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 Sobre a Deficiência Visual

 Intervenção Precoce

Augusto Deodato Guerreiro

Mãe com filho cego


Há que promover no trinómio humano em referência (pai-mãe-filho cego), na família e comunidade envolvente, um conjunto de circunstâncias/valores humanos e materiais para o bem-estar biopsicossocial, biossociocognitivo, mental e cultural.

Há todo um trabalho de intervenção precoce, a envolver a família nessa intervenção, que tem de começar a operar-se desde o berço sob a orientação prática de equipas multidisciplinares com as ajustadas competências e treino para intervirem com precisão, de forma saudável e frutífera para o bebé e pais, ou familiares.

«Pela investigação desenvolvida e pelos conhecimentos que se foram reunindo sobre o desenvolvimento da criança é hoje possível afirmar que o investimento feito ao nível da saúde da educação e do apoio social nas idades precoces é uma das melhores formas de garantir um desenvolvimento equilibrado e harmonioso, bem como o progresso das sociedades.

Entende-se por intervenção precoce todas as formas de proporcionar às crianças em idades precoces (entre os 0 e os 6 anos) e às suas famílias os apoios e os recursos necessários de forma a potencializar ao máximo o processo de desenvolvimento e o funcionamento familiar pela importância que o mesmo tem no desenvolvimento da criança.

A intervenção precoce visa intervir a três níveis: como forma de prevenção dos problemas desenvolvimentais, intervindo mesmo antes do nascimento e desde os primeiros anos de vida; como forma de minorar os danos desenvolvimentais, intervindo logo que os problemas e as necessidades sejam detetados, favorecendo a precocidade da deteção dos fatores de risco; e, como forma de acompanhar e desenvolver programas de intervenção que possam contribuir para potencializar ao máximo as capacidades e competências da criança, tendo em conta as suas necessidades especiais.

Os autores têm chamado a atenção para o número de casos crescente que emergem da identificação precoce das crianças e das famílias em risco e para a necessidade de se implementarem modelos de atendimento que enquadrem as situações de risco e as crianças com necessidades especiais por via das perturbações desenvolvimentais, recomendando-se que se estruturem modelos de atendimento multidisciplinares que incluam, numa ação concertada, as famílias, os técnicos, os cuidadores e a comunidade em geral.» (Rasteiro, 2017a).

O acompanhamento e intervenção no desenvolvimento de uma criança cega, pela complexidade de dificuldades a que obriga, não pode ser comparável ao processo seguido para a criança normovisual. O bebé normovisual aprende e vai organizando o seu caos cognitivo, muito por imitação, vendo fazer, conciliando nessa organização o que vê, o que pergunta e o que lhe é respondido. O bebé cego não tem essa possibilidade visual. É necessário criarem-se alternativas audiotáteis e sociocognitivas, socioeducativas, afetivoemocionais... pondo o bebé, ao longo da sua coevolução cognitiva e educomunicacional, a assimilar e a exercitar conceitos, saberes, por treino, aprendizagem, no convívio familiar (e alargar esse convívio à comunidade), sendo um imperativo ético e humanizante mostrar-lhe tudo o que o bebé poderia ver, mas que não pode ver, desde que acorda até adormecer, havendo a necessidade de, sem descanso, lhe desenvolver e refinar a multissensorialidade, para assim suprir o mais possível o facto de estar privado do sentido da visão.

I.7. Teoria da Variabilidade Tiflopercepcional

A nossa “teoria da variabilidade tiflopercepcional” é um projeto teórico-empírico, prático, práxico, para se exercitar e aprofundar, com a pessoa cega, a sua autonomia e independência locomocional, no relacionamento e interação ecolocalizacional, espacial e distal. Os principais sistemas sensoriais do ser humano deverão merecer, todos e não apenas, em regra, o mais absorvente (a visão), a necessária educação e, nessa medida, o implícito desenvolvimento somatossensorial e sinestésico, no caso, com especial enfoque nos bebés cegos, nas pessoas cegas. Há que desenvolver, aprofundar e aplicar a teoria da variabilidade tiflopercepcional (envolvendo nos projetos e exercícios bebés cegos, pessoas cegas e normovisuais), utilizando, explorando e rentabilizando ao máximo os sistemas sensoriais, incluindo as modalidades vestibular e proprioceptiva, no seio do sistema somatossensorial e da sinestesia, no processo de apreensão, compreensão e intercompreensão multissensorial e sociocognitivo (tanto quanto possível em analogia com a visão), de acordo com o grau de “continuidade” ou de “descontinuidade” da modalidade sensorial ou modalidades sensoriais que se utilizarem.

Estamos a pensar no facto de podermos olhar intencionalmente, ou não, para as coisas de forma contínua ou descontínua (mas vendo-as sempre que quisermos, dirigindo para lá o olhar) e de podermos apenas ouvir coisas, sons de coisas (desde que elas emitam som e que o possamos ouvir), de modo “contínuo” ou “descontínuo”, por exemplo no caso dos sons das mesmas permanecerem audíveis (a ouviremse) continuamente, com interrupções ou deixarem de se ouvir.

Se, neste enquadramento e situação, testarmos crianças cegas e normovisuais, pessoas cegas e normovisuais, facilmente nos aperceberemos das diferenças na precisão locomocional e direcional de umas (utilizando a audição) e de outras (utilizando a visão).

Por exemplo:

Se colocarmos um bebé cego (que já anda), ou uma criança cega, a dirigir-se ao pai ou à mãe, que o chama ou a chama (uma, duas ou três vezes...) a distâncias variáveis, de cinco a vinte, até cinquenta metros ou mais (tendo em conta o grau de precisão do sistema nervoso na articulação interativa dos sentidos e as condições acústicas e atmosféricas na facilitação ou dificuldades nessa precisão), os resultados desse teste variam conforme a sua capacidade de concentração, de lidar com os fatores ambientais e de caminhar em linha reta na direção do pai ou da mãe.

Se colocarmos um bebé normovisual (que já anda), ou uma criança normovisual, a dirigir-se ao pai ou à mãe, que o chama ou a chama (apenas uma vez), na mesma variabilidade de distâncias, não serão observadas hesitações na direção do pai ou da mãe, desde que, claro, não existam condicionantes adicionais que dificultem esse movimento.

Verificaremos que o bebé ou a criança cega precisa ouvir (uma ou mais vezes) a voz do pai ou da mãe, para ao pai ou à mãe se dirigir sem hesitar e com segurança, ao passo que o bebé ou a criança normovisual só tem de ver o pai ou a mãe (eventualmente ouvindo chamar só uma vez), para se dirigir direta e imediatamente ao pai ou à mãe.

Estes testes podem aplicar-se a pessoas cegas e normovisuais, de diferentes níveis etários e de desenvolvimento cognitivo e multissensorial, e a distâncias muito variáveis, sendo o êxito das pessoas cegas tanto maior quanto melhores forem o seu desenvolvimento somatossensorial e sinestésico (na suplência multissensorial) e as adequadas condições acústicas, também de ordem térmica e biomecânica, de orientação e mobilidade, o estado atmosférico (normal, com sol, com chuva, com vento…), condicionantes ou situações que, desde que não existam défices a condicionar, não se colocam à pessoa normovisual.

Consoante o tipo de intervenção e de exercício ou experienciação que se fizer desta teoria da variabilidade tiflopercepcional com pessoas cegas, desde a mais tenra idade, assim a criança cega ou a pessoa cega se habituará, menos ou mais facilmente, a familiarizar-se e a ecolocalizacionar-se num qualquer contexto ou lugar, permitindo-lhe a sua suplência multissensorial e cognitiva, sociocognitiva, perceptivomotora e interativa na orientação e mobilidade, ter uma (porventura exata) noção espacial e distal do lugar em que se encontra, e podendo ser capaz de localizar pontos de referência e a mais diversa informação na abrangencialidade da sua capacidade auditiva e multissensorial, enquadrada na concepção e experienciação de mapas mentais/cognitivos. Nesse espaço, a pessoa cega, umas vezes isolada e outras em partilha, poderá integrar-se e contextualizar-se nas várias situações e experienciá-las, descobrindo e ganhando as necessárias referências autonómicas e de independência nos mais variados contextos e situações.

O bebé, a criança ou a pessoa normovisual fixa um ponto acessível, seja a que distância for no seu horizonte visual, e consegue chegar a esse ponto sem desvios na direção ou problemas de exata localização.

O bebé, a criança ou a pessoa cega fixa um qualquer ponto a distância, no seu horizonte multissensorial, ou que só pode ser através da audição e/ou de outras modalidades sensoriais eventualmente associadas ou associáveis, e pode não chegar exatamente a esse ponto alvo, conforme a distância e a ausência de referências, inclusive sonoras, porque luta contra uma dificuldade em manter o alvo no seu exato horizonte auditivo, a não ser que esse ponto fique a emitir um som permanente ou interrompido por breves silêncios.

A nossa teoria da variabilidade tiflopercepcional, no plano ecolocalizacional, funciona perfeitamente para uma pessoa cega, desde que a continuidade, a qualquer nível tiflopercepcional, se mantenha. Trata-se de uma teoria cuja prática deverá ser bem aplicada e exercitada em orientação e mobilidade, num específico Curso de Formação Especializada (conforme o expresso no ponto II.8.3.). Para a pessoa normovisual, não há necessidade de se acautelar esta questão ecolocalizacional, porque, quem vê (e desde que haja luz), fixa o alvo e dirige-se-lhe sem as hesitações que a descontinuidade (por ausência do sentido da visão) coloca à pessoa cega.

Um bebé que nasce cego ou que adquire esse défice sensorial nos primeiros meses ou nos primeiros anos de vida, tem necessidade de um permanente e atento acompanhamento da mãe (preferencialmente do pai e da mãe, de ambos), desde que acorda até adormecer, conforme o já atrás sustentado, no sentido de tudo aquilo que se pode ver à sua volta e a uma distância alcançável pela visão com o grau normal de acuidade, lhe possa ser nitidamente explicado, com objetos, réplicas, e todos os materiais táteis e audiotáteis e com as palavras certas, numa natural evolução verbal e refinamento vocabular ajustados ao desenvolvimento cognitivo e sociocognitivo do bebé, usando-se também a apropriada áudio-descrição.

A ausência de uma modalidade sensorial, no caso a mais absorvente de todas, dá lugar ao desenvolvimento apurado das que restam.

Mas o desenvolvimento táctil nas pessoas cegas resulta da prática da sua utilização. O cérebro, segundo um estudo efetuado na Universidade de MacMaster, no Canadá (e publicado no «Journal of Neuroscience»), com pessoas cegas e normovisuais, não compensa a perda do sentido da visão. Neste estudo, em que os investigadores envolveram a colaboração de 28 pessoas cegas (com experiência variável na leitura do Sistema Braille) e 55 pessoas normovisuais, concluiu-se que «é a prática que acaba por desenvolver as capacidades tácteis das pessoas cegas e não qualquer compensação da visão» por outra modalidade sensorial, e que «a dependência diária do tacto para quase todas as tarefas aumenta a sensibilidade táctil». Este estudo veio colocar em causa a ideia de que as pessoas cegas desenvolvem no seu cérebro aptidões tácteis superiores às das pessoas normovisuais. Todos os colaboradores no estudo foram testados em relação à sensibilidade em seis dedos de ambas as mãos e também nos dois lados do lábio superior, método este que os investigadores utilizaram para esclarecer se a sensibilidade na pele aumenta com a cegueira ou se essa sensibilidade decorre da prática. No que respeita aos dedos mais treinados, de acordo com um dos investigadores, Daniel Goldreich, chegou-se à conclusão de que os participantes cegos e normovisuais tiveram resultados idênticos nos testes de sensibilidade nos lábios. Já no que se refere à sensibilidade na ponta dos dedos, as pessoas cegas habituadas a ler e a escrever o Sistema Braille demonstraram ter melhores resultados, maior sensibilidade. Além disso, verificou-se que os leitores de braille, principalmente os que mais horas diárias dedicam à leitura, tinham o tacto mais desenvolvido nos dedos mais usados na leitura. A este propósito, cabe aqui referir que conhecemos quem lê fluentemente braille só com o dedo indicador da mão esquerda, com o dedo polegar… o que significa que se pode exercitar qualquer um dos dedos para ler ou identificar um objeto, o que for. Concluiu-se também que, se os participantes cegos tivessem desenvolvido sensibilidade táctil «como substituto da visão, regido a partir do cérebro, teriam demonstrado isso em todos os dedos e não nos que mais usam para ler braille».

Todavia, não tendo funcionais e operacionais os cinco grandes sistemas sensoriais, faltando-nos o que representa cerca de 80% em relação ao conjunto dos restantes, parece não haver dúvidas em que há que compensar essa ausência, potencializando mais os que restam, redimensionando-lhes e ampliando-lhes os atributos e competências para que consigam ser pessoas capazes e atuantes como as demais, no uso dos plenos direitos de cidadania e equidade. A perda de uma modalidade sensorial gera ou desperta a funcionalidade e repotenciação das outras, nelas implicitando alternativas sociocognitivas e sociocomunicacionais, aprendendo a conferir e a utilizar uma mais alargada e refinada abrangência sensorial e multissensorial.

Diz Enrique Rojas (nascido em 1949), Professor Catedrático de Psiquiatria na Universidade de Extremadura e Diretor do Instituto Espanhol de Pesquisa Psiquiátrica em Madrid, que «O que nos ajuda a crescer como pessoa são as perdas, de onde tiramos sempre uma aprendizagem».

Portanto, também num contexto durkheimiano, precisamos de sentir a necessidade da experiência e de experienciar, da observação e da recolha de dados frutíferos para integrar na nossa utensilagem mental, agindo e saindo de nós próprios para acedermos à "escola das coisas", no caso de as querermos conhecer e compreender, comunicar e ensinar, partilhar. Precisamos saber aprender a aprender para sabermos ensinar a ensinar e ensinar a aprender. É nesta base e propósito que a minha caminhada tem vindo a acontecer e a concretizar-se por etapas, sendo afortunado pelas intempéries (que sempre produzem soluções) e pelos grandes valores humanos da “escola da vida”.

Para um bebé cego (uma criança ou uma pessoa cega), tudo o que existe à sua volta se deve poder tocar, nem que seja com a palavra e com o auxílio de réplicas específicas, de texturas variadas e adequadas, de forma a que o bebé cresça com a sua capacidade e competência cognitiva e sociocognitiva tão análoga quanto possível à dos bebés normovisuais. O psicopedagogo João dos Santos (1913-1987) também parece estar na emergência deste novo paradigma tiflopercepcional, afigurando-se-nos que a génese da áudio-descrição em Portugal lhe pode caber, quando nos deixa a ideia de que o horizonte longínquo se toca com a palavra. A prática de se descrever o mundo visual para as pessoas cegas é imemorial, mas a audiodescrição, como atividade técnica e profissional, veio a nascer em meados da década de 70 do século XX, nos Estados Unidos da América, no seguimento do sustentado por Gregory Frazier na sua Dissertação de Mestrado, em que trabalhara a questão do “cinema para cegos”, em 1974, tornando-se o conceito de audiodescrição bem conhecido na década de 80, com o casal Margaret e Cody Pfanstiehl. Margaret Rockwell era cega e fundou o Serviço de Ledores via rádio The Metropolitan Washington Ear, e o seu futuro marido, o voluntário Cody Pfanstiehl, foram responsáveis pela audiodescrição de Major Barbara, peça exibida no Arena Stage Theater em Washington DC em 1981. A audiodescrição é um preciosíssimo auxiliar para a pessoa cega e com baixa visão, acessibilizando-lhe a informação visual estática ou dinâmica do seu interesse.

Deste modo, parafraseando João dos Santos neste contexto, cada um de nós traz dentro de si um "segredo", cada "segredo" é a "nossa infância", podemos aprender a "ver" com os "dedos" o "horizonte próximo que nos limita", habituarmo-nos a "tocar" e a "ver" o "horizonte longínquo" que nos liberta, ultrapassando-o na imaginação, com o "uso do ouvido e da palavra" que "no-lo descreve".

Cada bebé, cada criança, é um ser humano que apresenta ou que impõe a sua própria personalidade, na sua forma de ser e na sua forma de querer saber e de exigir conhecer e saber sempre mais.

Uma coisa é certa: mãe e filho cego, ou os pais e filho cego entram em conjunto num mundo multissensorial sem fim, de descoberta multissensorial sem fim, de desenvolvimento da suplência multissensorial sem fim, profundamente complexo e inesgotável e simultaneamente absorvente de interesse e dedicação, um mundo maravilhoso de imensurável descoberta e de soluções humanizantes que nos podem vir a unir mais uns aos outros neste mundo, infelizmente, tão carenciado de intercompreensão e humanização.

Mas a mãe ou os pais têm de adquirir, ao mesmo tempo, formação específica, com a ajuda e formação proficiente de equipas multidisciplinares especializadas, devidamente preparadas e treinadas para lidar com a problemática da cegueira, com os bebés cegos e com as suas próprias famílias, num dinâmico, substancial e sustentável processo de desenvolvimento biopsicossocial e humano do bebé ou da criança, da família e da sua comunidade, de modo a que não venham a surgir grandes surpresas e perturbações para o bebé ou para a criança, à medida que for dando os sucessivos e desejáveis passos firmes na vida e no tempo, na escola, na sociedade, no emprego, na família que vier a constituir, ao longo da vida, e com uma postura e uma realização pessoal e social tão semelhante quanto possível aos cidadãos normovisuais.

FIM

 

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caps 1.6 e 1.7 in
GUIA DE INTERVENÇÃO PRECOCE NA DISFUNÇÃO VISUAL
Teoria e Prática em Educomunicação e Cultura na Família e na Sociedade
Augusto Deodato Guerreiro
Almada/Portugal, Agosto 2018

texto integral: https://www.deficienciavisual.pt/x-txt-aba-Guia_IP_DV-Deodato_Guerreiro.pdf

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23.Jul.2023
Maria José Alegre