
| Unidade corpo-mente: as especificidades das brincadeiras, narrativas e
desenhos das crianças cegas ou com baixa visão
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imagem | Meninas cegas brincam à cabra-cega - Overbrook
School for the Blind in in Philadelphia, 1912. (Geo. Grantham Bain Collection)
“Vendo as nuvens” e “As cores das sementes” tratam da ação imaginativa de
ver e não ver das crianças cegas ou com baixa visão. O verbo ver é utilizado com
bastante frequência pelas crianças durante o faz de conta e revela que aquilo
que não é possível de ser visto no cotidiano torna-se algo plausível por meio da
imaginação. Diego vê as nuvens e Gabriela vê as cores, como analisaremos mais
adiante. Inseridas na cultura vidente, as crianças mostram que a necessidade da
brincadeira vai além de assumir papéis sociais desempenhados pelo adulto
(Leontiev, 1992; Vigotski, 2008), mas a necessidade de pertencimento, a
necessidade de também participar do universo vidente (Vigotski, 2012).
1. Episódio “Vendo as nuvens” – maio de 2015
As crianças estão no parque externo da escola. Iara, Gabriela e Tiago brincam
na casinha da boneca. Enquanto isso, Diego está no balanço. Ele se balança bem
alto, inclinando seu tronco para frente e para trás. Ao mesmo tempo, Diego
estica e dobra suas duas pernas, pegando cada vez mais impulso.
A professora Rebeca conversa com ele:
– Eita! Como você está voando alto! Onde você está?
– Eu tô no foguete! – responde Diego sorrindo.
Ele faz uma pausa e continua:
– Tô vendo as nuvens.
(...)
No episódio “Vendo as nuvens”, todas as crianças da turma estão presentes. Elas
estão no parque situado fora da escola. Tal como o descrevemos no
capitulo 4,
nele existem alguns brinquedos (balanço, escorregador, roda-roda etc.) e a
casinha da boneca. Diego (cego total) está brincando no balanço, enquanto seus
amigos estão na casinha. Ele se balança sozinho. Para dar impulso, é preciso que
Diego interaja com o objeto (o balanço) de uma maneira específica. Ele faz
movimentos com as pernas e com o tronco, balançando cada vez mais alto. Diego
alcança uma boa altura. Mantém essa altitude em uma velocidade constante de
subida e descida.
A professora Rebeca significa o movimento de Diego como se ele estivesse voando.
“–– Eita! Como você está voando alto!”. E continua: “–– Onde você está?”.
A partir da fala da professora, o movimento de se balançar ganha outro sentido;
Diego começa ‘a voar’. O vai e vem de Diego no balanço transforma-se em um voo.
A professora afirma que ele está voando e questiona Diego sobre onde ele está.
Sem titubear, Diego corresponde à professora e relaciona a ação de voar ao
foguete. Ao se balançar, ele sente o vento no rosto. Seus pés não tocam o chão
e, assim, temos a impressão que ele voa mais alto que um avião. Afinal, ele está
em um ‘foguete’!
Diego transforma o balanço em foguete. Da mesma forma que aconteceu no
Eixo 1,
no episódio “A patinação”, ele não se prende às condições materiais do objeto.
Aqui, seu movimento é significado pelo ato de voar. Essa situação confirma
aquilo que discutimos anteriormente sobre a criança cega ou com baixa visão em
não se fixar necessariamente ao objeto em si. Suas experiências atrelam-se à
percepção que não está presa ao visual, mas a um campo fluido das sensações.
Assim, Diego afirma: “–– Eu tô no foguete!”.
Ao silenciar por alguns segundos, ele diz estar vendo as nuvens. Nesse pequeno
trecho, Diego mostra conhecimento de que, quando voamos, alcançamos as nuvens.
Provavelmente em suas experiências sociais, Diego foi apresentado (direta ou
indiretamente) a esse tipo de conhecimento e isso faz parte da composição de sua
atividade imaginativa. Ele voa alto e, portanto, diz: “–– Tô vendo as nuvens”.
Aqui nos questionamos: Diego brinca de ver ou ele, de fato, vê as nuvens em sua
imaginação?
Para a nossa discussão, trazemos o trabalho de Silva (1998), que em sua pesquisa
de mestrado, fundamentada na perspectiva histórico-cultural, busca compreender
como brincam as crianças surdas. Entre uma de suas análises, a pesquisadora
evidencia que elas fazem de conta que ouvem. Durante a brincadeira, existe uma produção de ações que circunscrevem
à cultura ouvinte.
Silva (1998 e 2002) apresenta dois episódios nos quais o sentido da audição está
presente na brincadeira. No primeiro deles, a criança faz uso do telefone
(convencional). Ela produz sons junto ao brinquedo e, além disso, encena ouvir
algo. No segundo, a flauta é o brinquedo/instrumento escolhido. A criança, de
maneira criadora, revela tocar uma música. Em ambos os casos, elas brincam de
ouvir, isto é, transgridem àquilo que não é possível de ser realizado em suas
realidades. A autora assevera:
-
Para as crianças os instrumentos, cujo uso eles podem fazer de forma apenas
mediada por outros (ouvintes), são, de certo modo, inacessíveis, impossíveis de
ser autonomamente utilizados em suas experiências cotidianas. Eles compreendem a
restrição, mas parecem desconsidera-la na ação lúdica. Pelo uso do brinquedo, os
meninos descolam-se de sua impossibilidade de ouvir e brincam ao telefone, fazem
música, “tornam-se um ouvinte” pela imaginação. (p. 101)
Em um paralelo, tal como as crianças pesquisadas por Silva (2002), Diego, em seu
foguete imaginado, vê a nuvens. Ele é objetivo em afirmar que está vendo as
nuvens. Lembramos que Diego é cego total, de forma que o verbo ver aqui está
cheio de sentidos. Ver as nuvens no céu, algo impossível em sua experiência
cotidiana, torna-se tangível pela imaginação.
Retomamos a pesquisa de Mattos (2015), a qual no título de sua tese de
doutorado, 'Olhos abertos para Ouvir, Sentir, Pensar: crianças com deficiência
visual fotografando a cidade', tensiona os diferentes modos de ver o mundo. Cada
participante – crianças/adolescentes com deficiência visual –, realiza
narrativas fotográficas em lugares diferentes da cidade. Ao utilizar filmagens e
fotografias registradas pelas crianças/adolescentes, Mattos (2015) nos mostra que o ver está para além do sentido da visão, ou
melhor, ultrapassa a capacidade do olho físico, como refere-se a autora.
O sentido de ver as imagens é possível por caminhos simbólicos alternativos.
Mattos (2015) destaca, por exemplo, a importância da linguagem oral na descrição
dos locais visitados (e descritos) pela pesquisadora (vidente) e seu impacto na
percepção e funcionamento imaginativo dos sujeitos pesquisados. O ver é
registrado em palavras verbalizadas. Em outros termos, a produção de imagens se
dá quando o outro fala, “... olhares mediados pela linguagem. Olhos e vozes de
outros que a habitam” (Mattos, 2015, p.163).
Outro ponto de destaque apontado por Mattos (2015) diz respeito à produção
imagética se constituir a partir do tato. Sobre a atividade criadora de um de
seus participantes:
-
Sozinho, posicionou a câmera e fez uma foto. Das pedras em seu caminho, produziu
uma imagem a partir de referências táteis, pois não só o que é visual pode
constituir uma imagem, mas também outros elementos aparentemente invisíveis.
Dessa maneira, ele deu visibilidade a experiências de outra ordem...(p.152)
Sendo assim, Diego ao brincar, voa em um foguete e vê as nuvens a partir das
sensações experimentadas pelo seu corpo, ao se balançar em uma intensidade
forte. O tato é importante, sem dúvida, mas gostaríamos de sinalizar que todos
os outros sentidos e a centralidade da linguagem faz a vivência imaginativa se
configurar de forma bastante complexa. Vários modos de significação compõem a
criação de Diego.
Ainda no mesmo bloco de discussão sobre o ver e não ver, apresentamos o próximo
episódio.
2. Episódio: “As cores das sementes” – maio de 2015
Enquanto Diego está no balanço voando em seu foguete e vendo as nuvens, Iara,
Gabriela e Tiago brincam na casinha da boneca.
Tiago coloca os dois cotovelos na janela e fica ‘olhando’ do lado de fora. Iara
e Gabriela conversam de pé dentro da casinha. Existem vários brinquedos para que
elas possam brincar: diferentes pás, baldes, bonecas, carrinhos, etc. Gabriela
está segurando uma boneca.
Ela se abaixa, tateia os brinquedos com uma das mãos e pega o balde.
Logo depois, sai da casinha.
Gabriela agacha-se de cócoras na areia, coloca a boneca no chão e diz segurando
o balde:
– Isso aqui é para capinar. Quem vai cuidar da minha filha?
Iara e Tiago, que já estão fora da casinha, agacham-se perto de Gabriela.
– Eu quero plantar a semente – diz Iara.
Gabriela explica:
– Que cor você quer? Tem azul, amarela, vermelha, laranja...
– Eu quero rosa! – responde Iara.
– Quem quer uma roxa? – Gabriela pergunta.
Ninguém responde. As crianças estão agachadas cavando a areia. Algumas vezes,
colocam areia dentro do balde.
– Eu vou plantar um monte de moranguinho – fala Iara.
– E eu vou plantar maçã – rebate Gabriela.
– Eu vou plantar ervilha – finaliza Tiago animado.
(...)
No episódio “As cores das sementes”, Iara (baixa visão), Gabriela (cega total) e
Tiago (baixa visão) estão na casinha da boneca. Até que Gabriela decide realizar
uma atividade fora da casinha. Ela sabe onde encontrar os brinquedos
disponíveis. Gabriela já está com uma boneca em seus braços, todavia, ela se
agacha no espaço onde ficam os brinquedos e pega um balde. Para encontrá lo, ela
busca o objeto com uma de suas mãos. Ao pegar o balde, ela dirige
se para fora da casinha. Ela quer capinar e sabe que, para tanto, é preciso
estar fora de casa. Ninguém capina dentro de casa, não é mesmo? O objeto que ela
escolhe para capinar é o balde. Como ela precisará capinar, alguém terá que
olhar a filha dela. A neném não pode ficar sozinha, então ela diz: Isso aqui é
para capinar. Quem vai cuidar da minha filha?”. Reparamos que, ao dizer isso, Gabriela não está de pé. Ela irá capinar, logo precisa
abaixar-se junto à areia; precisa estar próxima ao chão. Não é possível capinar
e segurar a filha ao mesmo tempo. Por essa razão, a filha é colocada no chão de
areia do parque.
Iara e Tiago acompanham a amiga e também saem da casinha. Ambos se agacham perto
de Gabriela. Gabriela ouve a amiga e a questiona sobre qual cor ela prefere.
Ela, tal como no episódio anterior, quando Diego vê as nuvens, não apenas vê as
cores como as distingue. Ela pergunta para Iara: “–– Que cor você quer? Tem
azul, amarela, vermelha, laranja...”.
Mattos (2015), em um dado momento de sua pesquisa, ao realizar um passeio na
praia com um dos participantes, encontra um barco em cima de um carrinho. Eles
conversam sobre a forma de dirigi-lo, seu tamanho, volume etc. Em situação
posterior, a pesquisadora vai até a casa do seu sujeito de pesquisa e
compartilha essa experiência na praia com os demais familiares. Ela mostra as
fotos e filmagens por ele realizados. Logo que aparece o barco, a prima descreve
suas cores e o participante mostra-se bastante interessado. “Ele gostou de
saber as cores, socialmente importantes. Isto se deu pelos olhos dos outros: por
meio da palavra alheia, as cores do barco tornaram-se para ele visíveis”
(Mattos, 2015, p. 96).
No curta-metragem 'As cores das flores', filme produzido no ano de 2010 pela
Fundação ONCE (*) , em uma dada escola situada na Espanha, em uma classe em que os
alunos são videntes, exceto uma criança, que coincidentemente chama-se Diego, a
professora solicita que escrevam uma redação com o mesmo título do filme. Para
realizar sua tarefa, um colega, preocupado com Diego, fala para ele a cor de
algumas flores. Diego busca ajuda junto à professora, porém ela afirma que o
aluno conseguirá escrever sua redação. Ele pesquisa na internet o conceito da
palavra cor, mas nada compreende. A criança pergunta para um adulto,
até que ouve uma história contada pela mãe sobre um caracol e um passarinho que
disputavam qual deles ficaria com uma flor. Nesse momento da narrativa, ele pede
a mãe que repita a passagem. A mãe o faz. Nas próximas cenas do filme, Diego
aparece sentado ao ar livre e, ao ouvir o pássaro cantar, tem uma ideia sobre a
redação. Em seguida, chega o dia de apresentar a redação na escola. Alguns
alunos leem suas produções textuais. O amigo ainda se aproxima de Diego e lê o
conceito encontrado na internet sobre cor, que também pesquisou. A professora,
então, pergunta quem gostaria de ler sua redação e várias crianças levantam a
mão, inclusive, Diego, que narra:
-
As flores são de cor passarinho. E existem muitas cores de flores... Por isso,
há muitos passarinhos, porque há um passarinho para que cada flor tenha a sua
cor. Também têm flores cor de abelha e também cor vaquinha do campo...” (legenda
em português –– tradução desconhecida).
A partir do filme, podemos inferir outros modos de visibilidade, tal como Mattos
(2015) defendeu em seu trabalho. Diego precisa escrever uma redação sobre as
cores. As cores fazem parte da cultura vidente e são perceptíveis pela presença
de luz. Como Diego pode vê-las? Como escrever sobre elas sem vê-las?
Para encontrar seu conceito, isto é, para saber o significado da palavra cor,
ele busca por distintos caminhos de rodeio (Vigotski, 2012). Os diferentes
elementos da realidade: caracol, passarinho, flor, abelha, vaquinha do campo são
recombinados para significar a palavra cor. Por meio (dos caminhos de rodeio) da
história contada - linguagem oral, do som do pássaro que Diego ouve –– ele
associa e dissocia (Vigotski, 2009) impressões do real e, a partir daí, parece
escrever sobre as cores das flores.
No caso de Diego, no episódio “Vendo as nuvens”, e de Gabriela em “As cores das
sementes”, as crianças revelam outras formas possíveis de perceber e conceituar
modos de ver a cultura. Sobre isso, Vigotski (2011) explica:
-
... a estrutura das formas complexas de comportamento da criança consiste numa
estrutura de caminhos indiretos, pois auxilia quando a operação psicológica da
criança revela-se impossível pelo caminho direto. Porém, uma vez que esses
caminhos indiretos são adquiridos pela humanidade no desenvolvimento cultural,
histórico, e uma vez que o meio social, desde o início, oferece à criança uma
série de caminhos indiretos, então, muito frequentemente, não percebemos que o
desenvolvimento acontece por esse caminho indireto. (p. 864)
Nessa linha de pensamento, Sacks (2010), em seu livro 'O Olhar da mente',
apresenta vários exemplos de pessoas cegas, as quais perderam a visão em
diferentes faixas etárias. Cada uma delas com base em suas experiências
culturais, e dada a plasticidade do cérebro humano, desenvolveu habilidades e
comportamentos distintos para configurar novos modos de ver. Hull, uma das
pessoas citadas pelo teórico, relata “não só a perda de imagens e memórias
visuais, mas a perda da própria ideia de ver” (Sacks, 2010, p. 179, grifo do
autor).
Por outro lado, Sacks (2010) demonstra, por meio de outras experiências citadas,
que o ver ou não ver da pessoa cega não é algo taxativo e circunscrito à
cegueira. Em outras palavras, o teórico apresenta breves relatos de outras
biografias de pessoas que, mesmo sem o sentido da visão, ainda elaboram –– por
caminhos indiretos, fazendo um paralelo com o pensamento vigotskiano –– imagens
mentais. Ademais, algumas delas ainda revelam o desenvolvimento de sinestesias.
Assim sendo, dando continuidade à nossa discussão, quando Gabriela questiona
Iara e Tiago sobre qual cor da semente eles querem, Iara mostra-se decidida.
Ela escolhe a rosa. Gabriela continua vendo as cores e pergunta quem gostaria de
ficar com a roxa, mas ninguém responde. Enquanto isso, as crianças não estão
paradas. Elas cavam o chão e colocam areia no balde em alguns momentos. Preparam
o solo para o plantio.
Iara avisa que plantará morangos. Estaria essa decisão associada à semente rosa
que escolheu? Iara tem baixa visão e por isso, inferimos que há uma relação
entre a cor escolhida e a fruta a ser plantada. Por sua vez, Gabriela não
escolheu cor alguma, mas avisa que plantará maçãs, seguindo a linha das frutas.
E Tiago, sem mencionar a cor escolhida, conclui: “–– Eu vou plantar ervilha”.
Afirmar que os modos de visibilidade das crianças cegas ou com baixa visão
perpassam outras formas de perceber o mundo significa dizer que –– ainda que
partícipes do universo vidente –– o ver ou não ver das crianças com deficiência
visual envolvem processos de significação distintos, vividos a partir da
cultura, das experiências (historicamente demarcadas) com o outro, nas e pelas
relações sociais.
-
Neste sentido, pensar na reorganização do cérebro diante de todo o desafio
externo e/ou interno é pensar na integralidade do desenvolvimento humano e nas
diversas formas de constituição e de expressão dos modos de ação, e essas ações
não são apenas de cópia ou reprodução, mas sim, de recriação, de ação interativa
com o outro e com o mundo. (Andrade & Smolka, 2012, p. 707) [...]
Comentários gerais
Na presente pesquisa buscamos compreender, a partir da unidade corpo-mente, as
atividades criadoras de brincar, narrar e desenhar das crianças cegas ou com
baixa visão, segundo a perspectiva histórico-cultural. Concordando com a matriz
teórica que embasa o nosso trabalho, entendemos a imaginação como constitutiva
do psiquismo humano. Tanto na filogênese quanto na ontogênese, garantimos nossa
existência porque conseguimos nos deslocar daquilo que percebemos no campo do
imediato. Imaginamos, criamos e, consequentemente produzimos cultura.
Na filogênese, a primeira criação humana é o próprio ser humano (Engels, 1999;
Vigotski, 2000, 2013) que, a partir do trabalho, ao criar elementos –
instrumentos e signos – para transformar a natureza, dialeticamente, modifica a
si mesmo. Por sua vez, na ontogênese, a criança, ao nascer em uma determinada
cultura, tem suas expressões e movimentos significados pelo outro. O mundo da
cultura, que foi criado pelos outros, vai fazendo parte de si, integrando a sua
existência. Aquilo que ela irá criar ao longo da sua vida também será parte do
mundo dos outros. É uma interdependência que caracteriza a nossa espécie; somos
herdeiros e herança da criação. Sem ela, simplesmente, deixamos de ser.
Mas a experiência humana de ser não se restringe à razão. Não somos uma
consciência sem corpo, mas um corpo memorioso, um corpo criador, um corpo que
pensa e sente em uma totalidade dramática (Sawaia & Silva, 2015). É nessa
unidade corpo-mente que revelamos nossas formas de interpretar, agir e
participar do mundo que nos circunda, a partir das experiências que vivemos e
dos papéis sociais, muitas vezes contraditórios, que ocupamos.
Ao destacarmos nesse trabalho especificamente o desenvolvimento infantil,
elegemos a brincadeira, a narrativa e o desenho como processos criadores para
serem investigados, a partir do princípio de indissociabilidade da unidade corpo
e mente.
Mas por que esse princípio nos é tão fundamental? Porque nele encontra-se a base
explicativa para se compreender e analisar todos os processos criadores da
criança pré-escolar. Em linhas gerais, na brincadeira, na narrativa e nos
desenhos criados os recursos expressivos e linguísticos utilizados pela criança
revelam distintas formas de ela contar o que sente e pensa sobre o real. Tirar a
centralidade da unidade corpo e mente dessa reflexão é revelar uma incompreensão
sobre o desenvolvimento infantil, trazendo repercussões devastadoras para ações
educativas e intervenções psicológicas voltadas para esse público.
Pesquisas com esse enfoque ainda são escassas, especialmente, quando tratamos de
crianças cegas ou com baixa visão. Ao nos debruçarmos sobre os nossos dados
empíricos percebemos que ainda temos muitos estudos e indagações pela frente.
[...]
[Diego e Gabriela mostram que] o ver e o
que se vê são atividades aprendidas culturalmente.
Diego, ao ver as nuvens, e Gabriela ao ver as cores das sementes, por exemplo,
nos chamam a atenção para outras formas de visibilidade que se configuram
no plano imaginativo, mas são criadas no real a partir
das mediações culturais. No faz de conta, a condição de
privação da visão é transgredida; aquilo que não se vê no cotidiano, por meio da imaginação torna-se possível. Quem arriscaria dizer que eles não viram as
nuvens e as cores?
[...]
As percepções são simbólicas, apreendidas na e pela cultura a partir da dinâmica
das relações sociais. Ver, não ver, o que ver, como ver são experiências que
ocorrem na unidade corpo-mente. Aqui, os órgãos dos sentidos são mais do que um
aparato biológico, mas são marcados pelas relações sociais em um contexto
historicamente demarcado. O universo imaginativo de cada uma dessas crianças é
construído cotidianamente em suas diferentes formas de ser, estar e participar
da cultura, das distintas mediações que experimentam por meio do outro; díade
criança-criança e/ou adulto-criança.
A criança cega ou com baixa visão produz imagens e, a partir delas, imagina e
cria. Isso ocorre por meio de recursos linguísticos, movimentos e expressões
corporais específicos; pela criação de cronotopos diversificados e não-lineares;
pela linguagem oral expressa no e pelo corpo de diferentes maneiras, dos
sentidos e formas singulares de percepções. Enfim, ela imagina e cria revelando
processos refinados de simbolização.
Considerações finais
Inspiradas pela perspectiva histórico-cultural, concluímos nosso trabalho
afirmando a tese de que as crianças cegas ou com baixa visão imaginam e criam de
acordo com suas formas singulares de perceberem o mundo que participam. Suas
atividades criadoras de brincar, narrar e desenhar (vivenciadas e expressas na e
pela unidade corpo-mente) refletem e refratam como sentem e pensam sobre o real.
Ao longo desse trabalho, observamos que, para compreender as produções das
crianças com deficiência visual, é necessário partir da ideia de que a
deficiência não é uma negatividade, mas uma condição que abre possibilidades de
desenvolvimento ilimitado. A criança que possui uma deficiência não é
deficiente, mas possui um funcionamento complexo, plástico e dinâmico que
permite a ela ir além das barreiras impostas pela disfunção ou inoperação de um
órgão.
No caso das crianças cegas ou com baixa visão, analisamos que a percepção, a
produção de imagem e tudo o que envolve a imaginação parecem percorrer vias
funcionais indiretas (e diversas) de apreensão da cultura pelos órgãos dos
sentidos.
Suas formas de compor as atividades criadoras, por exemplo, nos mostram modos de
funcionamento simbólico que envolvem recursos expressivos e uso de instrumentos
de modos qualitativamente diferenciadas, se compararmos às crianças videntes.
Os diversos cronotopos criados pelas crianças pesquisadas mostram que a privação
da visão não é impeditiva para a elaboração de cenários, transgressão de
objeto-pivô e encenação de papéis sociais complexos. Também não é impeditivo
para a criação de desenhos e narrativas. Pelo contrário, nos processos de
interação criança-criança e criança-adulto, observamos a potencialidade das
ações criadoras e a dinâmica do funcionamento imaginativo dessas crianças.
Assim, as crianças cegas ou com baixa visão, justamente, por apresentarem uma
limitação orgânica (visual) reorganizam e combinam os seus sentidos e funções
psicológicas, bem como desenvolvem recursos linguísticos e expressivos extremamente refinados
e criadores, compensando e transformando seus impedimentos em possibilidades
inusitadas de desenvolvimento. Isso implica dizer que o modo de funcionamento,
percepção e representação do mundo das crianças cegas ou com baixa visão em si
já pode ser considerado como criador! Podemos dizer que seus modos de ver,
perceber e sentir exigem uma capacidade imaginativa complexa e elaborada, pois
sua produção imaginária se dá por outras vias que não a visual.
Iara, Gabriela, Tiago e Diego revelam a potencialidade criadora do
desenvolvimento humano, ensinando-nos sobre as distintas formas de visibilidade.
Nessa linha, acompanhamos a indagação de Ronja Oja – no curta-metragem finlandês
'Illusionist's Vision', dirigido por Jenni Juulia e Wallinheimo Heimonen, em 2016:
“Eu não consigo imaginar... como é possível entender o mundo simplesmente
enxergando?”.
FIM
nota: Fundação ONCE – Organização Nacional de Cegos Espanhóis – A Fundação busca a
“realización de programas de integración laboral-formación y empleo para
personas con discapacidad, y accesibilidad global, promoviendo la creación de
entornos, productos y servicios globalmente accesibles”. Criada em janeiro de
1988 (Fonte:
https://www.fundaciononce.es/es/pagina/quienes-somos).
ϟ
excerto da tese:
A UNIDADE CORPO-MENTE NAS ATIVIDADES CRIADORAS DE BRINCAR, NARRAR E DESENHAR DAS
CRIANÇAS CEGAS OU COM BAIXA VISÃO
de Marina Teixeira Mendes de Souza Costa
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de Brasília como requisito
parcial à obtenção do título de Doutora em
Processos e Desenvolvimento Humano e
Saúde, na área de Desenvolvimento Humano e
Educação.
Brasília, DF, julho de 2018
Neste texto foram usados excertos dos caps 7 e 8 e a totalidade
do cap 9 da Tese.
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