nervoso na articulação interativa dos sentidos e as
condições acústicas e atmosféricas na facilitação ou
dificuldades nessa precisão), os resultados desse teste
variam conforme a sua capacidade de concentração,
de lidar com os fatores ambientais e de caminhar em
linha reta na direção do pai ou da mãe.
Se colocarmos um bebé normovisual (que já anda), ou
uma criança normovisual, a dirigir-se ao pai ou à mãe,
que o chama ou a chama (apenas uma vez), na mesma
variabilidade de distâncias, não serão observadas
hesitações na direção do pai ou da mãe, desde que,
claro, não existam condicionantes adicionais que
dificultem esse movimento.
Verificaremos que o bebé ou a criança cega precisa
ouvir (uma ou mais vezes) a voz do pai ou da mãe,
para ao pai ou à mãe se dirigir sem hesitar e com
segurança, ao passo que o bebé ou a criança
normovisual só tem de ver o pai ou a mãe
(eventualmente ouvindo chamar só uma vez), para se
dirigir direta e imediatamente ao pai ou à mãe.
Estes testes podem aplicar-se a pessoas cegas e
normovisuais, de diferentes níveis etários e de
desenvolvimento cognitivo e multissensorial, e a
distâncias muito variáveis, sendo o êxito das pessoas
cegas tanto maior quanto melhores forem o seu
desenvolvimento somatossensorial e sinestésico (na
suplência multissensorial) e as adequadas condições
acústicas, também de ordem térmica e biomecânica, de
orientação e mobilidade, o estado atmosférico (normal,
com sol, com chuva, com vento…), condicionantes ou
situações que, desde que não existam défices a
condicionar, não se colocam à pessoa normovisual.
Consoante o tipo de intervenção e de exercício ou
experienciação que se fizer desta teoria da
variabilidade tiflopercepcional com pessoas cegas,
desde a mais tenra idade, assim a criança cega ou a
pessoa cega se habituará, menos ou mais facilmente, a
familiarizar-se e a ecolocalizacionar-se num qualquer
contexto ou lugar, permitindo-lhe a sua suplência
multissensorial e cognitiva, sociocognitiva,
perceptivomotora e interativa na orientação e
mobilidade, ter uma (porventura exata) noção espacial
e distal do lugar em que se encontra, e podendo ser
capaz de localizar pontos de referência e a mais
diversa informação na abrangencialidade da sua
capacidade auditiva e multissensorial, enquadrada na
concepção e experienciação de mapas
mentais/cognitivos. Nesse espaço, a pessoa cega,
umas vezes isolada e outras em partilha, poderá
integrar-se e contextualizar-se nas várias situações e
experienciá-las, descobrindo e ganhando as
necessárias referências autonómicas e de
independência nos mais variados contextos e
situações.
O bebé, a criança ou a pessoa normovisual fixa um
ponto acessível, seja a que distância for no seu
horizonte visual, e consegue chegar a esse ponto sem
desvios na direção ou problemas de exata localização.
O bebé, a criança ou a pessoa cega fixa um qualquer
ponto a distância, no seu horizonte multissensorial, ou
que só pode ser através da audição e/ou de outras
modalidades sensoriais eventualmente associadas ou
associáveis, e pode não chegar exatamente a esse
ponto alvo, conforme a distância e a ausência de
referências, inclusive sonoras, porque luta contra uma
dificuldade em manter o alvo no seu exato horizonte
auditivo, a não ser que esse ponto fique a emitir um
som permanente ou interrompido por breves silêncios.
A nossa teoria da variabilidade tiflopercepcional, no
plano ecolocalizacional, funciona perfeitamente para
uma pessoa cega, desde que a continuidade, a
qualquer nível tiflopercepcional, se mantenha. Trata-se
de uma teoria cuja prática deverá ser bem aplicada e
exercitada em orientação e mobilidade, num específico
Curso de Formação Especializada (conforme o
expresso no ponto II.8.3.). Para a pessoa normovisual,
não há necessidade de se acautelar esta questão
ecolocalizacional, porque, quem vê (e desde que haja
luz), fixa o alvo e dirige-se-lhe sem as hesitações que a
descontinuidade (por ausência do sentido da visão)
coloca à pessoa cega.
Um bebé que nasce cego ou que adquire esse défice
sensorial nos primeiros meses ou nos primeiros anos
de vida, tem necessidade de um permanente e atento
acompanhamento da mãe (preferencialmente do pai e
da mãe, de ambos), desde que acorda até adormecer,
conforme o já atrás sustentado, no sentido de tudo
aquilo que se pode ver à sua volta e a uma distância
alcançável pela visão com o grau normal de acuidade,
lhe possa ser nitidamente explicado, com objetos,
réplicas, e todos os materiais táteis e audiotáteis e com
as palavras certas, numa natural evolução verbal e
refinamento vocabular ajustados ao desenvolvimento
cognitivo e sociocognitivo do bebé, usando-se também
a apropriada áudio-descrição.
A ausência de uma modalidade sensorial, no caso a
mais absorvente de todas, dá lugar ao desenvolvimento
apurado das que restam.
Mas o desenvolvimento táctil nas pessoas cegas
resulta da prática da sua utilização. O cérebro, segundo
um estudo efetuado na Universidade de MacMaster, no
Canadá (e publicado no «Journal of Neuroscience»),
com pessoas cegas e normovisuais, não compensa a
perda do sentido da visão. Neste estudo, em que os
investigadores envolveram a colaboração de 28
pessoas cegas (com experiência variável na leitura do
Sistema Braille) e 55 pessoas normovisuais, concluiu-se que «é a prática que
acaba por desenvolver as capacidades tácteis das pessoas cegas e não qualquer
compensação da visão» por outra modalidade sensorial,
e que «a dependência diária do tacto para quase todas as
tarefas aumenta a sensibilidade táctil». Este estudo veio
colocar em causa a ideia de que as pessoas cegas
desenvolvem no seu cérebro aptidões tácteis
superiores às das pessoas normovisuais. Todos os
colaboradores no estudo foram testados em relação à
sensibilidade em seis dedos de ambas as mãos e
também nos dois lados do lábio superior, método este
que os investigadores utilizaram para esclarecer se a
sensibilidade na pele aumenta com a cegueira ou se
essa sensibilidade decorre da prática. No que respeita
aos dedos mais treinados, de acordo com um dos
investigadores, Daniel Goldreich, chegou-se à
conclusão de que os participantes cegos e
normovisuais tiveram resultados idênticos nos testes de
sensibilidade nos lábios. Já no que se refere à
sensibilidade na ponta dos dedos, as pessoas cegas
habituadas a ler e a escrever o Sistema Braille
demonstraram ter melhores resultados, maior
sensibilidade. Além disso, verificou-se que os leitores
de braille, principalmente os que mais horas diárias
dedicam à leitura, tinham o tacto mais desenvolvido
nos dedos mais usados na leitura. A este propósito,
cabe aqui referir que conhecemos quem lê
fluentemente braille só com o dedo indicador da mão
esquerda, com o dedo polegar… o que significa que se
pode exercitar qualquer um dos dedos para ler ou
identificar um objeto, o que for. Concluiu-se também
que, se os participantes cegos tivessem desenvolvido
sensibilidade táctil «como substituto da visão, regido a
partir do cérebro, teriam demonstrado isso em todos os
dedos e não nos que mais usam para ler braille».
Todavia, não tendo funcionais e operacionais os cinco
grandes sistemas sensoriais, faltando-nos o que
representa cerca de 80% em relação ao conjunto dos
restantes, parece não haver dúvidas em que há que
compensar essa ausência, potencializando mais os que
restam, redimensionando-lhes e ampliando-lhes os
atributos e competências para que consigam ser
pessoas capazes e atuantes como as demais, no uso
dos plenos direitos de cidadania e equidade. A perda
de uma modalidade sensorial gera ou desperta a
funcionalidade e repotenciação das outras, nelas
implicitando alternativas sociocognitivas e
sociocomunicacionais, aprendendo a conferir e a
utilizar uma mais alargada e refinada abrangência
sensorial e multissensorial.
Diz Enrique Rojas (nascido em 1949), Professor
Catedrático de Psiquiatria na Universidade de
Extremadura e Diretor do Instituto Espanhol de
Pesquisa Psiquiátrica em Madrid, que
«O que nos ajuda a crescer como pessoa são as perdas, de
onde tiramos sempre uma aprendizagem».
Portanto, também num contexto durkheimiano,
precisamos de sentir a necessidade da experiência e
de experienciar, da observação e da recolha de dados
frutíferos para integrar na nossa utensilagem mental,
agindo e saindo de nós próprios para acedermos à
"escola das coisas", no caso de as querermos
conhecer e compreender, comunicar e ensinar,
partilhar. Precisamos saber aprender a aprender para
sabermos ensinar a ensinar e ensinar a aprender. É
nesta base e propósito que a minha caminhada tem
vindo a acontecer e a concretizar-se por etapas, sendo
afortunado pelas intempéries (que sempre produzem
soluções) e pelos grandes valores humanos da “escola
da vida”.
Para um bebé cego (uma criança ou uma pessoa
cega), tudo o que existe à sua volta se deve poder
tocar, nem que seja com a palavra e com o auxílio de
réplicas específicas, de texturas variadas e adequadas,
de forma a que o bebé cresça com a sua capacidade e
competência cognitiva e sociocognitiva tão análoga
quanto possível à dos bebés normovisuais. O
psicopedagogo João dos Santos (1913-1987) também
parece estar na emergência deste novo paradigma
tiflopercepcional, afigurando-se-nos que a génese da
áudio-descrição em Portugal lhe pode caber, quando
nos deixa a ideia de que o horizonte longínquo se toca
com a palavra. A prática de se descrever o mundo
visual para as pessoas cegas é imemorial, mas a
audiodescrição, como atividade técnica e profissional,
veio a nascer em meados da década de 70 do século
XX, nos Estados Unidos da América, no seguimento do
sustentado por Gregory Frazier na sua Dissertação de
Mestrado, em que trabalhara a questão do “cinema
para cegos”, em 1974, tornando-se o conceito de
audiodescrição bem conhecido na década de 80, com o
casal Margaret e Cody Pfanstiehl. Margaret Rockwell
era cega e fundou o Serviço de Ledores via rádio The
Metropolitan Washington Ear, e o seu futuro marido, o
voluntário Cody Pfanstiehl, foram responsáveis pela
audiodescrição de Major Barbara, peça exibida no
Arena Stage Theater em Washington DC em 1981. A
audiodescrição é um preciosíssimo auxiliar para a
pessoa cega e com baixa visão, acessibilizando-lhe a
informação visual estática ou dinâmica do seu
interesse.
Deste modo, parafraseando João dos Santos neste
contexto, cada um de nós traz dentro de si um
"segredo", cada "segredo" é a "nossa infância",
podemos aprender a "ver" com os "dedos" o "horizonte
próximo que nos limita", habituarmo-nos a "tocar" e a
"ver" o "horizonte longínquo" que nos liberta,
ultrapassando-o na imaginação, com o "uso do ouvido
e da palavra" que "no-lo descreve".
Cada bebé, cada criança, é um ser humano que
apresenta ou que impõe a sua própria personalidade,
na sua forma de ser e na sua forma de querer saber e
de exigir conhecer e saber sempre mais.
Uma coisa é certa: mãe e filho cego, ou os pais e filho
cego entram em conjunto num mundo multissensorial
sem fim, de descoberta multissensorial sem fim, de
desenvolvimento da suplência multissensorial sem fim,
profundamente complexo e inesgotável e
simultaneamente absorvente de interesse e dedicação,
um mundo maravilhoso de imensurável descoberta e
de soluções humanizantes que nos podem vir a unir
mais uns aos outros neste mundo, infelizmente, tão
carenciado de intercompreensão e humanização.
Mas a mãe ou os pais têm de adquirir, ao mesmo
tempo, formação específica, com a ajuda e formação
proficiente de equipas multidisciplinares especializadas,
devidamente preparadas e treinadas para lidar com a
problemática da cegueira, com os bebés cegos e com
as suas próprias famílias, num dinâmico, substancial e
sustentável processo de desenvolvimento
biopsicossocial e humano do bebé ou da criança, da
família e da sua comunidade, de modo a que não
venham a surgir grandes surpresas e perturbações
para o bebé ou para a criança, à medida que for dando
os sucessivos e desejáveis passos firmes na vida e no
tempo, na escola, na sociedade, no emprego, na
família que vier a constituir, ao longo da vida, e com
uma postura e uma realização pessoal e social tão
semelhante quanto possível aos cidadãos
normovisuais.
FIM
ϟ
caps 1.6 e 1.7
in
GUIA DE INTERVENÇÃO PRECOCE NA DISFUNÇÃO VISUAL
Teoria e Prática em Educomunicação e Cultura na
Família e na Sociedade
Augusto Deodato Guerreiro
Almada/Portugal, Agosto 2018
texto integral: https://www.deficienciavisual.pt/x-txt-aba-Guia_IP_DV-Deodato_Guerreiro.pdf
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