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 Sobre a Deficiência Visual

Entre Amor e Ódio: Os Dilemas da Educação do Outro

Rosely Gayoso
 

Der Fries der Lauschenden-  Die Danzerin und der Blinde - Ernst Barlach, 1930-35
A Dançarina e o Cego in 'Der Fries der Lauschenden' - Ernst Barlach, 1930-35

 

  1. Os Dilemas da Educação do Outro
  2. Quando do Nascimento de Uma Criança Deficiente: Luto e Desgosto.
  3. O Aluno com Deficiência na Concepção do Professor
  4. O Ideal do Eu e o Eu Ideal: O Próprio Deficiente Frente a Sua Impotência.
  5. Considerações Finais


1. Os Dilemas da Educação do Outro.

Neste capítulo nos propomos pontuar os motivos de recusa impostos pelas pessoas que convivem com as pessoas com deficiência. Estamos falando dos seus pais e professores. Pretendemos também analisar as sombras projetadas pelas próprias pessoas com deficiência, frente a sua incapacidade ou impotência diante de determinadas situações, onde se vêem impelidos a se auto criticar, cobrando de si, alguns comportamentos que, em algumas vezes, não são alcançados. Será que podemos dizer que as pessoas com deficiência despertam nos membros da família e nos profissionais ligados ao seu processo formativo, condutas que visam naturalizam o individuo? Qual será a imagem que o deficiente faz de si mesmo frente a sua impotência? Estes são alguns questionamentos que nos propomos analisar, tendo como aporte alguns pesquisadores da área e também a fala de alguns atores neste processo.

Os pais, segundo Freud, renovam todos os privilégios e reivindicações infantis, que já haviam abandonado, em favor da criança. Se o pai não conseguiu ser médico, agora seu filho o será. Se a mãe não conseguiu ter toda a beleza com almejava, agora sua filha será uma beldade em seu lugar. Projetar no filho os desejos mais secretos e as maiores ambições é realmente uma prática em várias sociedades.

Brunetto (1999, p.34), muito contribuiu com sua análise a respeito, enfatizou o problema que surge a partir do momento em que por alguma deficiência, o “filho é visto como impossibilitado de realizar esses desígnios dos pais”. Esta análise nos parece o ponto fundante do trabalho desta autora e muito contribui para a elucidação que ora nos propomos situar, “os dilemas da educação especial, para os atores envolvidos”. O fato de o filho nascer com deficiência, a principio, impossibilita os pais de tecerem projetos de auto-realizações e de conquistas esquecidas. A última chance de sucesso se perde, e os pais se vêem desestruturados diante da tristeza e do luto.

Hefestos, o filho de Hera e Zeus, mito anteriormente analisado, não conseguiu representar para sua mãe, o “bebê” idealizado, e por isto ela jogou-o ao mar. Ao recusarmos o filho não esperado, estamos recusando na verdade o que de errado, aparentemente produzimos.

 

2. Quando do Nascimento de Uma Criança com Deficiência: Luto e Desgosto

"A discrepância entre a criança antecipada e a realidade
da criança com defeitos sempre é motivo de crise”.
Depoimento de paciente do Dr Aguiar, 2005


A mãe que dá a luz a uma criança com deficiência sofre pela perda da criança perfeita desejada, como já citamos anteriormente, mas como ela irá se apegar à criança imperfeita? Quando uma criança nasce com um defeito; as metas, fantasias e idealizações dos pais são destruídas e o luto é a resposta característica para a perda de sua criança normal. Várias fases são encontradas no processo de luto; a reação inicial de desgosto, que inclui sentimentos de dor, vazio e desamparo intensos, manifesta-se inicialmente com o choque e posteriormente vem à descrença, ou negação.

Para Freud, a família é, portanto, o palco dos primeiros embates entre as pulsões fundamentais do homem. Quando ele avança mais antropologicamente sobre o tema “família”, a situa como oriunda da horda primitiva a partir do sacrifício do anima-totem, substitutivo do pai. O banquete totêmico, em que o animal é devorado pela horda e o pai incorporado, é a primeira festa da humanidade. Dessa forma, incorporam-se os tabus e dá-se a minimização dos sentimentos de culpa pela morte do pai.

A constituição das famílias segundo Eiguer (1985, p.27), pode ser explicada a partir do conceito de organizador, enunciado por Spitz: “[...] todo o psiquismo se polariza em torno de um elemento interior (e exterior) à criança; diferentes correntes se integram no processo de maturação, de sorte que uma” nova estrutura psíquica, mais evoluída, aparece.

O autor estuda a existência de “organizadores do psiquismo familiar” e fala de três em especial: a escolha do parceiro, a interfantasmatização e a construção do “eu familiar”. Esta terceira é a que mais nos interessa, para entender a dinâmica das relações familiares dos sujeitos com deficiência. A construção deste “eu familiar”, é o “investimento perceptual de cada membro da família, que lhe permite reconhecê-la como sua numa continuidade têmporo-espacial”.

Que envolve três aspectos:

a) sentimento de pertença familiar, impressão que o membro de uma família tem de ser percebido como tal, diferentemente do que ocorre com aqueles que não são membros da família.

b) habitat interior, representação partilhada da casa, do lar, mais do que o habitat rela, uma edificação ou uma casa.

c) ideal do ego, uma representação da perfectibilidade do grupo familiar, em relação aos projetos coletivos (cultural, educacional, habitacional, por exemplo) Eiguer (1985, p.38).

É importante pontuarmos que a instituição família é um envoltório social que os fatores externos podem invadi-la e transformá-la em uma instituição “disfuncional”, no que diz Eiguer, estas família frente à nova desordem do mundo, a desregulamentação universal e as mudanças nas redes de segurança, este autor salienta então que, as famílias passam a constitui-se em grupos de “estranhos”.

Segundo Bauman (1998 p.27):

Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo [...] se eles, portanto, por sua simples presença deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia tênue as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso geram a incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de sentir perdido-então cada sociedade produz esses estranhos.

Esses estranhos passam a digladiar-se no cenário familiar, realizando os mesmos processos que, para este autor, são aplicados também pela sociedade para acomodar esses estranhos à “normalidade”. Enquadrando todas as pessoas nos formatos socialmente aceitos.

As famílias estão segundo Werneck (1997, p.56), preparadas para terem filhos “normais, perfeitos e saudáveis” que possam ser o orgulho da família. A autora destaca que para Vigotsky (1989), o “recorte” do mundo feito para a criança e para o jovem “deficiente” por seus pais e pela sociedade com um todo, são significações e ressignificações, construídas pelos pares sociais, que os constituem enquanto sujeitos. De acordo com Camargo (2004):
 

Nossa sociedade tem restrições em relação ao que é diferente, àquilo a que não está habituada. Portanto, a constituição da pessoa com deficiência pode ser prejudicada pela quebra de expectativa de seu grupo social, pelos estranhamentos de relação à inteligência, pelos preconceitos e estigmas presentes na sociedade frente às diferenças. Assim o Olhar da sociedade irá influenciar o desempenho da pessoa com deficiência. Se o Olhar voltado para ela for de incapacidade, provavelmente ela se tornará incapaz.

Já Mannoni (1995), em sua obra, afirma que a família frente ao filho deficiente, muitas vezes, impede seu crescimento porque, a partir da independência deles, depara-se com suas próprias faltas e dificuldades.

Este mecanismo de repressão será abordado a seguir, mas podemos evidenciar que, ao não permitir que o filho tenha experiências de autonomia ou não acreditar em suas potencialidades, esta família estará certamente, dificultando que este filho se torne adulto, levando os pais assim a se preservarem da realidade.

Várias fases são encontradas no processo de luto. Muitos são os discursos operados pelos pais, quando da noticia de que terão um filho deficiente. No documentário “do Luto a Luta”, produzido pela Petrobrás em 2004, fica evidente este choque diante da noticia da deficiência do filho, a maioria dos pais entrevistados, relatam o total pavor frente à situação e também evidenciando o modo, nada profissional nem tão pouco terno, de como os médicos dão a notícia para os pais.

Neste documentário, fica claro também a dificuldade de aceitação da deficiência pelo próprio deficiente, inclusive em alguns depoimentos, eles culpam Deus pela sua condição e dizem que não deveria existir pessoa deficiente no mundo.

A maioria dos pais é totalmente despreparada para a notícia de alguma anomalia em seus filhos e é extremamente importante para eles, tanto psicologicamente quanto perante a sociedade, produzirem um bebê perfeito. A criança representa uma auto-imagem dos pais, é “o espelho” deles; assim, muitos pais sofrem problemas de auto-estima quando surpreendidos pelo nascimento de uma criança com defeitos.

Esta pessoa que destoa dos padrões de desenvolvimento esperados, que não é tão brilhante ou bonita, sofre, em algumas vezes, preconceito e discriminação por parte da família e da sociedade. O que na verdade ocorre é que essa pessoa mexe com sentimentos muito profundos, freqüentemente inconscientes da família.

Assistimos, em muitos casos, à negação da deficiência, onde os pais tentam quase que à força encaixar aquele membro da família nos padrões ditos normais.

Logo após a notícia sobre a deficiência do filho, alguns mecanismos de defesa ficam evidentes. O de negação frente ao fato é na maioria das vezes, o mais utilizado pelas famílias, segundo Aguiar (2005 p.65):
 

Eu não podia acreditar que aquilo estava acontecendo comigo. Eu pensei que era um sonho e que eu podia acordar a qualquer momento. Eu não conseguia enxergar aquele bebê como meu. Era como se fosse o filho de alguma outra pessoa. Inicialmente eu o carreguei no colo apenas porque era meu papel como mãe. (paciente do Dr. Aguiar. Este fato foi relatado pelo Dr Aguiar em um artigo para a revista médica da USP (2005).

Esta citação nos credencia afirmar que, diante da dor, a negação e a rejeição são mecanismos que ajudam as pessoas a superar momentos difíceis e de muita tensão, estes mecanismos em alguns casos são saudáveis e em outros acabam se tornando patológicos.

O estágio de negação gera sentimentos intensos de raiva e culpa. O desapontamento e frustração que marcam esse estágio e podem gerar impulsos primitivos de agressividade e destruição que se volta contra a criança. Muitas famílias ainda relatam ter dirigido sua raiva contra eles mesmos, suas famílias e, principalmente, contra o médico e a equipe hospitalar. Outra forma de expressar a raiva são os sentimentos de autopiedade, onde os pais se sentem vítimas de um destino que não mereciam e vêem a criança como "uma cruz" que carregarão durante suas vidas, ou em alguns casos, pensam estar recebendo o castigo de Deus por algo de ruim que tenham feito.

Após o sentimento de raiva, vem segundo Aguiar (2005), o de culpa, os pais costumam se punir frente à deficiência do filho. Fazem parte do processo de frustração, além das reações do desapontamento - raiva e culpa - as reações de defesa, que podem durar semanas ou mesmo uma vida inteira; muitos mecanismos de defesa podem ser usados ao mesmo tempo, em qualquer um dos estágios do processo adaptativo.

As reações de defesa são necessárias para que, a família possa lidar com a ansiedade gerada pelo nascimento de uma criança deficiente e sobreviver às reações anteriores, de choque, negação, raiva e culpa, mantendo ainda a integridade emocional. Com o uso de mecanismos de defesa, a mãe pode também se proteger contra a depressão, culpa ou perda de auto-estima.

Para Freud, o principal problema da psique é encontrar maneiras de enfrentar a ansiedade, que é provocada por um aumento esperado ou imprevisto, da tensão ou como no caso acima, do desprazer que, pode se desenvolver em situação real ou imaginária. Quando não conseguimos lidar diretamente com os problemas para superar obstáculos, buscamos mecanismos para minimizar este impacto. Desta forma, lutamos para eliminar as dificuldades e diminuir, segundo Freud, as probabilidades de repetição reduzindo, as perspectivas de ansiedade adicional no futuro.

Cabe ao ego, de acordo com Freud, proteger a personalidade contra ameaças utilizando-se de alguns mecanismos de defesa, sendo eles: a projeção ou transferência, a repressão, a negação, a racionalização, a formação reativa, o isolamento, e a regressão.

Discorreremos resumidamente sobre estes conceitos procurando relacioná-los com a situação frente à deficiência.

A projeção (ou transferência) - é quando os pais enxergam a deficiência do filho como um erro cometido por outra pessoa, como uma falha que não se relaciona a eles. Assim, geralmente a mãe projeta seus sentimentos de raiva e hostilidade em algum membro da família que possa ser responsabilizado por essa "herança". A busca pelo motivo, em alguns casos chega até mesmo à exaustão, presenciamos relatos de pais em anamnese (Prática realizada pela equipe de educação especial SEMED/DGEE, para realização de avaliação psicopedagógica para posterior encaminhamento de alunos com deficiência a serviços específicos.), onde diz pensar que a deficiência do filho deva ser resultado de algum medicamento utilizado pela mãe no período de gestação, ou a bebidas, comidas, ou mesmo "mau-olhado" de outras pessoas que justifiquem a condição da criança. É ainda mais comum à transferência da "culpa" pelo ocorrido ao cônjuge ou membro da família deste. Alguns estudos mostram que em um número considerável de famílias a presença de uma criança deficiente leva ao divórcio.

Os mecanismos de defesa são utilizados, às vezes, por seus pais ou familiares, noutras pelo professor que atua diretamente com as pessoas com deficiência, e em algumas vezes, por elas mesmas, que diante de sua incapacidade frente aos obstáculos utiliza-se de mecanismos de defesa, até mesmo negando a sua própria deficiência.

Outro mecanismo é a repressão que consiste em simplesmente afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a distante. Através da repressão, o sujeito consegue manter fora do consciente algo que lhe causou dor, desprazer ou fatos provocadores de ansiedade.

Já na formação reativa, outro mecanismo de defesa, freqüentemente utilizado frente à deficiência, o sujeito reconhece a existência de um impulso indesejável, mas impede sua expressão, liberando energia do impulso diametralmente oposto ao primeiro. A pessoa que se utiliza deste mecanismo procura não admitir outro sentimento, a não ser aquele exageradamente manifesto.

Como exemplo, vislumbramos a superproteção de algumas mães aos seus filhos deficientes, que não podem permitir que venham à consciência sentimentos de hostilidade contra seus filhos. A formação reativa fica mais evidente quando as defesas se rompem. Algumas vezes, a bondade pode ser uma forma reativa contra a maldade.

Enfim para Freud, a formação reativa, substitui comportamentos e sentimentos que são opostos ao desejo real; é uma inversão clara e, em geral, inconsciente, do desejo. Ocasionalmente a descoberta de uma deficiência, resulta em pensamentos do tipo "estou feliz de que a criança seja deficiente" ou "nós tivemos a sorte de sermos abençoados com uma criança deficiente" - que refletindo a crença de que o defeito seja vontade de Deus e abençoado pelos céus.

A negação é outro mecanismo que constitui o segundo estágio do processo de luto. É um processo de atordoamento, entorpecimento, descrença, no qual a mãe não permite nenhum pensamento ou sentimento que a faça admitir a realidade de sua criança imperfeita. Em muitos estudos, os pais relatam um desejo de se livrarem daquela situação, mesmo quando isso significa se livrarem da criança. Revelando ainda que a intensidade da negação está relacionada diretamente ao impacto visual da deficiência, evidenciando a concretude do imaginário radical, citado por Castoriadis.

Já na projeção, Freud evidencia que o ato de atribuir a uma outra pessoa, animal ou objeto as qualidades, sentimentos ou intenções que se originam em si próprio, denotam outro mecanismo de defesa, através do quais os aspectos da personalidade de um indivíduo são deslocados de dentro deste para o meio externo.

Sempre que caracterizamos algo de fora de nós como sendo mau, perigoso, pervertido, imoral e assim por diante, sem reconhecermos que essas características possam também ser verdadeira para nós, é provável que estejamos projetando.

Pesquisas relativas à dinâmica do preconceito mostraram que as pessoas que tendem a estereotipar outras, também revelam pouca percepção de seus próprios sentimentos. As pessoas que negam ter um determinado traço específico de personalidade são sempre mais críticas em relação a este traço quando o vêem nos outros. O indivíduo procura defender-se da angústia resultante do seu fracasso pessoal, atribuindo a outra pessoa, ou a outro acontecimento, a culpa ou a responsabilidade por esse fracasso pessoal.

Na regressão, acontece um retorno a um nível de desenvolvimento anterior ou a um modo de expressão mais simples ou mais infantil. É um modo de aliviar a ansiedade escapando do pensamento realístico para comportamentos que, em anos anteriores, reduziram a ansiedade. A regressão é um modo de defesa bastante primitivo e, embora reduza a tensão, freqüentemente deixa sem solução a fonte de ansiedade original.

Enquanto que na racionalização a família tenta encontrar os culpados pelo fato de terem tido um filho deficiente, então este mecanismo ajuda o indivíduo a evitar a angústia, explicando seus sentimentos e comportamentos por “razões” que em realidade nada tem a ver com a situação do momento. Trata-se de encontrar “boas razões” para um fracasso eminente ou real.

Ao racionalizar, a pessoa desfia uma série de explicações, verdadeiras em si mesmas e de difícil refutação racional. Exemplo: a justificativa que se tenta dar em torno da deficiência de um filho “foi providência divina”. Ao explicar, provisoriamente, a não-obtenção dos objetivos por racionalizações, a pessoa se livra das angústias de enfrentar esse fracasso, sim, pois o filho deficiente é realmente visto como um fracasso pessoal de seus pais, permitindo assim, uma situação menos tensa que, provavelmente, possa levá-los a outra solução também adequada em termos de ajustamento. O uso exaustivo, permanente e inconsciente de racionalização colocará o individuo num clima de autojustificações ilusórias, bloqueando possíveis formas realistas de enfrentar problemas, facilitando, assim, maiores fracassos.

Esses são alguns dos mecanismos de defesa utilizados pelos familiares quando se defrontam com a deficiência, as defesas descritas acima, são formas que a psique tem de se proteger da tensão interna ou externa e que, segundo Freud, evitam a realidade (repressão), excluem a realidade (negação), redefinem a realidade (formação reativa). Elas colocam sentimentos internos no mundo externo (projeção), ou escapam da realidade (regressão).

 

3. O Aluno com Deficiência na Concepção do Professor

“Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que
os desejos dos outros fizeram de mim”.
Fernando Pessoa
 

Há algum tempo os aspectos emocionais dos profissionais que atuam com as PNE, têm gerado preocupações e estudos, alguns profissionais vivem o dilema de receberem alunos com deficiências em suas salas sem ao menos “saberem lidar com eles”. A despeito das políticas públicas existentes e da necessidade de formação continuada já tratamos anteriormente, o que pretendemos agora é analisar quais são os mecanismos utilizados pelos professores, frente ao desconhecido, ao aluno deficiente.

Segundo Amaral (1994, p.19), nesse universo, um enfoque privilegiado tem sido aquele que contempla o “outro", a busca desta compreensão muito tem colaborado efetivamente para o entendimento do dilema da recusa, medo, insegurança, etc. alertados, conscientizados e, ao mesmo tempo, respaldados por um novo saber, muitos profissionais tem podido re-ver, re-pensar e re-fazer sua prática.

Durante muito tempo, temos percebido o avanço das colocações teóricas e de pesquisas sobre as reações dos sujeitos deficientes, seus familiares, seus professores, frente à diferença. A análise destas reações nos permite avançar no sentido do entendimento dos mecanismos de defesa, de recusa e de enfrentamento da situação.

Uma tentativa de elucidação então dos dilemas já citados, diz respeito segundo Amaral (1994, p. 20), ao próprio funcionamento psíquico que, usualmente, mantém no nível inconsciente os mecanismos nossos de defesa. Outra, nos remete a problemática da elaboração do consciente para admitir que trabalhamos pouco, nossas reações e concomitantemente nossos mecanismos de defesa. Onde será que reside nossa resistência em entrar nos labirintos de nós mesmos.

Conforme já tratado os mecanismos de defesa são, agora de acordo com Amaral (1994), técnicas ou estratégias com que a personalidade total opera para manter o equilíbrio intrapsíquico, eliminando uma fonte de insegurança, perigo, tensão ou ansiedade.

Para Freud (1926), a conduta defensiva e elaborada, através da ameaça de perda que pode ser do objeto, da identidade ou da auto-estima. Neste momento falamos da perda do aluno imaginário, ou seja, o professor se defende da relação por não encontrar no aluno deficiente a identidade anteriormente imaginada. Gerando uma ansiedade que poderá ser resolvida de duas maneiras, assim descritas por Freud, “lidar com a realidade, ou fazer uso de mecanismos de defesa para sobreviver ao caos”.

Neste momento, nos parece clara à recusa tanto familiar, quanto profissional e até mesmo social ao relacionamento com a pessoa deficiente. Do ponto de vista psicológico, várias são as formas de fugir ao problema “deficiência”. Dentre elas, a rejeição recebe lugar de destaque, em seu cortejo segue o abandono, a superproteção e a negação. (Amaral 1994, p.21) Com a educação inclusiva, os professores, da classe comum do ensino regular, passaram então a ter um “novo alunado”, alunos que até então, eram clientela das APAES e PESTALOZZIS: “alunos especiais”, “pessoas com deficiência”, “pessoas com necessidades educativas especiais”, estudantes! Estudantes que começam a freqüentar, a “pertencer” às escolas da sua comunidade, onde seus irmãos, primos e vizinhos estudam, este paradigma focaliza que:
 

A educação inclusiva representa um passo muito concreto e manejável que pode ser dado em nossos sistemas escolares para assegurar que todos os estudantes comecem a aprender que o ‘pertencer’ é um direito, não um status privilegiado que deva ser conquistado (N. Kunc apud Sassaki, 1997, p. 123).

Diante da prerrogativa de pertencer, o deficiente deverá ser visto como um sujeito, que de acordo com Brunetto (1999, p.16), que constitui a partir do Outro e seus desejos estão presos numa cadeia simbólica na qual estão inseridas as massas humanas. “Assim as fronteiras entre o sujeito e o outro, são bem mais móveis, as relações estabelecidas com seus pais, irmãos, enfim com todas as pessoas de sua convivência, são fenômenos sociais, alega Freud”. Trata-se da vida do sujeito, vivida como história.
 

É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos pulsionais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse individuo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do individuo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (FREUD, 1976 (1921) p.91).

Desde o início dos tempos a simetria, conforme já pontuamos, representa de alguma forma a ordem do mundo. Com relação à deficiência, o desequilíbrio das des-funções é aparente. Assim, sua desfiguração, sua mutilação, ameaça intrinsecamente as bases da existência do outro. Seu existir põe em movimento uma gigantesca pá de moinho que segundo Amaral, descontrolada subitamente, ameaça transformar a energia, gerada costumeiramente com tranqüilidade, numa torrente quase incontrolável, um caudal de águas turbulentas.

O outro diferente para Amaral (1994), representa:
 

Muitas e muitas coisas. Representa a consciência da própria imperfeição daquele que vê, espelham suas limitações, suas castrações. Representa também o sobrevivente, aquele que passou pela catástrofe e a ela sobreviveu, com isso acenando com a catástrofe em potencial, virtualmente suspensa sobre a vida do outro. Representa também a ferida narcísica em cada profissional, em cada comunidade. Representa um conflito não camuflável, não escamoteável explícito em cada dinâmica de interrelações.

De todas as maneiras que focalizarmos este sujeito, o que veremos são mosaicos de ameaça e perigo. Com o mecanismo de defesa, a primeira ponderação que podemos citar a postura defensiva, pois para aquele que está armado, defendido, é quase impossível relacionar-se com transparência.

Na medida em que são acionados os mecanismos de defesa, é quase impraticável olhar para si mesmo, quanto mais para o outro. A visão, distorcida pela máscara da armadura, empana-se, tolda-se. Levando a energia psíquica, de acordo com Amaral (1994, p.31), “a criação e manutenção de trincheiras como a onipotência, a rejeição, a negação ou até mesmo a formações reativas”, conduzindo o sujeito a cegueira diante do fato de não estar pronto para ver o outro como ele é, não podendo enxergar o mundo pelos seus olhos, não podendo então compartilhar.

É importante ressaltar que nenhum de nós com ou sem deficiência, estamos imunes a sentimentos de perda, à expectativa de perfeição, à necessidade de harmonia, à desorganização provocada pelo estranhamento, à ambigüidade entre o amor e o ódio frente à ameaça, frente ao novo.

Amaral (1994, p.33), aponta como saída algumas pistas entre elas a de “nomear o inominável”, ou seja, “denunciar, desnudar, conhecer, apropriar-se das defesas que se levantam, que se perpetuam, na maioria das vezes não inconscientes, certamente inconfessas”.

Ainda dando continuidade aos mecanismos de defesa, citamos dois tipos básicos frente à ameaça. O primeiro é representado pelo ataque. Seria, no caso da deficiência, um enfrentamento do “inimigo” atacando-o, idealmente, destruindo-o.

Em culturas como as chamadas primitivas, cujos exemplos já foram anteriormente mencionados, onde, em algumas tribos, o deficiente é sacrificado; ou mesmo em civilizações chamadas mais adiantadas, como Esparta, estas pessoas por não serem úteis aquele tipo de sociedade eram eliminadas.

Comportamentos que podemos também encontrar no mundo animal, onde os filhotes imperfeitos são, na maioria das vezes, eliminados pelos próprios pais.

Também atitudes encontradas em nosso próprio universo cultural, quando forças mais poderosas que a moral, pseudamente vigente, vencem. Encontramos na literatura, para exemplificar este dado, o extermínio de bruxas, judeus, negros, por razões religiosas, econômicas, históricas, ou seja, ataca-se o diferente, o inconveniente, e com isso liquida-se a ameaça por eles representada.

Para fugir do dilema da deficiência, ou de seus “problemas”, os mecanismos de rejeição e negação são acionados. Sendo que a rejeição se configura de acordo com Goffman (1982), como o abandono, explícito (na Grécia antiga chamava-se eufemisticamente de “exposições”). Ocorre também segundo o mesmo autor o abandono implícito, quando embora possível, não se investe nem amor, nem energia, nem dedicação, nem tempo, para a superação ou abrandamento das limitações, dos sofrimentos. O que se presencia nos discursos de alguns professores atualmente é que, “eles até podem permanecer nas salas, mas ficaram lá, nada poderá ser feito por eles”. Denotando-se assim uma pratica de rejeição implícita.

De acordo com Goffman (1982), a rejeição frente ao aluno com deficiência, se apresenta pelo menos de três formas, ou seja, por atenuação, por compensação e por simulação. Resumidamente abordaremos os três casos. A atenuação retira do deficiente, e de quem compartilha com ele as verdadeiras dimensões da deficiência.

Podemos citar como exemplos os casos onde ouvimos “não é grave”, “poderia ser pior”.

Já na compensação, a realidade é mascarada, existe a tentativa de se minimizar o sofrimento real, por meio de considerações do tipo: “aleijada, mais tão inteligente!”, inteligente sim se for o caso, e aleijada também. A última forma de negação que pretendemos conceituar é a simulação, que igualmente as demais, pode ser funestas. É expressa pela idéia contida no “como se”: “é cega, mas é como se não fosse”. Mas é. Continua sendo, apesar de todo “como se” do mundo.

Evidente que nas três formas, os prejuízos que podem causar ao diferente, deficiente, a sua família aos profissionais que com ele integram são de dimensões violentas. As relações devem ser limpas para não caminharem para patologias relacionais e crônicas, não são falsificadoras nem tão pouco, serão geradoras de sofrimento para nenhum dos atores.

Focalizando as relações de afeto entre professores e alunos com deficiência nos seu cotidiano escolar. Buscaremos analisar como essas relações se estabelecem e se manifesta no ambiente escolar, palco desses personagens. É sobre esse par de ilustres conhecidos/desconhecidos (professor e aluno) que pretendemos alargar nossa reflexão.

A importância das relações de afeto entre professores e alunos, segundo Freud (1856-1939), fortalecem a vida psíquica que não se resume o fato consciente, mas que está apoiada em manifestações inconscientes, sendo esse o objeto de estudo da psicanálise. Ao descobrir a existência dessa instância, Freud retira do ser humano a idéia de que este pode controlar totalmente seus atos e pensamentos, afirmando que não somos senhores absolutos de nossos próprios comportamentos.

Freud escreveu sobre suas considerações a respeito de seus professores:
 

Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seu caráter e sobre estes formávamos ou deformávamos o nosso. [...] Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinado a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los. A psicanálise deu o nome de “ambivalência” a essa facilidade para atitudes contraditórias. (1914/1974, p.286)

O relacionamento professor-aluno é, portanto, atravessado por sentimentos de amor e de ódio (ambivalência). Entre esses dois personagens do processo de ensino-aprendizagem estabelece-se um campo de relações, que propicia as condições para o aprender, denominadas transferência. Transferir é o mesmo que deslocar algo (sentido) de um lugar para o outro, sendo que essas transferências atribuem um sentido especial a uma figura determinada pelo desejo. Na relação professor-aluno a ênfase freudiana, não está na mera transmissão de conteúdos, e sim na relação professor aluno, a transferência se produz quando o desejo de saber do aluno se liga a um elemento particular que é a pessoa do professor.

É importante lembrarmos que a transferência é um processo inconsciente, não escolhemos racionalmente amar ou odiar esse ou aquele professor ou transferir sentimentos bons ou ruins dependendo da situação. A transferência é algo que acontece sem que nos demos conta, onde o desejo inconsciente busca ligar-se a “formas” (professor) para esvaziá-la de seu valor real e colocar ali o sentido que nos interessa. Afirma Kupfer:
 

Instalada a transferência, o professor torna-se depositários de algo que pertence ao analisando ou ao aluno. Em decorrência dessa “posse”, tais figuras ficam inevitavelmente carregadas de uma importância especial. E é dessa importância que emana o poder que inegavelmente têm sobre o indivíduo. (1992, p. 91).

A figura do professor passa a fazer parte do cenário inconsciente do aluno, recebendo uma significação própria e, a partir de então, esse só será escutado e entendido através desse lugar que é colocado. Na verdade, o professor servirá como uma “forma” esvaziada de seu valor real que receberá significações através das transferências do aluno. Este, com certeza, não é o um lugar fácil de suportar, afinal, o professor também é um sujeito desejante, que tem vida própria. Só o desejo do professor justifica que ele esteja nesse lugar, mas estando ali, ele precisa renunciar a esse desejo para assumir o lugar de transferência e, assim, possibilitar a aprendizagem.

Onde fica então, as relações de afeto que se estabelecem entre professores e alunos no processo ensino-aprendizagem, que “lugar” o professor ocupa no inconsciente do aluno? Como se estabelece este dilema de amor e ódio? O ser humano, por sua própria constituição, estabelece inúmeras relações de afeto ao longo da vida. Essas relações se baseiam, segundo a psicanálise, em dois afetos básicos constituintes da vida psíquica: o amor e o ódio. As ações, expressões e pensamentos humanos não podem ser devidamente compreendidos se não forem considerados os afetos que os acompanham. Cotidianamente estabelecemos relações de amor e de ódio com as pessoas presentes em nosso ciclo de convivência. Muitas vezes, esses dois afetos se confundem se mesclam, se fundem, e então, amamos e odiamos uma mesma pessoa ou situação. A esse sentimento de amor e ódio dirigido a uma mesma pessoa ou situação, dá o nome de ambivalência.

Somos ambivalentes com nossos pais, com nossos filhos, com nossos maridos, mulheres, namorados, namoradas, nossos alunos, com nossos professores.

Amamos e odiamos, com tamanha intensidade, que podemos afirmar num certo momento, segundo Laplanche e Pontalis (1992, p.17), que a ambivalência consiste na “presença simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, de atitudes e de sentimentos opostos, fundamentalmente o amor e o ódio”.

Parece-nos mais claro agora os motivos pelos quais tantos e tantos professores nos procuram com a afirmativa “não sei lidar com eles”, agora podemos compreender ao menos alguns motivos desta recusa que, nos labirintos do inconsciente destes professores, são expressas pelo dilema frente ao diferente, ao novo. Tão diferente das imagens tecidas para o aluno ideal. Tão inesperado e de difícil previsão.

 

4. O Ideal do Eu e o Eu Ideal: O Próprio Deficiente Frente a Sua Impotência.

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?.. Ai de mim!...
Mário de Sá-Carneiro
 

Numa tentativa de análise mais aprofundada, acerca da concepção que o deficiente tem de si mesmo, e das relações estabelecidas por ele com seus familiares e com a sociedade, buscamos na literatura clássica a ambigüidade que perpassa esta relação indo do amor ao ódio, numa tentativa de elucidar este dilema.

Na mitologia grega, a personagem que poderá ilustrar nosso caminho é Filoctetes, citado por (Wilson, 1965), como um guerreiro que nos oferece algumas pistas interessantes de como as relações com o diferente, são experimentadas. A lenda deste guerreiro fora idealizada e transmitida por Sófocles (nascido quase 500 anos antes de Cristo).

Filoctetes, um guerreiro poderoso e possuidor do fantástico arco de Apolo. Poder que ele repentinamente perdeu, e viu sua potência dar lugar à fragilidade, isto aconteceu quando ele ao se aproximar do santuário da Ilha de Crisé, a caminho de Tróia, fora picado por peçonhenta serpente, que segundo o mito, resultou numa infecção, que o deixou inválido e repugnante.

Filoctetes foi perseguido por um ressentimento inesquecível de tristeza, pois fora abandonado à própria sorte, depois da funesta picada “numa triste gruta, descrita por Sófocles com realismo: a cama de folhas, uma tigela de madeira tosca, as imundas ataduras secando ao sol, onde ele tem vivido maltrapilho pelo espaço de dez longos anos”.

Conta o mito que depois de muito tempo, ele fora procurado para auxiliar os gregos contra Tróia, Filoctetes, então pergunta: “Por que vieram procurar-me agora? Não sou o mesmo sujeito agourento e repugnante de antes?” Convencido por Neoptólemo a ajudar a arrebatar as glórias de luta... Filoctetes se despede da caverna onde se alojou por todo o tempo, e ouvindo o estrépido das ondas ao se chocarem com o promontório. Começa a viagem para Tróia, de objeto a herói. “A obstinação do ermitão inválido assume um caráter quase místico... O infortúnio de seu exílio na ilha levou-o a realizar a própria perfeição”.

Pensando Filoctetes, como uma parábola do caráter humano, Wilson (1965) diz:
 

Eu interpretaria a fábula da seguinte maneira. A vítima de uma fétida ferida que a torna indesejável à sociedade e que periodicamente a humilha e despreza, é também o senhor de uma arte sobre-humana que todos têm que respeitar... Como então transpor o abismo entre a invalidez do arqueiro e o bom uso, por ele próprio, de seu arco? Entre a ignomínia e a glória que lhe está destinada? Só pela intervenção de alguém que é bastante sincero e bastante humano para tratá-lo como um monstro, nem tampouco como uma mera propriedade mágica de que se precisa para consecução de algum fim, mas como um homem cuja coragem e altivez ele admira... (Neoptólemo) assumindo os riscos de sua causa que se funda na solidariedade humana com o enfermo... Vence a obstinação de Filoctetes e assim o cura e o liberta.

Além de Filoctetes, os exemplos são inúmeros: Shakespeare e Ricardo III, o rei disforme e pérfido; Victor Hugo e Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame; Marion Bradley e Kevin, o harpista deformado de Avalon... A literatura está repleta de armadilhas traiçoeiras enveredando o deficiente, o diferente, em malhas maniqueístas de bondade e maldade, virtude e pecado, santidade e malícia, feiúra e beleza.

O deficiente, como qualquer pessoa, só pode como diz Wallon, elaborar a consciência de si mesmo, com a intervenção do outro: daquele com quem ele se relaciona e que, por sentir-se ameaçado, pode tentar neutralizar a ameaça, defendendo-se desesperadamente, através de mecanismos de defesa que o impedirão por certo de construir sua identidade firmada num autoconceito positivo. Diante desta prerrogativa, podemos nos perguntar: qual será então, o autoconceito tecido pela pessoa com deficiência sobre si mesma? Definiremos autoconceito como, o conceito que temos de nós mesmos, a auto-estima, ou seja, o valor que damos àquilo que pensamos sobre nós próprios.

Burns (1986), (BRUNS,R.B. The self-conccept. Londres: Logman, 1986 citado por Nogueira, Mario Lúcio Tópicos especiais da educação inclusiva.Curitiba 2004) afirma que um amplo leque de designações (auto-imagem, autodescrição, auto-estigma, etc.) tem sido utilizado para referenciar a imagem que o individuo tem de si mesmo. Em sua opinião, porém, esses termos são designações excessivamente estáticas para uma estrutura dinâmica e avaliativa como é o autoconceito. Este, na sua perspectiva, engloba uma descrição individual de si próprio (como auto-imagem) e uma dimensão avaliativa (auto-estima).

Segundo este autor, o autoconceito é composto por imagens acerca do que nós próprios pensamos que somos o que pensamos que conseguimos realizar, aquilo que pensamos que os outros pensam de nós e também de como gostaríamos de ser. O autoconceito consiste, então, em todas as maneiras como uma pessoa pensa que é nos seus julgamentos, nas avaliações e tentativas de comportamento. Isso nos leva a crer que o autoconceito, segundo Burns (1986), é um conjunto de várias atitudes únicas de cada pessoa.

Este sujeito com deficiência, construído a partir dessas considerações, acaba por ser envolvido em conflitos e contradições acerca de sua própria imagem, diante de tantas tensões, acaba por se considerar realmente “problema” e se marginalizar do convívio social. Certos de sua inferioridade frente aos sujeitos, ditos normais.

Freud diz que, amamos o próximo quando ele for modo semelhante a nós, em aspectos importantes que podemos nos amar no outro, ou então, se “for de tal modo mais perfeito do que eu, que nele eu possa amar meu ideal meu próprio eu” (FREUD, 1976(1929): 131). Freud alega que amaríamos o filho de um amigo, por exemplo, mas não com tanta facilidade amaríamos um estranho.
 

Se, no entanto devo amá-lo (o estranho) meramente porque ele também é um habitante da terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte-e não em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito anunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendável como razoável? (Freud, 1976(1929) p. 131).

Não existe um tipo ou tipos que definam os indivíduos com deficiência. O único ponto em comum entre as pessoas com deficiência é a própria limitação, ou seja, todos apresentam um déficit que os discriminam da população "normal". Cada indivíduo é um todo integrado e funcional; dessa forma deve ser compreendido em sua estrutura de personalidade. A deficiência será vivenciada de formas diversas de acordo com a estrutura de personalidade de cada um.

Temos presenciado empiricamente algumas maneiras de encarar a deficiência, por diversas pessoas. Alguns encaram como um desafio a ser superado com novas formas de adaptação, busca de outros referenciais. Outros mostram reações negativas de acomodação à situação, com momentos depressivos e de angústia. De uma forma geral, a deficiência significa limites de ação e expansão pessoal e conseqüentemente acaba por segregar o indivíduo do convívio social, afastando-o das oportunidades normais de realização pessoal, profissional, social, afetiva, etc.

A situação de deficiência favorece o aparecimento de estados freqüentes de depressão, insatisfação, insegurança, reações de agressividade, impulsividade, baixa tolerância à frustração. O sentimento de frustração pode levar à comportamentos como: agressividade, desconfiança, ansiedade, condutas regressivas, impaciência, depressão, inveja, bloqueios, fuga, dificuldade de adaptação social. Este é o dilema da deficiência. Nossa sociedade capitalista está estruturada para receber pessoas “normais” e competitivamente integras, o deficiente fica a margem, pois nesta visão, ele não se encontra em condições de competir, nem tão pouco de ser produtivo.

Como poderá ser construída então a identidade desta pessoa? Para Erikson (1976, p.49) a definição de identidade é “uma sensação de bem-estar, o sentimento de que “o corpo tem moradia”, a noção de conhecimento do caminho a ser percorrido e a segurança interior do reconhecimento por parte das pessoas significativas”.

Diante das suas próprias limitações, o deficiente segundo este autor, “incorpora a dimensão social, ou seja, sua filiação a grupos que o identificam positivamente, favorece a constituição de sua identidade”. O conceito de si passa então, a ser organizado em torno de características, crenças e traços de personalidade, assumido pelo grupo com quem se identifica.

Buscando entender a deficiência em seu contexto sócio-histórico, teremos que fazer a distinção entre "limitações próprias da deficiência" e "limitações impostas pela sociedade". O indivíduo considerado deficiente convive com limitações porque a sociedade atribui aos homens um caráter idealizado, com base no qual distingue como limitações, tudo o que foge a seu padrão. O que é chamado de limite corporal, sensorial ou cinestésico seria primordial se os homens não vivessem em coletividade.

Um homem sozinho, com limites sensoriais ou cinestésicos, poderia ter dificuldades de resolver algumas situações em seu cotidiano. Porém, o viver coletivo dos homens coloca como primordial a compreensão do repertório social e tecnológico. É necessário apropriar-se de símbolos, códigos e significados sociais, antigos e novos, bem como dos processos cognitivos, para poder viver nesta sociedade.

Conforme nos diz Kozulin (1990):

As falhas ambientais para o desenvolvimento do potencial criativo de qualquer sujeito, são no mínimo, bastante prováveis, ainda mais quando este se encontra distante do modelo ideal socialmente estabelecido, daquilo que:


A comunidade identifica como um espelho generoso de si mesma e que é perpetuado pelo grupo dominante. Aquilo que, em última instância, constituirá o substrato da qualidade das relações estabelecidas, ou a estabelecer, entre os depositários dessa idealização e os dela desviantes (Amaral, 1995).

Sendo assim, aos que estão no rol destes últimos resta à categorização como "espécie menos desejada", fraca e incapaz, o que serve de base para justificar diversos tipos de discriminação.

Freud (1974 [1914]) ressalta que o narcisismo inabalado de algumas pessoas encanta e fascina "pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito – uma posição libidinal que nós próprios já abandonamos". O indivíduo deficiente, ao contrário:
 

Mostra-nos concretamente a nossa debilidade e nos surpreende com a maciça negação de nossa onipotência (…). Assim, o deficiente, como um espelho perturbador, pode fazer reviver nossas angústias primitivas que, só podem ser observadas através de defesas organizadas. Todavia uma deficiência física, uma mutilação visível, uma deformidade aparente pode nos remeter ao fracasso que negamos e fazer surgir o medo do colapso, ou seja, o medo do fracasso das organizações defensivas (Amiralian, 1997, p.34).

O resultado disto é um conjunto de manifestações discriminatórias que geram para a pessoa com deficiência, entre outras conseqüências, segundo Amiralian (1997), condições desfavoráveis para o seu ajustamento e integração no meio proveniente não só das características inerentes à sua condição orgânica, mas também, e principalmente, dos preconceitos, estereótipos e estigmas que permeiam as relações interpessoais e, tendo em vista as atitudes de superproteção, segregação ou descrença das reais potencialidades do deficiente, não é difícil supor que, para pessoas com uma limitação, o delineamento de um projeto de vida maduro e autônomo implica em dificuldades, algumas vezes vistas como intransponíveis.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desenvolver estudos sobre o imaginário social e os mecanismos de recusa das pessoas frente à deficiência, não foi uma tarefa fácil nem tão pouco conclusiva.

Nesta pesquisa buscamos analisar questões e falas de pessoas diante da dificuldade com a diferença.

Apresentamos o movimento de inclusão no Brasil, concluímos que ele tem sido acompanhado de aplausos e de reprovações. De um lado, há concordância a respeito da inclusão como oposição à exclusão de pessoas com deficiências no ensino regular. Neste sentido, todos passam a defendê-la e ninguém se arriscaria a pronunciar-se contra ela. De outro lado, há discordância quanto à inclusão indiscriminada, na qual, sem qualquer avaliação prévia é matriculado o aluno com deficiência na escola regular e sem análise de suas condições e das necessidades requeridas para seu atendimento, querem do ponto de vista de recursos humanos, quer do ponto de vista das adaptações físicas e materiais.

Para Castoriadis (1982, p.86), a sociedade resulta como produto de uma instituição imaginaria. A imaginação seria, portanto o princípio fundado da sociedade, em uma dimensão de criação continuada. Para ele, o imaginário nada tem a ver com espetacular ou com reflexo de imagens com criação incessante e essencialmente independente (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de alguma coisa. Seus produtos são o que denominamos realidade e racionalidade.

Para finalizar, é oportuno destacar que, ao estabelecermos uma análise mais ampla da questão da deficiência, não podemos nos pautar apenas na pessoa ou nas pessoas envolvidas, cabe pontuar também a sociedade e seus mecanismos extremamente excludentes estabelecidos nas tramas maniqueístas impostas. Estamos diante de um cenário onde o normal não é ser diferente e sim ser reprodutor de padrões aceitos e pactuados como verdadeiros.

Quando nos propusemos em revisitar a própria prática, concluímos que o percurso é “ponto de chegada e de partida”, é em tudo desafio repleto de incentivo novo. Desafio à reflexão que, necessita ser continuada para cada vez mais, buscar respostas para a área profissional e acadêmica.

Diante de uma prática de alguns anos me furtei à implementação de metodologias de entrevistas, pois esta fala me parece neste momento inócua. Os questionamentos trazidos evidenciam o que empiricamente estivemos por muitos anos tentando compreender.

Concluímos com uma reflexão sobre os resultados da própria investigação, reflexão que vemos como motivo segundo, embora não posterior. Onde além do empírico, próximo ao sensível que captado pelo individual demonstrou uma fantástica trama de relações do objeto estudo e suas múltiplas determinações. Que não me parece suficiente descrevê-la, ordená-la, mas sim compreendê-la radicalmente enquanto trama de relações.

Observa-se que é muito penoso para o homem, aceitar e conviver em bons termos com o fato de que ele tem uma vida instintiva e de que precisa aceitá-la e integrá-la no todo de sua pessoa. Freud ocupou-se dessa questão com freqüência e sob diferentes ângulos. Tanto em relação à vida individual, quanto à vida social, em nenhum momento ele nega a força e a presença da violência no homem, que tem que pagar um preço para domar sua própria natureza, caso contrário, a convivência com seus semelhantes fica impossível (Freud, 1930, p. 35).

Um dos fatores mais impeditivos ao desenvolvimento humano é o medo do contato com a própria realidade interna. Assumir a responsabilidade pelo que se é, não é tarefa das mais simples, pois implica enfrentar uma experiência de sofrimento da qual, naturalmente, o homem tende a se evadir. Se o indivíduo consegue ter suficiente tolerância para com as dificuldades, é possível que amplie a consciência de si mesmo, abrindo caminho para a criatividade e para uma vida psíquica mais rica.

Pois, há que se considerar que existem forças psíquicas conscientes e inconscientes que agem todo o tempo e que podem impedir o livre curso de uma grande reserva de vitalidade que, sendo bem canalizada, torna-se fonte da criação do novo.
 

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capítulo IV da obra:
ENTRE AMOR E ÓDIO: OS DILEMAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL, NO LIMIAR DO SÉCULO XXI.
ROSELY SOUZA LUIZ GAYOSO
Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – CURSO DE MESTRADO
CAMPO GRANDE – MS. 2006

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8.Abr.2017
publicado por MJA