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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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 Competências Pessoais e Sociais e a Deficiência Visual

Margarida Gaspar de Matos

O cego de Toledo - Joaquín Sorolla y Bastida, 1906
O cego de Toledo - Joaquín Sorolla y Bastida, 1906

 

Psicopatologia e Deficiência Visual

Quando aqui há anos comecei a leccionar a disciplina de “Psicopatologia da Pessoa com Deficiência Visual”, no Mestrado de Reabilitação Visual da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa e Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, fiz um estudo aprofundado do que haveria de específico na co-existência destas duas condições “deficiência visual” e “psicopatologia”.

De acordo com a pesquisa então realizada, a resposta é NADA: apenas um conjunto de coincidências. Só mesmo por uma questão de organização mental académica se pode falar da “psicopatologia da pessoa com deficiência visual”, sendo que a diferença ou similaridade do ponto de vista da saúde mental entre duas quaisquer pessoas com deficiência visual é idêntica à diferença ou similaridade entre duas quaisquer pessoas normovisuais.

Conheço argumentos do género “Sim, mas eles desenvolvem mais frequentemente fobias” ou “Sim, mas eles desenvolvem com mais frequência depressões” ou “Sim, mas eles são mais ansiosos”. Estes comentários caracterizam-se por um senso comum perfeito (toda a gente conhece “este e aquele”, “um caso disto ou daquilo” ou “um primo que isto ou que aquilo”), mas carecem de confirmação teórica, clínica e epidemiológica convincente, segundo os critérios científicos normalmente aceites. Mais, farão as reticências de profissionais experientes nesta área.

 

Programas de Promoção de Competências Pessoais e Sociais

O tema aqui em debate é tangencial a esta questão da psicopatologia, uma vez que pretendo reflectir sobre os programas de promoção de competências pessoais e sociais (PPCPS) e as pessoas com deficiência visual.

A promoção de competências pessoais e sociais, como estratégia preventiva do desajustamento pessoal e social e como estratégia promotora da saúde/bem-estar, é uma filosofia de intervenção fortemente baseada:

  1. no modelo (chamemos “sócio-cognitivo”) de Vygotsky, que nos remete para a necessidade de potenciar em cada criança, jovem ou adulto, a sua “zona de desenvolvimento próximo”;

  2. num modelo de aprendizagem sócio-cognitiva de Albert Bandura, (que mais recentemente lemos “sócio-cognitiva-emocional”);

  3. no modelo de Bruner que nos fala de “modalidades de interacção com o mundo”, privilegiando o modo activo e gráfico na infância e o simbólico na adolescência;

  4. nas linhas orientadoras da Organização Mundial de Saúde, desde Alma-Ata, que nos preconizam intervenções preventivas e promocionais, com a capacitação e a participação das populações visadas e outros agentes comunitários, que se centram na promoção de competências pessoais e sociais, na autonomia, na resiliência, no optimismo, na participação social e na responsabilização pessoal.


Deste parágrafo ressalta um primeiro sublinhado: a necessidade de um modelo teórico que justifique e guie este tipo de intervenções. Estas não se podem reduzir a um conjunto de jogos, a uma animação de “corredor” ou de “recreio”. Visam uma mudança estrutural ao nível do desenvolvimento e da aprendizagem e pressupõem, para além deste referencial teórico, uma estratégia, promotora de saúde e bem-estar pessoal e social e uma intervenção competente por parte de profissionais qualificados.

Os programas de promoção de competências pessoais e sociais são eficazes na promoção da saúde e do bem-estar das pessoas? Muita da literatura de vários autores nacionais e internacionais, entre os quais trabalhos de investigação da nossa equipa, sugere que sim.

Mas, adianta-se sempre que estes programas não são a panaceia para “todos os males”, nem tão pouco devem levar à “desresponsabilização das famílias, da escola e restantes contextos sociais relevantes” considerando que, com um PPCPS, o problema do “outro” fica resolvido.

Mas, “o mal” não vem sempre de “fora”. Às vezes, vem mesmo do próprio sistema (família, grupo de pares, escola, comunidade) e tem sempre, pelo menos um pouco, a contribuição desses vários contextos pelo seu tipo de interacção com a “pessoa perturbada, marginal, com problemas ou dificuldades”.

As mudanças cognitivas, emocionais e comportamentais que acontecem durante um PPCPS, ocorrem em geral como parte do desenvolvimento pessoal e social “natural” de cada um, em contacto, observação e interacção com os pais, irmãos, amigos, professores, entre outros. Acontecem lentamente ao longo da vida, sem mesmo se dar por isso… Contudo, por vezes, os modelos sociais são deficitários ou inexistentes, os contextos sociais são demasiado adversos e as características pessoais dificultam a atenção, a motivação e a aprendizagem. Nestes casos, feito o diagnóstico da situação-problema, técnicos devidamente formados poderão propor como uma das medidas a tomar, a frequência de PPCPS.

Não é “bom” para todos, não é “bom” sempre, não é “bom” se levado a cabo por qualquer técnico indiferenciado, com pouca ou deficiente formação, não é “bom” descontextualizado ou descontinuado.

Um PPCPS é uma estratégia de intervenção com indicações clínicas e educacionais claras e com técnicas que têm de ser dominadas pelos profissionais, destinada a pessoas com dificuldades de comunicação e de relacionamento pessoal e social, de identificação e resolução de problemas, de gestão emocional e para pessoas com baixas expectativas face ao seu futuro.

Se essas pessoas são ou não normovisuais, não me parece a questão mais pertinente, nem do ponto de vista clínico, nem do ponto de vista teórico, nem tão pouco do ponto de vista da minha experiência profissional. Poupando uma repetição do descrito nos parágrafos anteriores, a lógica é a mesma do que referi para a questão da “Psicopatologia da Deficiência Visual”. Na falta de enquadramento teórico e de provas empíricas ou epidemiológicas, gostava de referir alguns casos paradigmáticos deste ponto de vista.


O Dr. Miguel (nome fictício)

Estava eu no “apoio educativo a alunos com deficiência” quando fui fazer um curso avançado de Química Braille (na altura era assim mesmo, uma coisa complexa a ser pensada e executada naquelas máquinas de 6 botões). Por causalidade, fui a primeira a chegar à aula e, logo em seguida, chegou um senhor que disse em voz alta “Boa tarde”. Quando eu respondi “Boa tarde”, dirigiu-se a mim e pediu-me que o ajudasse numa tarefa.

Aproximei-me, ele comunicou-me que era o professor e pediu-me para lhe descrever a topografia da sala, em que direcção estava a mobília e mais duas ou três perguntas relacionadas com a disposição dos alunos. Enfim, não precisei de ser psicóloga para ver que o senhor era invisual (e não portador de uma qualquer personalidade perturbada).

Na verdade, deleitei-me a observar como o professor, depois das minhas poucas instruções, deu o resto da aula com uma expressão verbal e não-verbal invejável para o comum dos docentes, dirigindo-se verbalmente aos alunos, orientando-se na sua direcção…enfim… PPCPS? A que propósito?


O Dr. Joaquim (nome fictício)

O Joaquim foi meu aluno no Mestrado em Reabilitação e, na primeira aula, aquando da apresentação, começou logo a provocar-me com boa disposição: “Sempre quero ver o que tem a dizer sobre a minha psicopatologia!”. Não, não pensem que era “fel destilado” ou “amargura a verter animosidade”, era mesmo bom humor e vontade de “se meter comigo”.

No dia da defesa da dissertação, o júri (composto de especialistas, dos quais eu fazia parte) fez uma grande maldade ao Joaquim, inadvertida mas “condescendentemente”.

Quando chegámos ao Salão Nobre e começámos a arrumar as cadeiras do júri, numa tentativa de o ajudar a não ter obstáculos, subestimámos as competências pessoais e sociais do Joaquim, que tinha passado a manhã com um colega a estudar a sala e nós com a nossa “arrumação” criámos imensas barreiras à sua autonomia e competência. PPCPS? A que propósito? A propósito do senhor ser invisual?


O João (nome fictício)

Foi meu aluno “do apoio” durante vários anos. Era um aluno inteligente e aplicado que tinha desenvolvido ao longo do seu percurso académico várias estratégias competentes para lidar com os professores e embaraçá-los.

A sua “partida” favorita era quando os professores, no auge da sua retórica, diziam coisas do género “Estão então a ver que os Assírios e Caldeus mantinham relações de vizinhança hostis...”.

A sua resposta pronta era “Eu não vejo…não sei como consegue dizer uma coisa dessas comigo na sala, só se for para me pôr triste!”, deixando os professores numa atrapalhação sem limites…

O João era por vezes extremamente teimoso, impertinente ou manipulador, tinha também um sentido de humor ímpar e uma grande vontade de viver. Ao longo de todos os anos em que convivemos, nunca encontrei nenhum critério clínico “Psi” que lhe pudesse associar… PPCPS? A que propósito?


A Paula (nome fictício)

A Paula era amblíope. Coladinha ao papel ia lendo grandes ampliações. Estava na adolescência e recusava-se a aprender Braille, embora soubesse que ia cegar, muito provavelmente por isso mesmo…

Era uma miúda muito sociável, empática, boa aluna e uma excelente desportista. Com ela introduzimos uma actividade de natação na equipa, sendo sempre a minha “assessora” mais implicada. O professor de Educação Física dizia que a Paula era sempre a voluntária para exemplificar os exercícios, tanto na piscina como no tapete. Idem… ao longo de todos os anos em que convivemos, nunca encontrei nenhum critério clínico “Psi” que lhe pudesse associar… PPCPS? A que propósito?


O Filipe (nome fictício)

O Filipe é um profissional de saúde. É um colega e amigo que às vezes nos visita nas férias. Adoro vê--lo na minha varanda a descrever passeios que deu, contando pormenores variados numa riqueza verbal cativante. Gosta de introduzir no seu discurso pormenores como “logo ali à saída, do lado direito há uma padaria com uns azulejos azuis pequeninos com temas geométricos...”. Surpreende-nos sempre com os seus gostos e expectativas: aprender Ski, Windsurf, nadar do barco até à praia, explorar connosco as arribas fósseis, fazer caminhadas para ver a natureza… enfim, alguns de nós são mais medrosos, outros cansam-se mais, ele não vê, cada um “na sua”, e cada um a ajudar os outros a viver o melhor possível e a divertir-se nas férias…

O Filipe é um bom amigo, um grande comunicador, um excelente humorista, um bom solucionador de problemas, um excelente profissional, mantém uma rede de amigos invejável, é muito culto e tem imensos interesses na vida. PPCPS? A que propósito?

Passei grande parte da minha vida profissional e académica a teorizar, desenhar, adaptar, implementar e avaliar PPCPS em diferentes tipos de populações, com objectivos específicos e em várias idades.

Assisti a grandes e a moderados sucessos no que diz respeito à eficácia destes programas e, basicamente, até sou “fã” e “crente” da sua eficácia, no entanto… PPCPS para pessoas com deficiência visual? Sim, claro! Mas só mesmo se houver alguma indicação clínica ou educacional para tal!

FIM

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Competências Pessoais e Sociais e a Deficiência Visual
Margarida Gaspar de Matos
Universidade Técnica de Lisboa / Universidade Nova de Lisboa
in Revista Diversidades n.º 23
Ano 6 - Janeiro, Fevereiro e Março de 2009

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4.Jan.2016
publicado por MJA