
Nunez na Terra dos Cegos - xilogravura
de Clifford Web para 'The Country Of the Blind', versão de
1939
1.
Introdução
- 2. Ver não depende só do bom funcionamento do canal
visual
- 3. O bebê cego e as primeiras relações
sociais
- 3.1. Primeira Fase
- 3.2. Segunda fase
- 3.3. Terceira fase
- 3.4. Quarta fase
- 4. Os sentidos do tato, do olfato, do paladar e da audição
- Considerações
finais
-
Referências Bibliográficas
1. Introdução
O tema 'cegueira' instiga as pessoas a realizarem indagações referentes à vida
cotidiana da pessoa
cega. As indagações são, em sua maioria, centradas na limitação e não na
potencialidade dos sujeitos
cegos (NUNES; LOMÔNACO, 2010).Na mesma linha de discussão Rosa e Ochaíta (1993),
ressaltam
que não se pode negar que vivemos em um mundo visual: nossa cultura e nossos
ambientes estão
centrados no conceito de que uma parte muito significativa da população enxerga
e o canal visual é
extremamente valorizado. Para Ventorini (2009), é um erro sobrevalorizar o canal
visual como se ele
fosse autossuficiente. O uso da visão assim como o uso do tato, da audição, do
paladar e do olfato
não pode ser dissociando dos processos psíquicos superiores (CAIADO, 2003).
Outro pensamento errôneo é que a pessoa cega vive em completa escuridão. Apenas
uma pequena parcela das pessoas diagnosticadas como cegas não tem nenhum grau
visual. Os sujeitos
diagnosticados como cegos podem possuir acuidade visual igual ou menor que
20/200 (0,1). Isto
significa que enxergam a 20 pés de distância aquilo que uma pessoa com visão
normal enxerga a
200 pés (VENTORINI, 2007). O intervalo de 0,1 até 0,0 é denominado de “cegueira
legal”, composta
pelos seguintes características:
-
Percepção luminosa: distinção entre a luz e o escuro;
-
Projeção luminosa: distinção da luz e do lugar donde emana;
-
Percepção de vultos: visão de dedos;
-
Percepção de formas e cores: visão de dedos (DIAS, 1995,VENTORINI, 2009).
O sujeito será diagnosticado como cego quando sua acuidade visual não for
suficiente para ler o
braile e quando os sentidos do tato, do olfato, da audição e do paladar e da
sensibilidade cutânea
forem primordiais na apreensão do mundo externo (AMIRALIAN 1997).
A Organização Mundial de Saúde (OMS, 1992) e o Conselho Internacional de
Educação de Deficientes Visuais (ICEVI, 1992) alertam sobre o fato de o
desempenho visual ser um processo funcional
e não somente uma expressão numérica de medida da acuidade visual. O MEC
ressalta a importância da avaliação clínico-funcional realizada por
oftalmologistas e pedagogos para diagnosticar uma
pessoa como cega. Este diagnóstico é emitido quando há o comprometimento do
funcionamento
visual em ambos os olhos, mesmo após tratamento e/ou correção de erros
refracionais comuns e
quando a pessoa não consegue ler o braile com o auxílio da visão.
Por causa da cultura visual, as pessoas que enxergam pouco percebem como usamos
sentidos
do tato, do paladar, do olfato e da sensibilidade cutânea nas atividades da vida
diária. Nunes e Lomônaco (2010) destacam que muitas informações recebidas são
erroneamente atribuídas como
exclusivamente visuais. Reforçando a afirmação das autoras convida-se o leitor a
responder rapidamente as perguntas: Já (re) conheceu uma boa comida só pelo seu
cheiro? Já fechou os olhos por
um segundo para degustar um delicioso petisco, buscando apreciá-lo somente pelo
paladar? Tocou
um objeto com as mãos para “visualizá-lo” melhor? Parou por algum instante o que
estava fazendo,
fechando os olhos, só para ouvir uma música?
Com certeza houve muitas respostas afirmativas, simplesmente porque o ser humano
usa esses
sentidos todos os dias juntamente com a visão. No entanto, a atribuição da
importância do canal
visual impede perceber que a visão por si só não é suficiente. Por isso este
artigo tem como objetivo
apresentar diálogos com autores que discutem características da cegueira
congênita e importância
do uso de todos os sentidos juntamente com os processos psíquicos superiores.
2. Ver não depende só do bom
funcionamento do canal visual
Ao consultar a literatura especializada constata-se a amplitude da terminologia
deficiência visual. O termo refere-se às pessoas com baixa visão como já
discutido no capítulo anterior, às que
perderam a visão na idade adulta ou na infância, às que nasceram cegas, às que
enxergam vultos ou
sombras ou distinguem apenas a claridade. A atitude diante dessas pessoas não
deve ser limitada
à categorização, mas ao relacionamento com a pluralidade do organismo humano
(FREIRE, 2004).
Não há dúvidas que os avanços nas áreas da medicina e da tecnologia curam ou
amenizam patologias e/ou problemas físicos, sensoriais e psíquicos. Não há
dúvidas também que estes fatos podem
gerar a falsa ideia de que uma pessoa cega congênita pode enxergar normalmente
ao se beneficiar dos
referidos avanços. O aprendizado do uso da visão é tão natural que muitas
pessoas acreditam que já
nascemos com a sabedoria para usá-lo. Sacks (1995, p.132) exemplifica claramente
que ao longo da
vida o ser humano aprende a “ver” e que o sujeito cujo sistema de funcionamento
do canal visual ficou
afetado durante anos não desenvolve o ato de “ver” só porque teve seu sistema
recuperado/corrigido:
Não se “vê”, sente ou percebe em isolamento – a percepção
está sempre ligada ao comportamento e ao movimento, à
busca e à exploração do mundo. Ver não é suficiente; é preciso
olhar também. Von Senden menciona o caso de duas crianças
cujos olhos ficaram tampados desde a mais tenra idade e que,
quando as vendas foram retiradas aos cinco anos, não tiveram
nenhuma reação, Não tinham nenhum olhar, pareciam cegas.
Fica o sentimento que estas crianças, que construíram seus
mundos com outros sentidos e comportamentos, não sabiam
como usar os olhos. O ato de olhar - como uma orientação,
um comportamento – pode até desaparecer naqueles que ficam cegos já em idade
madura, a despeito do fato de terem
sido “olhadores” durante toda a vida.
A pessoa cega não é apenas alguém que perdeu um sentido cuja valorização é
culturalmente atribuída pelos que enxergam, mas um sujeito que
percebe, organiza e forma suas impressões do mundo por meio dos sentidos
do tato, do olfato, do paladar e da audição juntamente com os processos
psíquicos superiores (VENTORINI, 2009), ou seja, encontram alternativas para
seu desenvolvimento e sua aprendizagem.
A ausência da visão não é simplesmente não enxergar, ou ter que
aprender o sistema braile para ter acesso à linguagem escrita, ou necessitar de
uma bengala branca para deslocar-se pelas ruas ou, ainda, ter
acesso à adaptação de técnicas de ensino/aprendizado. A cegueira é um
déficit muito complexo que implica uma série de restrições perceptivas e
de relação social (LEONHARDT, 1992), assim como habilidades sensoriais
e psíquicas.
Pesquisas indicam que o ato de ver não se resume somente em olhar
algo, mas atribuir significados ao que se vê. Sacks (1995), ao relatar o caso
de Virgil destaca que é necessário experiência para ver. Virgil era um homem que
ficou cego na infância devido à catarata e teve a visão recuperada aos cinquenta
anos de idade, após ser submetido a cirurgia para retirada das cataratas nos
dois olhos. No entanto, Virgil olhava e não enxergava,
não reconhecia os objetos e as pessoas somente por olhá-los, tinha que
tocá-los, cheirá-los, escutá-los.
Todos, incluindo, Virgil, esperavam algo mais simples. Um homem abre os olhos, a
luz entra e bate na retina: ele vê. Como
num piscar de olhos, nós imaginamos. E a própria experiência
do cirurgião, como da maioria dos oftalmologistas, era com a
remoção de cataratas de pacientes que quase sempre haviam
perdido a visão tarde na vida – e tais pacientes têm, de fato,
se a cirurgia é bem-sucedida, uma recuperação praticamente
imediata da visão normal, já que não perderam de forma alguma a capacidade de
ver. Assim sendo, embora tenha havido
uma cuidadosa consideração cirúrgica da operação e de possíveis complicações
pós-operatórias, houve pouca discussão ou
preparação para as dificuldades neurológicas e psicológicas que
Virgil poderia encontrar (SACKS,1995 p. 129).
A trajetória de Virgil após a cirurgia mostra que o ato de enxergar
não acontece somente com o bom funcionamento do canal visual. A eficiência
visual depende de duas condições:
a) amadurecimento ou desenvolvimento dos fatores anatômicos e
fisiológicos do olho, vias óticas e córtex cerebral;
b) uso dessas funções, juntamente com os processos psíquicos superiores.
Para entender e/ou reconhecer um objeto, observá-lo por meio
do canal visual não é suficiente, faz-se necessário recorrer às informações
armazenadas na memória. Virgil não possuía experiência visual suficiente
para reconhecer os objetos, por isso não tinha memória visual para apoiar
sua percepção. Sua retina e nervo óptico estavam ativos, transmitindo impulsos,
mas seu cérebro não atribuía sentido às informações (SACKS, 1995).
Virgil era cego congênito e, geralmente, as pessoas associam, erroneamente, o
termo cego congênito aos sujeitos que nascem cegos e o
termo cegueira adquirida aos que perderam a visão após o nascimento,
desconsiderando a idade em que este fato ocorreu. Por isso, julga-se importante
apresentar diálogos com autores que pesquisaram as primeiras
relações sociais dos bebês cegos.
3. O bebê cego e as primeiras
relações sociais
Na literatura científica são considerados cegos congênitos os indivíduos que
ficaram cegos entre
0 a 5 anos de idade. Neste período, a visão pode ou não auxiliar em etapas dos
desenvolvimentos
sensório-motor e cognitivo. Com o passar do tempo, as imagens visuais adquiridas
são substituídas
pelas táteis e somatossensorial.
Amiralian (1997) tem como base os trabalhos de Lowenfelde e Hall para afirmar
que o sujeito que
perdeu a visão até os 5 anos de idade não retém memória visual e que, no período
pré-operatório
do desenvolvimento cognitivo, só formam imagens concretas e estáticas. A criança
não é capaz de
representar ou antecipar processos desconhecidos, ou seja, referentes à formação
de conceitos.
Na cegueira adquirida, os processos psicológicos e etapas dos desenvolvimentos
motor e cognitivos tiveram o auxílio da visão. O problema consiste em o sujeito
aprender a viver sem o canal visual.
Esta aprendizagem não é fácil por envolver aspectos orgânicos, psicológicos,
sociais e culturais. Em
minha trajetória de pesquisa, muitas vezes, questionaram-me sobre qual grupo de
indivíduos julgava
mais fácil trabalhar: com o cego congênito ou o com cegueira adquirida, que
possui memória visual.
Os grupos não podem ser comparados, ambos possuem habilidades e limitações e,
mesmo dentro de
cada grupo, há uma gama de aspectos que os diferenciam uns dos outros. As
diferenças, geralmente,
não são ocasionadas pela ausência da visão, mas pelo modo que o sujeito é
tratado pela sociedade.
Na mesma linha de pensamento, Cerda (1992) expressa que, ao primeiro contato com
o mundo
dos cegos, formulou uma pergunta que acredita ser realizada por todo
profissional que trabalha com
pessoas cegas: como é o mundo do cego de nascimento? A primeira resposta foi:
deve ser de trevas!
A autora destaca que a ideia de trevas surgiu pelo aspecto emocional gerado pela
imaginação
da perda de algo tão valioso para ela: o dom de ver. Destaca ainda que não
adiantava entrar em
um quarto escuro e imaginar a vida nesta situação para sempre, pois já tinha um
mundo anterior
organizado em sua mente. A forma como organizou o seu mundo não podia ser a
mesma dos que
nascem cegos. O cego congênito deve construí-lo com outras bases que ainda não
foram totalmente
compreendidas pelos pesquisadores.
Estimativas indicam que mais de 80% de todos os indivíduos diagnosticados como
cegos possuem
visão útil para fins funcionais. No entanto, nos atendimentos prestados a essa
população, há poucas
orientações sobre programas de estimulação e aprendizagem do uso da visão
residual (SALOMON,
2000). Outro fato importante é que o nenê quando nasce sem uma deficiência
encontra ambientes
físicos e sociais culturalmente preparados para estimular seus desenvolvimentos
motor e cognitivo.
O mesmo não ocorre com os bebês que nascem com limitação sensorial, física ou
psíquica. Culturalmente, nem todos os ambientes físicos nem todas as pessoas
estão aptos a minimizar as limitações geradas pela deficiência. A cegueira
afeta, significativamente, a relação social mais importante
no desenvolvimento do bebê: relação cuidador (mãe) /filho (LEONHARDT, 1992).
Autores como Ungar (1988, 2000), Warren (1994), Dias (1995), Silva Leme (2003),
Ochaíta e Espinosa (2004), Ventorini (2009, 2014), também ressaltam a
importância da relação afetiva mãe/filho
para o desenvolvimento adequado do bebê cego, assim como as dificuldades dos
pais para aceitar a
cegueira e, consequentemente, estimular os desenvolvimentos motor e cognitivo da
criança. Compartilhando da mesma opinião Rodrigues e Macário (2006, p. 1)
destacam:
Ao nascer, em geral, a criança cega não encontra a receptividade esperada de sua
família, se
comparada à recebida pela criança de visão normal. Tão logo a cegueira da
criança é percebida, nos primeiros dias ou meses de vida, ocorre com freqüência
uma ruptura ou comprometimento do vínculo afetivo que se estabelece e sustenta a
relação mãe/filho. A primeira
inclusão da criança ocorre em seu núcleo familiar, através do vínculo afetivo
com sua mãe, nos
cuidados dispensados a ela. A família, portanto, constitui a base sobre a qual o
indivíduo evolui. A ansiedade da família em torno da presença de uma criança
cega é, em geral, intensa, e
na maioria dos casos a mãe não fica disponível, de imediato, para estabelecer
uma boa relação
com seu filho tão diferente do esperado.
Os pais vivenciam etapas conflituosas para conseguir atingir uma posição
adaptativa diante da deficiência da criança. Esta adaptação pode ser positiva,
negativa ou passiva e resultam em
consequências da mesma natureza para o bebê (LEONHARDT,1992). A autora, tendo
como base o
estudo de Bowlby, indica que a relação afetiva do bebê com a pessoa que cuida
dele é formada por
quatro fases. Estas fases sofrem alterações positivas, negativas ou passivas
quando há um nenê cego
na família. A seguir são apresentadas as quatro fases.
3.1. Primeira Fase
O bebê começa a perceber a pessoa que cuida dele e responde a este
cuidado emitindo sinais. Quando o bebê não possui nenhuma deficiência
estes sinais são facilmente reconhecidos, as pessoas observam os primeiros
movimentos dos olhos, da boca (sorriso, balbúcia etc.), das atividades
motoras, como agarrar, e das atividades cognitivas, como parar de chorar
ao ver a mãe. Estas atividades, assim como as causas e os efeitos dos estímulos,
ampliam-se com o passar dos dias, promovendo os desenvolvimentos motor e
cognitivo adequados para o nenê (LEONHARDT, 1992).
As respostas aos estímulos do bebê cego serão muito sutis o que exige mais
atenção por parte das pessoas ao seu entorno. O bebê cego, na
maioria dos casos, não sorri, balbucia pouco e obviamente não segue as
pessoas com os olhos (ROVEDA, 2007). Estes fatos somados às etapas conflituosas
vividas por sua mãe começam a comprometer a relação mãe/
filho e, consequentemente, o desenvolvimento da criança (LEONHARDT,
1992).
Muitas vezes, nesse período, a mãe vive momentos angustiantes por
não ter se concretizado o sonho do filho “normal”. Os pais, ao receberem o
diagnóstico da patologia do filho, podem ter a sensação de negação, acreditando
que o filho não é o deles, sentir-se desvinculado dele, não querer
acariciá-lo, abraçá-lo ou olhá-lo. Além disso, vivem crises de irritabilidade
e de isolamento, por isso tem perda de apetite, do sono e do desejo de
viver, ficam confusos a respeito da própria identidade e almejam viver em
outro tempo e espaço e perdem também a autoestima. Nesta situação é
muito difícil para a mãe estabelecer uma relação afetiva saudável com seu
filho. Os programas de apoio familiares neste período são fundamentais
para que os pais estabeleçam relações saudáveis com seus filhos e contribuam
para seus desenvolvimentos motor e cognitivo. A primeira fase
influencia a segunda de forma positiva ou negativa (LEONHARDT, 1992).
3.2. Segunda fase
Esta fase é a prolongação positiva ou negativa da primeira. Dependendo do tipo
de relação afetiva mãe/filho, o bebê cego identificará com
facilidade a pessoa que cuida dele, sendo que esta consegue acalmá-lo
em momentos inquietos e de choro. Para ela são emitidos sorrisos e
gargalhadas durante brincadeiras corporais (cócegas) como respostas
positivas aos estímulos recebidos.
Os estímulos são respondidos, ainda, com as primeiras explorações do
rosto da mãe principalmente na boca. A exploração da boca ocorre ao
ouvir a voz conhecida. Inicia-se assim o desenvolvimento da coordenação
ouvido-mão (LEONHARDT, 1992,ROSA; OCHAÍTA, 1993, WARREN, 1994,
DIAS, 1995, FORNS, LEONHARDT E CALDERÓN, 2000, CERDA, 2002, OCHAÍTA E ESPINOSA,
2004, LEONHARDT, 2007).
O bebê pode demorar mais tempo para iniciar a coordenação ouvidomão caso a
pessoa que cuida dele não o estimule com carícias e conversas,
assim como, a diferenciação das pessoas. Caso haja a estimulação, o bebê
cego, como qualquer criança, será seletivo e emitirá respostas dirigidas ao
seu cuidador, iniciando assim a terceira fase.
3.3. Terceira fase
Nesta fase há ampliação da discriminação das pessoas seguida de respostas
dirigidas. O bebê mostra claramente a preferência pela pessoa que cuida dele.
Esta pessoa torna-se o ponto de partida para a exploração, principalmente,
dos sons no ambiente. Ao conferir significado a esta experiência o bebê
reconhece a figura da mãe e mostra alegria quando ela esta próxima e sinais de
alerta e desorientação no contanto com estranhos (LEONHARDT, 1992).
O bebê inicia a seleção das pessoas, mostrando favorecimento pelas quais
tem mais contato. Se a relação mãe/ bebê/familiares é harmoniosa e carinhosa a
criança será alegre, expressiva e curiosa, mostrando interesse crescente
pelo entorno e ampliando suas relações com outros membros da família. No
entanto, se a mãe estiver vivenciando as fases críticas das etapas apresentadas,
não conseguindo manter uma relação harmoniosa e carinhosa com o
bebê ao mesmo tempo em que é a sua cuidadora, o nenê apresentará atrasos
em seus desenvolvimentos motor e cognitivo (LEONHARDT, 1992).
3.4. Quarta fase
Para Leonhardt (1992) esta fase é o aprofundamento da relação entre o bebê e sua
mãe. Ao final da
terceira fase e início da quarta, o bebê configura a mãe como um ser único, que
persiste no tempo e
no espaço e que tem uma continuidade. Progressivamente, a relação se torna única
para o bebê pela
qual é dependente de sua mãe. Novamente é importante destacar que, os
desenvolvimentos motor e
cognitivo do bebê, nesta fase, assim como nas outras, dependerá do tipo de
relação que mantém com
as pessoas ao seu entorno, em especial com o cuidador. Veiga (1983, p. 7) alerta
sobre a importância
desta relação, principalmente pelo fato da limitação visual prejudicar a
aprendizagem por imitação:
É nessa altura que as crianças entram na fase da imitação, quase inacessível às
que não vêem.
À mãe do cego é vedada a alegria de ver o dedinho do filho apontando o objeto
desejado,
ou a mãozinha idolatrada lhe acenando adeus. Não: o filho não lhe imitará as
mímicas – esse
grande prazer do lar – primeiras ginásticas dos futuros gestos, da expressão do
rosto, enfim,
do aspecto externo de sua personalidade. O filho da amiga, da mesma idade do
seu, já faz tantas gracinhas, e o dela não!... A mãe sofre; e o coração
adivinha: aí começa realmente o maior
dos tormentos de seu filho pela vida a fora: a diferenciação dos outros, pela
impossibilidade
de aprender a imitá-los através dos olhos.
Ao nascer, o nenê cego não encontra os ambientes e as pessoas preparadas para
minimizar as
limitações geradas pela cegueira. Além disso, está mais suscetível a adquirir
outras patologias, ocasionadas pelas relações sociais e pelas limitações do
déficit visual. Por isso, é importante que o nenê
cego e sua família, principalmente a mãe, participem de um Programa de
Estimulação Precoce.
O desenvolvimento do bebê cego que participa de um programa de Estimulação
Precoce de qualidade pode ser muito diferente de um bebê cego que não participa.
Os familiares, principalmente a
mãe, receberão informações importantes que lhes auxiliará a estabelecer uma
relação saudável com
seu filho, contribuindo para que as suas etapas evolutivas ocorram de forma
satisfatória. A adequada
estimulação precoce contribuirá para que o bebê cego desenvolva adequadamente,
considerando
sua idade e maturidade, sua linguagem falada, sua coordenação motora, seus
aspectos cognitivos,
suas brincadeiras e suas relações espaciais. A estimulação contribuirá para que
ele aprenda a usar
os sentidos do tato, do olfato, do paladar para obter informações do mundo.
4. Os sentidos do Tato, do
Olfato, do Paladar e da Audição
As discussões apresentadas até o momento instigam reflexões sobre o fato de que
o ato de ver
não se resume somente a olhar algo, mas atribuir significados ao que se vê.
Assim como se aprende
a “ver” com os olhos, aprende-se a “tocar” e a ser “tocado” com o
corpo.(ALVAREZ, CORTÉZ, 2000).
O mesmo ocorre com o olfato, no qual se apreende por meio da mediação do outro a
nomear e
apreciar os bons cheiros, assim como a classificar os ruins. Pela audição,
distinguem-se os sons agradáveis e os desagradáveis e aprende-se a linguagem
falada. Cada um dos sentidos tem suas especificações. Porém, todos são
utilizados com todas as outras funções do corpo:
O corpo é quem me possibilita chegar ao âmago das coisas: ele é sensível para
si, pois é pelo
corpo que vejo, que apalpo e, dessa forma, sou capacitado para habitar e sentir
o mundo
exterior e interior.
Partindo desse princípio devo acreditar que o corpo
deficiente da visão
também “vê”. “Vê” do seu jeito próprio, único e particular, como qualquer outro
ser humano que não é deficiente da visão (PORTO, 2005, p. 43)
A experiência vivida e analisada por Sousa1
(2009) confirma a afirmação de Porto (2005), sobre
ser o corpo em toda sua existência exterior (físico e sensorial) e interior
(processos psíquicos superiores) que permite (re) conhecer e sentir o mundo,
como pode ser constatado em seus relatos:
-
A LIÇÃO DAS PEDRAS
-
Eu tinha quatro anos quando, numa manhã, me defrontei duramente com o ver e o
não-ver.
Foi uma experiência difícil. Uma criança que nasceu cega, aos quatro anos,
provavelmente,
de forma muito íntima, introjetou a idéia de que é uma criança cega, face aos
gestos, às
verbalizações da família. Mas essa criança ainda não compreende a diferença
entre o ver e o
não-ver. Naquela manhã, eu estava brincando no pátio da minha casa, onde havia
uma fileira de pedras perto da parede da cozinha, todas pouco menores que eu. E,
de repente, eu dei
pela presença das pedras, sem as tocar. Senti a presença delas na minha face, e
fiquei maravilhada com aquilo. E comecei a dançar e a pular diante das pedras,
repetindo - Eu vejo! Eu
vejo! E, de repente, um salto maior, a cabeça abaixada, e choquei-me
violentamente contra
uma pedra, encerrando à dor e o sangue a minha primeira lição de ver (SOUSA
2009, p. 182).
ler aqui.
-
O DIÁLOGO COM O MISTÉRIO
-
Pouco tempo depois, aos cinco anos, talvez, lá estava eu às
voltas com a terra, as pedras, às voltas com o mistério. Eu
atritava pedaços de pedras, somente para sentir o cheiro
daquelas faíscas que elas geravam. Cheiro de fogo diferente, uma espécie de fogo
antigo que me ligava ao mistério
do princípio do mundo, ao princípio da criação das coisas.
-
Pesava a terra entre as minhas mãos de menina, e me perguntava de que matéria
ela era feita. Sentia o vento a anunciar a chuva, e me perguntava como chovia,
como fazia sol,
como ventava. E o meu cérebro, obediente máquina de pensar, produziu uma
resposta para essas minhas indagações.
-
O meu cérebro providenciou para mim um corpo sensível,
todo tátil. O meu cérebro inventou uma montanha com sua
base rugosa, cheia de arbustos. O meu cérebro fez com que
eu escalasse aquela montanha e encontrasse, lá no alto, gavetas que eu podia
abrir, para fazer chover, para fazer sol,
para fazer ventar. Tivesse a ciência tradicional tido acesso a
essas minhas evocações, tivessem a pedagogia tradicional
conhecido, numa sala cheia de crianças da minha idade,
que enxergassem, essas minhas rudimentares percepções
do mundo, e eu provavelmente seria alvo de um sentimento
de compaixão, de piedade, por estar tão longe da verdade
(idem, p.183).
-
(1) Joana Belarmino de Sousa possui bacharelado em Comunicação Social (1981),
especialização em Metodologias
de Comunicação (1990) , mestrado em Ciências Sociais (1996) pela Universidade
Federal da Paraíba e doutorado em
Comunicação Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004).
Atualmente é Professora Titular da
Universidade Federal da Paraíba e é cega congênita.
A autora analisa os conhecimentos das vivências relatadas como
expressão do universo perceptivo de uma criança cega, iniciando em seu
interior, ou imaginando-se na interação do seu corpo com o ambiente à
sua volta. No primeiro relato, Sousa (2009, p. 183) destaca que vivenciou
a percepção cinestésica, na qual os objetos, tangíveis ao tato, por causa
de sua posição no espaço e do deslocamento de ar “em relação a nós
próprios, geram uma espécie de sombra, [...] de “presença” que pode comunicar-se
principalmente à nossa face”.
Para a segunda experiência a autora afirma que o processo surgiu
em seu interior, o que denominou de palpação do intangível, no qual imaginou
algo parecido com
uma lenda, colocando em prática o processo de fabulação, próprio à condição
humana em todas as
culturas. “Uma espécie de simbolização, de representação, uma explicação
rudimentar para aqueles
fenômenos que não são tangíveis ao tato e que, portanto, só podem ser acessados
por via da visualidade”.
Sousa (2009) considera que a busca para apropriar-se do mundo, a partir de uma
montanha que
pudesse escalar, simbolizava sua concepção tátil do conceito de grandeza. O
criar gavetas que pudessem
ser abertas para a chuva, o sol, o vento, era simbolização para o impalpável que
queria tocar, possuir,
guardar, comandar. Ao observar a questão por esse prisma, na condição de adulta,
entendeu que a teoria
formulada aos cinco anos de idade não era simplesmente uma fantasia rudimentar
de criança.
Ela estava plena de uma fala tátil, que na falta da experiência da visualidade,
brotava em
símbolos de substância, grandeza, altitude, distribuição no espaço, de fenômenos
impalpáveis que na minha imaginação eu podia agora comandar. O perceber, dentro
do não-ver, exibe, pois, uma transação. Uma transação permanente entre o corpo,
o espaço e os eventos
do mundo. O perceber, dentro do não-ver, é um permanente trabalho, envolvendo o
contato com a experiência, os fenômenos do mundo, e um aparelho
neurosensóriomotor crucialmente dependente de um modo tátil de pensar/perceber,
aquilo que em minha pesquisa de
doutorado eu chamei de “mundividência tátil” (BELARMINO,2004, p.110) e que, por
ocasião
da defesa, o professor José Luís Lima aprimorou para “tactognose”. (SOUSA, 2009,
p. 183).
Nos relatos de Sousa (2009), constata-se como uma criança entre os 4 e 5 anos de
idade apropriou-se de conceitos sobre objetos, principalmente os intocáveis e os
subjetivos e os simbolizou.
Constatam-se, também, conflitos gerados entre sua experiência pessoal e as
vivências coletivas, principalmente sobre o conceito de “ver” e “não ver”.
Santin e Simmons (1996), destaca que a criança cega
vive um contínuo processo de solução de problemas gerados pelos conflitos de
suas experiências privadas e públicas. A utilização de mediação centrada no
canal visual é o principal fator destes conflitos.
Para exemplificar a afirmação de Santin e Simmons (1996), relato a experiência
de um aluno
cego congênito, que participou de minha experiência de pesquisa. Este educando,
contou-me como
foi sua primeira experiência com o mar e os conflitos gerados pela mediação
visuocentrista. As informações que possuía sobre este local foram fornecidas por
pessoas que enxergam cujas descrições
valorizavam a simbolização, representação e explicação rudimentar sobre os
fenômenos tangíveis à
visão, como a linha do horizonte, o azul das águas do mar e do céu, o som suave
das águas do mar
ao anoitecer, a beleza do nascer e pôr do Sol, a brisa suave no rosto ao
amanhecer etc.
Durante uma excursão didática, promovida por uma escola especial, o aluno (na
época com oito anos) conheceu o mar. Infelizmente neste
dia chovia e a experiência relatada pelo educando era que a areia, trazida
pelo vento, chocava-se com o seu corpo, a água do mar estava muito fria
e barulhenta, a sensação de entrar na água e as ondas “baterem em seu
corpo” - sem conseguir prever quando iriam se chocar novamente com
seu corpo - não foi agradável, na realidade, para o aluno, foi assustador.
Este educando teve com todo o seu corpo a primeira lição sobre o mar.
Ao término do relato do educando, uma professora da escola especial me disse que
havia a necessidade deste aluno visitar novamente o
mar em dia ensolarado para minimizar as lembranças ruins da primeira
visita e assim contemplar a verdadeira beleza do mar. No inicio, concordei
com a professora, julgando que este era o caminho, depois minhas reflexões
levaram-me a indagar se realmente o aluno mudaria totalmente sua
opinião. Talvez a areia ainda o incomodasse, o calor do Sol e as ondas do
mar também. Infelizmente não sei se este aluno voltou a visitar o mar.
O importante deste relato assim como os de Sousa (2009), consiste em indicar
como o corpo percebe o “mundo”. Algumas partes são
mais sensíveis para captar as informações, como as palmas das mãos e as
pontas dos dedos, mas todas são responsáveis por nossas percepções de
mundo. Muitos trabalhos na área da psicologia destacam a importância
do corpo para que o bebê cego inicie sua exploração de mundo. Não só o
seu corpo é importante, mas também o corpo do outro. O contato com o
outro, parece ser ainda mais importante para o nenê cego. O aconchego
nos braços da mãe, o calor e cheiro de seu corpo, o tocar de seu rosto, em
especial a boca durante sua fala, acalma e transmite segurança ao bebê.
Esta segurança é fundamental para que a criança inicie etapas de
desenvolvimentos motor e cognitivo.
Considerações finais
As discussões apresentadas neste artigo tiveram como objetivo estimular as reflexões sobre as variáveis que envolvem a ausência da visão. Os
diálogos com os autores
indicam que as atitudes da sociedade com as pessoas cegas não devem ser
limitadas à categorização, mas ao relacionamento com a pluralidade do organismo
humano. Indicam ainda que o ato de
ver não depende somente do bom funcionamento do canal visual, mas como
aprendemos a utilizar
a visão juntamente com os processos psíquicos superiores. Ao longo de nossas
vidas aprendemos
a obter informações do mundo pelo canal visual, juntamente com os demais
sentidos, e em nossa
mente processamos a qualidade destas informações.
A literatura aponta ainda que uma pessoa cega congênita não enxergará
naturalmente após a
correção do canal visual, como no caso relatado por Sacks (1995). A ausência da
visão não é simplesmente não enxergar, ou ter que aprender o sistema braile para
ter acesso à linguagem escrita, ou necessitar de uma bengala branca para
deslocar-se pelas ruas ou, ainda, ter acesso à adaptação de técnicas de ensino
aprendizado. A cegueira é um déficit muito complexo que implica uma série de
restrições
perceptivas e de relação social (LEONHARDT, 1992), assim como habilidades
sensoriais e psíquicas.
As discussões mostram ainda a importância das primeiras relações sociais para
que os bebês
cegos congênitos tenham os desenvolvimentos motor e cognitivo sem atrasos.
Indica ainda que os pais,
principalmente a mãe, podem ter momentos angustiantes diante da cegueira do
filho. Nestes momentos, a ajuda de especialista é fundamental e a participação
em programa de estimulação precoce pode
auxiliar a mãe/cuidador a superar suas angústias, medos, frustrações etc., pode
ainda contribuir para que
o foco não seja a incapacidade gerada pela ausência da visão, mas as
potencialidades da criança.
A literatura mostra ainda que usamos todo o nosso corpo para obtermos
informações sobre
o mundo e que, nos primeiros meses de vida, o bebê cego pode acalmar-se e
esperar por alguns
instantes se ouvir a voz de sua mãe, seguida de seus passos. A partir dos 12
meses de idade suas
frustrações podem ser associadas a gratificações por meio da noção de tempo. A
capacidade de
distinguir o passado do presente é uma função lenta, mas o bebê cego pode
desenvolvê-la corretamente, graças a sua extraordinária capacidade de memória
(FORNS; LEONHARDT,CALDERÓN, 2000).
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Silvia Elena Ventorini
| Graduada em Licenciatura em Geografia (2004), Mestre em Geografia (2007) e
Doutora em Geografia (2012) pelo Instituto de Geociências e Ciências Exatas -
UNESP. Professora Adjunta II do Departamento de Geografia da UFSJ. Atua na área
da Cartografia Tátil, com ênfase na pesquisa de
procedimentos teórico e metodológico para a produção de material didático tátil
com recursos,
bem como no estudo da organização espacial de pessoas cegas. Na área de
Geotecnologias, atua na
produção de base digital de dados cartográficos, com ênfase ao mapeamento de
áreas inadequadas ao uso urbano e mapeamento como suporte ao apoio, ao
planejamento e gestão de impactos
socioambientais. Atua, ainda, na Formação continuada de Professores. É
pesquisadora dos Grupos:
Geotecnologias e Cartografia aplicadas à Geografia (GEOCART) e Núcleo de
Pesquisa em Acessibilidade, Diversidade e Trabalho, ambos credenciados pelo
CNPq. Contato: sventorini@ufsj.edu.br
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'Cegueira congênita e Aspectos socioculturais'
autora:
Silvia Elena Ventorini in Deficiência visual, Práticas pedagógicas e Material didático.
Organizadoras Sílvia Elena Ventorini; Patrícia
Assis da Silva; Gisa Fernanda Siega Rocha São João del-Rei, MG: Agência Carcará, 2016.
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