
ACAPO

Blind Kristian Outside His House -
Michael Ancher, 1864-1920
Qual o momento certo para se começar a usar bengala
branca? As crianças devem usar uma bengala a partir de que
idade? Advertimos, desde já, que não temos uma única
resposta para estas questões. Nem Duarte, Irina, Rodrigo ou
Teresa. Porém, como resposta, contaram-nos a sua história.
Falaram sobre o dia em que conheceram uma bengala branca.
O início
O percurso de Duarte Gaspar agora começou. Tem cinco anos e
foi há poucos meses que conheceu uma bengala branca. Não
porque a equipa que o acompanha assim o sugerisse mas a
curiosidade (instinto?) da mãe fê-lo começar a percorrer
alguns caminhos acompanhado por uma bengala.
Duarte nasceu com Amaurose Congénita de Leber, uma doença
que se carateriza pela perda da visão desde o nascimento.
Desde os dois meses é acompanhado no CAIPDV – Centro de
Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual – e mais
tarde pela Delegação de Leiria da ACAPO, onde usufrui do
serviço de estimulação e desenvolvimento e hipoterapia.
Depois da fase do luto, que os levou a “chorar quase uma
semana”, como recordam, os pais, Susana e Bruno procuraram
as “melhores oportunidades” que tinham para oferecer ao
filho. Limitaram-se a ser pais, concluem agora. Leram
artigos, reportagens, livros sobre a deficiência visual,
assistiram a tutoriais, falaram com outros pais, tudo com o
objetivo de responder eficazmente aos desafios colocados
pelo crescimento de Duarte.
Nestas pesquisas, Susana cruzou-se com uma reportagem onde
uma criança norte-americana usava uma bengala branca para
circular em segurança. Identificou-se. Duarte era cego,
criança e os pequenos acidentes domésticos eram constantes.
Até que lhe apresentaram uma bengala.
Recordamos, Duarte tem cinco anos. Gosta de saltar, correr,
andar de escorrega e baloiço. Porém, contrariamente ao que
pensavam, Duarte começou logo por fazer um uso responsável
da bengala e tornou-se inseparável dela em alguns percursos.
Não na escola, que conhece bem, mas no percurso casa-escola
ou enquanto passeia pela aldeia. Percebeu que a bengala
antecipava os obstáculos que teimavam em ir contra a sua
cabeça. “Foi tudo tão tranquilo e natural…”, diz Susana.
O treino da bengala, ou a habituação a este produto de
apoio, que o poderá vir a acompanhar o resto da vida, tem
sido essencialmente feita pelos pais, que o fazem porque
assim acham “correto”. “Acreditamos que desta forma será
mais fácil quando ele começar a ter aulas de orientação e
mobilidade”.
Esse dia chegará quando tiver 6 ou 7 anos e for para a
escola primária. Talvez nessa altura já se faça acompanhar
por uma bengala mais resistente. Por agora utiliza uma
antena de um brinquedo, que orgulhosamente nos mostrou via
skype. “É tão gira”, dissemos nós.
Duarte achou que as bengalas que lhe apresentavam eram
pesadas demais, por isso, antes que começasse a recusá-la,
os pais encontraram esta solução: uma antena laranja de um
carro. Faz parte desta fase lúdica em que se encontra. Em
breve iniciar-se-á outra.
A recusa
Talvez os pais de Irina Francisco se identificassem com
Susana e Bruno. Também Irina nasceu com Amaurose Congénita
de Leber e aos poucos tem perdido a visão.
No Centro Helen Keller, no Centro de Reabilitação Nossa
Senhora dos Anjos e na ACAPO teve aulas de orientação e
mobilidade. Queria aprender porque sabia que a bengala era
uma inevitabilidade mas que sempre protelou. “Sempre encarei
o uso da bengala como um sinal exterior, demasiado evidente,
e tinha receio que o uso da bengala me colocasse em
situações constrangedoras”. “No fundo não me sentia
confortável em assumir a minha falta de visão. Sempre gostei
de passar despercebida e isso deixava-me numa exposição que
me deixava desconfortável”, conclui. Para isso, contribuiu
também o facto de ter baixa visão. “Como tenho baixa visão e
uso óculos e a maioria das pessoas como não entende o que
isso significa, eu achava que isso causaria confusão na
cabeça dos outros, que se questionariam por que motivo eu
usaria óculos e ao mesmo tempo uma bengala”.
Todavia, durante largos anos saiu sempre acompanhada por uma
bengala de sinalização – que serve para informar os outros
que se tem deficiência visual – mas que nunca saiu da sua
mala. O processo de aceitação, como lhe chama, demorou a ser
percorrido, mais precisamente até 2015.
Nesse ano, a já professora de português e espanhol,
participou num encontro de jovens com deficiência visual que
se realizou em Tirrenia, em Itália. Foi lá lhe que lhe
disseram uma coisa muito simples mas havia de mudar a sua
vida: “Às vezes vou na rua e aproveito para olhar para os
letreiros, para as montras e para o que me rodeia, sem a
preocupação de olhar para o chão para detetar eventuais
obstáculos, porque a bengala faz isso por mim!”. Este elogio
à bengala e as dezenas de jovens que conheceu contribuíram
para que chegasse a Portugal “com a convicção de que ia
começar a usar uma bengala”. Não uma bengala qualquer. Tinha
de ter cor, de preferência cor-de-laranja, a sua cor
preferida, mas “o mais aproximado que consegui foi o
cor-de-rosa. Verdade seja dita que nem distingo o laranja do
rosa, para mim são cores iguais!” [risos].
Irina diz que a cor da bengala foi uma das formas que
encontrou para desmistificar o uso deste produto de apoio:
“Se era para ser diferente, então sejamos diferentes”. Sabia
que existem “fundamentos sólidos” para que a bengala seja
branca mas decidiu fintá-los e tratar este produto de apoio
como qualquer outro objeto estético. “É um objeto de uso
quotidiano, tal como os óculos. Por que não há-de ser também
ao meu gosto?”, interroga.
Foi esta bengala que mudou a vida de Irina. Os comentários
que tinha medo de ouvir, os olhares que queria evitar, já
não importavam. “Na rua deixei de ouvir comentários
degradáveis sempre que esbarrava em alguém. Agora toda a
gente “abre alas” para eu passar. Nos transportes deixei de
me sentir constrangida por me sentar. Deixei de evitar andar
de autocarro por não conseguir identificá-los ao longe para
os mandar parar.” A bengala, neste caso cor-de-rosa,
abriu-lhe oportunidades para uma vida mais inclusiva,
autónoma e segura. “E feliz”, termina.
A autonomia
Ricardo Branco vive e trabalha em Lisboa, num dos mais
conceituados escritórios de advogados do país, onde é
consultor jurídico, e na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, onde é professor.
Nos trajetos diários, como se desloca de transportes
públicos, não abdica de usar a sua bengala branca. “A
bengala dá-me total autonomia para andar bem. Detetar
obstáculos. E dá-me a segurança de que sou identificado
pelas pessoas como alguém com a qual precisam ter uma
interação com mais cuidado.”
A bengala não serve só para ver mas também para ser visto.
Sempre que lhe oferecem ajuda, mesmo quando nem precisaria,
Ricardo não a declina. “Agradeço sempre a ajuda e aceito-a.
As pessoas têm que ser persuadidas que ser ajudado é bom.”
Apesar disso, Ricardo gosta de ser autónomo nas suas
deslocações, de decidir que caminhos seguir, sem ter de
depender de terceiros. “Até porque como a minha mãe me dizia
'Ninguém pense que uma pessoa com deficiência visual que não
usa bengala fica com melhor ar!”'.
Talvez tenha sido o desejo de ser independente que o leva a
recorda-se “perfeitamente” da primeira vez que lhe mostraram
uma bengala branca. “Isto é uma bengala para quando
começarem a andar na rua sozinhos. E é muito bom”. Estas
palavras foram proferidas pelo seu professor de locomoção,
“como se dizia na altura”, no Centro Helen Keller. Ricardo
tinha 6 anos e uma grande vontade de andar sozinho na rua.
Mas as primeiras aulas só lhe foram lecionadas na transição
do 2.º para o 3.º ano quando tinha 7 anos. Foi o primeiro
aluno de Peter Colwell, atualmente técnico de acessibilidade
na ACAPO. Desses tempos guarda as melhores recordações.
“Lembro-me perfeitamente de ele me dizer “há ali uma
pastelaria com uns mil folhas ótimos. Irei oferecer um ao
Ricardo se conseguir chegar até lá”. “Eram passeios
fenomenais”, recorda.
Os primeiros frutos destas aulas foram colhidos quando tinha
12 anos e começou a deslocar-se sozinho, e mais tarde, aos
15, quando começou a andar de transportes públicos. Só ele e
a sua bengala. É sempre assim, com raras exceções: “Em casa
não uso bengala e no local de trabalho, por vezes também não
uso. Mas se for para receber alguém visto o casaco e pego na
bengala”. Neste momento, recorda-se das palavras do pai que
hoje encara como sábias: “O meu pai dizia que a bengala me
dava respeitabilidade, assim como o facto de eu lidar com
ela sem complexos e com arejo”. Por isso, nunca teve
problemas em se fazer acompanhar por uma bengala, nem nunca
a rejeitou.
Conhece sim, alguns casos em que a relação não foi tão
tranquila. No caso das mulheres consegue perceber. “É um
artefacto que contradiz com a estética”. Mas sabe, por
experiência, que a estética ainda não se coaduna com a
qualidade. “Todas as bengalas mais elegantes que tive foram
para o 'galheiro'. Tenho sempre de voltar a um dos
clássicos”, diz entre risos.
Quem agradece a coleção de bengalas é Bárbara, a sua filha
de quatro anos, que se orgulha de “andar com o pai de
bengala”, “de apanhar as que se encontram espalhadas pela
casa e colecioná-las”. Talvez seja esta uma forma de dar
continuidade à “respeitabilidade” que o avô tanto falava.
Uma vida nova
A cegueira de Teresa Simões chegou a conta-gotas. Sabia que
gradualmente estava a perder a visão mas “quando olhava para
trás não sabia o quanto tinha perdido”.
O ano de 1995 representou uma viragem na sua vida. Após
perder o irmão, no espaço de um ano, Teresa perdia também
“completamente a visão”.
Numa das consultas de oftalmologia, onde ainda procurava uma
luz ao fundo do túnel, o médico disse-lhe que a situação era
irreversível e que no futuro “nem um café iria conseguir
tirar”. Estas palavras contribuíram para que construísse uma
imagem negativa das pessoas cegas. Uma imagem que não queria
para si. “Acho que o meu problema nunca foi ficar cega mas
pensar que ia ficar dependente dos outros, deixar de ter a
minha vida própria”.
Após reorganizar a sua vida profissional, Teresa deixou a
sua aldeia perto da Lourinhã, onde vivia com os pais, para
iniciar um programa de reabilitação no Centro de
Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa.
Na primeira aula de orientação e mobilidade, ainda sem
bengala, percebeu que para recuperar a sua autonomia poderia
precisar deste produto de apoio. Conhecia a sua deficiência
mas não lhe conhecia as limitações. O professor fê-la
perceber que via menos do que pensava e com esta constatação
iniciava-se o treino da bengala. “O pouco que via mais a
ajuda da bengala ajudou-me muito. Trouxe-me conforto,
confiança e segurança.”
O único revés deu-se quando decidiu usar a bengala numa das
visitas à sua terra-natal. Percebeu que o silêncio que ouvia
quando passava na rua era sinal de preconceito e da falta de
conhecimento para com a deficiência visual. Durante anos não
conseguiu voltar a usar a bengala quando visitava os seus
pais.
Em Lisboa, sente-se como 'peixe na água' e quando assim não
se sente pede apoio à ACAPO. “Quando passo a frequentar um
espaço gosto de o conhecer antes e saber o que me rodeia”.
Não por só por segurança ou curiosidade. Teresa termina
explicando que acima de tudo procura transmitir uma boa
imagem, sua e de todas as pessoas com deficiência visual.
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