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 Sobre a Deficiência Visual

As Relações entre Deficiência Visual Congénita, Condutas do Espectro do Autismo e  Estilo Materno de Interacção

Ana Delias de Sousa

-excerto-


Menina cega pede esmola em San Cristobal De Las Casas - foto MJA, 2007

 

1. Deficiência Visual Congénita
2. Condutas do Espectro do Autismo
2.1. Interação social
2.2. Linguagem e brinquedo imaginativo
2.3. Comportamento e interesses restritivos/repetitivos
2.4. Outros comprometimentos
3. Condutas do Espectro do Autismo em Crianças com Deficiência Visual Congénita
4. Interação Social Cuidador-criança e Deficiência Visual Congénita

 

1. Deficiência Visual Congênita

A compreensão do conceito de deficiência visual vincula-se à própria definição do termo “deficiência”. Amaral (1996), ao revisar algumas diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS), concluiu que há um salto qualitativo na definição desse conceito, devido ao seu desmembramento em três subconceitos: deficiência (impairment), incapacidade (disability) e desvantagem (handicap). Segundo a autora, deficiência refere-se a uma perda ou anormalidade de estrutura ou função; incapacidade, à restrição de atividades em decorrência de uma deficiência; e desvantagem, à condição social de prejuízo resultante de deficiência e/ou incapacidade. Sendo assim, a deficiência pode ser pensada como um fenômeno global, distribuído em dois subfenômenos: deficiência primária, que engloba os subconceitos de “deficiência” e “incapacidade”, e deficiência secundária, relacionada ao subconceito de “desvantagem”. A autora reconhece os impedimentos e disfunções de origem orgânica, mas sustenta que as alterações no processo de desenvolvimento se devem, principalmente, aos preconceitos, aos estereótipos e aos estigmas, enfim, aos fenômenos psicossociais relacionados à questão da deficiência.

Deficiência visual é um termo que designa impedimentos de origem orgânica, relacionados a patologias oculares, que podem levar a um mau funcionamento visual ou à ausência de visão (Batista & Enumo, 2000). Para os autores, são raros os casos de cegueira total, em que uma pessoa não apresenta nenhum tipo de reação à luz.

No que diz respeito à prevalência dessa condição, a OMS estimou que, na década de 1990, havia no mundo pelo menos 38 milhões de pessoas sob essa condição (WHO, 1992). Isso significa que cerca de 1% da população mundial apresentava algum grau dessa deficiência. No entanto, devido à falta de dados epidemiológicos, o número exato de pessoas com deficiência visual não é conhecido.

A literatura aponta a existência de diferentes modalidades de deficiência visual, definidas de acordo com os diferentes graus de percepção de luz (Batista, 1998). Uma delas é a “cegueira legal”, quantificadora dos valores mínimos de acuidade visual e/ou campo visual a partir dos quais uma pessoa é considerada cega. Do ponto de vista educacional, esse termo levou a uma perspectiva pessimista, ao designar como “cegas” pessoas que possuíam um resíduo visual possível de ser utilizado para muitas tarefas e que não necessitariam do sistema braille para serem alfabetizadas. Não havia distinção entre as pessoas cegas e as que possuidoras de alguma acuidade visual, ou o que se denomina “baixa visão”. Nesse sentido, esse termo passou a ser utilizado para se referir a pessoas com grandes dificuldades visuais, mas que se reconhecia poderem utilizar a visão para muitas tarefas, desde que orientadas e instrumentalizadas corretamente.

Atualmente, as distintas classificações de deficiência visual se baseiam na avaliação da acuidade visual, campo visual, sensibilidade ao contraste, visão de cores e outros aspectos (Batista & Enumo, 2000). Segundo revisão das autoras, a acuidade se refere à capacidade de discriminação de formas, avaliada através da apresentação de linhas, símbolos ou letras progressivamente menores. Quando a acuidade é baixa, a pessoa tem dificuldade para perceber formas, seja de perto, à distância, ou em ambas as situações.

Campo visual se refere à amplitude de estímulos que a pessoa tem condições de perceber, sendo o campo normal de quase 180 graus. Há patologias em que este campo se restringe a menos de 20 graus.

A análise da bibliografia especializada sobre o desenvolvimento, aprendizagem e programas educacionais na área da deficiência visual tem revelado a pouca atenção dada às diferenças entre a percepção de pessoas com e sem deficiência (Masini, 1999). A autora destaca a importância de se considerarem as diferenças perceptuais do deficiente visual e suas características para poder lhe oferecer condições apropriadas ao seu desenvolvimento e à sua educação. Da mesma forma, para a autora, a visão não depende apenas do olho, mas também da capacidade do cérebro de codificar as informações dos olhos em termos neuronais e reconstituí-las em experiências circundantes. Nesse sentido, para que ocorra o desenvolvimento da eficiência visual, duas condições precisam estar presentes: o amadurecimento ou desenvolvimento de fatores anatômicos e fisiológicos do olho, vias óticas e córtex cerebral de um lado, e, de outro, o uso ou utilização dessas funções, ou seja, o exercício de ver. O uso da capacidade visual segue no ser humano as mesmas características de seu desenvolvimento, isto é, evolui de sua inabilidade e da dependência para o domínio da habilidade, da autonomia pessoal e social. Desenvolvimento aqui, portanto, é utilizado para designar as transformações nas fases que vão do nascimento à morte, como também as transformações no uso de funções devidas a novas aprendizagens, e à aquisição de habilidades. Assim, quando se ouve falar da deficiência visual, é importante ter claro a que fase do desenvolvimento humano ela diz respeito (Masini, 1999).

As deficiências visuais podem ser congênitas ou adquiridas. Existe uma série de doenças na infância que podem produzi-las ou agravá-las, assim como acidentes em qualquer época da vida (Batista & Enumo, 2000). É preciso que se considere, no desenvolvimento da criança, a influência da ausência de visão a partir do nascimento.

Dessa forma, a criança com DVC poderia apresentar riscos para atrasos ou desvios em áreas importantes, tais como a comunicação e a cognição social, semelhante a outras patologias, como, por exemplo, o autismo (Recchia, 1997a).


2. Condutas do Espectro do Autismo

Autismo tem sido definido como uma síndrome que envolve uma profunda distorção do processo do desenvolvimento infantil (Rutter, 1996). A primeira descrição dessa síndrome foi feita por Leo Kanner, que em 1943 apresentou 11 casos de crianças que possuíam algumas características em comum, definindo-as como ‘autismo infantil precoce’.

As características encontradas foram: incapacidade para o relacionamento com outras pessoas; severos distúrbios da linguagem, sendo esta pouco comunicativa; e preocupação pelo que é imutável (sameness).

Desde 1980, diferentes sistemas diagnósticos (APA, 2002; WHO, 1992; Rutter, 1978) têm baseado seus critérios em problemas apresentados em três domínios (tríade de comprometimentos): a) danos qualitativos na interação social; b) danos qualitativos na comunicação verbal e não-verbal e no brinquedo imaginativo; e c) comportamento e interesses restritivos e repetitivos.

Já os termos autism-like pattern ou autistic features, estão associados ao que se considera como autismo atípico, isto é, condições em que apenas um ou dois critérios para os comprometimentos são preenchidos conforme o DSM-IV, ou então o aparecimento da sintomatologia ocorre posterior aos 3 anos de idade (ver Anexo G para maiores detalhes).

Segundo Baron-Cohen e Bolton (1993), nesses casos geralmente é dito aos pais que seus filhos não têm o autismo clássico, mas simplesmente “traços autistas”. Para os autores, esse termo é frustrante para os pais no sentido de que levanta dúvida sobre se o filho tem ou não autismo. De fato, essa situação reflete a existência de áreas obscuras entre ter claramente a condição e não tê-la.

De acordo com Wing (1996), o termo “transtornos do espectro autístico” (autistic spectrum disorders) é usado preferencialmente no Reino Unido em substituição a “transtornos invasivos do desenvolvimento” (APA, 1994). O principal argumento é de que há um continuum de condições que afetam o desenvolvimento de forma profunda e diferente das psicoses, ao contrário do que se costumava pensar. A autora ressalta a necessidade de estar atento para o fato de que os transtornos do espectro autista podem ocorrer junto com outra “anormalidade” física ou psicológica. Considera também que, se a tríade de comprometimentos estiver presente, um transtorno autista deve ser diagnosticado independente de qualquer condição co-existente.

Na tradução do trabalho de Wing (1981) para o espanhol, o termo conductas autistas refere-se aos comportamentos que várias crianças autistas possuem em comum durante pelo menos um período de tempo, ainda que se considere a personalidade e graus diferentes de severidade da síndrome. No presente estudo, o termo é empregado para referir-se a qualquer comportamento presente nas três áreas de comprometimentos do DSM-IV-TR (APA, 2002), independente do fato de os critérios para o diagnóstico de autismo serem ou não fechados. De qualquer forma, cabe ressaltar as principais características das três áreas de comprometimento.

2.1. Interação social

Quanto aos comprometimentos na interação social, existem quatro grupos distintos entre si, conforme a classificação de Wing (1996). O grupo indiferente, o mais comum, se caracteriza pelo comportamento isolado, como se outras pessoas não existissem. Crianças com essa característica não respondem quando são chamadas, possuem expressões faciais “vazias", olham apenas rapidamente para os demais, normalmente ignorando-os, e afastamse quando são tocadas. Ao serem estimuladas - cócegas, por exemplo - , respondem, mas quando a brincadeira acaba voltam a ficar indiferentes. O grupo menos comum é o passivo.

A característica principal das crianças é aceitarem interagir socialmente, mas nunca tomarem iniciativa nesse sentido. Ao serem estimuladas, conseguem até mesmo olhar para o outro. Já no grupo denominado ativo mas bizarro, as crianças podem dar início a interação, mas não entendem realmente como fazê-lo. Muitas delas abraçam bem apertado e olham fixamente para outras pessoas, podendo tornarem-se agressivas se não receberem a atenção exigida. O grupo formal é identificável durante a adolescência por possuir um bom nível de linguagem, sendo indivíduos excessivamente educados, formais e rígidos quanto ao modo de se comportarem. O aspecto subjacente a tais condutas é a falta de entendimento acerca das sutilezas sociais.

2.2. Linguagem e brinquedo imaginativo

No que diz respeito aos comprometimentos na comunicação, Wing (1996) atenta para o fato de que poucas crianças sob o espectro autista falam. Muitas aprendem mais tarde do que crianças com DT e costumam copiar quem fala, apresentando ecolalia (repetição de palavras faladas por outras pessoas, como um “papagaio”) e ecolalia tardia (repetição de palavras que aprenderam no passado). Além disso, costumam falar na segunda pessoa e são bastante coloquiais em sua linguagem. Parece que entendem pouco do significado das palavras, ainda que falem e consigam ter ao longo do tempo um bom vocabulário. Quanto à entonação e ao controle da voz, ela soa monótona, robótica e, mesmo que seja clara, parece artificial. A comunicação não verbal apresenta-se prejudicada, pois dificilmente conseguem expressar-se através de gestos e sinais. De fato, entre os comprometimentos sóciocomunicativos no espectro do autismo, destacam-se os da atenção compartilhada. Nesse sentido, antes de se avançar a respeito da questão do brinquedo imaginativo, torna-se importante compreender como se desenvolve essa habilidade.

O modelo teórico das teorias afetivas focaliza-se nas capacidades inatas do bebê e sua influência para o desenvolvimento da capacidade simbólica e de compreender estados mentais tanto do self como das outras pessoas. O período que envolve a motivação básica de se relacionar, desde o nascimento, é denominado “subjetividade primária” (Trevarthen, 1979). Nesse período, o olhar e as expressões afetivas do bebê são seletivamente dirigidas e integradas ao comportamento social das pessoas (intersubjetividade). A questão da importância do olhar nesse processo há muito tem disputado o interesse dos teóricos na área de interação mãe-bebê.

De acordo com Ajuriaguerra (1983), Scheller foi um dos primeiros autores a fazer uma distinção entre olhar e visão. Ele postulou que o sentido do olhar constitui a experiência fundamental na qual a percepção e a compreensão da expressão do outro não são condicionadas por um julgamento baseado nos dados sensoriais. A percepção do outro, segundo a revisão do autor, é um “ser capaz de participar no ser” pois, quando há uma troca de olhar, “eu não vejo somente olhos, eu vejo também que uma pessoa me olha” (p. 71).

Uma das tendências perceptivas mais importantes que as crianças possuem na primeira infância é voltar a atenção para estímulos que se alteram de alguma forma ou que exibem um alto grau de variedade visual (Newcombe, 1999). Assim, contraste, movimento, curvilinearidade, cor, simetria e muitas outras qualidades atraem e mantêm a atenção do bebê, especialmente quando indicam uma mudança no campo perceptivo imediato. Um estudo de Slater, Morison, Town e Rose (1985) revelou que um estímulo em movimento, quando emparelhado com sua contraparte, estaticamente, atrairia mais de dois terços dos olhares dos recém-nascidos. De fato, o bebê pode discriminar uma variedade de estímulos que diferem em padrão, orientação, contraste, forma e tamanho.

Desde muito cedo, os bebês são especialmente responsivos a mudanças sutis no rosto da mãe (Klaus & Klaus, 2001). Durante a aplicação da Escala da Avaliação do Comportamento Neonatal de Brazelton, que é um instrumento utilizado para avaliar a complexidade dos comportamentos e habilidades do neonato, Klaus, Kennell e Klaus (2000) verificaram que bebês preferem olhar para faces humanas a objetos inanimados.

Estes autores também destacaram o papel do estado definido como “alerta tranqüilo” para a interação humana. Tal estado refere-se a breves períodos de extrema atenção visual, que iniciam logo após o nascimento, nos quais os olhos do bebê ficam bem animados e bem abertos. Além disso, o bebê freqüentemente pára de se mexer ou de sugar, buscando o contato olho a olho com a mãe. Nesse olhar mútuo, tem início o primeiro “diálogo”: a mãe e o bebê parecem ser magneticamente atraídos para a comunicação.

A curiosidade e a capacidade visual do recém-nascido de fazer este contato são recompensadoras para os cuidadores. Assim como os bebês parecem ter uma preferência por rostos humanos, os adultos talvez estejam programados para se encantarem com bebês recém-nascidos e serem atraídos por eles (Klaus, M. H. & Klaus, P. H., 2001). De fato, em comparação com outras áreas do corpo, os olhos têm uma considerável gama de qualidades interessantes como o brilho do globo, o fato de se moverem enquanto ao mesmo tempo estão fixos no espaço, os contrastes da configuração pupila-íris-córnea e a capacidade da pupila de variar em diâmetro (Klaus & cols., 2000).

De modo similar, Bowlby (1969), a partir de uma perspectiva etológica, destacou em seus estudos sobre o apego cuidador-criança, a importância das trocas de olhares na interação mãe-bebê. O autor concorda que não só existe uma preferência precoce para olhar o rosto humano, como também para olhar o rosto da mãe, ao invés de dirigir o olhar para outras pessoas. Quanto mais um bebê olha para a mãe, mais é provável que ela se mova em sua direção, faça gestos, fale ou cante para ele, acaricie-o ou o abrace, favorecendo, portanto, o desenvolvimento de habilidades comunicativas mais complexas.

Contribuições importantes para o estudo do estabelecimento do apego diante do contexto da deficiência visual foram trazidas por Warren (1994). Esse termo, para o autor, refere-se ao desenvolvimento durante o primeiro ano de vida de uma responsividade emocional para pessoas específicas, com respostas positivas para um pequeno número de pessoas (um dos pais ou ambos) e respostas negativas para outras pessoas (medo de estranhos). Dentre os comportamentos chaves do bebê para despertar a atenção dos pais e, portanto, para o desenvolvimento do apego, estão o chorar, o agarrar e o sorrir. Warren ressaltou que tais comportamentos não requerem o uso da visão para ocorrerem. Mais especificamente, o sorriso, da mesma forma como apontado por Bowlby (1969), é considerado pelo autor como um poderoso meio para a interação social, sendo que já foi observado em bebês com DVC em resposta a sons familiares. A responsividade emocional, no entanto, está em risco de ser afetada nesse contexto. Ainda que o bebê com DVC possa perceber estímulos auditivos e táteis, os cuidadores não estão habituados a dar respostas que não sejam perceptíveis por outros sentidos, que não a visão. É necessário que estes respondam positivamente às iniciativas do bebê, estando aptos a manterem com seus filhos as vocalizações, estimulando as explorações táteis.

Como pode ser visto, o envolvimento do bebê na interação parece depender do seu sucesso nesses contatos iniciais. Os pais tendem a olhar seus bebês de forma a aumentar a probabilidade de eles ficarem atentos, acompanharem e, um pouco depois, trocarem um sorriso. O bebê passa a se interessar no engajamento social através de gestos, de posturas, de vocalizações e até mesmo de caretas (Trevarthen & Aitken, 2001). Através de sorrisos, de movimentos labiais e da língua, o bebê vai respondendo aos chamamentos da mãe (proto-conversa). Essa conversa será prazerosa para o bebê se a mãe responder afetivamente a ele, fazendo com que a reconheça através de sua voz e rosto familiares (Trevarthen, Aitken, Papoudi & Robarts, 1996).

A partir dos 6 meses de idade, o bebê torna-se voluntarioso e absorto na tarefa de explorar e manipular objetos (Trevarthen & cols.,1996). Primeiramente, orienta-se, segue expressões e ações, apontando para que os objetos sejam apresentados para serem compartilhados com o cuidador. Ao encontrar dificuldade em atingir seu objetivo, o bebê tende a pedir ajuda, preferindo a mãe a um estranho. Segundo os autores, quando as ações do bebê envolvem a coordenação da atenção com um parceiro para que haja o compartilhamento de seu interesse por determinados objetos/eventos, observa-se a habilidade de atenção compartilhada. Essa habilidade tem início por volta dos 9-12 meses e se desenvolve mais completamente, aos 24 meses de vida (Butterworth & Grover, 1988).

Nesse período o triângulo “pessoa-pessoa-objeto” opera através da atenção compartilhada (Trevarthen & cols., 1996). Ao tratar os objetos e eventos como tendo mais propriedades, que podem ser testadas por seu próprio esforço, o bebê abre espaço para a capacidade simbólica. No final do primeiro ano de vida, um bebê ainda não pode falar, mas procura trocar experiências com companheiros e coopera, investigando e agindo sobre esse mundo compartilhado. Isso envolve mudança freqüente do foco de interesse dos objetos para as pessoas, e assim sucessivamente. O bebê, portanto, começa a integrar novas formas de intersubjetividade através da cooperação com a mãe (intersubjetividade secundária). As emoções maternas são bastante usadas por ele para avaliar as experiências do mundo, enquanto que o papel materno é despertado pelos novos sentimentos e expressões infantis (Trevarthen, 2001).

O papel materno ativo, durante a interação, pode ser compreendido a partir das contribuições de Bruner (1978). O processo, que ocorre durante os jogos sociais entre a díade mãe-criança, nos quais a mãe trabalha para manter o jogo interessante, foi denominado de scaffolding. Durante o final do primeiro ano de vida da criança, a mãe, ao estar atenta ao nível de complexidade que o filho pode compreender, vai gradualmente permitindo que a criança possa ir tomando mais iniciativa e independência. Essa atitude materna seria fundamental para a aquisição de potenciais relacionados a AC. Chama-se a atenção para o fato de que em relação à DVC, bem como diante de outras deficiências, tais comportamentos e outros que envolvem a responsividade emocional ao bebê podem ser afetados. A necessidade, em muitos casos, de hospitalizações, como por exemplo no caso de nascimentos prematuros, possibilita a ocorrência de estresse emocional (Warren, 1994).

Além do estresse, sintomas associados à depressão e dificuldades de natureza somática podem influenciar negativamente a interação mãe-criança e os aspectos que estão em jogo nesta dinâmica (Bruner, 1978).

Como sugere a literatura, a qualidade da interação mãe-criança tem sido o foco de vários estudos (Brazelton, Cramer, Kreisler, Schappi & Soulé, 1987; Lester, Hoffman & Brazelton, 1985; Mazet & Stoleru, 1990). Dentre os aspectos interacionais investigados, destaca-se a reciprocidade entre os comportamentos maternos e infantis. O termo “reciprocidade” refere-se ao modo como cada parceiro recebe os sinais do outro e à maneira como responde a esses sinais. Para Brazelton e colaboradores (1987), uma mãe sensível às mudanças na disponibilidade do bebê para estar em interação consegue adaptar seus comportamentos ao ritmo da criança, contribuindo para o alcance de um ajuste, entendido como sincrônico. Depreende-se que perturbações na reciprocidade podem acarretar uma interação negativa entre a díade mãe-bebê, o que poderia afetar também o desenvolvimento da AC. O risco para a ocorrência de assincronia durante a interação pode ocorrer quando se está tratando de um desenvolvimento atípico. Tem sido documentado, nesse sentido, que bebês com DVC costumam expressar-se passivamente em relação às mães (Santin & Simmons, 1977; Warren, 1994). Eles normalmente não solicitam muita atenção, embora haja grande necessidade de estimulação e atenção suplementares para o seu desenvolvimento. Assim, a partir dessas concepções, pode-se pensar que a passividade do bebê cego, associada ao potencial afastamento dos pais, poderá conduzir a um ritmo de interação menos adequado entre a díade.

Durante a ocorrência de atenção compartilhada, o emprego gestual inclui tanto a produção quanto a compreensão de gestos produzidos por outros. Apontar, por exemplo, emerge como uma função de compartilhar a atenção e o interesse com o parceiro. Apontar para brinquedos que estão a uma certa distância não é uma atividade comum até o final do primeiro ano de vida. Os dados que confirmam essa posição provêm de vários estudos (Messer, 1994, 1997; Schaffer, 1984). Um dos estudos investigativos da habilidade da criança em seguir o gesto de apontar feito pela mãe mostrou que, enquanto bebês de nove meses tinham condições de seguir apenas informações simples, tais como deslocar o olhar da mão materna para o objeto, os de 14 meses podiam localizar um objeto seguindo movimentos mais complexos dos gestos maternos (Messer, 1994). Ainda com relação ao gesto de apontar, um dos resultados mais importantes de um estudo longitudinal realizado por Bates, Camaioni e Volterra (1975), revelou que esse gesto é um preditor da capacidade lingüística subseqüente.

A literatura aponta para evidências de que a habilidade de AC encontra-se comprometida no autismo (Mundy, Sigman, Ungerer & Sherman, 1986; Robertson, Tanguay, L`Ecuyer, Sims & Waltrip, 1998). Em uma situação experimental, testada por Philips, Baron-Cohen e Rutter (1992), havia dois tipos de ação do experimentador para com as crianças com autismo e as do grupo controle (crianças com desenvolvimento típico e com deficiência mental, emparelhadas em idade mental). Tais ações eram compostas de uma situação “ambígua”, na qual o experimentador encorajava e bloqueava simultaneamente a ação da criança em direção a um brinquedo, e de uma situação “clara”, quando o experimentador realmente dava o brinquedo para a criança. Na situação ambígua, as crianças do grupo controle fizeram contato ocular imediato, enquanto as do grupo com autismo não. Para os autores, o olhar imediato para o adulto teria a função de “busca de informação” sobre o significado dessa ação ambígua, o que parecia não ocorrer no grupo com autismo.

Uma situação estruturada de interação criança-experimentador foi utilizada por Mundy e colaboradores (1986). Nesse estudo, o grupo com autismo distinguiu-se dos grupos controle (deficiência mental e um grupo não-clínico) quanto à capacidade de mostrar/apontar para objetos e quanto ao olhar de referência. Também foram reportados déficits na capacidade de seguir o olhar do experimentador, acompanhado ou não por gestos.

Os dados que apoiam a visão de que a habilidade de atenção compartilhada é tanto um preditor quanto um correlato do desenvolvimento da linguagem em crianças com autismo são provenientes de um estudo de Mundy, Sigman e Kasari (1990). Os resultados desse estudo indicaram que o comportamento de AC foi o preditor mais poderoso do desenvolvimento da linguagem do que o nível de fala ou o QI.

Como sugerem os estudos revisados, a habilidade de AC exerce um papel importante no desenvolvimento da linguagem, apresentando algumas especificidades no caso das crianças sob o espectro do autismo. Da mesma forma, a literatura aponta para particularidades em relação ao brinquedo imaginativo dessas crianças. Cabe salientar que muitas delas podem mostrar extrema dificuldade em desenvolver a brincadeira imaginativa, podendo, inclusive, não desenvolvê-la (Wing, 1996).

Esta área de estudos também é focalizada por Trevarthen e colaboradores (1996).

Os autores sugerem que as dificuldades que essas crianças enfrentam no brinquedo estão correlacionadas com suas dificuldades para se comunicar e aprender significados pela instrução de outras pessoas. Para eles, isso se relaciona com a falha para compreender as respostas afetivas e a cooperação com o outro. Nesse sentido, é comum verificar crianças com autismo fascinadas com a mera presença dos objetos e seus aspectos sensórios imediatos. Por outro lado, as mesmas costumam apresentar-se desinteressadas pelo significado cultural ou simbólico destes.

Para Wing (1996), as crianças sob este espectro exploram os brinquedos apenas pela sensação física que eles provocam. Além disso, a autora aponta que é comum criarem uma seqüência de eventos e ficarem repetindo-a sem modificação. Essas crianças parecem gostar de repetir e decorar palavras de uma determinada história e encenar, por exemplo, algum personagem televisivo, animal ou até mesmo um objeto inanimado. Desse modo, Wing chama a atenção para o fato de que as crianças sob o espectro do autismo parecem viver realisticamente tais encenações e não fingir que são pessoas ou coisas. Além disso, aponta que a habilidade de compartilhar idéias com outras pessoas e de usar experiências passadas e presentes para planejar o futuro apresenta-se comprometida. A autora enfatiza também o comportamento da criança sob o espectro do autismo em relação às atividades que lhe dão prazer, o que denominou atividades repetitivas estereotipadas.

2.3. Comportamento e interesses restritivos/repetitivos

De acordo com Wing (1996), comportamentos e interesses restritivos/repetitivos se expressam no movimento ou apenas na manipulação do corpo - balanço prolongado do corpo, aceno da cabeça, rolar os olhos, por exemplo - , e/ou de objetos. Podem também caracterizar-se como comportamentos mais complexos: estimulação primariamente visual (olhar fixamente para luzes, objetos de rotação como máquinas de lavar, ventarolas e objetos em linha); estimulação vestibular (girar enquanto se está de pé); ou estimulação predominantemente tátil ou auditiva (Ex.: acariciar, escarafunchar alguém ou objetos, repetir uma série de palavras). Para a autora, o engajamento em tais comportamentos tende a ser prolongado e causar isolamento social. A pessoa age como quem não “vê” ou “ouve” algo a sua volta. Além disso, é possível pensar que a origem destes comportamentos decorre de alguma situação desprazerosa, de difícil resolução.

2.4. Outros comprometimentos

Algumas crianças sob o espectro do autismo não gostam de ser tocadas, podem ser bastante sensíveis aos cheiros, indiferentes a mudanças de temperatura e, muitas delas, se auto-flagelam repetidamente (Wing, 1996). A autora ainda discorreu sobre o apetite e a sede dessas crianças. Algumas delas parecem não reconhecer o significado da sensação de fome, sendo bastante comum a sede ou fome excessiva, chegando até mesmo a vomitarem.

No entanto, quando estão envolvidas em atividades de que gostam, o desejo de beber ou comer parece ser esquecido.

A ansiedade vista sob o ponto de vista do espectro autista, origina-se a partir de situações confusas e angustiantes para tais crianças, que não entendem porque estes eventos acontecem (Wing, 1996). Normalmente, elas não entendem os perigos reais e, ao contrário, permanecem calmas quando o restante dos integrantes da família estão nervosos diante de algum evento alarmante. Alguns dos medos específicos podem ser de balões, cachorro, tomar banho, andar de ônibus, barulhos, etc. Para a autora, a atenção destas crianças é dirigida apenas ao que lhes interessa. Não há motivação para ter atenção sobre aquilo que não lhes desperta o interesse, na medida em que a família acaba “fazendo” por elas, prejudicando a aquisição de uma maior independência.

Os comportamentos inapropriados destas crianças estão relacionados ao medo e a confusão diante de situações que não lhes são familiares, bem como à interferência em suas rotinas repetitivas. Além disso, há uma falha no entendimento das regras sociais, o que as conduz a persistir em atividades que querem realizar, sem a habilidade de considerar as possíveis conseqüências. Geralmente, elas não mentem, apenas inventam histórias baseadas em algo que viram na televisão, por exemplo, quando não há intenção de enganar (Wing, 1996).

As habilidades especiais, quando presentes, tendem a ser as viso-espaciais, que não envolvem a linguagem, como por exemplo montar quebra-cabeças (Wing, 1996). Outras potencialidades são: tocar instrumentos; compor músicas; calcular equações matemáticas complexas; ler fluentemente, ainda que com uma compreensão pobre de texto; uso adequado de computadores, entre outros aspectos. Segundo a autora, tais habilidades podem desaparecer durante a vida adulta. Vistas as principais condutas do espectro do autismo, a seguir serão abordadas algumas evidências clínicas e empíricas sobre a ocorrência de tais comportamentos em crianças com DVC.


3. Condutas do Espectro do Autismo em Crianças com Deficiência Visual Congênita

Ao se revisarem os estudos sobre a associação entre as condutas autistas e DVC, destacam-se importantes contribuições. Há evidências de similaridades entre crianças com DVC e autismo quanto a dificuldades na expressividade emocional e no reconhecimento da emoção (Minter, Hobson & Pring, 1991; Rogers & Puchalski, 1986). Da mesma forma, existem evidências de comprometimentos no brinquedo simbólico criativo e na linguagem - ecolalia e confusões no uso de pronome pessoal - (Andersen, Dunlea & Kekelis, 1984).

Também foi documentada a presença de estereotipias excessivas (Tröster & Brambring, 1992). Para esses autores, uma explicação possível para esse fato seria a dificuldade da criança para atrair a atenção da mãe e exercer controle sobre o ambiente, o que produziria, uma tendência ao isolamento social.

O estudo de Fernell, Jacobson e Gillberg (1998) identificou condutas do espectro do autismo em crianças com DVC, cuja deficiência devia-se ao transtorno de retina hereditário e à retinopatia de prematuridade (RP). Essa última condição tende a ocorrer em nascimentos pré-termo. Nesses casos, os bebês podem ser acometidos por sucessivas infecções respiratórias, cujo tratamento requer o uso de oxigênio que, em excesso, pode causar danos à retina. A amostra constituiu-se de 33 crianças e adolescentes suecos com DVC, selecionados a partir dos registros nacionais entre os anos de 1980 a 1990. A idade variou entre 0 e 19 anos. Os participantes freqüentavam centros educacionais atendidos por equipes multidisciplinares (oftalmologista, psicólogo, professor especializado em educação infantil e fisioterapeuta). Um dos grupos foi constituído por 14 crianças e adolescentes com DVC em função de transtorno de retina hereditário. O outro constituiu-se de 19 crianças e adolescentes com DVC em função da RP. O estudo de caráter sistemático e controlado durou cerca de 3 anos. Nesse período foram realizados exames por psicólogos e outros especialistas em condutas do espectro do autismo. Além disso, foram realizadas entrevistas com os pais, avaliações do desenvolvimento e observações do comportamento das crianças.

Para o diagnóstico do autismo, foram considerados os critérios diagnósticos do DSM-IV e os escores na escala diagnóstica CARS (The Childhood Autism Rating Scale).

No grupo das crianças com RP, 15 (8 meninos, 7 meninas) apresentaram transtorno autista e 4 (3 meninos e 1 menina) apresentaram traços de comportamentos do espectro do autismo. As dificuldades situaram-se predominantemente no domínio da interação social e na apresentação de estereotipias motoras (mãos e corpo). Quanto à comunicação, foram detectados problemas na interação com outras pessoas, no brinquedo de faz de conta e na imitação social. Nas entrevistas com os pais, foram relatados atraso na linguagem (fala), a tendência a evitar alimentos sólidos, além de dificuldades para dormir. Evidenciou-se também que em 2/3 do grupo foi diagnosticado retardo mental e 1/3 tinha sido acometido de paralisia cerebral ou epilepsia. No grupo das crianças com transtorno de retina hereditário, apenas duas das 14 preencheram os critérios do CARS para o diagnóstico de autismo. Foram relatadas também dificuldades quanto à interação social, bastante relacionadas ao contato diário com os colegas com DT. Diferente do grupo com RP, nesse grupo as crianças apresentaram, tanto nos anos pré-escolares como escolares, bons níveis de inteligência e de desenvolvimento motor em geral. Apenas nos dois casos em que o autismo foi diagnosticado é que os pais relataram a ocorrência de atraso na linguagem.

Várias adolescentes do grupo apresentaram, quando mais jovens, estereotipias motoras, mas que desapareceram por volta dos 6 ou 7 anos de idade.

Os autores, a partir desse estudo, concluíram que crianças com DVC devido à RP possuem maior risco de apresentarem transtorno autista, ou condutas do espectro do autismo associadas a danos cerebrais, do que crianças com DVC por transtorno de retina hereditário (Fernell & cols., 1998). De igual modo, ressaltaram a diferença entre sintomas referentes ao autismo e o que se denomina de blindisms (comportamentos estranhos exibidos pelas crianças com DVC). O padrão de tais comportamentos pode ser interpretado como adaptativo diante da condição imposta pela deficiência. Nesse sentido, muitos blindisms encontrados em crianças com DVC são provavelmente equivalentes às estereotipias motoras em crianças que têm retardo mental, mas não preenchem os critérios para o transtorno autista.

As observações relatadas por M. H. Gense e D. J. Gense (1994) corroboram alguns dos resultados encontrados por Fernell e colaboradores (1998). Os autores identificaram em crianças com DVC comportamentos estereotipados, como, por exemplo, transtornos do movimento, que se intensificaram em espaços amplos. As explicações sobre as possíveis diferenças na etiologia desses comportamentos foram apontadas. De acordo com os pesquisadores, as estereotipias são geralmente atribuídas ao comportamento obsessivo ritualizado, enquanto que na DVC, a base desses transtornos seria uma insegurança em relação ao ambiente. Girar sobre si mesmo, por exemplo, pode ser resultado de anormalidades neurológicas, que freqüentemente acompanham o autismo e alguns modos de deficiência visual, ou reações à privação sensorial. Outros comportamentos autoestimulatórios, que vão do balanço da cabeça até algumas formas de automutilação, são prontamente induzidos em condições de privação produzidas experimentalmente. Portanto esses comportamentos podem ser explicados como reações à perda de estimulação visual em crianças deficientes visuais. Por outro lado, esses comportamentos desaparecem quando a criança é estimulada ou desenvolve modos mais adaptativos de auto-estimulação. Já nas crianças com autismo, esses comportamentos podem ser mais persistentes e aparentes, mesmo quando não apresentam perda sensorial identificável (Jordan, 1996). Nesse sentido, a autora sugere que o comprometimento social no autismo leva a uma espécie de “cegueira” à estimulação social significativa.

A comparação entre criança com DVC e autismo é tratada também por Baron- Cohen (1995). Para esse autor, a atenção compartilhada pode ser desenvolvida através de outras modalidades sensoriais, além da visão, como o tato ou a audição. O autor descreve um caso de uma criança deficiente visual severa que, ao ser solicitada por sua mãe a “deixá-la ver” o carrinho com o qual brincava, acenou com o mesmo na mão, assim como empregou as palavras “veja” ou “olhe”, ao chamar a atenção de sua mãe para os brinquedos. Disso depreende-se que a criança com tal deficiência parece compreender que “ver” significa explorar um objeto, perceptualmente.

Por outro lado, a criança com autismo é capaz de perceber se as pessoas estão olhando para ela ou não e ainda seguir a direção do olhar, se for instruída para isso.

Entretanto parece não ter qualquer consciência sobre o compartilhamento da atenção, o que pode levar a problemas sociais mais profundos (Jordan, 1996). Estudos empíricos nessa área vão de encontro a alguns desses achados clínicos.

O estudo de Brown, Hobson e Lee (1997) teve como objetivo avaliar a prevalência de condutas autistas em 24 crianças com DVC, com idades entre 3 e 9 anos, através de relatos de professores e observações sistemáticas dos comportamentos infantis. As crianças foram divididas em dois grupos: aquelas com QI acima de 70 e aquelas com QI abaixo de 70. Além disso, as crianças foram designadas a dois grupos distintos no que se refere à presença de condutas do espectro autista ou desenvolvimento típico. Os resultados mostraram que a grande maioria das crianças com DVC com condutas do espectro autista apresentaram QI mais alto (15 crianças). Esse grupo de QI mais alto com DVC foi comparado com crianças com DT emparelhadas por idade e habilidade verbal. O grupo de QI mais baixo (9 crianças) com DVC foi comparado com um grupo de 9 crianças com autismo, emparelhadas por habilidade verbal e por idade aproximadamente. Todas as crianças foram testadas quanto ao QI verbal nas versões da Wechsler Pre-School and Primary Scale of Intelligence (WIPPSI) ou a Weschsler Intelligence Scale for Children-Revised (WISC-R), as quais não incluíram material de teste pictorial.

A investigação dos comportamentos característicos do autismo, nas crianças com DVC e com autismo foi realizada com base nos critérios do DSM-III-R. Além disso, as crianças foram observadas por 20 minutos em situação de brinquedo livre, em uma sessão de avaliação de linguagem e durante atividades em sala de aula. Nessas observações foram preenchidas as escalas The Childhood Autism Rating Scale (CARS) e The Behaviour Checklist for Disordered Preschoolers (BCDP). Os itens da escala CARS contemplam relacionamento com outras pessoas, imitação, expressão emocional, uso do corpo, peculiaridades no uso do objeto, resistência à mudança, responsividade visual (omitida para o grupo com DVC), responsividade auditiva e responsividade táctil. O BCDP contém 29 itens associados aos relacionamentos com outras pessoas e com objetos, bem como a distúrbios motores e a prejuízo na linguagem.

Os resultados encontrados revelaram que mais da metade da amostra das crianças com DVC atingiu um escore elevado na escala que mediu as condutas do espectro do autismo. No que se refere ao DSM-III-R, 10 das 24 crianças com DVC, satisfizeram os critérios diagnósticos para o autismo. Cabe destacar que nesse estudo houve observações múltiplas em um número pequeno de participantes. No intuito de manejar com os dados, as medidas do CARS e do BCDP foram analisadas pelos fatores. Dessa forma, um componente de análise principal foi conduzido para identificar as dimensões essenciais responsáveis pelos escores dos itens dentro de cada escala.

No grupo das crianças com DVC de QI mais alto, comparado com o grupo das crianças com desenvolvimento típico, houve um fator do CARS (“prejuízo social”) que foi o responsável por uma proporção substancial da variância (54%) e um fator um tanto similar no BCDP (36% de variância). Quando os itens individuais foram examinados, houve diferenças significativas em uma variedade de aspectos, incluindo: relacionar-se com pessoas; uso do corpo; resposta aos objetos; comunicação verbal e não-verbal; coordenação motora; brinquedo interativo e tipo de brincadeira e ecolalia imediata. No grupo das crianças com DVC de QI mais baixo, comparado com o grupo das 9 crianças com autismo, não houve diferenças significativas entre os escores do fator médio de ambos os grupos.

Contudo uma análise dos itens individuais das escalas não foi justificada. Considerando apenas as manifestações mais severas das categorias do CARS, a maioria das crianças com autismo, e apenas uma minoria das crianças com DVC, foram classificadas como possuindo anormalidades profundas para se relacionarem com pessoas.

A psiquiatra encarregada do julgamento clínico considerou que poderia fazer um diagnóstico confiante de autismo em apenas duas das crianças com DVC, e um diagnóstico bastante experimental em mais de 4 das 9 crianças do espectro do autismo. Em todas as crianças com autismo, com quem as crianças com DVC foram comparadas, o diagnóstico foi feito de modo mais seguro. Na maioria das crianças com DVC, a clínica teve sérias dúvidas quanto ao fato da qualidade do prejuízo social, do engajamento afetivo e da comunicação com outros serem comparáveis àquelas das crianças com autismo.

De acordo com os autores, o resultado mais importante desse estudo é que, de fato, podem existir condutas autistas em crianças com DVC. Discute-se, ainda, que o aparecimento das condutas autistas em uma criança com deficiência visual pode ser ocasionado pela ausência de visão propriamente dita e não pela qualidade do prejuízo na comunicação social. Nesse sentido, qualquer criança sob esta condição tende a apresentar dificuldade nas tarefas que exigem sensibilidade aos estados mentais e crenças de outras pessoas.

Este estudo, em função de algumas razões, foi replicado por Hobson e colaboradores (1999). Primeiro, a necessidade de se utilizar uma amostra maior que possibilitasse focalizar aspectos específicos do quadro clínico para que diferenças importantes entre os grupos pudessem ser reveladas. A segunda razão foi porque as crianças com autismo do estudo original foram selecionadas com base na idade e QI.

Contudo estas foram comparadas às crianças com DVC de QI mais baixo, inicialmente sem considerar seus aspectos clínicos. Além disso, as crianças com DVC foram avaliadas pelos subtestes verbais do WPPSI ou do WISC-R, enquanto que o grupo de crianças com autismo teve sua avaliação baseada no British Picture Vocabulary Scale. Não obstante, o emparelhamento foi conduzido antes das unidades de análise serem tomadas. Como resultado, as idades das crianças com DVC foram mais baixas, diferentemente do emparelhamento das crianças com autismo. Com isso, uma nova amostra de crianças com autismo foi selecionada e emparelhada com as 9 crianças com DVC do estudo anterior, pela idade cronológica, pelos escores no WPPSI ou no WISC-R e, ainda, pelo QI e idade mental verbal. O novo grupo de 9 crianças com autismo foi constituído apenas por meninos, que, de acordo com os critérios diagnósticos preenchidos, foram considerados como “autistas clássicos”, sendo mais fácil a diferenciação daquelas crianças com somente condutas do espectro do autismo.

Nesse estudo, um novo instrumento foi adicionado, além dos já utilizados, CARS e BCDP, o The Play Items for Disordered Preschoolers, que contempla quatro dimensões: brinquedo com o objeto, brinquedo simbólico, diversidade do brinquedo e brinquedo com os pares (Hobson & cols., 1999). Os dois grupos foram similares quanto à diversidade do brinquedo e no brinquedo com pares, e mais ainda quanto ao brinquedo com objeto.

Contudo houve divergência quanto ao brinquedo simbólico. Apenas duas das crianças com autismo mostraram alguma evidência de fingir atos com ou sem propósitos simbólicos. No grupo com DVC, ao contrário, 7 crianças apresentaram algum nível de brinquedo simbólico. Todavia em apenas uma dessas crianças a atividade foi elaborada em torno de um tema e nenhuma utilizou um objeto para representar outro. Além disso, no CARS, a ocorrência de anormalidade severa, nas diferentes dimensões investigadas, principalmente quanto ao relacionamento interpessoal e expressão emocional, foi maior nas crianças com autismo. No BCDP, as diferenças foram em relação ao afeto. No julgamento clínico, 2 das 9 crianças com DVC exibiram déficit na qualidade sócio-afetiva, aspecto que caracterizou o grupo das crianças com autismo.

Para Hobson e colaboradores (1999), tais resultados são intrigantes na medida em que existem diferenças na qualidade do “autismo” que aparece nas crianças com DVC, especialmente nos domínios sócio-afetivo e do brinquedo simbólico. Minter, Hobson e Bishop (1998), ao estudar a relação entre a DVC e a “teoria da mente”, concluíram que a falta de uma experiência compartilhada visualmente pode influenciar o comportamento comunicativo dos adultos. O desenvolvimento da compreensão dos estados mentais das crianças com DVC seria afetado, já que, para os autores, a unidade básica do entendimento social é interpessoal. A criança necessita, portanto, estar organizada motora e afetivamente, tornando-se habilidosa em adotar a atitude expressada pelo outro. Justamente, ao estar apta a reconhecer variações nas atitudes diante do self e do outro, é que ela virá a distinguir pensamentos de coisas. Uma criança autista, ao contrário, ainda que não apresente comprometimentos sensoriais ou de movimento, pode ter dificuldades no processo de comunicação e, portanto, no desenvolvimento da habilidade de atenção compartilhada. Para Minter e colaboradores (1998), da mesma forma que a falta de visão predispõe a condutas autistas, esse mesmo aspecto pode ser superado efetivamente se estímulos compensatórios forem fornecidos.

Cabe destacar que, além dos teóricos das teorias afetivas (Hobson, 1993; Trevarthen, 1979), Baron-Cohen (1995) também acredita que as crianças com DVC apresentarão comportamentos em geral semelhantes às crianças com DT. Para isso, basta que lhes sejam dadas maneiras alternativas de conhecer as idéias das outras pessoas e responder às suas expressões.

O estudo da relevância da linguagem e suas implicações para a interação entre cuidador e criança com DVC foi realizado por Pérez-Pereira e Conti-Ramsden (1999). Para isso, os autores revisaram alguns estudos que centraram-se no uso dos gestos em crianças sob essa condição (Iverson & Goldin-Meadow, 1997; Iverson, Tencer & Goldin-Meadow, 1998). Esses pesquisadores estudaram longitudinalmente crianças com DVC entre 14 e 28 meses de idade, comparadas a um grupo de crianças com DT. Os resultados apontaram que o grupo com DVC apresentou uma variedade de gestos, centrados em indicações de objetos que estavam próximos da mão ou gestos convencionais (Ex.: apontar com o dedo). Em comparação ao grupo controle, as crianças com DVC apresentaram menos gestos e de natureza mais limitada. Isso sugeriu que a experiência visual influencia mas não é essencial para o desenvolvimento dos gestos e, portanto, da AC, embora essa habilidade sóciocomunicativa não tenha sido o foco das pesquisas. Nesse sentido, algumas evidências apontam para a utilização de formas compensatórias de comunicação que permitiram o transcorrer da interação entre o cuidador e a criança com DVC (Bigelow, 1986; Urwin, 1984). Sugeriu-se que os cuidadores driblaram a ausência da visão ao promover jogos sociais priorizando seqüências previsíveis e contato físico intenso (Ex.: cantar, brincar tocando no corpo da criança). Os autores acrescentam ainda que, através dessas atividades referidas, somadas à linguagem oral, os cuidadores permitem a exploração ativa do ambiente e o engajamento das crianças com DVC em episódios de AC.

A presença de aspectos do espectro do autismo na linguagem de crianças com deficiência visual foi estudada por Pérez-Pereira (2000). O autor realizou uma revisão sobre os seguintes aspectos referentes à linguagem: o uso de pronomes pessoais, imitações, estereotipias, referência egocêntrica, similaridades na habilidade de iniciar a conversa e na capacidade para a contingência conversacional. Pérez-Pereira entende que as crianças com DVC, e também as crianças com autismo, passam por dificuldades em seu desenvolvimento social, que podem levá-las a comprometimentos na linguagem e na capacidade simbólica.

Contudo, para ele, os estudos que encontraram comportamentos do espectro do autismo em crianças com DVC (Brown & cols.,1997; Hobson & cols., 1999) não se preocuparam em explicar as naturezas distintas que levam as crianças a apresentarem comportamentos e dificuldades semelhantes. Ao se tratar de uma população bastante heterogênea (Ex.: etiologias diferentes; níveis variados de acuidade visual; existência ou não de prejuízos adicionais; diversas possibilidades de práticas educacionais), deve-se levar em conta as diferenças individuais de cada criança. Além disso, esses estudos deveriam contemplar as rotas e estilos alternativos de desenvolvimento seguidos por essas crianças, através das outras fontes de informação que não a visual.

Os comportamentos comunicativos de um menino de 3 anos com DVC, na sala de aula, que exibia dificuldades de comunicação, apresentando ecolalia e inversão de pronome, mas sem um transtorno de linguagem associado foram examinados por Perfect (2001). Além da avaliação da linguagem e alguns pontos específicos (habilidade de identificar e nomear objetos comuns, sentenças formuladas oralmente, respostas, uso apropriado de pronomes, realizar diferentes tarefas relacionadas à linguagem), foram tomados relatos dos professores e realizadas observações com os pares.

Os resultados desse estudo demonstraram que o menino examinado apresentou ecolalia imediata apenas quando um professor falava diretamente com ele (Perfect, 2001).

Além disso, a criança mostrou-se apta a manter conversas com adultos sobretudo quando recebia atenção mais individualizada e alguma orientação para completar tarefas, com menor demanda para a realização dessas. No entanto, o menino apresentou dificuldades quanto ao uso de pronomes, expansão da atenção para brincar e sobretudo para interagir com os pares, já que a ausência de visão não lhe permitiu interpretar as pistas não verbais e sociais dos colegas. A autora sugere, a partir destes achados, que a aparente rejeição dos colegas pode fazer com que a criança com DVC tenha maior probabilidade de desenvolver atividades solitárias e prefira as atividades conjuntas com os adultos. Além disso, aponta que um caminho possível para propiciar tal interação seria incentivar o brinquedo com adultos inicialmente e, progressivamente, com os pares.

A partir do que foi exposto, verifica-se que as questões sobre como a habilidade de AC se desenvolve na deficiência visual são pouco focalizadas na literatura. Dessa forma, na continuação da revisão serão abordados estudos que enfocam a interação cuidador-criança e seus diferentes aspectos diante da DVC.


4. Interação Social Cuidador-criança e Deficiência Visual Congênita

Os repertórios sócio-comunicativos das crianças com DVC e com autismo apresentam várias características em comum (Recchia, 1997a). Por perceberem os estímulos de forma diferente, essas crianças acabam dificultando o entendimento do que estão comunicando para os seus cuidadores e para outros parceiros. Como resultado, déficits sociais podem ser mascarados nos primeiros anos de vida, se as díades estão acostumadas a se comunicarem dentro de uma estrutura e rotina particulares, que muitas vezes leva ao reforçamento de tais comprometimentos.

No caso do autismo, há evidências de que mães de crianças sob essa condição tendem a ser afetadas pelo perfil comunicativo bizarro de suas crianças, podendo estas serem extremamente diretivas em seu estilo de interação ou, ao contrário, retrairem-se da interação (Trevarthen & cols., 1996). Diretividade no presente estudo é definida como comportamento verbal caracterizado como imperativos e reprovação dos atos da criança (Bosa, 1998).

A interação entre mães e crianças com autismo, em comparação com as mães de um grupo de crianças com deficiência mental e com desenvolvimento típico, foi examinada por Kasari, Sigman, Mundy e Yirmina (1988). As díades foram filmadas por 12 minutos, usando ou não brinquedos, em situações semi-estruturadas. Esses autores encontraram que as mães de ambos os grupos esforçaram-se para eliciar o contato olho a olho e usaram estratégias de controle para chamar a atenção de suas crianças, mais freqüentemente do que as mães de crianças com DT. No entanto as mães do grupo das crianças com autismo passaram mais tempo segurando fisicamente seus filhos durante a tarefa do que as do grupo das crianças com deficiência mental, as quais tendiam a apontar para os objetos. Além disso, quanto mais comprometida apresentava-se a criança para compartilhar a atenção, mais a mãe era diretiva. Eles sugeriram que o uso dessas estratégias serviu como forma de aumentar o engajamento para a AC. Não obstante sugeriram que a qualidade dos comportamentos dos cuidadores se daria em função dos esforços para compensar o comportamento inapropriado ou insuficiente da criança.

A presença de comportamentos diretivos em mães de crianças com atraso de desenvolvimento foi investigada por Sigolo (2000). A autora observou longitudinalmente cinco díades mãe-criança em situações de rotina diária e de brinquedo livre. A diretividade materna foi concebida como um estilo interacional a ser entendido a partir de suas qualidades adaptativas. Nesse sentido, Sigolo destacou a relevância de entender os diferentes objetivos a que a diretividade serve para cada mãe. Além disso, ela chamou a atenção para o fato de que em vários estudos se compara esta variável com intrusividade e falta de sensitividade para o comportamento infantil.

As díades foram filmadas em cinco etapas, num período de 12 meses (Sigolo, 2000). As idades das crianças variavam entre 12 e 18 meses, sendo que três apresentavam um diagnóstico de atraso de desenvolvimento e uma de Síndrome de Down. O instrumento de avaliação psicológica utilizado visou a detectar o estágio de desenvolvimento das crianças nas áreas motora, de linguagem, social, cognitiva e emocional. Os resultados revelaram que as mães, ao longo do estudo, passaram a evidenciar uma freqüência maior de atos não-diretivos - quando a mãe interagia com a criança sem a preocupação de regular ou dirigir seu comportamento ou atividade - e diretivos de ação independente - quando a mãe empregava comportamentos verbais e/ou não verbais para regular ou dirigir um comportamento ou atividade da criança. Numa análise evolutiva, detectaram-se diferenças individuais na maneira como a mãe lidava com seus padrões de diretividade. As crianças, de modo geral, demonstraram níveis crescentes de oposição aos diretivos de ação dependente. Entendeu-se como diretivos de ação dependente, quando a mãe utilizava recursos para assumir totalmente a realização de uma atividade ou mesmo para impedir que a criança a realizasse. A oposição das crianças se deu em dois níveis: ativa, definida como gesto ou verbalização infantil com sentido de negação à ordem, sugestão ou atitude da mãe; e passiva, definida como choro, choramingo, resmungo ou indiferença à ordem, sugestão ou atitude da mãe. Esses resultados apontam que diferenças qualitativas nos padrões de diretividade podem provocar efeitos distintos no processo de socialização.

A diretividade materna foi investigada também por Borges e Salomão (2003). Os autores teceram considerações importantes a esse respeito em sua revisão sobre os efeitos da fala materna (motherese) na aquisição da linguagem por parte da criança. Com base na perspectiva da interação social, os autores destacaram que há um grande número de evidências sobre quais estilos de input - experiências recebidas do meio social - podem facilitar o desenvolvimento lingüístico da criança e quais podem inibir seu percurso “normal”.

A diretividade seria um dos estilos de input que pode interferir negativamente no desenvolvimento da linguagem. Através de comandos, direções e instruções, este estilo estaria associado a um desenvolvimento mais lento da linguagem da criança. Assim como apontado anteriormente por Sigolo (2000), a diretividade parece ser um estilo de input característico das mães de crianças com desenvolvimento atípico. De um modo geral, crianças com Síndrome de Down e com distúrbios específicos de linguagem aparentam ser menos ativas e se comunicam de forma menos espontânea. Isto leva a supor que a diretividade dos pais pode ser uma compensação inevitável para a passividade e falta de compreensão ou baixa responsividade da criança.

Não obstante, as incoerências que existem a respeito da conceituação da diretividade foram apontadas por Borges e Salomão (2003). Em razão de que cada autor define-a segundo suas propostas de análise, muitas vezes gera-se um estereótipo negativo (intrusividade, insensibilidade), atribuído ao estilo de fala diretiva. Tal estereótipo não distingue quando a diretividade pode ser facilitadora de quando é considerada inibidora para o processo de aquisição da linguagem. Ademais, os efeitos desse estilo não devem ser interpretados de forma direta, pois seus aspectos podem desempenhar diferentes papéis na comunicação entre os pais e as crianças aprendizes da linguagem. Conclui-se que a criança provavelmente alcançará com mais eficácia o domínio da linguagem se oportunidades de interagir socialmente lhe forem dadas.

Goldin-Meadow (2003) concorda com essa posição em seus estudos sobre a resiliência da linguagem em populações de desenvolvimento atípico. Para a autora, o fato de estar em um mundo não-visual terá pouco impacto sobre o aprendizado da linguagem, pois a criança com DVC poderá utilizar-se de outras pistas contextuais que a ajudem na construção de significados.

Vistas estas dificuldades quanto ao desenvolvimento atípico, a interação social com a criança deficiente visual é, de igual modo, complexa (Santin & Simmons, 1977). De acordo com os autores, as pessoas em geral, e até mesmo os parentes, podem mostrar reações extremadas, tais como: rejeição, por um lado, ou superproteção, por outro. Mais especificamente, no que diz respeito a rejeição, os autores apontaram algumas considerações relevantes. Para eles, os companheiros parecem evitar a interação social com a criança deficiente visual porque ela se mostra aparentemente desinteressada, nãocomunicativa e não informada sobre os rumos da brincadeira. Além disso, falta-lhe o reconhecimento dos indícios visuais que iniciam e mantêm o relacionamento emocional íntimo como, por exemplo, as expressões faciais e os gestos, que constituem um importante componente emocional da comunicação, desde os primeiros anos de vida.

De acordo com estudos revisados por Recchia (1998), observações de bebês com DVC, desde o nascimento têm indicado que a qualidade de suas expressões faciais são freqüentemente subjugadas, e que suas mães podem ter dificuldade de interpretar algumas pistas destes bebês. Embora o bebê com DVC não apresente dificuldades para perceber estímulos auditivos e táteis, se as respostas dos pais forem apenas possíveis de serem percebidas pela visão (Ex.: sorriso) este bebê poderá ter problemas (Warren, 1994). A substituição do estímulo visual pelo estímulo auditivo não é automática para a maioria das mães e há indícios de que uma resposta de uma criança com deficiência visual a um estímulo auditivo não é paralela a uma resposta de uma criança com visão a um estímulo visual (Recchia, 1998).

As dificuldades enfrentadas pelas crianças com DVC referentes ao seu relacionamento com o ambiente, foram relatadas por Sandler e Hobson (2001). Essas observações, realizadas na Blind Nursery of the Anna Freud Centre (anteriormente chamada de Hampstead Child Therapy Centre) durante as décadas de 1950 e 1960, realçaram as implicações da deficiência visual a longo prazo para o desenvolvimento. Além disso, os autores discutem a respeito de uma perspectiva nova, atrelada aos diferentes canais de comunicação, sobre a natureza e o papel do engajamento interpessoal no desenvolvimento das crianças com visão.

Por apresentarem padrões atípicos de comunicação, as crianças com deficiência visual parecem receber de seus pais respostas menos encorajadoras às suas experiências, tendo o desenvolvimento da linguagem afetado (Recchia, 1998). Nesse sentido, a autora realizou um estudo exploratório, com o objetivo de examinar os padrões de comunicação desenvolvidos por díades mãe-criança com DVC. A amostra foi composta de três crianças entre 2 anos e 8 meses a 3 anos e 2 meses de idade com acuidade visual não excedente à percepção de luz. Além disso, as mesmas não portavam outras deficiências e viviam com os pais. Foram realizadas sessões de observação em casa, com duas horas de duração. Em uma dessas visitas havia uma situação semi-estruturada, com uma sessão de 10 minutos de brinquedo livre na presença de um dos pais. O pesquisador introduzia um estímulo ambíguo (trem de brinquedo com botões sonoros – estímulo não assustador) à criança e o cuidador apresentava outro (grande sopro de ar no rosto da criança – estímulo assustador).

Houve ainda sessões adicionais para verificar a presença de comportamentos espontâneos quando as crianças estavam sozinhas ou em interação com irmãos e parentes. Os comportamentos maternos (resposta vocal ou nenhuma resposta) e infantis (referir-se à mãe; atender ao estímulo ou ignorá-lo) foram codificados por intervalos de tempo (30 segundos). Os dois codificadores, cegos aos objetivos do estudo, codificaram também o nível de sincronia entre a díade. O programa de intervenção precoce avaliou o nível de desenvolvimento das crianças. O Inventário HOME (Home Observation Measurement of the Environment) foi adaptado para esse estudo e utilizado para verificar sobretudo as atividades rotineiras da criança. Foram feitas descrições etnográficas de cada criança e família traçando seus perfis.

Os resultados encontrados por Recchia (1998) indicaram que as histórias familiares, os ambientes em que viviam, bem como, as características individuais das mães e as das crianças influenciaram as experiências comunicativas diárias entre a díade. Conforme destacado pela autora, o uso da linguagem como um veículo para a comunicação social foi demonstrado, de diferentes modos. No Inventário HOME, os itens responsividade emocional e verbal mostraram pouca variabilidade. Já os itens correspondentes à aceitação materna, à provisão de brinquedo e aos escores do envolvimento materno mostraram diferenças significativas entre as famílias. No que se refere as respostas aos estímulos ambíguos, Recchia encontrou diferenças qualitativas sobretudo quanto ao estímulo assustador. Uma das crianças, que era mais comunicativa e possuía uma mãe mais responsiva, buscou mais ativamente o apoio e as orientações da mãe. Ao contrário, a criança menos comunicativa com sua mãe fazia suas próprias apreciações sobre os estímulos, sem contar com a mãe para obter informações. No entanto ambas crianças apresentaram níveis baixos de sincronia e menor espontaneidade durante a interação. Por seu lado as mães dessas crianças demonstraram e relataram níveis mais altos de estresse em suas vidas e sentimentos ambivalentes diante dos filhos. Apenas uma dessas três crianças estudadas, apresentou comportamento de referência como uma resposta inicial a ambos estímulos apresentados, após ter sido encorajada por sua mãe. Recchia verificou que tais padrões interativos entre as díades repetiram-se ao longo das outras observações domiciliares realizadas.

Algumas conclusões importantes foram levantadas a respeito desse estudo (Recchia, 1998). A autora aponta que as crianças com DVC, por se apoiarem em pistas táteis e auditivas mais do que em pistas visuais, acabam interpretando as experiências a partir de uma perspectiva diferente da utilizada por suas mães que enxergam. Nesse sentido, ela sugere que o estabelecimento de um entendimento compartilhado dos eventos, pode vir a ser prejudicado. Por outro lado, algumas mães, parecem ser mais efetivas na busca de formas alternativas de comunicar os significados dos eventos para suas crianças do que outras.

O modo mais específico como as mães interagem com seus filhos com DVC foi pesquisado por Behl, Akhers, Boyce e Taylor (1996). A amostra desse estudo constituiu-se de 31 crianças com DVC, de 1 ano e 3 meses a 5 anos e 1 mês. As díades mãe-criança foram filmadas em sessões de brincadeira livre, durante 10 minutos. Dois sistemas de avaliação foram utilizados na codificação dos comportamentos maternos em três grupos: crianças com DVC, crianças com atrasos moderados de desenvolvimento e crianças com desenvolvimento típico, todas emparelhadas por idade cronológica. Um dos sistemas de codificação foi o The Parental Behaviour Rating Scale (PBRS), incluindo vários comportamentos como por exemplo: expressividade, sensibilidade, prazer, exaltação, aceitação e diretividade, entre outros. O outro sistema de codificação, The Parent/Caregiver Involvement Scale (P/CIS), verificou o envolvimento físico e verbal, a responsividade, o controle de atividades, a interação no brinquedo e as declarações/ vocalizações positivas e negativas.

Os resultados encontrados pelos pesquisadores parecem ter sido relevantes para o entendimento dos estilos maternos de interação no contexto da DVC (Behl & cols., 1996).

No PBRS, as mães dos três grupos fizeram três pontos em cinco possíveis, o que foi classificado como níveis moderados dos comportamentos, sendo que não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos. No P/CIS, os grupos obtiveram escores altos nos fatores de qualidade e de apropriação. Nas subescalas que continham os comportamentos de envolvimento físico e de atividade de controle, as mães das crianças com DVC apresentaram maiores escores do que as mães dos outros grupos. De acordo com esses achados, os autores inferiram a necessidade das mães, durante a interação, de encorajar a criança com DVC a tomar um papel mais ativo durante a exploração. Desse modo, a criança pôde se locomover mais e apresentar menor freqüência de comportamento auto-estimulatório. A principal conclusão desse estudo foi de que a presença da deficiência visual por si só não significa necessariamente que o estilo interativo da mãe será deficiente e exigirá remediação, podendo, inclusive, ser equivalente aos das mães de crianças com visão normal.

Os estilos de comunicação mãe-criança com DVC e sua relação com o desenvolvimento da linguagem vêm sendo examinados por alguns pesquisadores (Kekelis & Andersen, 1984; Kekelis & Prinz, 1996; Pérez-Pereira & Conti-Ramsden, 2001; Sapp, 2001). Esses estudos enfatizam a importância de se compreender como a criança ingressa no significado, para então adquirir a linguagem.

Para Bruner (1997), o significado simbólico depende de alguma forma crítica da capacidade humana de interiorizar a linguagem e utilizar seu sistema de sinais. A aquisição da linguagem pela criança requer mais do que a mera assistência das pessoas que dela cuidam. O autor ressalta a necessidade das crianças de interagirem com os outros durante tal processo. Determinadas funções ou intenções comunicativas estão bem estabelecidas antes mesmo que a criança tenha dominado a linguagem formal para expressá-la linguisticamente - indicar e solicitar, por exemplo. Bruner enfatiza a idéia de uma aptidão pré-linguística inata, ou seja, uma forma de representação mental despertada pelos atos e expressões dos outros e por determinados contextos sociais básicos de interação dos seres humanos.

A literatura apontou evidências de que no que se refere ao desenvolvimento típico, os cuidadores focalizam o seu discurso quase que exclusivamente no que a criança já está interessada, para que assim ela possa determinar o tópico (Kekelis & Andersen, 1984).

Sendo assim, quando há mudança de tópico, normalmente o cuidador oferece apoio gestual e monitoração do olhar a fim de verificar se a criança entende o que está acontecendo.

Contudo, quando se está sob a condição da deficiência visual, este quadro pode mostrar-se alterado. Por essa razão, Kekelis e Andersen examinaram seis crianças de 1 a 3 anos de idade, com graus variados de DVC. As crianças foram filmadas em casa, interagindo naturalmente com suas famílias. Os resultados indicaram que os cuidadores das crianças com DVC forneceram amplamente estímulos diretivos e ofereceram relativamente poucas descrições do ambiente, sendo qualitativamente inferiores às descrições dos cuidadores das crianças com visão. Os autores destacaram também, que os cuidadores das crianças com DVC tomaram a iniciativa dos tópicos das brincadeiras em maior proporção do que suas crianças. A escolha desses tópicos esteve centrada mais em função das crianças com DVC do que nas coisas do ambiente.

Mais recentemente, Kekelis e Prinz (1996) examinaram os efeitos da DVC para os padrões familiares de conversação e para o desenvolvimento de habilidades discursivas. As conversas de quatro mães e suas crianças com DVC e com DT foram analisadas durante três sessões de brinquedo livre em seus lares. Os parâmetros de conversação que incluíam a duração dos turnos das díades, o equilíbrio entre as contribuições dos parceiros, e o uso de questões e imperativos das mães foram avaliados. Os resultados revelaram que as durações dos turnos das crianças com visão e suas mães foram comparáveis, mas aquelas das crianças com DVC foram bem mais curtas do que as de suas mães. Isso explicou-se pelo fato de que durante as brincadeiras as mães das crianças com DVC necessitavam dar uma maior assistência a seus filhos. Desta maneira, acabavam introduzindo um número maior de brinquedos e sugerindo como a brincadeira deveria se desenrolar. Segundo os autores do estudo, isso pode levar a restrição das habilidades da criança para ampliar seus interesses, bem como, para desenvolver sua autonomia.

De forma semelhante, Pérez-Pereira e Conti-Ramsden (2001) examinaram as interações verbais entre três mães e suas crianças com DVC, com idades entre 3 anos e 1 mês a 3 anos e 8 meses, dando atenção especial ao uso de diretivos maternos (imperativos que são exigências, comandos e pedidos; ou atos do discurso) e sua caracterização, ou seja, se estes continham informações ou não continham qualquer informação descritiva. Todas as crianças nasceram prematuramente e foram acometidas pela retinopatia de prematuridade, exceto a irmã de uma das crianças que, apesar de também ser prematura, apresentava DT.

As crianças participantes do estudo foram filmadas durante 60 minutos em seus lares, incluindo as interações com as mães. Os resultados apontados pelos autores sugerem que as crianças com DVC não são menos capazes do que as crianças com DT para desenvolver suas habilidades comunicativas, pois iniciaram um grande número de conversas. Ainda, a média da duração dos turnos de fala das crianças com DVC por conversa foi alta, confirmando sua habilidade para iniciar turnos, participar de trocas e, conseqüentemente, contribuir para a manutenção do tópico. Quanto ao uso dos diretivos maternos, uma das mães utilizou uma freqüência maior desses comportamentos com a criança com DVC do que com a outra filha com DT.

Por consegüinte levantou-se uma questão importante a esse respeito (Pérez-Pereira & Conti-Ramsden, 2001). Os autores alertaram sobre os cuidados que os pesquisadores devem ter ao interpretar os comportamentos maternos diretivos como prejudiciais ao desenvolvimento das crianças com DVC. As informações descritivas dos pais, mesmo sob um contexto diretivo, podem ser particularmente importantes para a aquisição da linguagem da criança, assim como para a díade estabelecer AC. Pérez-Pereira e Conti-Ramsden destacaram também, que sem a base visual para a interação, a linguagem atua como uma ferramenta para o contato entre mães e crianças, o que mais tarde será importante para o desenvolvimento do brinquedo simbólico.

A observação da atividade do brincar, de fato, é um dos aspectos mais importantes para o entendimento do desenvolvimento cognitivo e sócio-afetivo das crianças (Tröster & Brambring, 1994). Cabe salientar que diferentes estudos enfatizam a naturalidade com que tal atividade surge durante a infância (Recchia, 1997b; Silveira, Loguercio & Sperb, 2000; Zanandrea, 1998). Os autores ressaltam que as crianças com DT estão aptas a desenvolver a capacidade de brincar ao assistir e imitar as outras pessoas. Nesse sentido, a visão têm um papel de destaque, pois as crianças aprendem como se relacionar com o outro e com os objetos simplesmente porque podem ver o que está acontecendo. A brincadeira enquanto uma experiência precoce serve como base para a exploração futura, manipulação de objetos e interação com pares. Também é importante na educação e na intervenção, pois uma instrução sistemática focalizada no brinquedo encoraja as crianças a terem mais experiências no ambiente que as cercam (Recchia, 1997b; Silveira & cols., 2000; Zanandrea, 1998).

É importante destacar alguns pontos referentes ao desenvolvimento dos tipos de brinquedo (Garvey, 1977; Howes, 1987). No primeiro semestre de vida, o brinquedo é exploratório. Nota-se que o bebê, precocemente, leva os objetos a boca e, depois, sacode-os e bate-os indiscriminadamente. Por volta dos 9/12 meses, ele passa a ter consciência de que os objetos existem mesmo quando não são vistos, usando sua capacidade motora para conseguir o que deseja. Ainda no segundo semestre de vida, a criança começa a verificar a funcionalidade dos objetos, como apertar botões e teclas. Mais tarde, este uso funcional dos objetos se amplia, e então, a criança passa a fazer uso de “ferramentas” (Ex.: um objeto para alcançar outro objeto). Ao final dessa etapa aparece o brinquedo simbólico, de forma rudimentar, o qual progride da brincadeira dirigida ao self, até a de fingir atos.

Posteriormente o brinquedo simbólico vai se ampliando até que, ao final dos 2 anos de idade, a criança passa a combinar brinquedos, durante a atividade de faz-de-conta. Entre 2 e 3 anos o brinquedo adquire uma qualidade interacional importante ao caracterizar-se por cooperação e encenação de atos. Dos 3 aos 4 anos, a criança dirige-se a seus pares para juntas desempenharem papéis em um cenário imaginado. Nessa fase, as relações sociais vão tornando-se mais flexíveis.

Estudos na área do brincar em crianças com DVC revelam peculiaridades e controvérsias (Lewis, Norgate, Collis & Reynolds, 2000; Recchia, 1987). As preocupações comuns dos pais de crianças pré-escolares com DVC foram investigadas por Recchia. A autora indicou algumas situações nas quais as crianças com DVC apresentariam as maiores dificuldades. São elas: a exploração de bonecos e materiais; fazer transições de uma atividade para outra; e brincar com os pares.

Posteriormente, Recchia (1997b) focalizou-se na questão do impacto da DVC sobre as potencialidades da criança para o desenvolvimento do brincar. A autora centrou-se na questão da importância do papel desempenhado por tal atividade, que poderá facilitar o desenvolvimento dos conceitos. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que primeiramente a criança com DT utilizará a visão e, posteriormente, o som e o toque, para transitar facilmente de uma preocupação com seu próprio corpo a um interesse maior pelo ambiente. Todavia conforme apontado por Recchia, as crianças com DVC terão caminhos alternativos para atingir a compreensão acerca de si mesmas e das coisas do ambiente. Para tanto, a linguagem, principalmente a oral, e conseqüentemente o aprendizado do brincar, parecem ser fundamentais para que os pais entendam as pistas dadas por seus filhos com DVC. A autora aponta nesse sentido à importância de uma orientação aos pais para expandirem os potenciais do brinquedo dessas crianças que, em última instância, é a atividade que possibilitará o controle sobre o ambiente. A partir dessa aquisição, sugere-se que as crianças com DVC se tornarão mais competentes em lidar com os objetos e consigo mesmas. Novamente, Recchia chama a atenção para o papel importante a ser desempenhado pelos cuidadores. Esses, ao fornecerem oportunidades para a exploração precoce de materiais e lugares, ampliando-as através de descrições enriquecidas verbalmente, poderão auxiliar na integração das experiências de seus filhos de modo mais significativo. De forma semelhante, os mesmos poderão dificultar ou talvez, impedir que a ausência de visão leve seus filhos ao retraimento social.

As características do brinquedo em crianças com DVC foram revisadas por Rettig (1994). O autor apontou algumas das classificações para este, tais como: solitário, paralelo, funcional e exploratório; ou, simbólico, dramático e cooperativo. De particular interesse são os déficits que foram relatados pela literatura, no brinquedo simbólico. Segundo a revisão de Rettig, as dificuldades apresentadas pelas crianças com DVC para brincarem simbolicamente, estariam associadas aos transtornos de linguagem. Nesse sentido, o autor chamou a atenção para a necessidade de um tipo de intervenção que focalize o self da criança, o seu desenvolvimento sócio-emocional, bem como, os seus potenciais cognitivos.

O autor sugeriu também que os adultos podem melhorar a qualidade do brinquedo, facilitando a adaptação ao ambiente, através de descrições adequadas do mesmo. Além disso, parece ser igualmente importante propiciar e favorecer o envolvimento destas crianças com outros adultos e pares com DT. Resultados semelhantes foram encontrados por Parsons (1986). O autor revelou diferenças nos estudos que compararam os tipos de brinquedo apresentados pelas crianças com DVC e com DT, que foram emparelhadas por idade cronológica. Os resultados encontrados indicaram que crianças com DVC podem apresentar durante a brincadeira menos brinquedo funcional e mais comportamento estereotipado.

Tröster e Brambring (1994) analisaram questionários contemplando questões referentes ao desenvolvimento e particularidades do brinquedo de 91 crianças com DVC emparelhadas por idade cronológica a 74 crianças com DT. Os pais relataram que as crianças com DT se engajaram em níveis mais complexos de brinquedo, sobretudo quando eram mais jovens. No que se refere as crianças com DVC, os autores apontaram que essas interagiram menos freqüentemente com outras crianças do que as crianças com DT. Ainda, preferiram jogos e brinquedos sonoros e táteis, e raramente engajaram-se em brincadeira simbólica. Por outro lado, a literatura mostra evidências controversas a esse respeito (Ferguson & Buultjens, 1995). Esses autores observaram um grupo de crianças com DVC em interação com seus pares, mensalmente, em sessões de brinquedo livre, ao longo de um período de 18 meses, além de medir o nível de desenvolvimento das mesmas, através de uma escala de desenvolvimento. Os resultados revelaram que as crianças que obtiveram escores mais altos na escala também exibiram um nível maior de brinquedo simbólico. As crianças com idade inferior a 18 meses, quando estimuladas por crianças mais velhas e com visão, apresentaram brincadeira simbólica e imitação.

O impacto da deficiência visual na brincadeira funcional e simbólica das crianças foi estudado por Lewis e colaboradores (2000). De acordo com os autores, a definição de brincadeira funcional envolvia o conhecimento conceitual da criança - uma cama serve para deitar. Já o conceito de brincadeira simbólica refletia também a capacidade de simbolizar - uma caixa pode ser usada para representar uma cama e uma boneca pode deitar nela.

Participaram do estudo 18 crianças (7 meninos e 11 meninas), entre 21 e 86 meses, todas com diferentes níveis de DVC, emparelhadas por idade cronológica a um grupo de crianças com DT. Os materiais utilizados foram os seguintes: Test of Pretend Play (TOOP) e Symbolic Play Test (SPT) – duas situações estruturadas, conduzidas pelo experimentador - Childhood Autism Rating Scale (CARS) e Reynell- Zinkin Scales (específico para DVC e outras dificuldades). Enquanto o SPT trata de quatro conjuntos de miniaturas de objetos cotidianos, o TOOP divide-se em quatro seções diferentes. A primeira seção avalia a habilidade da criança de fazer referência a um objeto ausente usando objetos cotidianos. Na segunda, avalia-se a habilidade da criança de substituir até quatro pedaços de material nãorepresentacionais por objetos que simbolizavam algo durante a brincadeira com uma boneca. As duas últimas seções do teste investigam a habilidade da criança para se engajar na brincadeira com um urso, nas situações de atribuir propriedades, substituir, fazer referência a um objeto ausente e desempenhar uma sequência de ações fingidas. O resultados apontaram diferenças significativas entre as crianças na seção dois do TOOP, e correlações importantes com a linguagem. É importante destacar que não houve diferenças quanto ao relacionamento dos dois tipos de brincadeira com o nível de DVC. Ainda, três das 18 crianças do estudo, as quais obtiveram escores altos no CARS, foram as mesmas que obtiveram escores baixos no TOOP ou falharam completamente em engajar-se nas tarefas propostas.

O entendimento que os autores fizeram sobre os resultados que encontraram em seu estudo levantou questões importantes quanto a relação da DVC com o brinquedo simbólico (Lewis & cols., 2000). A possível explicação dos pesquisadores para o atraso encontrado quanto à brincadeira funcional, é de que para as crianças com DVC fica difícil desempenhar uma atividade quando há um número significativo de brinquedos com os quais elas devem brincar. Em cada item da seção dois do TOOP, a qual envolvia grupos de objetos, a criança era perguntada sobre o que uma boneca podia fazer com uma, duas, três e quatro peças de material não-representacional respectivamente. Nesse sentido, os autores chamam a atenção para o fato de que muitas crianças, de ambos os grupos, conseguiram relacionar algumas das peças com a boneca, mas não todas. O grupo das crianças com DVC passou muito tempo fazendo perguntas e declarações como se estivesse checando se entendeu o que eram os objetos que estava manipulando. Ao contrário, menos de 5% das crianças com DT, buscaram informações sobre os brinquedos dessa forma. A conclusão dos autores ressaltou o papel fundamental exercido pela visão para a identificação dos objetos e conseqüentemente, sobre como uns se associam a outros. Para eles, é provável que dificuldades possam aparecer enquanto as crianças estão brincando, mesmo quando lhes é dado tempo suficiente para a exploração.

No Brasil, a literatura nesta área é bastante escassa. Recentemente um estudo de Silveira e colaboradores (2002), examinou a brincadeira simbólica de crianças com DVC.

Os participantes foram seis crianças com idades entre 6 e 11 anos e meio, pertencentes a nível sócio econômico baixo e freqüentando a pré-escola. As crianças foram observadas, na sala de aula, em dois contextos diferentes (brincadeira espontânea e brincadeira proposta), a fim de verificar se a influência destes determinaria distinções nos níveis simbólicos da atividade de brincar. As crianças com DVC estavam em interação com outras crianças, mas apenas no contexto da brincadeira proposta o observador sugeria a brincadeira de cunho simbólico. Posteriormente a essa etapa, as observações foram descritas e analisadas, com base nos níveis cognitivos propostos por McCune-Nicolich, que vão desde o período sensório-motor (0 aos 2 anos) até o período simbólico (2 anos em diante).

No contexto espontâneo, os resultados encontrados por Silveira e colaboradores (2002) foram de que todas as brincadeiras do período sensório-motor foram pré-simbólicas (quando não há faz-de-conta). Já no período simbólico, aparecem brincadeiras mais evoluídas em relação a este nível de desenvolvimento cognitivo. Quanto ao número de brincadeiras, quando se comparou os dois períodos no contexto referido acima, notou-se que estas ocorreram de forma equilibrada: sensório-motor (51,35%) e simbólico (48,65%).

Por outro lado, no contexto proposto aparecem apenas brincadeiras no nível simbólico, sendo 72,72%, pertencente à níveis cognitivos elevados. Os autores destacam que tais resultados sugerem que a proposta de cunho simbólico feita pelo adulto (pais ou profissionais orientados) leva a criança com DVC a representar muito mais do que em situações espontâneas, quando uma proposta organizada não lhe é dada, ressaltando o papel decisivo da estimulação precoce e do papel do adulto como um facilitador deste processo.

Pesquisas na área da interação social e DVC têm implicações para o desenvolvimento de estratégias alternativas de comunicação que auxiliem a interação entre as famílias e suas crianças cujo desenvolvimento é atípico. Entretanto, a análise da questão da qualidade de interação entre os cuidadores e crianças com DVC revela a necessidade de mais investigações nessa área.


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excerto de:
AS RELAÇÕES ENTRE DEFICIÊNCIA VISUAL CONGÊNITA, CONDUTAS DO ESPECTRO DO AUTISMO E ESTILO MATERNO DE INTERAÇÃO
autora: Ana Delias de Sousa
Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento
Porto Alegre, 2003

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3.Jul.2014
publicado por MJA