

Neste capítulo, apresento um conjunto de recomendações à inclusão do aluno com
deficiência visual em aulas de física. Elas se fundamentam nas condições de
acessibilidade do discente, isto é, a consideração de sua potencialidade
sensorial mediante as linguagens e contextos geradores de viabilidade
comunicacional. Nesse sentido, as recomendações buscarão contemplar a
deficiência visual como um todo, ou seja, alunos cegos de nascimento, alunos que
perderam a vista ao longo da vida e alunos com baixa visão. As recomendações
apresentadas constituem um corpo de conhecimentos que denominei saberes docentes
para a inclusão do deficiente visual em aulas de física.
Com a identificação de tais saberes, busco, por um lado, responder em parte aos
questionamentos apresentados no Capítulo 1; por outro lado, reconheço que esses
saberes não esgotam as possibilidades de viabilidades para a promoção de
inclusão de discentes com deficiência visual. Ainda, reconheço a relação entre a
promoção de inclusão e o tipo de deficiência e de conteúdo escolar.
Saber sobre a história visual do aluno
O aluno é totalmente cego de nascimento? Perdeu a visão ao longo da vida? Quanto
tempo enxergou? Possui resíduo visual? Esse resíduo pode ser utilizado em sala
de aula? Em que medida pode ser utilizado? Exemplos: (a) se o aluno não nasceu
cego ou possui baixa visão, os significados indissociáveis de representações
visuais lhes são potencialmente comunicáveis; (b) dependendo do resíduo visual
do aluno, registros visuais ampliados podem ser utilizados nos processos de
comunicação; (c) dependendo do resíduo visual do aluno, ele pode observar
visualmente alguns fenômenos físicos (como o entortamento aparente de um lápis
num copo com água) ou registros visuais provenientes de simulações
computacionais, vídeos, esquemas projetados ou desenhados.
Saber identificar a estrutura semântico-sensorial dos significados físicos veiculados.
Esse saber é fundamental e será fragmentado em três outros saberes.
Saber que significados vinculados às representações
visuais sempre poderão ser registrados e vinculados a
outro tipo de percepção (tátil, auditiva etc.)
Esse foi o procedimento adotado pelos licenciandos, já que a grande maioria dos
significados veiculados pelas linguagens geradoras de viabilidades foram
vinculados a representações não visuais. Observem-se os exemplos comentados na
sequência.
Para o caso do eletromagnetismo, como vimos na discussão apresentada no Capítulo
5, não é possível ver, ouvir, tatear, ou seja, estabelecer uma observação
empírica direta dos campos elétrico ou magnético, de partículas atômicas ou
subatômicas, das cargas elétricas associadas a tais partículas, do fenômeno da
corrente elétrica etc. Ideias como as de linha de campo e linha de força foram
criadas como um artifício representativo para se criar conhecimentos de algo que
não pode ser visto. Significados como os descritos foram responsáveis por 98%
das dificuldades comunicacionais identificadas nas atividades de
eletromagnetismo. Em outras palavras, as representações externas de construtos
abstratos, na maioria das vezes, se dão por meio de registros visuais
apresentados em livros, projeções, desenhos na lousa. Dessa forma, a dificuldade
comunicacional de tais significados aos alunos com deficiência visual reside na
vinculação mencionada. Superar tal dificuldade encontra-se diretamente
relacionada à ação de vincular esses significados às representações não visuais.
A veiculação mencionada apoiou-se em maquetes e equipamentos multissensoriais e
em procedimentos docentes comunicacionais de condução das mãos do discente cego
pelo material/equipamento. Tal viabilidade mostrou-se significativa, pois
registros dos efeitos dos fenômenos eletromagnéticos são frequentemente tornados
visíveis por meio da vinculação ao referencial visual. Quando desvinculados de
tal referencial, alunos com deficiência visual passam a ter acesso a eles. Por
isso, a estrutura empírica tátil-auditiva interdependente esteve frequentemente
relacionada aos significados vinculados às representações não visuais,
mostrando-se adequada ao processo de comunicação desses significados ao discente
cego.
Para o caso da óptica, é conveniente considerar que, como campo de conhecimento,
ela participa de um contexto mais amplo, ou seja, o da ondulatória, e
representa, nesse contexto, uma pequena faixa do espectro eletromagnético. A luz
enfocada nessa perspectiva não depende de significados indissociáveis de
representações visuais, e sim do entendimento de comportamentos geométricos
tridimensionais de campos elétricos e magnéticos não visíveis diretamente. Como
objeto de ensino e compreensão, tais comportamentos são tornados visíveis por
meio de significados vinculados às representações visuais, originando, dessa
forma, boa parte das dificuldades comunicacionais entre vidente e deficiente
visual.
A reflexão exposta também se aplica à compreensão da luz enquanto constituída
por fótons. Tais partículas, por não serem observadas visualmente, também são
desprovidas de significados indissociáveis de representações visuais. Ocorre
que, para tornarem-se mentalmente representáveis, compreensíveis, muitos dos
significados ópticos são visualmente registrados ou esquematizados. Essa ação é
transportada à esfera educacional, de tal forma que os registros e esquemas
visuais atuam como a base conceitual desses significados. Em geral, uma pessoa
se convence que conhece um determinado fenômeno óptico quando constrói
representações mentais visuais desse fenômeno.
Esse fato, como indica Masini (1994), denota a influência da “cultura de
videntes” no âmbito educacional e reflete a crença na objetividade da visão.
Para o caso do grupo de termologia, os significados que representaram
dificuldade comunicacionais foram vinculados às representações visuais: esses
significados foram responsáveis por 90% das dificuldades comunicacionais. Em
outras palavras, na maioria das vezes, as representações externas dos
significados de termologia implicadoras de dificuldades se deram por meio de
registros visuais apresentados em projeções, desenhos na lousa e observação
visual de experimentos.
Saber que significados indissociáveis de
representações não visuais, de relacionabilidade
sensorial secundária e sem relação sensorial
não necessitam de referencial visual para serem
compreendidos
Para o grupo de termologia, verifiquei significativa relação entre viabilidades
de comunicação e linguagens de estrutura semântico-sensorial indissociável de representações não visuais (em torno de 55%). Isso
implica dizer que significados de termologia são fortemente relacionáveis às
ideias táteis como quente, frio, calor, sensação térmica.
Tais ideias são potencialmente acessíveis para alunos cegos ou com baixa visão,
ficando condicionado a acessibilidade à estrutura empírica da linguagem a ser
empregada.
Para o grupo de eletromagnetismo, a veiculação dos significados de
relacionabilidade sensorial secundária também se mostrou frequente.
Tais significados, veiculados predominantemente por linguagens de estruturas
empíricas fundamental auditiva e auditiva e visual independentes, deram conta de
enfocar conteúdos factuais (Zabala, 1998), ou seja, elementos históricos
ilustrativos e aspectos filosóficos sobre o eletromagnetismo. Esses significados
mostram-se amplamente acessíveis a discentes cegos ou com baixa visão, já que
não exigem representações visuais para o pleno entendimento. Representações
distintas da mencionada dão conta de significar o conteúdo abordado.
Assim, aulas expositivas com ou sem o apoio de recursos instrucionais visuais
representaram viabilidade do ponto de vista da comunicação dos mencionados
conteúdos.
Saber que existem fenômenos físicos que não podem
ser observados empiricamente, e que, nesse caso,
a visão ou qualquer outro sentido não contribui à
compreensão deles
Destaco aqui os significados sensorialmente não relacionáveis (campo elétrico,
magnético, energia, carga elétrica, massa, tempo etc.). Nesse contexto, é
importante diferenciar significados inerentes aos efeitos produzidos pelos
campos elétrico e magnético dos significados intrín-secos a esses fenômenos. Os
efeitos produzidos pelos campos podem ser externa e internamente representados,
ao passo que não é possível observar campos elétricos ou magnéticos. A ideia de
campo atua como um construto hipotético para explicar a ação a distância.
Qualquer tentativa de representá-lo em forma perceptual sempre será uma
tentativa incompleta. Sob esse aspecto, alunos com e sem deficiência visual
encontram-se em situação igualitária em relação às possibilidades de
entendimento. Trata-se do abstrato, em que representações não corres-pondem à
ideia central. Entretanto, registros e esquematizações visuais são produzidos
para efeito instrucional e de conhecimento. A alternativa, em relação aos alunos
com deficiência visual, é buscar registros e esquematizações não visuais a eles
acessíveis.
Observe-se o exemplo:
-
a noção de campo, para quem nunca teve contato
com isto, é mais fácil fazer por analogia, por exemplo, você chega numa sala e
sabe que tem um perfume pelo cheiro, sabe que alguém está usando o perfume ou
existe um frasco de perfume aberto, você não precisa enxergar ele, não precisa
pegar ele, você sentiu o cheiro já sabe que tem alguma coisa ali que está
exalando aquilo lá.
Nessa declaração, um dos licenciandos do grupo de eletromagnetismo estabeleceu
analogia entre a ideia de campo e a percepção olfativa (perfume exalado de uma
pessoa ou frasco). Tal analogia mostrou-se eficaz para a veiculação e o
entendimento de propriedades inerentes ao campo (elétrico ou magnético).
Contudo, é apenas uma analogia, não pode ser levada “ao pé da letra”, exibe
aspectos positivos e negativos ao ensino. Saber abordar tais aspectos deve fazer
parte do repertório de saberes docentes de um professor de física.
Saber abordar os múltiplos significados de um fenômeno físico
Em particular, esse saber é fundamental ao contexto dos fenômenos de
significados indissociáveis de representações visuais e dos alunos cegos de
nascimento. Se o aluno é cego de nascimento, é preciso reconhecer que
significados indissociáveis de representações visuais não lhes podem ser
comunicados. Para ajudar a argumentação referente a possíveis alternativas de
superação de dificuldades provenientes desse perfil semântico-sensorial, indico
um axioma atribuído aos significados físicos:
Todo fenômeno, em relação aos parâmetros sensorial, social ou abstrato, pode
possuir múltiplos significados.
Tomemos como exemplo a cor branca. Do ponto de vista social, essa cor possui
significado relacionado à paz. Esse significado não depende de representações
mentais sensoriais para seu entendimento. Ele pode também ser entendido em razão
de uma representação mental visual, ou seja, relacionar a palavra “branca” a uma
representação mental visual de branco (como pensar numa camisa branca). Do ponto
de vista da óptica, o branco pode ser entendido como a sobreposição das cores
aditivas primárias que compõem o espectro visível da luz. Esse entendimento não
depende necessariamente de representações mentais sensoriais de natureza
exclusiva.
Para um melhor entendimento do axioma exposto, trago uma analogia (*) entre o ele e
a ideia de sobreposição de cores de luz.
-
(*) A analogia apresentada foi proposta inicialmente pelo aluno Ricardo Aparecido
Avante do curso de licenciatura em Física da Unesp de Ilha Solteira. Tal
proposta ocorreu no dia 17 de março de 2012, durante um debate na disciplina
“Atividades experimentais multissensoriais de ciências” sobre o tema do efeito
das percepções sensoriais no conhecimento de fenômenos científicos. Depois,
adaptei a analogia às teorias de Leontiev e Vigotski.
Considerem-se três círculos com as cores aditivas primárias de luz, ou seja,
vermelho, verde e azul, se sobrepondo em determinadas regiões, como mostra a
Figura abaixo.
Figura A – Analogia para o sujeito vidente entre o axioma dos significados
físicos e os círculos de cores primárias de luz.

Como mostra a Figura, a sobreposição das cores vermelho e azul produz o
magenta; a sobreposição das cores vermelho e verde produz o amarelo; a
sobreposição das cores azul e verde produz o ciano; e a sobreposição das três
cores produz o branco (Hewitt, 2002).
A analogia é a seguinte. Os círculos em conjunto representam o entendimento
global do fenômeno. O vermelho representa o significado indissociável de
representação visual; o verde representa um significado de relacionabilidade
sensorial secundária (por exemplo, um certo fato histórico); e o azul, um
significado sem relação sensorial (por exemplo, um conceito abstrato). A
sobreposição das cores representa a relação entre esses significados e a
estruturação do entendimento do fenômeno. A analogia indica também o foco
mnemônico que o sujeito do conhecimento pode dar. Assim, ele pode pensar nos
significados isoladamente ou inter-relacioná-los da forma que desejar. Isso
produz a analogia entre significados do fenômeno e as cores complementares
magenta, amarelo e ciano e a cor branca. Note-se que o branco representa o
máximo de sobreposição entre os significados, mas não o único.
Chamo agora a atenção do leitor para o caso de o sujeito do conhecimento ser
totalmente cego de nascimento. Como exemplo, apresento a Figura B.
Figura B – Analogia para o sujeito cego de nascimento entre o axioma dos
significados físicos e os círculos de cores primárias de luz.

Esta Figura mostra que o círculo vermelho foi retirado, uma vez que o sujeito
cego de nascimento não possui representações mentais de significado
indissociável de representações visuais. Ele então constrói significados de
relacionabilidade sensorial secundária e sem relação sensorial, além de
significado relacionado à sobreposição destes últimos.
Leontiev (1988) nos ajuda a entender melhor esse tema. Suas considerações
estão plenamente de acordo com a analogia aqui apresentada.
Ele aponta que: “embora os conceitos e os fenômenos sensíveis estejam
inter-relacionados por seus significados, psicologicamente eles são categorias
diferentes de consciência”. Essa ideia está embasada no conceito de funções
psicofisiológicas, que vêm a ser as funções fisiológicas do organismo. O grupo
inclui as funções sensoriais, as funções mnemônicas e as funções tônicas.
Nenhuma atividade psíquica pode ser executada sem o desenvolvimento dessas
funções que constituem a base dos correspondentes fenômenos subjetivos de
consciência, isto é, sensações, experiências emocionais, fenômenos sensoriais e
a me-mória, que formam a “matéria subjetiva”, por assim dizer, a riqueza
sensível, o policromismo e a plasticidade da representação do mundo na
consciência humana.
A partir disso, conclui Leontiev (1988) que:
-
[...] se mentalmente excluirmos a função das cores, a imagem da realidade em
nossa consciência adquirirá a palidez de uma fotografia branca e preta.
Se bloquearmos a audição, nosso quadro do mundo será tão pobre quanto um filme
mudo comparado com o sonoro. Todavia, uma pessoa cega pode tornar-se cientista e
criar uma nova teoria, mais perfeita, sobre a natureza da luz, embora a
experiência sensível que ela possa ter da luz seja tão pequena quanto aquela que
uma pessoa comum tem da velocidade da luz.
É importante destacar também que a audição e o tato não substituem a vista como
afirmava a hipótese biológica do século XVIII sobre a cegueira nativa (Vigotski,
1997). Em outras palavras, ouvir e tatear nunca farão o cego ver. O cego somente
sabe que não enxerga em razão dos conflitos sociais que enfrenta numa sociedade
majoritariamente formada por pessoas videntes. Segundo tal hipótese, assim como
ocorre a substituição nos casos dos órgãos pares rins e pulmões, ou seja, quando
um deles não funciona o outro exerce suas funções, ocorreria para a ausência de
visão. Vigotski trata o tema em outra perspectiva, propondo que aquilo que
ocorre no cego é a supercompensação, isto é, para a superação dos conflitos
sociais gerados pela cegueira, todo o aparato psíquico e os sentidos
remanescentes se articulariam, não para subistituírem a vista, mas para adequar
o meio físico e social às condições do sujeito. Em outras palavras, funções
psicológicas como a atenção e a memória se concentrariam nas percepções não
visuais, o que resultaria num sujeito mais atento auditiva e tatilmente se
comparado a um sujeito vidente. Isso não implica dizer que pessoas que enxergam
não possam se desenvolver auditiva e tatilmente. Podem e devem. A escola deve
ser um lugar para tal desenvolvimento (Soler, 1999).
Volto agora às Figuras A e B para fazer outra analogia. Considere-se na
Figura A que o círculo vermelho representa significado visual; o verde,
significado auditivo; e o azul, significado tátil acerca do mesmo fenômeno
físico. Vale aqui a analogia anterior sobre a sobreposição dos significados,
inclusive considerando o significado resultante da sobreposição das três cores
como o mais completo.
Considere-se agora o caso do sujeito cego de nascimento. Para tanto, observe-se
a Figura B. Ela indica, nessa nova analogia, a ausência do significado visual,
mas indica também a ideia de supercompensação de Vigotski. Ao se excluírem as
sobreposições entre as cores dos círculos vermelho e verde e vermelho e azul,
restou apenas uma sobreposição, a dos círculos das cores verde e azul. Se, por
um lado, isso representa uma menor quantidade de sobreposições, e portanto de
significados, por outro, mostra a maior intensidade entre os significados tátil
e visual no entendimento do fenômeno, já que a área de sobreposição deles
aumentou.
Usei aqui exemplos envolvendo as percepções auditiva e tátil; entretanto, o
raciocínio se estende às olfativa e gustativa.
Finalizando, sobre a comunicação de significados indissociáveis de representação
visual para pessoas cegas de nascimento, duas recomendações são importantes: (a)
saber que essas pessoas não construirão tais significados; e (b) por isso, é
necessário enfocar o máximo de significados possíveis ligados ao fenômeno
estudado (significados vinculados às representações não visuais, significados
indissociáveis de representações não visuais, a aspectos sociais, históricos,
tecnológicos etc.).
Saber construir de forma sobreposta registros táteis e visuais de
comportamentos/fenômenos físicos de significados vinculados às representações visuais
É necessário que o docente saiba construir maquetes que descrevam tátil e
visualmente comportamentos físicos como desvio sofrido pela luz no fenômeno da
refração, comportamento dos raios incidente e refletido nos fenômenos da
reflexão regular e difusa, comportamento dos raios incidente e refletido em
espelhos planos, esféricos e em lentes etc. O registro tátil e visual simultâneo
de fenômenos físicos torna-os acessíveis aos alunos cegos e com baixa visão,
além de criar canais de comunicação entre esses alunos, seus colegas videntes e
o docente.
Saber destituir a estrutura empírica audiovisual interdependente
Esse saber é fundamental à criação de canais de comunicação no contexto do
ensino de física e da deficiência visual. Linguagens com essa estrutura empírica
não proporcionam a alunos cegos ou com baixa visão as mínimas condições de
acessibilidade às informações veiculadas. Alunos com deficiência visual
participantes de uma aula em que a presente estrutura empírica é aplicada
encontram-se numa “condição de estrangeiro”, pois recebem códigos auditivos que
por estarem associados aos visuais são desprovidos de significado. Linguagens
com a mencionada estrutura empírica são demasiadamente empregadas nos processos
de veiculação de informações em sala de aula.
A expressão “Condição de estrangeiro” foi criada por mim para caracterizar a
presença de discentes com deficiência visual em sala de aula onde a veiculação
de informações se dá por meio de linguagens de estrutura empírica audiovisual
interdependente. Nesse ambiente social, a condição do discente é semelhante à de
um estrangeiro em um país de língua desconhecida. Por muitas ocasiões, tanto em
aulas quanto em palestras, assumi e assumo essa condição.
Saber trabalhar com linguagem matemática
Esse tema é pouco discutido na perspectiva da deficiência visual, é muito
importante ao ensino de física e representa para discentes cegos ou com baixa
visão uma grande barreira a ser superada. Docentes de física dificilmente sabem
como lidar com esse tipo de situação. O problema envolve a relação triádica raciocínio/registro/observação dos cálculos.
Como o deficiente visual, por utilizar o Braille, não observa simultaneamente o
que escreve, a relação é destituída. Em Braille, a escrita ocorre na parte
oposta do papel. Assim, para observar durante um cálculo aquilo que está
registrando, um deficiente visual precisa retirar o papel da reglete, tatear o
que registrou, voltar o papel à posição anterior e continuar o processo. Isso
descredencia o Braille, em sua forma original, como alternativa para a
realização de procedimentos matemáticos. É preciso o investimento no
desenvolvimento de materiais que proporcionem condições para que esse discente,
de forma simultânea, registre, observe aquilo que registra e raciocine. Um
exemplo de material adequado à realização de cálculos por deficientes visuais é
aquele desenvolvido por Tato (2009). Ele criou um dispositivo tátil (células
táteis) que permite ao discente com deficiência visual a organização e
manipulação de números e variáveis de forma simultânea.
São células com códigos Braille registradas previamente e à disposição do
usuário. Esse, por sua vez, escolhe um conjunto de células de acordo com seu
interesse, organiza-as sobre uma placa metálica e manipula a posição delas. Para
melhor fixação das peças, elas são imantadas.
Saber explorar as potencialidades comunicacionais das linguagens constituídas de
estruturas empíricas de acesso visualmente independente
Na sequência, analiso o potencial comunicativo dessas.
Tátil-auditiva interdependente e tátil e auditiva independentes: possuem grande
potencial comunicativo na medida em que são capazes de veicular significados
vinculados às representações não visuais.
Em outras palavras, utilizando-se de maquetes e de outros materiais possíveis de
serem tocados e observados auditivamente, vinculam-se os significados às
representações tátil e auditiva, e, por meio da estrutura mencionada, esses
significados tornam-se acessíveis aos alunos cegos ou com baixa visão.
Fundamental auditiva e auditiva e visual independentes: essas estruturas possuem
um potencial comunicacional atrelado ao detalhamento das informações veiculadas.
Isso implica dizer que a qualidade da acessibilidade do aluno cego ou com baixa
visão dependerá da intensidade descritiva oral dos significados que se pretendem
comunicar. Descrição oral detalhada de gráficos, de tabelas, comportamento
geométrico de raios e de fenômenos luminosos, passagens matemáticas, são
exemplos do potencial comunicacional dessas estruturas empíricas.
Nesse contexto, a utilização de recursos instrucionais visuais como lousa, data
show, retroprojetor, não é necessariamente inconveniente.
Tais recursos podem ser utilizados em salas de aulas que contenham alunos com
deficiência visual, desde que o elemento “descrição oral detalhada” seja
explorado ao máximo. É importante ressaltar que, na hipótese de a descrição oral
tornar-se insuficiente ou limitada, a introdução de registros e esquemas táteis
será sempre adequada e necessária para a veiculação de informações.
Saber realizar atividades comuns aos alunos com e sem deficiência visual
Uma dificuldade que esteve presente junto à utilização de linguagem
tátil-auditiva interdependente foi a ocorrência de atividades particulares para
o aluno com deficiência visual. A esse perfil educacional, denominei modelo
40+1. Essas atividades foram realizadas simultaneamente à aula ministrada para
todos os alunos e visaram suprir dificuldades oriundas dessas aulas. Em linhas
gerais, um dos licenciandos ministrava a aula, enquanto outros apresentavam
explicações ao aluno B. Na maioria das vezes, essas explicações foram realizadas
com o auxílio de maquetes táteis construídas previamente.
Assim, embora a ocorrência das atividades particulares tenha tido como
justificativa o atendimento adequado de necessidades educacionais, entendo,
pelos motivos na sequência explicitados, que elas representaram dificuldade de
âmbito metodológico para a inclusão do aluno com deficiência visual.
Como, durante a realização das atividades particulares, a aula ministrada para
todos os alunos não previa a realização de atendimentos individualizados, tais
atividades representaram uma diferenciação excludente. Em tais ambientes, os
diálogos entre licenciando e aluno cego ocorriam em voz baixa, fato que
explicita sua característica de incômodo à aula principal. Não se pode negar que
as atividades particulares representaram uma das alternativas encontradas pelos
licenciandos para o acesso do aluno com deficiência visual aos conteúdos
físicos. Todavia, a realização de tais atividades evidencia as dificuldades
enfrentadas por esses alunos na aula ministrada, que deveria, na hipótese de ser
inclusiva, fornecer as condições à participação efetiva de todos.
Nas atividades particulares, temas discutidos, durante a aula, ou não foram
abordados ou foram substituídos, diferenciando-se, portanto, daqueles
trabalhados com os alunos videntes. Também eram enfocados temas abordados
anteriormente nas aulas. Dessa forma, por vezes, assuntos interessantes ao aluno
com deficiência visual não podiam ser por ele acompanhado no momento em que eram
apresentados.
As atividades particulares, portanto, constituíram ambientes separados de ensino
e representam uma dificuldade metodológica a ser superada. Atendimentos
particularizados observados em aulas que previam tal prática junto a todos os
alunos não foram considerados atividades particulares. Isso implica dizer que a
posição que adoto não é contrária à realização de atendimentos particularizados
para quaisquer alunos, e sim, àqueles que representam ambientes separados de
ensino.
Saber promover interação entre discentes com e sem deficiência visual,
utilizando em tal interação os materiais de interfaces tátil-visuais
As atividades devem ser organizadas prioritariamente em razão de contextos
comunicacionais que favoreçam a interatividade entre seus participantes.
Recomendo contextos educacionais interativo/dialógico de forma intercalada ao
interativo/de autoridade, sendo o primeiro reservado a momentos de discussão,
exposição de ideias, de dúvidas etc.; e o segundo, a momentos em que o professor
posiciona o conhecimento científico. A interatividade aproxima o aluno com
deficiência visual de seus colegas videntes e professor, e tal aproximação faz
que esses participantes busquem formas adequadas de comunicação. Não devem ser
descartados os contextos não interativos, que podem ser utilizados como
elementos organizacional e diretivo.
Como elemento organizacional, destaco o contexto não interativo/dialógico, que
favorece ao docente a realização de sínteses das ideias dos alunos, a
constatação de similaridades e diferenças entre as ideias dos discentes etc.
Como elemento diretivo, destaco o contexto não interativo/de autoridade, que
favorece ao docente a apresentação das ideias aceitas cientificamente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste livro, apresentei a importância e a carência de trabalhos que enfoquem
questões inerentes à atuação docente em sala de aula que contemple a presença de
alunos com e sem deficiência visual. Na linha de uma política de educação
inclusiva, essa é a tendência que se mostra atual e definitiva nas escolas
brasileiras. Propus-me então a desenvolver uma investigação que identificasse
saberes docentes necessários para a inclusão dos alunos com deficiência visual
em aulas de física.
Essa investigação teve início em 2005 com o desenvolvimento de um projeto de
pós-doutorado e teve sequência com o desenvolvimento de um plano trienal de
atividades.
Na primeira etapa, identifiquei dificuldades e viabilidades inerentes ao
processo de planejamento de atividades de ensino de física para alunos com e sem
deficiência visual (Camargo, 2006, 2008). A continuidade investigativa
revelou-me saberes necessários para a condução prática de atividades de ensino
de física em ambiente que contemple a presença de alunos cegos e/ou com baixa
visão.
Verifiquei que a comunicação desenvolvida em sala de aula possui potencial
significativo para a participação efetiva de discentes com deficiência visual em
aulas de física. Uma comunicação adequada contribui à inclusão, enquanto uma
inadequada pode deixar os referidos discentes de fora de situações de
ensino/aprendizagem. Outra variável central refere-se aos contextos discursivos
das aulas. Contextos interativos mostraram-se mais adequados para a promoção de
participação efetiva de discentes com deficiência visual, ao mesmo tempo que os
não interativos, se enfocados adequadamente, podem favorecer processos diretivos
necessários à apresentação de conteúdos e fenômenos físicos.
Dificuldades relacionadas à operação matemática também se mostraram presentes.
Esse tema, por sinal, constitui grande preocupação por parte dos docentes que
ministram física em ambiente que contempla a presença de discentes cegos ou com
baixa visão. Como mostrei, o Braille, em sua forma tradicional, não contribui
para a resolução de cálculos pelos deficientes visuais, pois sua sistemática
impede a constituição de referenciais mnemônicos necessários durante os
procedimentos de resolução de equações. Isso não significa que discentes cegos
ou com baixa visão devem ser privados da resolução de problemas físicos que
envolvem matemática. É necessário o investimento em pesquisas que revelem
possibilidades de esse discente possuir os referenciais mnemônicos. A pesquisa
de Tato (2009) é um bom exemplo disso. Esse, portanto, é um tema diretamente
relacionado com a ideia de inclusão, ou seja, aquela que coloca em movimento os
ambientes sociais exigindo que esses se mobilizem no sentido da adequação à
diversidade.
-
O procedimento investigativo ocorreu de acordo com quatro etapas básicas:
-
(a)
elaboração de planos de ensino de física;
(b) aplicação prática desses planos;
(c) processo de organização dos dados constituídos;
(d)
análise dos dados por meio de critérios de análise de conteúdo.
Conjuntamente ao processo analítico, procurei fundamentar teoricamente a
investigação, ou seja, apresentei e discuti a ideia de saber docente. Tal
fundamentação apoiou-se no trabalho de Carvalho e Gil-Peres (1994). Dessa forma,
busquei agregar os saberes identificados à lista apresentada pelos autores
mencionados. Não fiz isso com o entendimento de que tais saberes constituem um
corpo fechado e definitivo de conhecimentos, e sim com a perspectiva de
contribuir para a prática de sala de aula e de abrir uma nova discussão sobre o
ensino de física, isto é, aquela relacionada à influência das percepções
sensoriais nos significados de fenômenos e ideias físicas.
Nesse sentido, gostaria de enfatizar positivamente a questão da deficiência
visual destacando sua contribuição ao ensino de física de todos os alunos. Dito
de outro modo, a ausência de visão mostra que existem significados físicos cuja
representação visual não ajuda em nada para sua compreensão, podendo, ainda,
dificultar ou mesmo impedir seu entendimento. Além disso, busquei desmistificar
o ensino de óptica, mostrando que muitos de seus significados não são
indissociáveis de representações visuais, e, portanto, mostram-se plenamente
acessíveis aos discentes cegos.
Para finalizar, gostaria de deixar uma lista de questões não respondidas e que
podem motivar futuras investigações sobre a temática do ensino de física e da
deficiência visual.
-
Qual é a relação entre conteúdo físico e os padrões discursivos?
-
Ou seja, que conteúdos devem ser abordados de acordo com padrões interativos
e/ou dialógico e quais devem receber um enfoque mais diretivo?
-
Quais são os significados físicos que podem ser considerados indissociáveis de
determinada percepção e quais são os que podem ser entendidos como vinculados?
-
Que características devem possuir as simulações computacionais ou os softwares
destinados ao ensino de física de alunos com e sem deficiência visual?
-
São os programas de interface auditiva Dosvox, Virtual Vision e Jaws úteis como
referenciais mnemônicos para a resolução de problemas físicos que envolvem
cálculos?
-
Deve o docente de física saber o Braille ou esse conhecimento deve ser
exclusividade do docente da sala de apoio?
-
De que maneira deve se dar o ensino das cores para alunos totalmente cegos de
nascimento?
Espero ter contribuído com o ensino de física dos alunos com e sem deficiência
visual. Espero também ter apresentado um conjunto de novas questões que indiquem
o caminho para a promoção de inclusão dos alunos com deficiência visual nas
aulas de física. Espero, ainda, que alguns dos saberes aqui indicados
(especificamente aqueles ligados à comunicação) sejam úteis para outras
disciplinas do currículo.
FIM
ϟ
DISCUSSÃO DOS SABERES DOCENTES PARA
A INCLUSÃO DO ALUNO COM DEFICIÊNCIA
VISUAL EM AULAS DE FÍSICA
-Cap. 9-
in Saberes docentes para a inclusão do aluno com deficiência visual em aulas
de Física
autor: Eder Pires de Camargo.
São Paulo: Editora Unesp, 2012.
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