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 Sobre a Deficiência Visual

Educação Física, Orientação e Mobilidade e Deficiência Visual

José Alberto Moura e Castro

1996

Ability in Disability - fotografia de Zishaan Akbar Latif, 2009-10
Ability in Disability - fotografia de Zishaan Akbar Latif  (2009-2010)

Segundo Roberto S. Woodworth e Donald G. Marquis, citados por Mourão (1995), "o desenvolvimento da criança consiste, em grande parte, em socializar-se". Continuando a referir o mesmo autor, é no meio social que deve ser feito o processo educativo do deficiente: "ninguém aprende a nadar fora de água". Nesse sentido, o processo integrativo deve ser feito pelo deficiente e pela sociedade.
 

"A integração deve entender-se, não como uma mudança isolada em Educação Especial, mas, sobretudo, como uma mudança radical no sistema educativo" (Ruivo, 1981).


Actualmente, a tendência é de optar pelas estruturas regulares de atendimento, recorrendo a diversas respostas o menos restritivas possíveis.

Esse processo na educação da pessoa deficiente impõe, por parte desta, uma autonomia, o que coloca de maneira imprescindível a aprendizagem da Orientação e Mobilidade no processo educativo da pessoa portadora de deficiência visual.

No processo de aprendizagem das técnicas de Orientação e Mobilidade de uma pessoa deficiente visual, temos, antes de tudo, de tentar fazer com que esta adquira uma boa aptidão física. Isto é tanto mais importante se atendermos ao que alguns designam por moléstia hipocinéticas dos cegos (excessiva inactividade física. Maciel (1972) chega mesmo a propor, em 1972, que se realize a transcrição para o Sistema Braile da obra "Aptidão física em qualquer idade (exercícios aeróbicos)", de Kenneth H. Cooper, para que a pessoa portadora de deficiência visual tenha assim um processo de autocontrole de treino físico.

Na verdade, as pessoas cegas, normalmente, não estão predispostas para a actividade física e muito menos para actividades com carácter vigoroso (Laughlim, 1975; Stamford, 1975). A falta de prática regular do exercício físico vigoroso não só reduz a capacidade funcional, limitada pelo rápido aparecimento de fadiga, mas também predispõe o deficiente visual para a síndrome de doença hipocinética (Kraus; Raab, 1961, citados por Jankowski e Evans, 1981), o qual aumenta o risco cardíaco e reduz a expectativa de vida (Stamford, 1975).

Dubose (1976) sublinhou a pequena atenção dada ao desenvolvimento físico da criança deficiente visual até à idade do treino de Orientação e Mobilidade, o que agrava a aprendizagem desta.

A falta de visão, principalmente nas idades mais baixas, diminui a curiosidade natural de exploração, a qual tende a limitar a actividade. Se juntarmos a esses factos o medo do desconhecido, o receio de se chocar com os objectos e os efeitos psíquicos da superprotecção, muitas vezes exercidos na educação do deficiente visual, aceitamos facilmente que a inactividade surja, nesses casos, como corolário óbvio de múltiplos factores.

Nesse contexto, o deficiente visual tem tendência para o isolamento. Esse facto é de alguma maneira confirmado pelo estudo realizado por Schneekloth (1989), citado por Rettig (1994), no qual concluiu que as crianças cegas dispendiam 56% do seu tempo em brincadeiras solitárias, enquanto que os amblíopes dispendiam 33% e as normovisuais, 14%.

A capacidade física é a via para uma maior auto-actualização e sentido de autonomia (Mulholland, 1986.

A forma física conduz ao aumento das qualidades físicas e de auto-estima, pelo que deve ser uma componente vital de todas as acções, para formar, no deficiente visual (DV), as necessárias habilidades motoras que lhe permitam viver com sucesso.

Segundo Delafield (1976), o autoconceito e o conceito de auto-imagem são as preocupações centrais para o ajustamento do DV ao mundo, mas normalmente são negligenciados pelos técnicos que intervêm no seu desenvolvimento.

O ajustamento implica todas as formas de adaptação psicológica, no entanto é lícito perguntar como deve ser o ajustamento do cego ao mundo visual?

• Será que os cegos deverão actuar como cegos, que é o que os outros esperam deles? ou

• Será que o ajustamento deverá ser de tal maneira que o cego deverá tentar ser como os outros?

Nesse sentido, as ideias evoluíram e hoje os estudiosos da psicologia social têm sugerido que não é a natureza da deficiência, mas a reacção das outras pessoas à deficiência que é importante para o ajustamento das pessoas DV ao mundo visual.

O ajustamento no fundo deve ser uma interacção entre a possibilidade do cego executar tarefas e as expectativas e atitudes dos outros.

Cada pessoa reage à cegueira, com as características da sua personalidade (Cholden, 1984), mas, segundo alguns autores, a cegueira não provoca uma reacção psicológica específica ou mudança de personalidade. A cegueira por si só não é justificativa para o desajustamento.

No entanto, Buell (1985) sugere que os cegos exibem tensões mais elevadas ao realizarem actividades de rotina.

De facto, Peak e Leonard (1971) encontram frequências cardíacas significativamente maiores nos pedestres deficientes visuais ao fazerem um trajecto não guiado do que num trajecto guiado. Concluíram que as razões são mais psicológicas do que fisiológicas.

Muitos aspectos contribuem para criar ansiedade no cego, quando este enfrenta o desafio de se deslocar.

No treino de Orientação e Mobilidade, a exigência da tarefa e do seu total cumprimento pode levar a um aumento de ansiedade se não houver equilíbrio na informação e no exigir apenas o que for possível, isto é, o que puder ser realizado com êxito.

A preocupação da execução da tarefa cria uma grande tensão no cego que o professor pode e deve minorizar.

Como se sabe, a personalidade, os factores emocionais e o stress são muito importantes no desenvolvimento motor, assim como na prestação das tarefas.

A capacidade de se movimentar de um lugar para o outro é fundamental para a qualidade de vida de qualquer pessoa. Nesse contexto, o cego tem necessidade de técnicas específicas para esse deslocamento. Embora, há longa data, sejam feitas referências às dificuldades de deslocação no espaço, só a partir de 1950 se iniciou, nos EUA, com Hoover, o treino da sua mobilidade através de técnicas específicas (Pereira, 1989).

É exactamente através da Orientação e Mobilidade que o DV consegue deslocar-se para atingir os objectivos, tornando-se, assim, independente.

Como o seu nome indica, a Orientação e Mobilidade tem duas componentes fundamentais: orientação e mobilidade (McLinden, 1981).

  • Orientação requer que a pessoa conheça a posição no espaço, o seu destino e o caminho que tem de percorrer.

  • Mobilidade envolve movimento através de espaço com segurança e eficiência, através do emprego de técnicas apropriadas de protecção.

A orientação espacial é o conhecimento da posição de uma pessoa em relação a outras localizações do ambiente. Essa definição representa dois conhecimentos:

- Conhecimento da localização dos objectos no ambiente.
- Processo de conservar esse conhecimento.

As pessoas podem saber a sua localização, a localização dos objectos e suas relações, contudo apresentam dificuldades em utilizar esse conhecimento quando se deslocam.

Nesse processo, é de referir que os cegos têm dificuldade em conservar as distâncias que não conseguem avaliar através da visão. Aqui, a memória tem um papel importante. Nesse contexto, é de ter em conta o que nos diz Detienne (1988): "a memória retém certos aspectos, esquecendo outros, aceitando informações novas e eliminando outras mais antigas, ou dando-lhes uma nova forma".

Segundo Holins e Kelley (1988), os cegos têm dificuldades em actualizar-se no espaço, o que está de acordo com Rieser et al (1982), que encontraram diferenças entre cegos precoces e pessoas vendadas na "actualização espacial".

A performance depende de muitos factores, entre os quais a experiência visual (Veraart; Wanet-Defalque, 1987). Assim, os cegos congénitos terão mais dificuldades na representação mental do espaço do que as pessoas com cegueira adquirida. Como nos diz Sylas (1962), os cegos congénitos têm mais dificuldades na Orientação e Mobilidade que cegos com cegueira adquirida.

Por outro lado, quando uma pessoa perde a visão (cegueira adquirida), terá que aprender a "transpor" em sensações tácteis as imagens visuais. Essa transposição será de grande utilidade, pois, lentamente, as imagens visuais irão desaparecendo e posteriormente em etapas evolutivas do desenvolvimento irão aproximar-se das dos cegos de nascença (Ochaita; Rosa, 1983).

A capacidade de perceber objectos à distância e de se deslocar sem visão depende principalmente da informação auditiva (Ashmead et ai, 1989).

Vários processos explicativos sobre a capacidade dos cegos detectarem objectos têm sido dados, no entanto destacam-se dois: "visão facial" e "ecolocação".

  • A visão facial baseia-se na sensibilidade às diferenças de pressão do ar junto a obstáculos, o que normalmente é chamado o "sexto sentido" das pessoas cegas.

  • A ecolocação baseia-se nas reflexões dos sons.

A representação espacial não tem a mesma importância para a pessoa cega e para o normovisual. Enquanto que, para o normovisual, a eficiência máxima espacial não é necessária para a vida do dia-a-dia, para o cego significa a diferença entre a deslocação com sucesso ou insucesso, dependência ou independência. Fletcher (1980), nos seus estudos, encontrou diferenças entre a representação espacial mental de jovens cegos congénitos e de normovisuais. Verificou que essas diferenças diminuem com a idade e por volta dos 18 anos as performances dos cegos congénitos, no que diz respeito à representação espacial mental, são comparáveis às dos normovisuais.

Torna-se, assim, fundamental estimular, de uma maneira intensa, as actividades de orientação, através de passeios, jogos etc. (Bina, 1986).

Por outro lado, a actividade motora é fundamental para o desenvolvimento total e específico da capacidade de deslocamento (Miller, 1982). As habilidades motoras de deslocamento e conceitos básicos (por exemplo, horas, linhas paralelas, perpendiculares, pontos cardeais etc.) devem ser ensinadas o mais cedo possível.

De facto, como nos dizem Ripoll e Azemar (1987), a experiência activa é a condição essencial da expressão das potencialidades sensório-motoras ao serviço da eficiência do gesto.

Os especialistas em reabilitação sabem que o treino de movimentação (capacidade de se mover e lidar com objectos do meio) é essencial para os indivíduos cegos (Adams et al, 1985).

O movimento no espaço deriva inteiramente do sistema háptico que utiliza as informações quer cutâneas quer quinestésicas (Barber e Lederman, 1988). Isso significa que a conquista do espaço pelo DV não deve ser só feita através da mão (manipulação), ou do pé (ambulatório), mas sim por todo o corpo.

Nesse contexto, o DV só poderá ser independente se for submetido a um programa completo de Orientação e Mobilidade, o qual é constituído por três fases fundamentais:
 

1.ª fase - Pré-mobilidade;

2.ª fase - Mobilidade propriamente dita;

3.ª fase - Pós-mobilidade.


O programa de Orientação e Mobilidade (OM) deve ser aplicado o mais cedo possível, no entanto a 2.ª fase do programa deve começar pelo menos na idade da entrada para a escola, ou, como diz Dugay (1978), pode iniciar-se mais tarde, se a criança não estiver motivada e não tiver definida a instrumentalidade psicomotora.

A fase de Pré-mobilidade é basilar em toda a independência do cego. Tecnicamente isso significa que toda a aprendizagem, assim como os objetivos da peripatologia (Orientação e Mobilidade) estão comprometidos, caso não seja cumprida.

A Pré-mobilidade compreende todo o desenvolvimento do equipamento sensorial, cognitivo e motor do DV, permitindo uma postura e uma capacidade física, isto é, disponibilidade para aceitar a introdução das técnicas de OM.

Por variadíssimos factores, na maioria dos casos, não se presta a atenção devida a esta fase.

De facto, como nos dizem Croce e Jacobson (1986), o treino propriamente de OM deve começar pela consciencialização do acto motor, para que depois passe a uma fase de trabalho de automatismo das técnicas. É a que podemos chamar a 2.ª fase do programa de OM.

A 3.ª fase é posterior à independência. Isto é, quando o DV vai para situações diferentes daquelas em que teve o treino de OM. Deve ser apoiado na integração dessas situações sejam elas de trabalho profissional, de continuação dos estudos ou mesmo de regresso a casa.

Por outro lado, quando tiver passado algum tempo (mais de um ano) sobre a aprendizagem da Orientação e Mobilidade, deve ser feita uma reciclagem, no sentido de actualizar e corrigir aspectos técnicos.

A condição física da pessoa portadora de deficiência visual é fundamental para a aprendizagem da Orientação e Mobilidade e, como é óbvio, para a sua autonomia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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José Alberto Moura e Castro é Professor na Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade do Porto - Portugal.
Fonte:  Educação Física, Orientação e Mobilidade e Deficiência Visual
in Revista Movimento da Escola de Educação Física da Univ. Federal do Rio Grande do Sul,
Ano III N.º 5 1996/2 XII.

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25.Fev.2011
publicado por MJA