
Alice Lídia Marques Dias

Qualquer pessoa que se relacione ou trabalhe directamente com crianças
deficientes visuais interessa-se pelo conhecimento dos complexos processos
cognitivos, comportamentais e motores, que muitas vezes se manifestam de uma
forma aparentemente incompreensível e que tanto vão perturbar, quer a criança
quer quem com ela lida habitualmente.
A necessidade de estudar os movimentos estereotipados de hábito motor,
designados como "blindisms", foi demonstrada através das dimensões funcionais
e sociais que esses movimentos têm na criança cega ou com baixa visão e que,
muitas vezes, interferem com o comportamento académico, vocacional e outros
actos sociais.
Esta realidade despertou uma inquietação pessoal no sentido de
aprofundar conceitos e abordagens teóricas ao desenvolvimento das estereotipias,
às definições consagradas e mesmo à comparação com outro tipo de deficiências,
que incluem, nas suas descrições etiológicas, certas características
semelhantes.
É também pretensão deste trabalho analisar e reflectir alguns aspectos
teóricos sobre a evolução dos modelos conceptuais e das teorias mais relevantes,
assim como as questões metodológicas de pesquisa de "caso único",
perspectivando a implementação de um padrão de intervenção baseado no
fundamento da modificação comportamental, usando princípios suficientemente
flexíveis, que foquem uma variedade de objectivos, contingências e técnicas.
Pretende-se assim dar um contributo positivo para um melhor
desenvolvimento e divulgação de estratégias de intervenção, como forma de
diminuição ou extinção de "blindisms" nas crianças portadoras de deficiência
visual.
Estereotipia, esse movimento repetido, uma e outra vez, à frente e a trás, e
outra vez. E porquê? Para quê tantas idas e vindas sem sentido? Desses
comportamentos talvez, apenas puséssemos algo mais que um nome, estereotipia,
uma palavra que em lugar de lançar algo de novo, só fica, como ela mesma,
como palavra recorrente e pouco mais (Vizcaino, 2000).
Tratando-se de um termo vago e demasiado geral, as estereotipias podem
compreender uma ampla gama de actividades que não se consideram normais,
devido à sua fenomenologia da conduta e à idade de aparecimento, tendo como
característica comum a repetição segundo um modelo mais ou menos fixo.
Não obstante a repetição frequente de certos processos, as estereotipias
podem ser também elementos constitutivos de uma conduta normal. Acções
morfologicamente idênticas dão-se em reflexos distintos. A diferença entre
estereotipia "normal" e "patológica", segundo Cantavella, Leonhardt, Esteban,
Nicolau & Ferret (1992) situa-se numa terceira componente que nasce da
necessidade de estabelecer quando a conduta tem uma função ou padrão que lhe
é reconhecível. Não é fácil, em cada caso, a sua valorização, já que requer o
conhecimento das condutas que são normais numa determinada espécie de
população.
É propósito deste trabalho, debruçar-se sobre os comportamentos
estereotipados manifestados nas pessoas portadoras de deficiência visual e,
especialmente em crianças, podendo considerá-los como uma área "tradicional"
de preocupação, tanto entre os profissionais que com elas trabalham como entre
os familiares que com elas convivem. As razões para este interesse prendem-se,
fundamentalmente, com três características, que definem tais condutas
repetitivas. Em primeiro lugar, o seu carácter desviante no que diz respeito ao
movimento, gestos e posturas que se podem observar nos normo-visuais. Como
consequência, as estereotipias são observadas fácil e imediatamente por outras
pessoas implicadas na relação interpessoal com o sujeito que as manifesta. A
percepção de uma anomalia ou esquisitice assim provocada nos outros agentes
sociais pode chegar a estes, com frequência, a limitar, a sentirem-se
prejudicados
ou a bloquear a comunicação e interacção com o indivíduo que apresenta
movimentos estereotipados. Assim, independentemente do nível real de
funcionamento (social, cognitivo, etc.) da pessoa cega ou com baixa visão, a
presença destas respostas repetitivas induz, em certas ocasiões, aos que com
eles
convivem, a considerá-las como um indicativo de atraso mental ou desajuste
emocional. Por outro lado, a nítida diferença de outros movimentos repetitivos e
aqueles que se encontram nos cegos ou com baixa visão, mostrarem uma certa
componente voluntária, com o fim de obter uma estimulação interna. Finalmente
as respostas estereotipadas mostram-se incompatíveis, dado que se reflectem na
atenção externa que produzem, com a aprendizagem das actividades básicas para
o funcionamento adaptado do indivíduo.
Porém, o que determina se uma criança, portadora de deficiência visual,
vai desenvolver estereotipias? Que função ou funções servem as estereotipias?
Porque é que estas estereotipias são tão resistentes à mudança ou alteração?
A pesquisa sistemática, de como é que as estereotipias se desenvolvem,
pode começar a responder a estas perguntas e a apoiar os profissionais a
descobrirem respostas mais efectivas. Se algumas chaves, às possíveis causas das
estereotipias, resultaram de uma pesquisa interventiva, outras dirigiram-se
directamente às causas dos movimentos estereotipados. McHugh & Lieberman
(2003) consideram que se deve olhar para os resultados descritivos e estudos de
intervenção comportamental das crianças deficientes visuais para identificar
factores que possam contribuir ou estarem associados ao desenvolvimento das
estereotipias. Estes factores emergem na associação com um modelo padrão
particular de factores desenvolvimentais, incluindo a etiologia da deficiência
visual, a história médica inicial, deficiências cognitivas e físicas, falta de
oportunidades para actividades físicas, a extensão da deficiência e idade.
Ao longo do tempo o interesse por estas questões iniciou-se com a procura
"especulativa" da sua etiologia. Recentemente, tem-se abordado o estudo
empírico de variáveis relacionadas com a sua aquisição e prevalência
(particularmente o papel dos pais e profissionais como mediadores de
experiências de desenvolvimento) assim como a elaboração e aplicação de
métodos efectivos para o seu tratamento e prevenção.
Neste sentido e porque se constata que há um número reduzido de
investigações nesta área temática, o presente trabalho visa, em primeiro lugar,
contribuir no alargamento de estudos que, de maneira compreensiva, aborde e
actualize a investigação dos comportamentos estereotipados nas crianças com
deficiências visuais, realçando conceitos etiológicos e de classificação. Deste
modo, é constituído por uma primeira parte onde é apresentada uma revisão e
compilação teórica como ponto de partida conceptual. Numa segunda parte,
apresenta-se o caso estudado inserido na pesquisa de "caso único", realçando os
aspectos metodológicos de observação/avaliação/intervenção, de forma a
contribuir com todos os intervenientes que lidam com indivíduos deficientes
visuais e têm manifestações comportamentais estereotipadas de hábito motor.
Porém, não tendo sido tratado exaustivamente o problema dos
procedimentos de intervenção e prevenção de forma genérica, por se tratar de um
único caso, não deixa de se lançar o estímulo e desafio próprio a todos os
receptores sensíveis a esta problemática, de modo a testarem outras formas de
intervenção. O objectivo final prende-se com a compilação de modelos
protótipos de possíveis intervenções em crianças e jovens portadoras de
deficiências visuais, de modo a modificarem as atitudes comportamentais e
serem considerados cidadãos válidos e integrados na sociedade.
1.1 Algumas Definições de Estereotipias
Etimologicamente estereotipia provém do grego "steros", que significa
"sólido, firme" e "typos", que significa "modelo ou molde".
A Real Academia Espanhola define a estereotipia como a repetição
involuntária e fora de razão de um gesto, acção ou palavra.
No âmbito da Psicologia, significa tendência para conservar a mesma
atitude ou para repetir o mesmo movimento ou as mesmas palavras.
De acordo com estas afirmações as estereotipias compreendem uma ampla
gama de actividades que não se consideram normais, devido à fenomenologia da
conduta e à idade de aparecimento, tendo como característica comum a repetição
segundo um modelo mais ou menos fixo (Leonhardt, 1990).
O conceito de estereotipia é definido por Sambraus (1985) cit. in
Cantavella & al. (1992) como um modelo ou padrão fixo, numa conduta que se
produz de uma determinada forma, que possui conotações de anormalidade e
inclui três características, isto é, o modelo que se produz deve ser
morfologicamente idêntico, deve ser repetido constantemente da mesma forma e
as actividades produzidas não devem responder a um determinado objectivo em
consequência da conduta.
Cantavella & ai. (1992) definem estereotipia como aquela conduta
repetitiva, não voluntária, sintoma manifesto, prevalente e isolado ou que se
destaca como inerente ao sujeito e que não se pode imputar a uma causa directa
reconhecida como orgânica ou que esteja ligada a uma alteração sistémica ou
sindrómica.
López (1982) define as condutas estereotipadas como atitudes motoras
repetitivas, de alta frequência, que parecem não ter um propósito aparente.
Simpson, Sasso & Bump (1982) referem Baumeister & Forehand (1976)
que consideram as respostas estereotipadas como um "comportamento motor
topograficamente repetido e invariante ou sequências de acções nas quais o
reforço não é específico nem contingente e o desempenho da qual é olhado como
patológico".
Vizcaino (2000) faz referência a Turner (1997) ao definir as estereotipias
como condutas que são repetidas de forma inflexível e invariável. Para a autora
esta definição clássica terá uma vantagem que normalmente se desaproveita e um
inconveniente que muitas vezes se utiliza. Começando pelo lado positivo diremos
que tem a vantagem de não deixar ninguém excluído. Todos estamos incluídos,
pois, por exemplo, quem nunca se surpreendeu a golpear com os dedos, numa
intensidade e velocidade constante a borda da mesa? Ou movendo ritmicamente
o pé enquanto vê televisão. Não obstante, existe uma vantagem que,
normalmente é desaproveitada, ao considerarmos frequentemente, nós os
"normativamente normais", não sermos tidos em conta quando desprestigiamos
todos os nossos movimentos repetitivos. A autora crê que há razões para supor
que numa população normal, em situações de extremo isolamento ou de excesso
de pessoas, é possível que apareçam estereotipias. Sem dúvida são
surpreendentes os trabalhos clássicos em isolamento, como os de Heron (1957),
que isolava o sujeito numa habitação limitando ao máximo a variedade de
informação sensorial ou nos trabalhos de Cox, Paulus & Mc Cain (1984) que
estudaram os efeitos quer no meio da multidão quer em extremo isolamento
(presos), aparecerem registos de estereotipias (Vizcaino, 2ooo).
Independentemente da etiologia da estereotipia, estes movimentos não se
encontram só nos seres humanos. Há também estudos sobre primatas e animais
em zoo onde se descrevem estereotipias. Berkson & Mason (1964) mostraram
que, em situações experimentais em que exponham os animais a um alto nível de
ruído e lhes restringiam a comida, apareciam balanceamentos corporais.
As estereotipias são situações que não passam despercebidas e que fazem
parte de uma realidade. A parte da objecção estética, que se produz sobre o
aspecto não atraente deste tipo de manifestações, uma circunstância mais séria e
preocupante é que este tipo de movimento, de cariz autoestimulatório, interfere
frequentemente com as aprendizagens ou com a execução de outras actividades.
Evidentemente que é na população com necessidades educativas especiais que
são mais frequentes e mais chamativas, se compararmos com a população
"normal".
A definição de estereotipia é tão ampla que a palavra converteu-se em
sinónimo de outras que, em algumas ocasiões, são apenas um tipo de estereotipia
e, noutros momentos, as estereotipias são um só tipo. Em relação à etiologia
destas condutas, López (1982) esclarece que há duas teorias diferentes para
explicar as estereotipias: uma refere a sua origem ao isolamento sensorial
(extensivo às barreiras fisiológicas para perceber os estímulos) e outra a um
desequilíbrio de reforços (escassos reforços para actividades dirigidas ao mundo
exterior e ao alto nível de reforços para as actividades para si mesmo).
Dentro das estereotipias podemos encontrar algumas que aparecem
quando a pessoa está só, podendo-lhes chamar "autoestimulações". Outras, sem
dúvida, aparecem quando se obriga a realizar uma tarefa que não quer fazer; o
movimento cessa quando se deixa o sujeito tranquilo. Também podem surgir
quando a explicação da tarefa é muito complexa ou quando se pedem várias
coisas de uma só vez. Muitos autores utilizaram o termo estereotipia como
sinónimo de auto estimulação. Tal é o caso de Barbara Peo Early, (1995) citada
por Vizcaino (2ooo) quando afirmava que "as condutas autoestimulator ias ou
estereotipias são condutas persistentes e repetitivas que aparentemente não
servem para nenhuma função óbvia. "
Ao longo do tempo, as pessoas intimamente ligadas à educação da criança
com problemas visuais, têm-se dedicado à reflexão, discussão, debate,
teorização, e mesmo, ocasionalmente, à documentação escrita sobre as
estereotipias/maneirismos ou, como mais usualmente são classificados,
"blindisms", exibidos por várias crianças cegas ou com baixa visão.
De acordo com Libansky (1882) a maioria dos professores de indivíduos
cegos chama a esses comportamentos "maus hábitos", considerando que a
cegueira congénita é a sua única causa, e como tal, devem ser eliminados tão
rapidamente quanto possível (Knight, 1972).
Zech (1913) descreve que frequentemente os cegos têm todos os géneros
de movimentos comportamentais "horríveis" e "indisciplinados": empurram as
cavidades oculares ocas com os dedos, retirando uma sensação agradável, estão
constantemente a virar a cabeça, balançam a parte superior do corpo, abanam as
mãos e os pés, podendo durar horas até que sejam insuportáveis para as pessoas
que os presenciam (Knight, 1972).
Cutsforth (1933) descreve os "blindisms" em termos de "acto de
autoestimulação automática" funcionando como artifícios compensatórios pela
falta de instrumentos visuais/motores (Miller & Miller, 1976). Contudo,
ansiedade e frustração também têm sido sugeridos por Morse (1965) cit. in Miller
& Miller (1976), não só como a causa destes movimentos, mas também como um
plano de funcionamento para reduzir ou aliviar estes estados de ansiedade.
Dentro de um referido plano de referência Knight (1972) admite a
possibilidade da tensão causada pela ausência adequada de estimulação
físico/sensorial, ser responsável pelo desenvolvimento vazio ou retardado de
comportamentos normais.
Cantavella, & ai. (1992) apresentam a definição de estereotipia de Broom
(1983) como uma sequência relativamente invariável de movimentos que se dão
amiudadamente, num contexto particular e que não pode ser considerada como
parte do sistema de funcionamento normal do indivíduo. O autor afirma ainda,
que algumas estereotipias são incompletas mas incluem elementos perdidos de
funções originais, outras não se distinguem na qualidade das acções que
produzem normalmente, como por exemplo nos movimentos do andar.
Porém, num dado momento, o termo "blindisms" é posto em causa por
duas razões. Primeiro, todos os desvios de comportamentos descritos deste modo
são, na realidade observados noutro tipo de populações como autistas,
deficientes mentais, esquizofrénicos, crianças hospitalizadas, animais com privação
sensorial e mesmo em crianças "normais" em certas situações (Baumeister & Forehand,
1971 cit. in Miller & Miller, 1976). Segundo, as explicações de "senso comum"
são vagamente formuladas e apenas cientificamente testadas no que diz respeito à
génese e funcionamento destas particularidades psicomotoras dos cegos. Estas
explicações não suportam necessariamente a interpretação de que as condições
para o desenvolvimento e funcionamento das manifestações dos cegos sejam,
essencialmente, diferentes das dos outros indivíduos (Pfeiffer, 1976 cit. in
Leonhard, 1990). Assim, considera-se importante definir os principais termos
utilizados neste trabalho (maneirismo, estereotipia, "blindism"), como palavras
que reflectem precisamente padrões de comportamento motor e verbal, exibidos
pelas crianças portadoras de deficiência visual de forma constante e repetitiva.
Maneirismo equivalente a estereotipia cobre toda a gama de repetições
verbais e comportamentos motores, exceptuando os tipos de comportamentos que
estão presentes em pessoas cegas ou com baixa visão e que estão incluídos nos
blindisms. Os movimentos estereotipados - "blindisms" - são geralmente
caracterizados por balançar o corpo para trás e para a frente, rodar ou voltar a
cabeça rapidamente, sacudir/agitar as mãos ou os braços, remexer os olhos ou
pressionar os olhos com os dedos ou com a mão, olhar a luz (Leonhardt, 1990).
Silberman, Bruce & Nelson (2004) consideram que algumas crianças com
deficiência visual, incluindo as multideficientes, apresentam essencialmente
como comportamentos autoestimulatórios, movimentos tão repetitivos do corpo,
como balançar, esfregar e pressionar os olhos, bater/agitar as mãos e rodar a
cabeça de um lado para o outro. Ainda neste contexto, as referidas autoras
citando Bambring & Troster (1992) e Jan, Good, Freeman, & Espezel (1994)
apresentam uma teoria onde justificam que estas crianças exibem mais estes
comportamentos do que as crianças normo-visuais, particularmente aqueles
comportamentos que são mais direccionados para os olhos, aumentando ou
diminuindo os níveis de estimulação. Silberman & ai. (2004) referem Downing
(1999) como apologista de que há outras crianças que manifestam tais
comportamentos para se libertarem de aborrecimentos mantendo-as entretidas e
ocupadas. Por último, destacam-se ainda Mar & Cohen (1998) que consideram
que, quando os comportamentos autoestimulatórios são persistentes, interferem
com as actividades funcionais ao longo do dia, podendo ser necessárias
intervenções formais do âmbito da análise comportamental aplicada.
1.2 Alguns Modelos de Estereotipias
Os movimentos estereotipados podem ser a forma de estar e de
comportamento de muitas crianças cegas, multideficientes ou com outros tipo de
problemáticas, construindo um modelo de movimentos repetitivos e formas de
usar objectos que não variam ou modificam e que parecem ter pouca
funcionalidade comunicativa ou criativa. Em muitos casos, parece ser usado com
o propósito de impedir interacções, suscitando nestas crianças alheamento e
isolamento e promovendo a criação "do seu próprio mundo" (Lee &
MacWilliam, 2002).
Brame, Martin & Martin (1998) referem Leonhardt (1990) que considera
que não são invulgares nas crianças cegas fazerem movimentos repetitivos,
posturas transitórias e pouco comuns ou auto-manipulações. Estes padrões de
comportamentos são socialmente inapropriados, senão qualitativamente, pela sua
frequência ou intensidade ou ambos. Comportamentos estereotipados que
ocorrem tipicamente durante o normal desenvolvimento de todas as crianças
muitas vezes aparecem quando a criança está a aprender um novo
comportamento e são o resultado de imaturidade biológica ou psíquica.
Cantavella & ai. (1992) classificam as estereotipias em cinco grupos:
-
a. Estereotipias do desenvolvimento normal
-
b. Movimentos parasitas estereotipados
-
c. Comportamentos sociais estereotipados
-
d. Estereotipias em forma de:
♦ Tics
♦ Hábito Motor
• "Blindisms'''
■ Outras Classes
♦ Hábito Verbal
-
e. Autosensorialidade.
Ao longo do desenvolvimento, tanto nas crianças cegas como nas normovisuais,
pode-se, eventualmente, observar certos tipos de condutas estereotipadas
que aparecem em momentos pontuais do desenvolvimento, quando a criança está
próxima a apresentar uma nova conduta ou como preâmbulo e preparação para
ela. Representam um estado de imaturidade biológica ou psíquica antes da
maturação da conduta. São exemplo disso, os movimentos rítmicos de balancear
o tronco para chegar à posição de sentada e posteriormente à de pé. São condutas
que deverão desaparecer durante o desenvolvimento da criança. Por outro lado, a
repetição e a obsessão de repetir é uma norma da criança que a conduz a realizar
aprendizagens, tanto na motricidade global como fina. Em geral, uma criança
cega necessita de dedicar mais tempo a estas repetições. Mas se a duração deste
tipo de movimentos, que representam uma etapa do desenvolvimento normal, é
excessiva, pode ser indicador de um atraso na evolução da criança por falta de
estímulos ou um problema no seu desenvolvimento, seja por falta de atenção do
adulto para poder progredir, ou um problema de debilidade mental ou ser um
indicador de um problema psicótico. Assim, às vezes uma conduta, que num
dado momento parece produzir-se por casualidade pode converte-se num hábito
motor, transformando-se de objecto de transição num marco de conflitos
familiares que atraem a atenção da criança, sobretudo quando ela espera uma
resposta dos pais. Se a resposta não se dá ou não é concordante com a criança,
esta abstrai-se da realidade e submerge-se em movimentos rítmicos criados e
mantidos por ela. No desenvolvimento, a transmissão no âmbito motor dos
afectos, conflitos emocionais e tensões psíquicas são uma expressão da tendência
da criança a manifestar através do seu corpo, a juntar à vida emocional perante
escassos recursos mentais que possui para consciencializar e canalizar o
conflito,
por defesas mais adequadas (Cantavella & ai., 1992).
Os movimentos parasitas estereotipados são descargas motoras seriadas ou
movimentos diversos, parasitas da acção principal ou tarefa que a criança
executa
em situações de tensão e que impliquem um alto nível de alerta. São descargas
esporádicas e que se apresentam perante situações emocionais, em geral intensas.
Estes movimentos não têm nenhuma intencionalidade comunicativa, são o
reflexo de um estado emocional, de uma contenção da ansiedade perante a
atenção e a concentração numa tarefa. Os movimentos parasitas apresentam-se
junto à actividade final da tarefa. Correspondem a movimentos de pernas, que se
produzem nas crianças normo-visuais, enquanto escrevem; a movimentos vocais
que acompanham a realização de uma actividade que exija demasiada atenção ou
concentração na tarefa. A criança cega, numa situação complexa que exija um
alto nível de controlo, tenta obter a contenção da sua ansiedade por meio de
descargas motoras. Ao não poder tolerar a sua ansiedade a nível mental nestas
ocasiões, a criança manifesta a sua tensão acumulada por meio do seu corpo de
uma forma mais espectacular e com maior frequência devido à maior dificuldade
para adaptar os estímulos do mundo exterior. Quando se manifestam movimentos
parasitas, é importante considerar a capacidade de consciência que a criança tem
da situação, o seu nível de alerta, a coerência entre o seu mundo subjectivo
interno e a realidade externa naquele dado momento (Cantavella & ai., 1992). O
mundo externo não é visto pela criança como ameaçante, mas a sua capacidade
de contenção "transborda" pela excessiva quantidade de informação que recebe e
deseja controlar. É então que realiza uma descarga motora (que pode ser muito
variada, embora, em geral se observe um tipo constante de movimentos), que o
ajuda a diminuir e a derivar a sua tensão interna acumulada. A criança cega tem
mais dificuldade em lidar com as solicitações do mundo exterior e em adaptá-las
ao seu mundo interno, sendo a razão pela qual que as descargas motoras parasitas
são muito mais espectaculares e apresentam-se com maior frequência do que nas
crianças normo-visuais (Cantavella & ai., 1992).
Estas estereotipias fazem parte das manifestações realizadas ao nível da
comunicação social. Uma parte destes comportamentos sociais, respondem a
normas rígidas e limitadas por respostas, frente a situações dadas por forte
impacto emocional, mas que, em relação à criança cega, carece de referências
sociais visuais, que lhe proporcionem uma variedade de respostas e imaginação.
Assim, por exemplo, entra nesta classificação a resposta do movimento repetido
dos braços como se fossem asas, acompanhado de risos ou sorrisos que pode
realizar uma criança cega perante uma situação que lhe provoque uma grande
alegria ou prazer. Estes movimentos podem assemelhar-se aos seus pares
normovisuais,
consistentes em aplausos, saltos e vocalizações, onde também mostram o
seu estado emocional mediante uma maior expressividade facial e corporal e que
têm o valor de sinais comunicativos comparáveis, no fundo, a estereotipias
culturais (Cantavella & ai., 1992). Diferenciam-se dos movimentos parasitas por
serem expressões rígidas, de manifestações invariáveis, de representação
constante e com pobreza de outras expressões, que na criança cega podem ficar
instaladas durante anos.
Cantavella & ai. (1992) referem que as formas motrizes que a criança cega
utiliza evocam sensações e respostas mais arcaicas, ligadas à forte impressão
que
recebe do mundo exterior e de como isso a induz a recrear essas sensações. Essas
condutas diferem das socialmente estabelecidas, sendo, então, consideradas como
"anormais". Quando a criança fica agarrada a este padrão de conduta, sem
perceber outras à sua volta, vemos a dificuldade que apresenta em formar
mentalmente modelos distintos de uso social sem a ajuda adequada.
Outra característica desta conduta estereotipada que Cantavella & ai.
(1992) considera que se deve incluir automaticamente, prende-se ao facto de,
uma vez a criança tenha terminado uma determinada situação e tenha passado
para outra, é dizer, que responde em termos de causa/efeito. Não fica fixa
àquele movimento, desaparece em seguida e não reaparece, até que se produza uma
situação similar, sendo, então a resposta, invariavelmente a mesma. Quando a
criança cresce e aprende mediante o conhecimento e a interiorização do que a
rodeia, a dar um tipo de resposta mais adaptadas, em geral muda estas expressões
por outros comportamentos frente à mesma situação que provocou as anteriores,
sendo já escassas ou nulas a expressividade corporal exagerada que mostrava
anteriormente. Por outro lado e noutro sentido Cantavella & ai. (1992) incluem
nos comportamentos sociais estereotipados os maneirismos embora a sua
expressão seja mais rica em manter, com menor rigidez e assente dentro de um
contexto de comunicação interpessoal adequada e aceite socialmente. Certos
maneirismos dão-se em forma de estereotipias verbais, que se repetem ao longo
do discurso: o indivíduo repete constantemente um som, uma sílaba ou
interjeição, uma palavra ou frase curta sem estar relacionado com o que está a
dizer.
♦ Estereotipias em forma de tics
Cantavella & ai. (1992) citam Golden & Hood (1982) referindo-se a que
os tics são movimentos involuntários bruscos, sem propósito, rápidos,
repetitivos, muito estereotipados, rígidos na sua forma e ocorrem de uma maneira irregular.
O pestanejar, o virar da cabeça bruscamente, o encolher dos ombros e mover os
braços, são alguns exemplos de tics. Quando se encontra algum controlo parcial
no tic, por períodos limitados, a criança pode mascará-los convertendo-os em
movimentos pseudo voluntários. Há certas vocalizações que também se podem
classificar como tics. São ruídos súbitos, rápidos e repetitivos muito
estereotipados que ocorrem irregularmente. São exemplos desses tics vocais
fungar, aclarar a garganta, tossir, expressões inarticuladas ou explosivas,
palavras soltas e sem valor comunicativo (Cantavella & ai., 1992).
A Organização Mundial de Saúde - OMS - (Geneva, 1992) define "Tic"
como um movimento motor, não ritmado, involuntário, rápido e recorrente
(normalmente envolvendo um grande grupo de músculos circunscritos), ou um
som que aparece subitamente e aparentemente sem nenhum propósito. Considera,
ainda, que os tics tendem a ser considerados irresistíveis mas que podem,
habitualmente ser suprimidos durante largos períodos de tempo. Para a
Organização Mundial de Saúde (1992) os dados principais para distinguir tics de
outras alterações motoras são o súbito, rápido, transitório ou passageiro e
circunscrita a natureza dos movimentos em conjunto com:
-
• a ausência de problemas neurológicos;
-
• a sua repetição;
-
• o seu desaparecimento (usualmente) durante o sono;
-
• a facilidade com podem ser voluntariamente reproduzidos / suprimidos.
A falta de ritmo diferencia os tics dos movimentos repetitivos
estereotipados que se encontram em alguns casos de autismo ou de deficiência
mental. Os maneirismos que podem ser encontrados em algumas deficiências
tendem a compreender movimentos mais variáveis e complexos do que os
classificados como tics.
Há uma grande variação no grau de severidade dos tics. Num dos
extremos o fenómeno é quase normal, designados como Tics Simples (em geral
benignos) com talvez de 1 em 5 até 1 em 10 crianças mostrem tics transitórios
durante um qualquer período. Tics Complexos (em geral crónicos) e no outro
extremo, o "Síndrome de Tourette" designado como uma alteração incomum,
crónica e incapacitante (OMS, 1992). O "síndrome de Tourette" tem especial
importância, fundamentalmente no que se refere à ecolália (sintoma mórbido,
significativo de alienação mental que consiste na repetição involuntária das
últimas palavras pronunciadas diante do indivíduo) e à coprália (necessidade de
dizer obscenidades ou plebeísmos).
Há falta de certezas se estes extremos representam diferentes condições ou
são fins opostos da mesma continuidade; muitos autores olham para esta última
posição como a mais provável não esquecendo, o peso atribuído à história
familiar de tics, de cada criança (OMS, 1992).
Merece destacar-se o carácter compulsivo/obsessivo que entra na
personalidade da criança com tics. Cantavella & ai. (1992) destacam Ollendick &
Hersen (1986) considerando que a etiologia dos tics não está clara mas assinalam
que "um tics pode ser a expressão de um conflito emocional ou o resultado de
uma doença neurológica", apresentando os aspectos psico/analíticos, da teoria da
aprendizagem e os aspectos genético/neurológicos, e assinalando a gradação que
existe entre as possíveis causas psíquicas e neurológicas desde os tics simples
aos
complexos e ao "Síndrome de Tourette".
♦ Estereotipias de hábito motor ("Blindisms")
As crianças deficientes visuais graves, principalmente cegos, apresentam
um conjunto de condutas motoras repetitivas chamadas "blindisms".
Vizcaino (2000) refere Gourgey (1998) como utilizador do termo
"ceguismos" referindo-se às condutas estereotipadas na população com
deficiência visual.
Os "blindisms" aparecem nas crianças com deficiência visual como uma
espécie de busca, por meio de uma modalidade arcaica de descarga motriz, de
uma protecção que o ajude a filtrar a interligações com o meio ambiente. As
estereotipias centram-se nas sensações selectivas que em geral tomam como
território corporal as partes que a criança notou como relevantes ou que lhe
tenham produzido maior impacto nas suas primeiras experiências sensoriais. Na
criança cega, tais percepções iniciais podem orientá-lo a centrar-se nos seus
olhos, como causa do problema percebido muito precocemente como órgão inválido na percepção visual, mas conserva intactas as outras áreas sensoriais:
proprioceptivas, cinestésicas, de pressão, tacto, temperatura e dor (Cantavella
&
ai., 1992).
A produção de sensações individualiza-se para cada ser humano de uma
forma muito particular e significativa, em especial como forma de contacto
pessoal de estar e sentir na vida. Poderá estar na resposta da criança cega
frente a
um mundo que é difícil de conhecer e aprender na procura de identificação, de
conhecimento e de controlo, já que os adultos falam constantemente de um mundo,
o visual, incompreensível para ela. A falta de capacidade
organizativa/adaptativa que seja rápida em certas situações produzirá ansiedade
(a criança cega experimenta grandes dificuldades em enfrentar perigos,
mudanças, situações novas). Esta ansiedade é geradora de "blindisms" sobre uma
experiência sensorial prévia (Cantavella & ai., 1992). Deste modo, são os
"blindisms" relacionados com a zona ocular, as estereotipias mais resistentes à
mudança, em comparação com qualquer outra forma de estereotipia de hábito
motor. Esta circunstância dever-se-á ao facto de existir um investimento de
carácter emocional sobre a região ocular provocada pelas contínuas explorações
oftalmológicas e intervenções a que foram submetidas, desde muito cedo.
♦ Outras estereotipias de hábito motor (excluídos os "blindisms")
As estereotipias de hábito motor são as condutas de balancear, cabecear e
os movimentos repetitivos das mãos ou braços, em pequenas rotações de forma
rápida e rítmica ou movimentos voluntários repetitivos que afectam de forma
típica os dedos das mãos ou os braços. Estas alterações diferem dos tics no que
se
referem aos movimentos voluntários. Além disso, as diferenças dos indivíduos
com perturbações manifestando tics não parecem estar angustiados com esses
comportamentos, pelo contrário, parece que encontram satisfação nas actividades
repetitivas. Estas estereotipias são frequentes nos indivíduos com atraso
mental, autistas, nas alterações profundas do desenvolvimento e nas crianças que sofrem
de uma inadequada ou insuficiente estimulação social (Cantavella & ai., 1992).
A estereotipia é, na sua essência, uma defesa compulsiva. As estereotipias
apresentam-se frente aos estímulos externos e modifícam-se em função do
contexto emocional e da situação espaço/temporal em que se produzem. No
início surge isolamento e dissociação, mas deve-se ter em conta que, ao primeiro
sentimento de frustração segue a procura de uma negociação entre os apelos
subjectivos da criança e os apelos do mundo externo. Se as condições externas se
modificam e a criança cega tem a possibilidade de um conhecimento, de um
controlo do que está à sua volta e sente seguro e confiante emocionalmente,
rapidamente se desliga dos movimentos estereotipados e integra-se de forma
activa numa situação (Cantavella & ai, 1992).
♦ Estereotipias de hábito verbal
As estereotipias de hábito verbal situam-se entre as estereotipias verbais
dos tics e os maneirismos mencionados. Não são tão automáticos nem obsessivos
como os tics verbais nem sobressai a componente social dos maneirismos sociais.
Constituem, por exemplo, a repetição de várias vezes por parte da criança cega,
quando chega uma pessoa muito conhecida dela, perguntar "quem és?", e não
esperar nem se importar pela resposta.
A autosensorialidade é uma conduta do fundo autista que produz uma
limitação bastante maior que a própria cegueira. Consiste no alheamento do
mundo exterior, fechando-se em si mesmo no prazer devido aos estímulos
sensoriais que a actividade provoca. A estereotipia tem como finalidade provocar
um isolamento completo do mundo exterior, no intuito de o negar porque o seu
mundo subjectivo é vivido de forma hostil. A autosensorialidade reveste-se
sempre de uma matiz autista. O predomínio do núcleo psicótico, faz com que a
criança se refugie sobre si mesma e efectue uma regressão generalizada. Com
este refúgio inibe-se o impulso da curiosidade, do desejo de conhecimento, do
progresso, não havendo na criança, em definitivo, uma orientação para o mundo,
vivendo prisioneiro ao seu mundo interno (Cantavella & ai., 1992). Esta conduta
absorve totalmente a criança não havendo contacto entre a realidade interna e a
externa, produzindo-se a indefinição da realidade. A estereotipia que se produz
com uma finalidade será uma procura insaciável de sensações, equivalentes às
condutas autoestimulatórias que realizam os autistas normo-visuais. Toda a
mobilidade sensorial está orientada em função da estereotipia ou das
estereotipias produzidas, não podendo a criança dispor da capacidade de
investimento noutras
actividades.
Cantavella & ai. (1992) sublinham a ideia de Arnaud (1986) ao referirem
que quanto mais espaço temporal ocupa a estereotipia na vida da criança mais
difícil é para ela concentrar-se noutra actividade. Neste momento, se pensarmos
nas crianças cegas autistas ou naquelas que se encontram num processo de
evolução para psicoses, nas quais algo está submergido nas condutas
autoestimulatórias, chegam a possuir um investimento sensorial tão elevado que
podem produzir uma limitação muito maior que a cegueira, já que provoca um
bloqueio, em todo o tipo de inferências sensoriais.
López (1982) considera que, em relação à etiologia das estereotipias,
existem dois tipos diferentes de teorias para as explicar: umas referem a sua
origem ao isolamento sensorial (extensivo às barreiras fisiológicas para
perceberem os estímulos) e outras a um desequilíbrio de reforços (escassez de
reforços para actividades dirigidas para o mundo exterior, e alto nível de
reforços
para actividades dirigidas para si mesmo). Uma vez estabelecidas as
estereotipias, devemos entender o problema remetendo-nos para um modelo
interaccional em que estão presentes os extremos indivíduo/meio. Assim, cingirse
a só um dos termos (indivíduo/meio) só nos pode dar uma visão parcial do
problema.
Cantavella & ai. (1992) referem Sambraus (1985) quando apresentam uma
subdivisão entre as condutas estereotipadas normais e as estereotipias, segundo
os elementos que se incluem nos seguintes subgrupos:
-
• Formas gestuais estereotipadas - Situam-se nas alterações repetidas de
forma constante, por exemplo, na área da cabeça.
-
• Estereotipias de movimento - Entendem-se por padrões repetidos e
uniformes que comprometem a totalidade do corpo. Estes movimentos
podem incluir mudanças de espaço ou ficar fixo a um ponto, por
exemplo, o balanço rítmico da cabeça.
-
• Acções estereotipadas - Compreende uma repetição constante de
condutas onde não se inclui a totalidade do corpo e não implica
mudanças de lugar, por exemplo o enrolamento da língua.
-
• Vocalizações estereotipadas - Referem-se aos sons uniformes,
constantemente repetidos que estão normalmente associados aos
movimentos estereotipados da cabeça e do tronco.
1.3 As Estereotipias na Criança Cega
Quem nunca trabalhou com uma criança com deficiência visual pode
imaginá-la como alguém que só responde a uma perda e não como quem aprende
sobre um mundo cheio de sons, sabores, odores, texturas ou formas mas que se
apercebe de tudo isso de um modo diferente das pessoas normo-visuais. Todas
essas percepções têm para a criança com deficiência visual um significado
similar às obtidas pela criança normo-visual porém, a sua integração nem sempre
é totalmente coincidente nos dois casos.
Ao falarmos de crianças com deficiência visual podemos verificar que são
poucos os aspectos comuns entre elas, sobretudo se pensarmos em termos das
diferenças entre as perdas visuais que eles apresentam e as consequências dessas
mesmas diminuições. De facto, enquanto que algumas dessas crianças são
consideradas cegas, podendo ser mesmo cegas totais, outras têm baixa visão.
Entre as crianças consideradas cegas há ainda as que já nasceram cegas e
as que vão perdendo, gradualmente ou não, os resíduos visuais e que se tornam
cegas antes de iniciarem a actividade escolar. Contudo, as crianças que cegam
entre o nascimento e a idade denominada crítica, entre os cinco e os sete anos,
são consideradas cegas congénitas em termos de aprendizagens futuras, uma vez
que se pensa que não conservam as imagens visuais adquiridas até então.
Independentemente da diminuição visual que as crianças têm, há contudo,
outras qualidades comuns em relação ao seu desenvolvimento social, emocional,
mental e pessoal. A potencialidade de cada um para aprender a funcionar em
óptimas condições no seu meio familiar, na escola e no seu meio social pode ser
fomentada ou inibida pela atitude das pessoas que a rodeiam.
De uma maneira geral, qualquer pessoa que se relacione ou trabalhe
directamente com deficientes visuais deve interessar-se pelo conhecimento dos
complexos processos cognitivos, comportamentais, motores e que muitas vezes
se manifestam de uma forma aparentemente incompreensível e que tanto vão
perturbar quer a criança quer quem com ela habitualmente convive.
McHugh & Lieberman (2003) utilizam algumas expressões de pais com
filhos portadores de deficiência visual que expressam e ilustram o estigma da
criança associado à estereotipia:
... "Não é apropriado para a sua idade" ... "é horrível de se ver";
... "Não é socialmente aceite" ... "as pessoas ficam a olhar";
... "Faz com que sejam menos válidos para um emprego"...
Se o movimento repetitivo que muitas vezes encontramos em algumas
fases do desenvolvimento da criança na primeira infância, durante as transições
entre acontecimentos motores importantes (como a altura imediatamente anterior
ao rastejar, ao gatinhar, ao andar, aos momentos mais evoluídos do crescimento)
os movimentos repetitivos do corpo já não devem surgir, seja qual for o tipo de
população em causa, portadora ou não de deficiência. Os profissionais vêm
normalmente, as estereotipias como um factor que limita a inserção completa do
indivíduo, que é cego ou portador de baixa visão, na sociedade comum (Felps &
Devlin, 1988; Hoshmand, 1975; Knight, 1972 cit. in McHugh & Lieberman,
2003).
Neste contexto, o enfoque dados pelos profissionais, aos problemas
comportamentais estereotipados, assume especial relevo, ao analisar as causas e
os efeitos dos comportamentos específicos que apresenta um indivíduo na
ausência do sentido da visão, de forma que se possam programar políticas
educativas de carácter preventivo e oferecer programas individuais de atenção
educativa com o rigor que toda a criança merece.
Há três características fundamentais que definem as condutas repetitivas e
que estão subjacentes às principais razões de preocupação. Em primeiro lugar, o
carácter de desvio com respeito aos movimentos, gestos e posturas que
observamos dentro da "normalidade", as estereotipias são facilmente e de
imediato observadas por outras pessoas implicadas na relação interpessoal com o
sujeito que as manifesta. A percepção da anomalia provocada assim nos outros
agentes sociais, pode levar a estes, com frequência, a limitar, a sentirem-se
prejudicados, ou a quebrar a comunicação e interacção com a pessoa que
apresenta movimentos estereotipados. Por outro lado, a presença destas respostas
repetitivas induz, em certas ocasiões, os interlocutores a considerá-las como um
indicativo de atraso intelectual ou desajuste emocional.
Em segundo lugar, esses movimentos repetitivos mostram ser voluntários,
isto é, desencadeados pelo próprio sujeito com o fim de obter uma estimulação
interna. O estudo longitudinal das estereotipias na criança cega de Cantavella &
ai. (1992) reconhece que as estereotipias exercem um papel dissociador entre a
realidade externa e a interna da criança. Quando a criança deficiente
visual/cega
se encontra submetida a um alto grau de controlo ou de exigências à sua volta e
mantêm um alto nível de atenção ou se entram num ritmo de actividade
demasiado rápido para ela, aparecem estereotipias de hábito motor, "blindisms".
Outros aspectos a que Cantavella & ai. (1992) chama a atenção são as situações
em que a criança cega/baixa visão começa a perceber o seu défice como carência
na participação de experiências e informações visuais, manifestando "blindisms",
quando partilha com a criança normo-visual em situações que fazem alusão ao
mundo visual. A criança também pode recorrer a comportamentos sociais
estereotipados nos momentos que provocam uma excitação ou surpresa
recorrendo à estereotipia de hábito motor em situações de maior tensão
emocional, destacando-se fundamentalmente nos momentos de frustração e
ansiedade. Ainda os mesmos autores, fazem referência ao cansaço que estas
crianças manifestam devido a um consumo excessivo de energia interna, assim
como a restrição de movimentos, podem produzir também estereotipias de hábito
motor; em situações criadas de forma frágil ou de não formação do vínculo
mãe/criança, a saudade, o isolamento, as separações contínuas e duradoiras,
medos reais, podem favorecer o refúgio da criança neste tipo de condutas tão
dissociativas.
Em terceiro lugar, as respostas estereotipadas são incompatíveis com as
aprendizagens de actividades básicas dado o decréscimo geral de atenção. Não
proporcionar recursos adequados ao crescimento intelectual e motor da criança,
pode favorecer a paragem de condutas evolutivas e provocar a regressão a
condutas mais primitivas onde as estereotipias e os "blindisms" podem ocupar a
maior parte do tempo de vigia da criança (Cantavella & ai., (1992). A criança
cega ou com baixa visão necessita de se sentir querida e competente. Possui
estruturas iniciais, mas a dissimulação ao mundo externo é difícil. Desde o
começo da sua vida irá lutar contra a não adaptação que representa o mundo
visual. Contudo, a criança terá muito mais dificuldade para enfrentar novidades,
perigos e mudanças, restando às estereotipias, em geral, representar a
exteriorização do mundo externo.
Assim, entre outras razões, não é de estranhar a atenção suscitada por tais
condutas estereotipadas. Numa primeira época, a procura "especulativa" da sua
etiologia terá sido materializada e só mais recentemente se abordou o estudo
empírico de variáveis relacionadas com a sua aquisição e continuidade,
(particularmente o papel dos pais e profissionais como mediadores de
experiências de desenvolvimento), assim como a elaboração e aplicação de
métodos efectivos para o seu tratamento e prevenção.
Como interpretar o aparecimento das estereotipias na criança cega? Que
questões se poderão levantar? Considerar-se-ão, como as mais relevantes, as
questões que se apresentam seguidamente.
♦ Como percebe a criança cega o mundo que a rodeia?
♦ É capaz de organizar as suas capacidades inatas, os seus impulsos, a
sua energia interna?
♦ A privação sensorial de que padece condiciona de tal forma a sua
evolução que a impede de seguir um desenvolvimento normal, até
ao ponto de ter de refugiar-se no seu próprio mundo de sensações,
de autoestímulo e autoprazer?
♦ Seremos nós, os normo-visuais, que não chegamos a penetrar na
compreensão do mundo da criança cega chegando a considerá-la
como portadora de patologias internas, confundindo-nos e
desorientando-nos face a uns comportamentos distintos que geram
ansiedade e angústia?
A criança privada de visão que segue um desenvolvimento fora do que é
considerado "normal" tende, a refugiar-se no seu próprio mundo de sensações, de
autoestímulos e autoprazer. O adulto não deve manifestar passividade perante as
condutas estereotipadas da criança. Se for necessária a intervenção esta nunca
deverá ser do tipo negativo, baseada em repressão e agressividade. A intervenção
deve dirigir-se a instaurar progressivamente condutas básicas e alternativas à
própria estereotipia. Deve-se dotar a criança de um conjunto de condutas que, a
par que inibidoras da conduta repetitiva sejam gratificantes para ela (Bueno,
1994).
Contudo, é frequente a família sentir-se desorientada frente a uma conduta
que não entende, em que a causa não conhece mas que a criança sente e vive.
Além disso, se a criança se aperceber que a figura parental mais importante
rejeita os seus comportamentos, isso pode ser entendido, pela criança, como uma
rejeição a ela própria.
Abang (1988) refere Tait (1972) que explica que a rejeição ou sensação de
rejeição da figura parental, em relação à criança cega, pode resultar em
anticomportamentos,
os quais podem ser uma regressão activa para a segurança do
mundo da criança cega. Há estudos que mostraram que os "blindismos" e outras
estereotipias de hábito motor, não ocorrem quando as crianças crescem num
estreito contacto com as suas mães ou família próxima, como acontece na cultura
africana.
Abang (1988) reforça esta ideia ao mencionar Fraiberg (1969) quando diz
que as crianças cegas à nascença não desenvolvem movimentos emocionais
estereotipados desde que recebam suficiente estimulação, quer seja no aspecto
físico como envolvimental.
Abang (1988) utiliza o conceito de Moore (1948) ao referir que as
crianças cegas mais pequenas, antes dos 5 anos, prosperam no amor sendo
pegadas, abraçadas e elogiadas pelos seus êxitos, enquanto que Lowenfeld
(1971) explica que a privação do cuidado maternal pode conduzir a um atraso
emocional e intelectual. A criança cega necessita da garantia do amor e da
segurança da mãe por ela. Ao contrário da criança normo-visual, ela não vê os
sorrisos tranquilizantes de aprovação quando está a desempenhar qualquer tarefa.
Sem dúvida alguma, para que a criança cega atinja o estado adulto em perfeito
equilíbrio e harmonia, torna-se fundamental que nenhum dos movimentos
estereotipados descritos, possam fazer parte da sua "essência" como indivíduo.
Apesar de se tratar de um cidadão com um défice sensorial, tão imprescindível
como é o sentido da visão, não deverá tornar-se um indivíduo menos válido,
sendo importante a sua inserção como membro activo duma sociedade moderna.
Bueno (1994) refere que as estereotipias são condutas repetitivas que a
criança cega realiza sem um objectivo concreto e que podem alterar a aquisição
de posteriores aprendizagens e atrasar o desenvolvimento. Ainda acrescenta,
mencionando Bardisa & ai. (1988) que são sinais de alarme que nos permitem
detectar em muitos casos carências ou situações negativas que estão incidindo na
criança cega e podem passar despercebidas.
Se a capacidade de percepção e resposta, de uma criança cega for
deficiente, proporciona que num ambiente normal seja também
proporcionalmente deficitária. É vulgar que a deficiência iniba, periodicamente,
as respostas e estimulações do meio. Significa portanto, que as condutas
autoestimulatórias estão também relacionadas com insuficiência relacional.
Os diversos estudos efectuados sobre as estereotipias nas crianças cegas
vêm clarificá-las como condutas repetitivas, devido à falta de resposta adequada
às suas necessidades, ou como resultado de stress, ou do excesso de estímulos
internos ou externos que a criança cega não pode controlar. Evidenciam também
a preocupação em certos padrões de conduta que apresentam e que se incluem
dentro dos termos "maneirismos" e "blindismos".
Neste sentido apresentamos algumas conclusões de diversos autores
recolhidos em "Introducción ai estúdio de las estereotipias en el nino ciego",
de
Cantavella & ai., (1992). Por exemplo, Thomas D. Cutsforth (1932) explica na
sua obra clássica "The blind in school and society", que a falta de estimulação
é
responsável pelos "blindisms" e que estes constituem actos de autoestimulação
automática;
B. Lowenfeld (1971) manifesta que a dificuldade da criança cega para
recolher impressões do mundo externo, a conduzem a centrar-se no seu próprio
corpo e nas sensações que recebe, permanecendo neste estado até que encontre
um mundo externo mais gratificante. Assim, indica que, tanto os conflitos
emocionais como a falta de resposta social podem produzir os mesmos efeitos;
D. Burlingham (1972) considera que estas actividades rítmicas têm um
duplo propósito para a criança cega: por um lado, é igual a que ocorre na
criança
normo-visual (tem um objectivo sexual, como prática autoerótica onde fica
implicado todo o corpo e em especial a musculatura como fonte de prazer) e por
outro, representam uma forma de canalizar a energia bloqueada devido à falta de
movimento. A autora considera que primeiro aparece um dos aspectos citados e
que este dá origem a que surja o segundo, embora possam aparecer de forma
simultânea;
J. Knight (1972) faz uma análise sobre os maneirismos na criança cega
congénita e reconhece que frente a uma situação de stress a criança pode
perderse
das suas condutas recentemente aprendidas, podendo estas resultar inefectivas
ou frágeis para resolver os problemas que estão enfrentar, descarregando a
tensão
resultante num acto motor primitivo. O autor considera que a criança cega pode
utilizar os maneirismos para superar, tanto as tensões criadas pela falta de
estimulação física e sensorial, como a tensão originada por situações que geram
insegurança, frustração ou excitação. Assim, uma estimulação adicional poderá
ser a causa de um provável aumento da intensidade, frequência ou duração de
maneirismos na criança cega.
S. Fraiberg (1977) assinala a familiaridade deste tipo de condutas para o
profissional que trabalha com crianças cegas e que se interroga acerca do seu
significado, atribuindo-lhes o "impasse" que certas crianças apresentam no seu
desenvolvimento e a dificuldade de encontrarem soluções adaptativas nos
períodos da sua evolução;
Outros autores como Brame & ai. (1998) referem que é importante
lembrar que muitas crianças cegas, que apresentam estereotipias, não estão
conscientes que se trate de um comportamento atípico, não conseguindo
aperceber-se dos comportamentos apropriados. A incapacidade de imitar
modelos impede-a de compreender que estão a fazer algo anormalmente
diferente. Prupas & Reid (2001) consideram que existe uma relação inversa entre
o comportamento estereotipado e as respostas apropriadas. Baseando-se em
pesquisas anteriores (Koegel & Covert, 1972; Runco, Charlop & Shreibman
1986, cit. in Prupas & Reid, 2001) referem que o comportamento estereotipado
inibe o comportamento de aprendizagem e os novos comportamentos não podem
ser adquiridos até que estes comportamentos tenham sido reduzidos ou
extinguidos. Porém, posição muito peculiar e de certa forma antagónica,
encontra-se em McHugh (1995); McHugh & Pyfer (1996), (1999) cit. in
McHugh & Lieberman (2003) defensores de indivíduos com deficiência,
consideram que os movimentos repetitivos e ritmados não resultam em prejuízos
de bens ou em danos no próprio indivíduo ou nas outras pessoas. Mais
acrescentam que estes movimentos não interferem com os comportamentos de
alto nível e complexidade. Quando o comportamento é benigno ou, pelo menos,
as suas consequências negativas não são evidentes, então quem deverá decidir se
o comportamento tem de ser modificado, quando e como? McHugh & Lieberman
(2003) deixam a ideia que o movimento repetitivo é simplesmente uma
idiossincrasia ou diferença individual que deve ser ignorada ou para a qual se
deve mostrar grande atenção, compreensão e tolerância.
1.4 As Estereotipias nas Crianças Deficientes Visuais/Cegas e nas Crianças com
Espectro do Autismo, em termos comparativos
É muito habitual encontrarmos descrições das crianças deficientes
visuais/cegas que apresentam movimentos estereotipados, serem comparadas às
crianças com espectro do autismo. Embora se possa também encontrar algum
paralelismo das estereotipias de hábito motor noutras crianças portadoras de
deficiências de outra índole como, deficiência mental, esquizofrenia e outras, é
sem dúvida, ao espectro do autismo que mais tem suscitado a comparação e à
qual diversos autores, preocupados com esta problemática, se têm debruçado.
Assim, justifica-se neste trabalho abordar, em termos comparativos, as
estereotipias observadas nas crianças deficientes visuais/cegas e nas crianças
com
espectro do autismo, quer sejam deficientes visuais/cegas ou não.
Os comportamentos estereotipados são vistos como acompanhantes da
cegueira. A literatura sobre cegueira e baixa visão refere-se a esses
comportamentos como "blind mannerisms'" ou "blindisms" que são
caracterizados por repetições não apropriadas de frases, gestos ou acções. Gense
& Gense (1994) mencionam Warren (1984) que considera que estes itens estão
errados porque também ocorrem noutras crianças e que certamente, não se
generalizam a todas as crianças cegas. Iverson (1984) referido por Gense & al.
(1994) define os comportamentos como "blindisms" aqueles que incluem
contorção dos membros superiores, rodopiar, abanar as mãos ou os braços,
caminhar em bicos de pés, abanar com a cabeça e com o corpo, pressionar os
olhos, virar as pálpebras, olhar para a luz. Gense & ai. (1994) cit. in Huebner
(1986) considera que as causas para estes comportamentos incluem uma falta
sensorial, uma locomoção restrita, falta social, um relacionamento entre os
progenitores inadequado, fotofobia, actividade física/motora limitada, uma
capacidade inadequada para imitar e uma variedade inadequada de actividades.
As crianças cegas podem ser temporariamente distraídas destes
comportamentos redireccionando-os para outras actividades, mas intervenções
frequentes são normalmente necessárias. Uma manutenção a longo termo e a
generalização de programas de intervenção, poderão ter êxito com uma
intervenção sistemática e consistente. Uma intervenção precoce é sempre
enfatizada. Estratégias de intervenção dão à criança um estímulo sensorial
adequado e actividade física onde é exposta a uma variedade de ambiente
afastando-a dos comportamentos inadequados.
A literatura sobre autismo repara em semelhantes tipos de
comportamentos. Contudo, Gense & ai. (1994) comentam que reduzida pesquisa
tem sido feita acerca do relacionamento entre os comportamentos das crianças
cegas e aqueles comportamentos de crianças autistas e cegas. Consideram que os
comportamentos que têm sido observados nalgumas crianças e identificados
como "blindisms" necessitam de ser reavaliados. Acrescentam que pais e
profissionais têm frequentemente referido a seguinte descrição "como autista" ou
"de uma forma autista" quando descrevem alguns comportamentos exibidos por
algumas crianças cegas ou com baixa visão. Não obstante, os referidos autores
mencionam Iverson (1984) defensor de que os comportamentos estereotipados
não estão relacionados com a falta de visão mas com outras incapacidades
concomitantes. As crianças com autismo, sejam cegas ou com baixa visão,
processam a informação de uma forma única. O processamento neurológico no
autismo é complexo e resulta em diferentes estilos de aprendizagem afectando a
forma de como estes indivíduos compreendem e respondem ao mundo à sua
volta.
Fazer uma análise rigorosa e crítica das publicações mais representativas
sobre as estereotipias nas crianças cegas e nas crianças com problemas do
espectro autista parece ser, neste momento, pertinente.
Em primeiro lugar e a título informativo apresenta-se um pequeno quadro
resumo, que nos mostra as principais características de modelos de
comportamentos restritos, repetitivos e estereotipados, em crianças típicas,
umas
com deficiência visual e outras com deficiência visual associada a problemas do
espectro autista (Silberman & ai., 2004 cit. in Gense & Gense, 2002). Não tendo
os autores a finalidade de serem exaustivos nem a pretensão para que seja usada
como uma informação/diagnóstico do problema da criança com espectro autista e
com deficiência visual associada ou só com deficiência visual, pode ser
utilizada
para informar e direccionar a família ou qualquer interveniente educacional para
um olhar mais profundo sobre o possível diagnóstico do problema, neste tipo de
população.
Quadro 1 : O problema do espectro autista em alunos com deficiências
visuais/cegueira.
Comparação das principais características
dos tipos de modelos de comportamentos restritos, repetitivos e estereotipados.
(Adaptado de "Autism Spectrum
Disorder (ASD) with Visual Impairments" nas áreas da comunicação, interacção
social e respostas às informações
sensoriais (Silberman, Bruce & Nelson, 2004, cit. in Gense & Gense, 2002).)
Deficiências
visuais / Cegueira
|
Espectro do Autismo e as Deficiências
visuais / Cegueira
|
- Comportamentos estereotipados podem acontecer
em situações novas e não familiares; a gestão
destes comportamentos pode ser acompanhada
com um redireccionamento para actividades com
significados que fornecem um "feedback'
sensorial; as crianças aprendem a controlar estes
comportamentos quando são mais velhas.
- Os interesses podem ser limitados devido à
exposição a eles; demonstra uma variedade de
interesses brinquedos/ objectos a partir do
momento em que são experimentados.
- Historicamente comportamentos estereotipados
foram atribuídos à falta de estimulação do sistema
vestibular. Estes comportamentos ocorrem mais
em crianças e jovens e vão desaparecendo
conforme a criança aprende a interagir com o meio
ambiente.
- O interesse pode ser limitado a brinquedos/ tarefa/ objectos previamente experimentados; apto
a interagir numa variedade de actividades com
adultos e pares.
- O redireccionamento de uma actividade pode ser
possível; a resposta à mudança é mais facilmente
possível conforme as experiências vão ocorrendo.
|
- Brinca repetitivamente; os brinquedos não são
usados como deveriam se.
- Pode insistir numa particularidade de um
brinquedo (ex.: andar com uma roda à volta de um
carro) ou interagir numa acção repetitiva (gesto
repetitivo) com brinquedos e objectos.
- Interrupção de uma actividade favorita ou de um
comportamento motor estimulatório (abanar as
mãos, mudar de um pé para o outro) é muitas
vezes efectuada com grande resistência.
-
Interesses altamente restritos; grandes
dificuldades em ser redireccionado (em ser tirada a
atenção de brinquedos/ objectos) em que tenha
grande interesse.
- Mostra um interesse extremo numa parte de um
objecto ou num tipo de objecto.
|
Através deste quadro pode-se constatar, de forma simplista mas objectiva
a forma como para estes autores é clara a evidência que, embora ambos os grupos
apresentem movimentos repetitivos de hábito motor estereotipados, sem
nenhuma consecução óbvia, a maneira e a função dada em cada um dos grupos é
bem diferente.
Continuando esta reflexão e revertendo para outra forma de olhar,
Vizcaino (2000) expõe, discute e questiona a consistência das principais
definições e aproximações teóricas ou pragmáticas, desde os programas de
intervenção para erradicar as estereotipias, às explicações que incidem em
processos cognitivos básicos, como a inter-subjectividade, passando por
investigações sobre as bases neurológicas deste tipo de condutas estereotipadas.
Sem dúvida alguns estudos sobre comportamentos aparentemente estereotipados,
tanto em certos animais como em sujeitos "normativamente normais", sugerem
que se trata de respostas não primitivas a determinados estímulos ambientais e
que, de facto, se controlam e modificam. Vizcaino (2000) refere que é
surpreendente que existam mais trabalhos publicados sobre "programas para
reduzir estereotipias: experimente a minha técnica", isto é, programas que
tentam
passar a ideia de que as estereotipias são algo terrível que devem desaparecer,
do
que trabalhos em que tentam abordá-las desde um enfoque mais básico e não
complicado. Entende-se que tem sido, em certas ocasiões, grande a preocupação
por explicar o que são as estereotipias, mas noutros momentos, talvez, o grande
objectivo seja dissimular, com êxito, o porquê das estereotipias.
A maioria das intenções de explicação básica, para não dizer todas,
provêem do campo do autismo. É em parte esperável, já que o autismo é o único
quadro que inclui movimentos estereotipados, conforme faz referência Kanner,
(1943) cit. in Vizcaino (2000) "... são uma insistência na igualdade, que leva à
repetitividade monótona, como critério diagnóstico".
Vizcaino (2000) iniciou o seu paralelismo e comentário entre crianças
autistas e cegas seleccionando os trabalhos de Durand & Crimimins (1988) sobre
as condutas autoagressivas onde propõem que estas condutas podem manter-se
através de 4 variáveis distintas. A primeira das variáveis, a que os autores
chamaram de estimulação sensorial interna, seria a autoestimulação. Os sujeitos
sofreriam uma falta de estimulação sensorial que ultrapassariam provocando em
si, estímulos. As três restantes poderiam talvez, ser agrupadas e resumidas,
dizendo que se tratam de condutas operantes. Concretamente, atenção social
(que lhe dêem atenção), oportunidade para obter consequências tangíveis (que
consiga o que quer) e escapar de situações desagradáveis (que o deixem em
paz).
Em relação aos autores que estudaram estereotipias especialmente
observadas nos indivíduos cegos, como seja a compressão ocular e olhar fixo às
fontes de luz, Vizcaino (2000) salienta os trabalhos de Brambring & Trõster
(1992) onde fazem uma relação entre autoestimulações e autoagressões. Há ainda
outros estudiosos que encontram uma forte relação com o começo da dificuldade
visual, a idade, o grau e qualidade residual da visão, o tipo de anomalia
ocular, a
presença de outras menos válidas e o tipo de actividade que realiza a criança.
McHugh & ai. (2003) reuniram algumas conclusões, após pesquisa literária que
as estereotipias, como balançar, são uma parte do desenvolvimento normal; os
primeiros sintomas de estereotipias nas crianças com incapacidades aparecem
mais tarde; as estereotipias persistem em algumas crianças com incapacidades
para além do esperado; elas podem estar relacionadas com factores como sendo o
nível de actividade, a capacidade cognitiva, a institucionalização, e/ou
privação
do meio envolvente; as intervenções sensoriais, motoras e comportamentais são
eficazes em modificar as estereotipias, mas noutros casos não são. Os autores
consideram que a causa é multifactorial e o tratamento extraordinariamente
difícil.
Tendo começado esta abordagem por distinguir autoestimulação como
sinónimo de estereotipia, iremos fazer da "autoestimulação" um termo não tão
facilmente aplicável. Ao pensarmos numa criança autista cega a quem estamos a
tentar ensinar uma actividade, de repente, "desliga-se" de nós e começa a
realizar
alguma estereotipia; falta de estimulação sensorial ou excesso de estimulação
sensorial inadequada? Parecem duas hipóteses opostas, mas se aprofundarmos
um pouco mais talvez não sejam tão incompatíveis. Vizcaino (2000) recorda-nos
que na Teoria da Estimulação Ambiental, que surge da Teoria da Saturação de
Roger Baker, o óptimo do bem-estar psicológico se situa num nível intermédio
de estimulação. Se estamos "por baixo" sofremos de sub-estimulação ou "fome
de estimulação". Se estamos "por cima" sofremos de sobre-estimulação, o que
necessitamos é de um "guarda-chuva para filtrar" ou por outras palavras, ao
receber muitos estímulos inadequados bloqueamos as entradas do exterior. Ao
imaginarmos que a criança não é capaz de beneficiar da estimulação que lhe
oferece o meio, assim, se por um lado o que percebe, ao não poder controlá-lo ou
ao não poder dar-lhe uma coerência, uma compreensão, é como uma espécie de
"bombardeamento estimular", mas por outro lado, carece de estímulos adequados
que o mantenham num "nível bom de bem estar psicológico". A criança
desencadeia estímulos autocontroláveis. Desta necessidade de compreensão, de
coerência, Vizcaino (2000) salienta Uta Friht (1989) explicando que os autistas
adquirem uma percepção fragmentada da realidade, uma focalização excessiva
em certos detalhes descuidando o contexto em toda a sua amplitude. Por outras
palavras, a conduta inflexível e repetitiva das pessoas com autismo seria a
consequência da incapacidade de dar sentido global às experiências, algo que se
considera característico do pensamento autista. Sem dúvida, não entendemos que
uma estereotipia seja parte de um movimento completo. Isto é, um balanço não é
um fragmento da acção. Não nasce de uma finalidade, com um sentido, não é
planificado, nem voluntário, mas automático. Vizcaino (2000) refere que o
sentido global da acção implica um grau de consistência demasiado arriscado e
há autores que se têm dirigido a processos cognitivos mais básicos como a inter
subjectividade destacada por Peter Hobson (1993). A autora destaca Hobson
(1993) no sentido que ele se vai referindo não só a autistas mas também a
crianças cegas. De ambos disse que podem ser semelhantes em bastantes
aspectos, entre eles, estereotipias e rituais repetitivos. Para dar uma
explicação
centra-se no que chama um problema de "triângulo de relação". A criança, o
outro e o objecto. Cabe à visão permitir ver a direcção externa das atitudes
psicológicas dos outros e permitir "triangular" as suas próprias atitudes,
dirigi-las
ao objecto colocando-as em ligação com o outro. As implicações evolutivas da
ausência deste órgão do sentido são aquelas produzidas por um empobrecimento
da experiência desse triângulo de relação.
Outra explicação centrada no autismo é a desenvolvida por Baron-Cohen
(1989) quando apresenta a ideia de que a conduta repetitiva pode aparecer como
uma estratégia de "coping" para reduzir a ansiedade provocada pela incapacidade
das pessoas autistas para compreender o mundo social. Contudo, não só
aparecem estereotipias em situações sociais mas também por solidão. Por outro
lado, parece ser algo que se desencadeia de forma automática. Outra abordagem
feita por esta autora prende-se com os aspectos orgânicos. É a partir dos
lóbulos
frontais que se associa a função executiva ou seja a capacidade de manter um
conjunto de estratégias de resoluções de problemas. A ideia que os lóbulos
frontais podem estar danificados no autismo, advém dos resultados obtidos por
estes sujeitos nas tarefas em que os adultos com lesões nessas áreas também
fracassam. Vizcaino (2000) expõe Happé (1994) quando refere que os lóbulos
frontais compreendem uma extensa área do cérebro, que por sua vez, recebe
entradas de muitas outras áreas corticais e sub corticais. Além disso, o quadro
complica-se pelo facto de que podemos encontrar indivíduos que falham nelas,
apesar de não ter nenhuma lesão clara. Por outro lado, Vizcaino (2000) refere
que
não esquecendo a ideia da função executiva, salienta Paul Shattock (1998) ao
considerar que os défices encontrados podem explicar-se em termos
biopsicológicos, falando concretamente de uma excessiva neurorregulação por
meio de opiáceos. Mais ainda, a autora refere Michelle Turner (1997) ao
considerar que uma falha nas funções executivas seria a causa da repetição
contínua de determinadas condutas realizadas pelos sujeitos autistas. Uma
criança que está a balançar-se, para realizar uma acção distinta, necessita não
só
da capacidade de pôr em funcionamento o seu cérebro para que este organize
uma nova acção, mas também necessita de inibir essa conduta de balanço, que
está a decorrer. Parece, então, que as teorias da função executiva explicam que
uma estereotipia não termina porque não se pode inibir uma acção em curso e
não se pode planificar outra alternativa, mas porque é que começa?
De novo encontrámo-nos a considerar que os "normativamente normais"
podem fazer uso dos movimentos estereotipados em momentos específicos mas
também podem ignorá-los. O certo é que, tanto na população autista como na
cega, consideram-se as estereotipias como tendo um ponto em comum, nas
ocasiões, talvez exageradas. Vizcaino (2000) destaca Guinea & Leonhardt (1981,
1984) demonstrando que 60% das crianças cegas mostravam condutas
estereotipadas e uns 20% possuíam sintomas claros de autismo. Não obstante, a
autora refere que fazia já bastante tempo que se notava algo em comum nestas
condutas de cegos e autistas. Tanto assim que, Vizcaino (2000) dá o exemplo de
Wing (1966) quando deu o nome de comportamentos quase autistas aos
movimentos estereotipados e repetitivos das crianças cegas. Também menciona
Pring, Dewart & Brockbank (1998) quando consideram que a conduta precoce
das crianças cegas congénitas tem frequentemente um número característico que
é similar a algumas crianças autistas e inclui as estereotipias.
Em jeito de conclusão podemos talvez, reproduzir algumas frases escritas
no poster comemorativo do 20° aniversário da Associação Espanhola de Pais e
Crianças Autistas (APNA) (1998), onde está directamente expresso e de forma
muito clara o que uma criança autista necessita: "M?w desenvolvimento não é
absurdo, embora não seja fácil de entender. Tem a sua própria lógica e muitas
vezes são as condutas que chamais ALTERADAS, as formas de me enfrentar com
o mundo desta minha especial forma de ser e de perceber. Faz um esforço por
me compreender ".
Moss (1993) destaca a necessidade que, todo o ser humano tem algum tipo
de estimulação que o ajude. Todavia, será que as estereotipias são iguais numa
população "normal" e nas populações com necessidades especiais? O mal está no
movimento? Consideramos que este reflecte uma resposta, um efeito, uma
consequência. A variedade de frequência e intensidade do movimento mostra-nos
o carácter involuntário e automatizado. O que é certo é que quando o indivíduo é
consciencializado e confrontado com essa realidade social, como uma pessoa
entre outras, pode evidenciar uma redução nos seus comportamentos
estereotipados, sendo possível só mantê-los em privado. E normal que as pessoas
cegas, ao se aproximarem de adultas, controlem e socializem as suas
estereotipias, enquanto que, nas pessoas com autismo não se dá esse esforço, uma
vez que não há a consciência do outro nem aparece a linguagem como ferramenta
de interacção.
FIM
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excerto de:
AS ESTEREOTIPIAS NA
CRIANÇA PORTADORA DE
DEFICIÊNCIA VISUAL
autora:
Alice Lídia Marques Dias
Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Mestre em
Psicologia do Desenvolvimento e Educação: "Multideficiência"
Universidade do Porto
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação,
2006
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