Os
Olhos de Lucy - Paula Rego, 2007
Aspectos Cognitivos da Criança Cega
As pesquisas demonstram, a partir dos estudos de Piaget, que a função cognitiva
de crianças com deficiência visual desenvolve-se bem mais
lentamente, comparando-se com o desenvolvimento de crianças videntes.
Assim, é normal verificar-se alguma falha de desenvolvimento entre os
aspectos operacional e simbólico do seu pensamento. Isso traz como
consequência mais grave a dificuldade de formulação dos conceitos.
As pesquisas enfatizam a necessidade de as crianças terem experiências físicas e
diretas com objetos reais e interação verbal com
adultos e com crianças membros do seu próprio grupo, para aprender
sobre o mundo que as rodeia.
A obra de Piaget oferece à educação de crianças cegas uma base
de referência para o entendimento das manifestações comportamentais
e do funcionamento cognitivo. Os estudos sobre o desempenho do pensamento ajudam
a compreender o potencial intelectual de crianças cegas
e a analisar as estruturas e os processos de pensamento pré-operacional
e operacional. Afirma Luhelder (1966) “Uma operação é definida como
uma ação capaz de ocorrer internamente, e da qual, segundo Piaget, a
característica essencial é a reversibilidade."
Isso serve de dado para que se possa diferenciar mais facilmente entre o
potencial intelectual e certas deficiências na imagem mental
simbólica. Estudos nesse campo parecem indicar que crianças cegas
sofrem um atraso no seu desenvolvimento, isto é, há uma comprovada
lentidão na velocidade do desenvolvimento por meio dos diferentes estágios
evolutivos. Dessa forma, pode abrir-se uma lacuna do desenvolvimento entre o
aspecto operativo e figurativo do pensamento.
O conhecimento dos atrasos, das falhas cognitivas, das dificuldades de formar
conceitos simbólicos leva os professores a compreender
como se dá o processo de aprendizagem da maioria das crianças cegas
e as deficiências que nele se verificam.
Entretanto, esse padrão de desenvolvimento pode ser alterado;
quando bem estimuladas, crianças cegas podem ter um desenvolvimento bastante
satisfatório. A criança com deficiência visual, principalmente a totalmente
cega, apresenta necessidades especiais no decurso dos
estágios cognitivos do desenvolvimento intelectual.
Para os professores alfabetizadores, é de grande importância a
interpretação correta das pesquisas de Piaget. Tendo-as como base do
seu trabalho, elas puderam assumir perante o alfabetizando uma postura
pedagógica coerente e realmente voltada para o seu crescimento global.
Assim, as ações pedagógicas precisam compatibilizar-se com essa visão mais ampla
e aberta da educação que deve favorecer o verdadeiro
desenvolvimento da criança cega.
Sabe-se que Piaget não se envolveu em pesquisas ligadas à educação, nem sequer
dirigiu seus estudos para grupos de crianças com
necessidades educativas especiais. Todavia, outros pesquisadores vêm
investigando os aspectos cognitivos de crianças cegas ou com baixa
visão. São experiências ainda insuficientes, mas que, até certo ponto,
servem como apoio às diretrizes traçadas pelos educadores.
O resultado de muitas pesquisas apontam que crianças cegas possuem algum atraso
nas etapas do seu desenvolvimento ou têm falhas
simbólicas. Ainda hoje, são poucas e ineficazes as recomendações que
poderiam remediá-lo. Os estudos de Piaget são uma grande contribuição, mas, se
tomados literalmente, não oferecem aos professores de
classes de educandos cegos informações precisas e definitivas quanto
ao assunto. Faz-se necessário, dessa maneira, que a educação desenvolva seus
próprios fundamentos e que busque, nas descobertas relevantes
das pesquisas concernentes ao desenvolvimento cognitivo e na psicologia da
aprendizagem, os princípios que possam norteá-la.
Para que a educação de crianças cegas tenha o resultado desejado, é
indispensável que se conheça os efeitos trazidos pela limitação
imposta pela cegueira e pela baixa visão. Os atrasos do desenvolvimento
intelectual, segundo Tobin (1972), relacionam-se com as poucas
experiências de aprendizagem e de interação com o meio ambiente.
Já Cromer, em trabalho publicado em 1973, confirma que não
encontrou nenhuma diferença significativa no conceito de conservação
entre cegos e videntes no uso da dimensão do raciocínio. Diz ele: “A
realização de conservação total pode ser atrasada para os cegos devido
ao empobrecimento de esquemas perceptuais."
É preciso esclarecer que o atraso revelado no desenvolvimento
cognitivo de crianças cegas é provocado pela falta de oportunidades
de aprender naturalmente sobre as coisas. O que deve estar presente na meta de
trabalho daqueles que educam crianças cegas é que essa criança tem um ritmo
próprio, característica inerente da cegueira, a lentidão.
O Desenvolvimento Cognitivo de Crianças Cegas
Dentro dos estágios de evolução mental da criança cega, alguns
aspectos importantes precisam ser estudados. A comparação entre ela e
uma criança vidente é importante para que se tenha a dimensão exata
dos procedimentos que se deve e se pode adotar.
A maturação é relacionada ao crescimento físico e ao amadurecimento do sistema
nervoso central. Ela representa um fator preponderante
no decurso de todo o desenvolvimento mental estando intimamente ligada
às ações e às experiências vividas pelas crianças. Certos comportamentos
dependem, entretanto, de um funcionamento de estruturas específicas.
A coordenação olho-mão ocorre mais ou menos aos quatro meses
e meio de idade. O bebê cego não tem a coordenação ouvido-mão antes
dos dez-onze meses.
Os bebês cegos, em geral, têm um comportamento típico até os
seis meses: eles mantêm as mãos fortemente fechadas na altura do ombro, numa
postura neonatal. Essa posição dificulta a criança a interagir
com as pessoas e a encontrar os objetos. A movimentação simultânea
dos dedos, já encontrada em bebês videntes com dezesseis semanas,
requer o recurso da visão praticada e repetida de forma agradável. Com
a ausência da visão, como elemento organizador do ajuste entre as mãos
na linha média do corpo e sem a ajuda dos pais, as mãos do bebê totalmente cego
podem nunca se unir. É a sequência maturacional que leva
ao uso coordenado das mãos; faltando estimulação, a reciprocidade de
movimentos entre elas pode ser impedida ou retardada.
A aprendizagem é o segundo fator do desenvolvimento mental a
ser analisado. A aprendizagem resulta das experiências vividas e da formulação
de conceitos provindos de ações realizadas sobre os objetos.
Piaget fala a respeito de dois tipos de experiências de aprendizagem:
-
Experiência Física: consiste na ação sobre os objetos de forma
a abstrair suas propriedades.
-
Experiências Lógico-matemáticas: consistem na ação sobre
objetos de forma a aprender o resultado das ações.
Explicam Piaget e Luhelder (1969)
-
“Os conceitos lógico-matemáticos pressupõem um conjunto de operações que são
abstraídos não dos
objetos percebidos mas das ações realizadas com esses
objetos, o que de forma alguma é o mesmo."
A aprendizagem, tanto física como lógico-matemática, pode ser
seriamente afetada se não houver intervenção, o mais cedo possível, da
estimulação precoce, desde o período sensório-motor no processo de
desenvolvimento de crianças cegas.
Os estudos de Fraiberg (1966-1969) mostram que os bebês cegos, apropriadamente
estimulados aos cincos meses de idade, agarrarão
objetos com os quais têm contato; fazem tentativas de movimentos e
exploram a superfície de uma mesa.
Por outro lado, um bebê cego mentalmente sadio, mas que foi
privado da estimulação tátil e de experiências de agarrar objetos, tinha
as mãos fracas e os dedos não eram utilizados para o uso exploratório
das coisas. As mãos da criança cega precisam ser trabalhadas e os
dedos, alongados para que possam sustentar o corpo no momento em
que o bebê começa a engatinhar. Existe um atraso sensível na hora em
que a criança vai subir e descer, e andar independentemente. Fraiberg
diz que esse atraso é devido à ausência de estímulos, recursos esses
trazidos pela visão.
Quando a criança cega começa a reagir às pistas sonoras sozinha,
ela será impelida a ir adiante, por iniciativa própria. Nesse momento,
ela deve desenvolver o conceito da permanência do objeto.
Com a ausência da visão, é preciso um incentivo para que o bebê
sustente a cabeça erguida. Tanto o controle da cabeça, quanto o do tronco são
pré-requisitos para a futura locomoção. A criança que não está
fisicamente madura irá atrasar-se na locomoção e no ato de agarrar e
manipular as coisas com as mãos; por isso, perderá o número significativo de
experiências necessárias para desenvolver: conhecimento físico
(conhecimento das propriedades dos objetos) e conhecimento lógicomatemático
(conhecimento das funções e dos significados dos objetos).
Não é de estranhar, portanto, que uma criança cega apresente atrasos
no desenvolvimento cognitivo ao longo do processo da aprendizagem.
A educação social pode ser apontada como um terceiro fator do
desenvolvimento onde se incluem a linguagem e a interação social.
Desde o início, a criança cega é muito mais dependente da presença materna do
que a criança vidente para estimular o contato social.
Tem sido demonstrado, por meio de crianças que enxergam, que o desenvolvimento
do conceito da permanência do objeto é influenciado
pela qualidade da interação mãe-criança. Entende-se, assim, que uma
criança cega sairá prejudicada se a mãe não estiver envolvida num programa bem
dirigido de estimulação do seu bebê.
A transmissão social depende da habilidade da criança de operar
efetivamente durante o contato social. A criança cega que está matriculada em
programas educacionais precisa passar por uma interação
intensa e ativa e participar de todas as atividades dentro e fora da classe.
A ação social é ineficaz sem uma assimilação real por parte da criança,
pois que essa assimilação pressupõe estruturas operacionais.
Outro problema importante é ter-se a compreensão de que a
privação da visão afeta a aprendizagem imitativa. A criança cega
não imita expressões, gestos, movimentos, comportamentos etc.
Por isso, pessoas cegas mostram menos expressões faciais e menos
padrões de gestos.
A maturação, a aprendizagem e a educação social interagem no
desenvolvimento do pensamento e da cognição dos indivíduos. Ensina
Piaget (1969): “No desenvolvimento da criança não há nenhum plano
pré-estabelecido, mas uma evolução gradual na qual cada inovação depende de uma
anterior."
A equilibração, como quarto fator de desenvolvimento mental,
é a chave para a compreensão de efeitos cumulativos dos três fatores
precedentes.
Equilibração: um mecanismo autorregulador do desenvolvimento mental, que resulta
de uma série de compensações por parte do
aprendiz ao responder aos estímulos externos. O ajustamento resultante
está apoiado num aprendizado prévio sobre um tipo de sistema circular
e sobre fatores afetivos antecipatórios, com a motivação e os valores.
Esses dois aspectos – o afetivo e o cognitivo – são inseparáveis
dentro do conceito de equilibração, porque depende de uma maturação
prévia da aprendizagem e da educação social.
O que se pode depreender dos dados levantados a partir das pesquisas realizadas
é que o desenvolvimento cognitivo de crianças cegas
será determinado pelo volume e pela qualidade das experiências a que
elas forem submetidas.
O mundo de uma criança cega não tem cor, não tem formas,
não tem dimensões. Pessoas e objetos são amorfos; ela mesma, nos
primeiros tempos de vida, não tem um significado real.
É imprescindível apreender-se tal realidade. Considerando-se
esse problema, faz-se importante submeter o bebê cego a um programa correto de
estimulação precoce ao desenvolvimento. A família
precisa estar presente nesse processo e saber qual a responsabilidade
que lhe cabe.
A presença física, o contato com pessoas e a afetividade são os
elementos básicos para que se estabeleça uma ligação significativa entre a
criança cega e o mundo. Se, para uma criança vidente, tais procedimentos se
colocam numa linha prioritária de conduta, muito mais
profundos devem ser os cuidados a serem adotados em relação ao desenvolvimento
de uma criança cega.
Diz-se que a visão passa cerca de 80% a 85% das informações
recebidas por uma pessoa. Conclui-se, assim, que poderá ocorrer
uma enorme perda na aquisição de conhecimento de uma pessoa
cega. Partindo dessa constatação, buscam-se instrumentos capazes
de minimizar tantos fatores adversos. Os chamados – “sentidos remanescentes”
precisam ser trabalhados criteriosamente: audição,
tato, olfato e paladar propiciarão à criança cega descobrir as coisas,
conhecer as pessoas e os objetos, perceber semelhanças e diferenças,
estabelecer relações, identificar e conferir atributos, transferir
características, adquirir hábitos, desenvolver habilidades e comportamentos,
apurar gostos, conceber juízos.
O aprendizado é longo e árduo e tem de começar logo após o
nascimento.
O corpo do bebê cego é o seu primeiro ponto de referência quanto ao mundo
externo. São recomendáveis exercícios e massagens que
favorecem movimentos, ajustam e melhoram jogos articulatórios, fortalecendo a
massa muscular. Evitam-se, assim, dois problemas: a hipotonia (flacidez dos
músculos) e a hipertonia (rigidez dos músculos).
A criança poderá pegar e puxar objetos, manter a cabeça erguida
fazendo movimentos de rotação, para frente e para trás, dobrar o tronco,
virá-lo para a esquerda e depois para a direita, ficar de pé, andar.
Desde o início, o bebê deve ser levado a manusear tudo que o cerca. O rosto da
mãe, o berço, os objetos de seu uso diário, brinquedos etc.
Todos os acontecimentos cotidianos podem transformar-se em
situações de aprendizagem. O banho, as refeições, a hora do passeio ao
sol. A criança precisa entrar em contato direto com as coisas e com as
pessoas. Entretanto, esses contatos devem ser prazerosos: vozes carinhosas,
gestos delicados, objetos pequenos e de material agradável ao
tato para que o bebê possa pegar e manipular.
Esse procedimento visa a fortificar dois compartimentos importantes: o corpo e o
lado emocional. Uma criança que passa por experiências dessa natureza tem um
desempenho motor satisfatório, amadurece condutas mais facilmente, não
internaliza medos exagerados.
A soma dessas atitudes permite à criança fazer-se mais independente. É o momento
em que deve ser levada a locomover-se sozinha.
Nessa fase, as pistas sonoras, os odores são muito importantes. A criança tem de
ser incentivada a explorar o ambiente em que vive, o quarto
onde dorme, a sala, os arredores da casa, ela deve sentir-se capaz de
descobrir coisas, mesmo estando acompanhada de alguém.
O reconhecimento do espaço é fundamental para seu ajustamento.
A curiosidade é um elemento instigador. O conhecimento implica vivência.
Conhecer é saber, quem não sabe, não busca, quem não
busca não sabe. A criança tem de ser estimulada a buscar para conhecer.
A uma criança cega, ensina-se tudo. Educá-la é tirá-la do vácuo, do
desconhecido, é trazer-lhe um mundo concretizando ideias, corporificando
palavras, dando significado real a coisas e a fatos.
Os primeiros anos são decisivos na vida de uma pessoa cega.
Bem desenvolvidas as áreas psicomotora, cognitiva, social e afetiva,
esse indivíduo desenvolverá, certamente, o intelecto, tornar-se-á um ser
social, adquirirá autonomia, formará uma identidade própria.
Os educadores, no entanto, não podem perder de vista que o cego
é um ser cognocente como qualquer outra criança. Nele armazenam-se
potencialidades, vias de aprendizagem, capacidades a serem descobertas,
portanto, existe uma inteligência.
Faltando-lhe a visão, falta-lhe a condição para imitar. É inegável
que a imitação é um poderoso agente do conhecimento. Por isso, e não
por qualquer outra razão, afirma-se tudo o que foi dito.
O período da pré-escola deve reservar para essa criança uma participação efetiva
no processo de seu aprendizado. A criança cega só aprende
quando experimenta, quando atua sobre as coisas. Agindo, ela percebe, toma
consciência, constrói um dado verdadeiro. Ninguém aprende sem estar motivado. A
motivação está intimamente ligada ao interesse. É de suma importância despertar
na criança o desejo da procura, a escolha do brinquedo, a
vontade de libertar-se. Estando livre, a criança cresce e expressa sentimentos,
principia a usar a linguagem com a intenção definida de atingir um objetivo,
exprimir necessidades e emoções. Aí o pensamento começa a organizar-se.
Nessa fase, é necessário que se estimule a criança a ouvir atentamente o que se
fala. Assim, ela determinará diferenças de som, diferentes registros
linguísticos. É importante fazê-la perceber a própria fala e
a maneira como articula os fonemas.
As experiências oferecidas à criança precisam ser concretas e estar dentro do
nível de sua compreensão. Um dos problemas mais sérios
enfrentados por pessoas cegas é o verbalismo.
O verbalismo é a forma de a pessoa comunicar algo que desconhece. Ela repete o
que outros disseram, o que sua imaginação fabulou, o que sua fantasia necessita
suprir. Por essa razão, é indispensável
trabalhar na criança a coerência, o senso da verdade, o objeto real.
A aquisição do conhecimento, como se vê, levanta vários aspectos e
exige estudos em diversas áreas.
O homem forma um conjunto de vários aprendizados. Todavia,
esse conjunto tem de formar um todo harmonioso. Compatibilizar as
partes do todo é tarefa bastante difícil. A educação precisa encarregar-se
de promover a ligação entre essas partes.
É comum ver-se crianças cegas chegarem ao período da alfabetização como pessoas
fragmentadas. Algumas apresentam a área motora bem
desenvolvida, mas as áreas cognitiva e afetiva lesadas. Outras têm a área
cognitiva em padrões desejáveis, mas demonstram retardo social, deficiências
motoras etc. Aparecem aí as falhas na construção do conhecimento.
É preciso que o alfabetizador entenda a sua posição de orientador
na correção ou na diminuição dessas falhas.
FIM
ϟ
Desenvolvimento Cognitivo da Criança
Cega
excerto da obra:
'A Importância da Literatura como Elemento de Construção do Imaginário da Criança com Deficiência Visual'
autora: Maria da Glória de Souza Almeida
Instituto Benjamin Constant
Rio de Janeiro, 2014
fonte pdf do excerto: http://www.ibc.gov.br/
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