

imagem: Minotauro cego conduzido por
uma rapariguinha na noite - quadro de
Picasso, 1934
A expressão “aquisição de conhecimento” é geralmente associada à idéia de
desenvolvimento, conceito que, muitas vezes, leva a um tipo de raciocínio
linear, reforçado pelas teorias associacionistas, segundo as quais uma aquisição
é a continuação direta da anterior, sem considerar todas as interações possíveis
entre uma e outra e a relação dialética existente nesse processo vivido por um
ser que sente, percebe, age, conhece e sabe.
Embora haja diferenças entre os autores cognitivistas da abordagem
psicogenética, pois cada um deles situa com maior ênfase ou o aspecto biológico,
ou o social ou o afetivo na constituição do sujeito, nenhum deles realmente
deixou de tomar o sujeito do conhecimento em sua totalidade ao considerar as
interações sujeito-objeto. Eles são referenciais teóricos importantes, bem como
os autores da fenomenologia, para compreender a aquisição de conhecimento no
cego.
As indagações acerca do potencial do cego para conhecer e para saber do mundo
que o cerca povoam a mente de pais, professores, psicólogos e outras pessoas
envolvidas com a questão da deficiência visual. Também encontramos pesquisadores
com grande interesse no estudo desse tema, que também está presente na
filosofia, nos mitos, na ciência e nas artes de todos os tempos. Por ser a visão
o sentido que mais nos coloca em contato com as coisas, principalmente à
distância e em detalhes, parece no mínimo intrigante pensar como o cego
estrutura seu mundo mental e como se apropria do conhecimento das coisas que não
pode vivenciar pelo tato, olfato e audição – como o conceito de lua e nuvem, por
exemplo.
Sentidos, afetos, percepções, vivências corporais e interações sociais,
representações mentais, linguagem, significações e conceituações de objetos,
situações, espaço e tempo, a consciência de si mesmo e a construção do “eu”
constituem quase que a totalidade do desenvolvimento humano. Estudar a marca da
ausência do sentido mais valorizado pela cultura na aquisição do conhecimento
pode ser importante ou parecer uma repetição de textos de estudiosos que tão bem
têm tratado do assunto. Porém, a idéia é que, ao refazer o caminho inúmeras
vezes, possamos reconhecer modos distintos de conhecer, perguntando-nos, ao
mesmo tempo, de que conhecimento falamos. Falamos da dimensão manifesta das
estruturas mentais e mecanismos de funcionamento cognitivo do cego e também da
dimensão latente, na qual cegos e videntes se assemelham por compartilharem do
mesmo mundo do invisível marcado, por sua vez, pelo corpo e pela história de
cada um. Esta dialética pode ser melhor e filosoficamente traduzida por
Merleau-Ponty:
o que pode ser apreendido pela experiência, no sentido originário do termo, o
ser que pode dar-se em presença originária não é todo o ser, e nem todo ser de
que se tem experiência(...) e, no entanto, a própria ausência está enraizada na
presença (...).(apud Novaes, 1988: 14)
Parece ser inegável, para a grande maioria das teorias sobre a constituição do
sujeito psíquico – tanto as psicogenéticas quanto as baseadas na psicanálise ,
embora não tratemos desta última neste trabalho – que o corpo, seja ele físico
ou representacional, tem um papel fundante, a partir do que tudo se inscreve –
experiência e simbolização.
Conforme Dantas ( apud La Tail e, 1992), Wallon dispõe claramente uma seqüência
de maturações neuromotoras que preparam a psicomotricidade que, juntamente com a
influência social, dará lugar à função simbólica sem no entanto abandoná-la.. O
autor considera, portanto, que a atividade mental desenvolve-se a partir da
atividade motora; que o ato motor é incorporado pelo ato mental. Neste sentido,
Wallon explica os primórdios da motricidade, desde os reflexos, as formas
impulsivas e descoordenadas dos movimentos e as sensações internas viscerais –
no início do primeiro ano – até as aquisições sensório-motoras de exploração do
mundo externo, como a marcha, preensão e coordenação mão-olho – no final do
primeiro ano. Enfatiza a importância da função tônico-postural, da
expressividade e identifica o aspecto social como mediador nesse processo, como
aquele que interpreta o significado desses movimentos. Numa sincronia entre o
amadurecimento do córtex e a influência do ambiente, inicia-se a vida mental.
Wallon apresenta-nos ainda uma forma de explicar o nascimento da consciência de
si e da noção do “eu” a partir do corpo e da constituição de sua imagem, que
abordaremos mais adiante.
Em Piaget (1971), encontramos que a primeira forma de inteligência é aquela
intrínseca às ações elementares do corpo, a sensório-motora, que se converterá
no pensamento representativo e depois no operatório. Embora Piaget considere o
aspecto social, pois, como ele mesmo indicou, jamais poderia negá-lo desde que
não há vida humana fora do social, ele pensa que os fatores sociais não explicam
por si mesmos o início do uso do símbolo pelo indivíduo. Sua teoria enfatiza a
estruturação do organismo de dentro para fora, no transcorrer de sua maturação ,
em uma continuidade funcional na qual a atividade sensório-motora será
internalizada e representada.
Segundo Oliveira ( apud La tail e, 1992), as contribuições de Vygotsky dão
relevo, por um lado, ao aspecto biológico, especificamente o cérebro, e, por
outro, ao aspecto sócio-histórico do desenvolvimento humano. Seus estudos irão
preocupar-se em apontar o funcionamento do cérebro e suas influências nos
processos mentais de aquisição do conhecimento. As funções psicológicas
superiores, como ele chama, vão se construindo sobre esta base psiconeurológica
da espécie humana, em um sistema neurológico funcional aberto que vai se
modificando, ao longo da história das relações sociais vividas pelo indivíduo,
das estruturas elementares do cérebro, na criança, às mais complexas, na vida do
adulto. No pensamento de Vygotsky percebemos, então, não uma passagem linear do
corpo – que conta com as várias possibilidades de funcionamento do cérebro e dos
músculos instigadas pelas produções da cultura, como os instrumentos, os
sistemas de signos e significações, a linguagem – ao mundo mental, mas uma
transcendência do aparato biológico à capacidade de uso de símbolos criados
socialmente para representar a realidade.
O que Oliveira expressa da seguinte forma :
a própria idéia de que o homem é capaz de operar sobre o mundo supõe,
necessariamente, a existência de algum tipo de conteúdo mental de natureza
simbólica, isto é, que representa os objetos, situações e eventos do mundo real
no universo psicológico do indivíduo. Essa capacidade de lidar com
representações que substituem o real é que possibilita que o ser humano faça
relações mentais na ausência dos referentes concretos, imagine coisas jamais
vivenciadas, faça planos para um tempo futuro, enfim, transcenda o espaço e o
tempo presentes, libertando-se dos limites dados pelo mundo fisicamente
perceptível e pelas ações motoras abertas. A operação com sistemas simbólicos –
e o conseqüente desenvolvimento da abstração e da generalização – permite a
realização de formas de pensamento que não seriam possíveis sem esses processos
de representação e define o salto para os chamados processos psicológicos
superiores, tipicamente humanos. (Oliveira apud La Taille, 1992: 26 e 27) E a
fenomenologia, o que tem a dizer? De acordo com Masini (1994), Merleau-Ponty, em
sua fenomenologia da percepção, amplia as noções de corpo e de percepção, dando
ao primeiro a dimensão de abrigo das ações e das palavras, como uma totalidade
na dinâmica das relações com o mundo, e, à segunda, uma dimensão também
corporal, não como sinônimo direto dos órgãos dos sentidos, mas como síntese
integrada do vivido pelo corpo. Nesta perspectiva dialética o movimento, a
expressão do corpo no espaço, já é carregado de sentido, pois é assim toda
relação do ser no mundo. Para esse autor, o corpo não é o antecessor da
atividade mental, pois que ele permanece desde o início e para sempre
inseparável do mundo, e a atividade mental não substitui a experiência. As
significações estão expressas no corpo e este é consciência, pois sente e
conhece. Para o autor, há um saber do corpo que antecipa a consciência, a
emoção, o conceito. Esse saber não é intelecção referente ao objeto do
conhecimento, mas é, como diz Masini: “...um saber de si ao saber do objeto.”
(Masini, 1994:87). E também que:
É necessário buscar as raízes do conhecimento no mundo vivido, no contato com a
experiência original – na situação em que o sujeito, através do próprio corpo
(que sabe, que sente, que compreende) encontra o objeto (...) na experiência
perceptiva o sujeito penetra no objeto através de seu corpo e o objeto torna-se
“falante” e significativo e vai dispondo ao redor do sujeito um mundo que lhe
diz dele mesmo e no qual instala seus pensamentos. Desse modo a experiência
perceptiva, que fala do corpo e não do objeto, oferece-se como possibilidade
para que se conheça o sujeito pensante. (Masini, 1994: 94)
Fica claro que, para Merleau-Ponty, as teorias de desenvolvimento e de
aprendizagem tratam o aspecto cognitivo isoladamente, separando também o corpo
da mente, quando, na realidade, ambos se imbricam, já que, ao pensar, também há
o sentir. Por isso Masini conclui que, para construir o conhecimento, deve-se
partir da percepção; o corpo é seu instrumento, não só físico, mas relacional e
atravessado pela cultura – a linguagem e outros corpos apresentam e compartilham
a experiência humana que sempre entra pelo corpo como única realidade sentiente,
pensante, agente.
De fato, a organização de pensamentos, observações e teorias feita pela ciência
ou pela filosofia acerca de uma dada realidade ajuda-nos a compreender essa
realidade. São recortes que enfatizam ora um aspecto, ora outro, e nos levam a
um gesforço de apreensão da totalidade da intensidade da vida. Cada uma das
teorias a que nos referimos acima possibilita modos diferentes de refletir sobre
a existência do cego na sua maneira própria de perceber e conhecer. O corpo,
porta de entrada e sede da experiência vivida com a presença de outros corpos –
física, cognitiva e afetiva – e a linguagem, mediadora e socializadora dessa
experiência, conjugam numa constante reciprocidade as diferenças e as
semelhanças de ver e de não ver na construção dos mundos interno e externo ao
sujeito. Esse ver e não ver que é físico, concreto, mas que também indaga sobre
o conhecer.
Segundo Amiralian (1997), várias pesquisas (Fraiberg e Freedman, 1964;
Burlingham, 1965; Fraiberg, 1969) com crianças cegas indicaram dificuldades na
aquisição da locomoção; Lowenfeld (1981) apontou que a ausência da visão leva
automaticamente à restrição na mobilidade por não favorecer o interesse pelo
meio externo e, muitas vezes, observamos que a criança cega é super protegida,
ficando impedida de lançar-se corporalmente no ambiente e descobrir o espaço e
os objetos. Por outro lado, também ocorre que as pessoas geralmente não sabem
como apresentar o mundo a essa criança a partir de outros estímulos que lhe
permitam usar seus canais perceptivos para a movimentação e o conhecimento do
objeto. É de fundamental importância lembrar ainda que as trocas afetivas
corporais primitivas ficam dificultadas para a mãe que recebe um bebê cego. Este
impacto pode tolher o contato e a falta da presença que sustenta a criança neste
momento pode retardar suas impressões e expressões do corpo. Uma intervenção
precoce de orientação à família é muito importante para que a criança cega não
fique prejudicada em seu desenvolvimento psicomotor e afetivo-emocional. Desde o
nascimento, a criança cega também está mergulhada na cultura e a diferenciação
entre o “eu” e o “outro”, bem como a aquisição da linguagem, vêm no percurso de
tornar-se um sujeito no qual o corpo e a palavra se encontram – o corpo próprio,
o corpo do outro, o pensamento em palavra e a palavra expressão do pensamento.
Vamos introduzir agora a idéia da intelecção, da estruturação de um mundo mental
constituído, a partir da atividade perceptiva e sensório-motora, por imagens que
representam o mundo quando da ausência de sua experiência imediata. Para
fundamentar a questão da atividade representativa nos remeteremos ao trabalho de
Piaget (1971) sobre a formação do símbolo no desenvolvimento da criança.
Essa capacidade de usar símbolos para representar e significar a realidade
abrange todas as formas de representação, da imitação ao jogo simbólico de
imaginação, ao onírico, à linguagem e aos conceitos. Para Piaget: É a conjunção
entre a imitação, efetiva ou mental, de um modelo ausente e as significações
fornecidas pelas diversas formas de assimilação que permite a constituição da
função simbólica. (...) a representação começa quando há, simultaneamente,
diferenciação e coordenação de “significantes” e “significados” ou
significações, sendo os primeiros significantes diferenciados fornecidos pela
imitação e seu derivado, a imagem mental, que prolongam a acomodação aos objetos
exteriores. (Piaget, 1971: 12) Também para Piaget, o social tem uma participação
fundamental nesse processo de formação da vida mental, pois é ele que fornece os
dados – significantes e relações entre estes e suas significações – para a
composição das imagens. A imagem, na imitação de um modelo ausente, é um
símbolo, um significante engendrado pela atividade perceptiva. A necessidade de
presentificar os objetos na ausência deles e de estabelecer relações de
significância nas experiências individuais e coletivas funda a simbolização e o
pensamento propriamente dito.
Em Oliveira (1995), vemos que para Vygotsky a representação mental é similar à
apresentada por Piaget, enfatizando que a capacidade humana de lembrar,
estabelecer comparações, associar, prever, supõe um processo de representação, e
que a internalização dos conteúdos do mundo, apesar de partir de elementos e
condutas culturais, não é passiva, pois está inserida em um contexto de
interpretação das ações objetivas e subjetivas.
Também para Wallon (1995) só existe representação mental com a capacidade de
elevar o mundo das impressões imediatas ao plano simbólico, quando o real
concreto pode ser acessado mentalmente, mantendo sua condição de pertencer ao
espaço, mantendo na imagem também esta qualidade. Como o autor declara:
”pertencer ao espaço faz parte da natureza das imagens.” (Wallon, 1995: 211). A
visão de Wallon a respeito da entrada para as representações mentais será melhor
contemplada quando tratarmos da aquisição da imagem corporal.
No que diz respeito ao mundo representacional do cego, já indicamos
anteriormente que são poucos os estudos sobre o período de dois a quatro anos de
idade, fase do desenvolvimento da representação e da simbolização. São feitas
apenas referências ao fato de que a falta da visão ocasiona para a criança um
processo de imitação empobrecido e, por conseguinte, um atraso no jogo
simbólico. Alguns pesquisadores (De Beni e Cornold, 1988 apud Peraita, 1992)
demonstram que a cegueira não impede que as imagens mentais se formem. Para
outros (Paivio e Okovita, 1971; Marchant e Mal oy, 1984 apud Peraita, 1992) os
cegos recordam mais coisas que evoquem imagens acústicas e táteis. As imagens
mentais de cegos e videntes são diferentes, obviamente pelas vivências
perceptivas distintas, mas, ainda em Peraita (Kerr,1983; Zimler e Keenan,1983),
encontramos que: os cegos podem ter imagens que possuem muitas características essenciais de
objetos visíveis – como propriedades espaciais de textura e forma – das imagens
dos objetos que não estão baseadas necessariamente na percepção visual (...).
(apud Peraita, 1992: 21)
Seguindo a linha adotada até o momento, neste item também recorreremos primeiro
aos teóricos cognitivistas e depois às pesquisas que se referem especificamente
à cegueira. Assim, aprendendo com o pensamento de Ausubel, em uma organização
feita por Moreira e Masini (1978), quando se questiona como o ser humano iria
situar-se no mundo e ter uma ação sobre ele se não organizasse o que vive,
veremos que a aquisição de conceitos é um processo psicológico dinâmico e
constante de elaboração e organização daquilo que é sentido, percebido e
compreendido pelo homem. A realidade é sempre mediada por conceitos, categorias,
que compõem a rede de significados que engendra o indivíduo. A aquisição de
conceitos implica um processo complexo de abstração e generalização da
experiência, no qual as características essenciais de uma classe de objetos ou
eventos, variáveis de acordo com o contexto, são capturadas e então
estabelecidas na estrutura cognitiva, como uma forma simplificada de representar
a realidade. Os conceitos tornam possível a comunicação entre os indivíduos,
pois são representados por signos criados pela cultura em que estes indivíduos
vivem. Além disso, os conceitos evidenciam também um aspecto conotativo, e
permitem que idéias abstratas sejam adquiridas a partir de outros, quando da
impossibilidade de experiências concretas, viabilizando a aquisição de novos
conhecimentos.
Para Ausubel, o processo de abstração envolvido na aquisição de conceitos é
gradual, indo do estádio pré-operacional ao operacional-concreto, e chegando ao
operacional-abstrato. No período de compreensão intuitiva e empírico-concreta da
realidade, são adquiridos conceitos primários que se referem e se constituem de
objetos e situações familiares ligadas à percepção, e que se relacionam com a
experiência concreta. No momento seguinte, o da lógica concreta, já há um nível
maior de abstração, no qual a criança pode assimilar os conceitos e operar com
seus significados sem precisar estar em contato direto com os objetos e eventos
aos quais se referem, porém, a lógica ainda é concreta e requer apoio em
sistemas concretos. Nas operações lógico-formais não é mais necessário recorrer
aos referentes concretos. Os conceitos novos podem ser assimilados pelos
conceitos que a pessoa já dispõe, pois opera-se com construtos genéricos,
modelos abstratos complexos, auxiliados por explicações verbais.
Assim, segundo esse autor, os conceitos podem ser adquiridos por formação ou por
assimilação. Os primeiros se dão na criança em idade pré-escolar, por
descoberta, indutiva e espontaneamente, a partir de variadas percepções de
muitas experiências empírico-concretas. Fazem parte desta formação:
-
análise discriminativa de diferentes padrões de estímulos;
-
formulação de hipóteses em relação a elementos abstraídos comuns;
-
teste subseqüente dessas hipóteses em situações específicas;
-
seleção dentre elas de uma categoria geral ou conjunto de atributos comuns sob
os quais todas as variações possam ser assimiladas;
-
relacionamento desse conjunto de atributos a elementos relevantes que sirvam
de ancoradouro na estrutura cognitiva;
-
diferenciação do novo conceito em relação a outros conceitos previamente
aprendidos;
-
generalização dos atributos criteriais do novo conceito a todos os membros da
classe;
-
representação do novo conteúdo categórico por um símbolo de linguagem
congruente com o uso convencional. (Moreira e Masini, 1978: 30).
A segunda forma de aquisição de conceitos, colocada por esse autor, é aquela por
assimilação, o que significa que o conceito não é descoberto por indução, como
na formação de conceitos, mas é dado por definição ou retirado do contexto em
que está expresso implicitamente. A assimilação de conceitos precisa contar com
as aquisições já existentes na estrutura cognitiva, por isso depende do nível de
desenvolvimento do indivíduo e também da forma como o conceito é apresentado.
Para assimilar novos conceitos, a pessoa parte dos conceitos adquiridos
anteriormente, em uma elaboração igual àquela do processo de formação.
Ausubel trata ainda de uma relação importante entre aquisição de conceitos e
linguagem, que deve ser salientada – a assimilação de conceitos não seria
possível sem a linguagem, pois esta tem força de representação da realidade,
influencia e indica o nível de funcionamento cognitivo, e garante uma certa
uniformidade cultural no conteúdo genérico dos conceitos para que haja
comunicação entre os indivíduos de uma mesma sociedade. Mas para que servem os
conceitos adquiridos? Naturalmente, para as necessidade cognitivas de
aprendizagem de novas conceituações, de categorização de novas experiências
perceptivas, novos significados e proposições, e das operações para analisar e
resolver problemas. Seu uso na escola estará, a partir da idade pré-escolar,
mais voltado para o processo de assimilação – aquisição de conceitos secundários
com base nos primários –, pois as crianças não descobrem por si os conceitos
mais complexos. A escola cumprirá esse papel de apresentá-los, mas não deverá
fazê-lo de forma conteudista e sim levando em conta a experiência e o processo
de elaboração pessoal, pois, como foi exposto anteriormente, estão presentes na
aquisição de conceitos o aspecto denotativo e também o conotativo. Além disso, a
escola deverá estar atenta ao mesmo processo gradual de desenvolvimento da
cognição e da linguagem que levará da lógica concreta à abstrata.
Conforme Oliveira, (s.d.) Vygotsky nomeia essa importante aquisição humana com
uma única expressão – formação de conceitos – sendo a primeira dimensão apontada
por ele aquela de uma aquisição que leva o homem à possibilidade, viabilizada
pela linguagem, de uma ordenação do real em categorias conceituais, por um
processo de abstração e generalização, libertando-o do mundo da experiência
imediata. Para esse autor, na realidade, essa é a marca fundamental do ser
humano – a construção e uso de sinais que constituem a linguagem e que esta, por
sua vez, possibilita pensar e atuar sobre a realidade, pois a palavra não se
refere apenas a um objeto, mas a uma classe de objetos, guardando, assim, uma
generalização. Oliveira chama a atenção, dentro do paradigma histórico-cultural
da evolução da espécie humana, para as aquisições da fala, da linguagem e do
conceito que leva à transposição, no ser humano, do pensamento situacional ao
abstrato, cada vez mais complexo, em função de sua imersão na cultura – grupos
de pessoas de culturas diferentes, letramento, escolarização, conhecimento
científico.
Continuando, o segundo ponto de vista de Vygotsky sobre conceito é que este não
deve ser tratado como um elemento isolado na mente do sujeito, definido por uma
lista de atributos suficientes para colocar algo dentro de uma classe ou
subclasse, mas sim como parte de um sistema de inter-relações, pois os conceitos
são organizados na estrutura cognitiva como redes de significados articulados
entre si, possibilitando uma compreensão ativa sobre o mundo.
E, por fim, a terceira observação desse autor, apresentada por Oliveira, é a de
que os conceitos são resultado de uma construção coletiva de significados,
portanto têm a característica de serem mutáveis de acordo com as produções
humanas, sejam elas relativas ao senso comum, à ciência, à religião, à arte ou
outras. Portanto Vygotsky fala de uma organização coletiva conceitual do mundo,
da qual o indivíduo se apropria, permanecendo sempre aberto às transformações
que ele e outros farão eternamente.
Como Ausubel, Vygotsky também considerou três momentos do desenvolvimento da
criança no processo de formação de conceitos, passando dos pseudo-conceitos aos
conceitos potenciais até chegar ao que ele denomina conceitos reais. O primeiro
desses momentos de classificação e generalização diz respeito a um agrupamento
arbitrário dos objetos – por tentativa e erro, por proximidade no espaço, por
separação, formando outros grupos – sem que tenham, necessariamente,
características em comum, mas baseados na experiência perceptual (sincrético). A
seguir, a criança passa a colocá-los em complexos, selecionando-os a partir de
alguma característica concreta similar a todos – por associação, por coleções,
por complexos em cadeia (pensamento por complexo). O terceiro momento é aquele
da competência para a formação dos conceitos reais, os conceitos propriamente
ditos, quando há compreensão, para além dos elementos comuns, de características
abstratas independentes da experiência concreta (conceitual). Para Vygotsky
esses conceitos só se formam na adolescência ( apud Van der Veer e Valsiner,
1996).
Sem ter a intenção de tecer comparações entre dois grandes estudiosos, mas a
título de observação, vemos que Piaget chamou de conceitos espontâneos – ou
adquiridos pela criança fora da instrução sistemática dada pelo adulto – aquilo
que Vygotsky chamou de conceitos cotidianos. E o que Piaget chamou de conceitos
não-espontâneos – aqueles apresentados pela instrução sistemática da escola em
nossa sociedade – Vygotsky chamou de teórico-científicos. Enquanto o primeiro
autor não reconhecia os conceitos científicos como denotadores do funcionamento
da mente da criança, o segundo propõe que ambos os tipos unem-se na mente da
criança e que os conceitos cotidianos são ampliados quando da formação dos
outros. Estes, por sua vez, só poderão se formar depois de um certo nível de
formação dos primeiros ( apud Van der Veer e Valsiner, 1996).
Há críticas a essa colocação de Vygotsky, devido a falta de procedimentos
padronizados para seus experimentos, o que não permite análise quantitativa e
comparações entre grupos (Harrower apud Van der Veer e Valsiner, 1996). No
entanto, esses experimentos permitem análise qualitativa e, além disso, fica
evidente em Vygotsky que ele atribui à educação um papel muito importante no
desenvolvimento cognitivo.
Voltemos mais uma vez à questão da cegueira para que se evidencie o sentido de
nos reportarmos a esses pilares teóricos.
Como já notamos anteriormente, as pesquisas mais recentes de abordagem
piagetiana identificam um atraso em crianças cegas no que tange à formação de
conceitos, em função destes serem constituídos por meio das percepções táteis,
auditivas e cinestésicas que não substituem a visão em seu poder de captura
imediata e de integração das informações oferecidas no ambiente. Portanto, essa
forma de apreensão do mundo sem a visão dificulta e torna a construção do
conceito de objetos, pelas crianças cegas, um processo diferente daquele vivido
pela criança que enxerga (Fraiberg, 1977; Santin e Simmons, 1977; apud
Amiralian, 1997). Aceitando o fato de que a visão tem o poder descrito acima,
reiteramos a necessidade de que a mãe, ou alguém que assuma esse papel, ajude a
criança a enriquecer suas experiências, discriminar e significar as percepções,
bem como organizá-las mentalmente, encontrando um sentido para o mundo, como
cego que compartilha das mesmas significações das pessoas videntes.
Nesse sentido, as contribuições de Ausubel e Vygotsky para a educação dos cegos
são importantes, pois ambos agregam valor com os conceitos de aprendizagem
significativa e de zona de desenvolvimento proximal. Grosso modo, as duas noções
indicam que devemos partir daquilo que a pessoa já adquiriu para continuar
oferecendo condições para o seu desenvolvimento. Assim, de forma similar,
devemos conhecer os caminhos de percepção, organização e compreensão do cego
sobre o mundo. Com a linguagem fazendo parte da formação de conceitos, o cego
tem toda condição de ordenar suas experiências, categorizando conceitualmente os
objetos e eventos com os quais entra em contato, tanto na fase das realizações
concretas sobre o mundo, como nas da lógica abstrata. Como vimos anteriormente,
o que a cegueira provoca é a dificuldade do desenvolvimento do cego no ambiente.
Peraita (1992) apresenta um trabalho importante sobre a categorização em cegos
e, citando alguns autores (Sperber e Wilson, 1996), define: Categorizar, como
processo básico e primário da vida mental, consiste em reduzir a infinita gama
de estimulações e especificações do meio em que estamos inseridos, a um número
ou quantidade manejável, obviamente com fins adaptativos, e isto, supostamente,
se realiza em virtude de dois princípios básicos: formar agrupamentos em função
de características comuns e repetidas na estimulação, e que ditos agrupamentos
ou categorias estejam regidas pelo que é relevante para o sujeito em um momento
ou situação dada. ( apud Peraita, 1992: 12) Trata-se de uma aquisição complexa
que envolve os processos de abstração e generalização que, para acontecerem,
precisam de muitas experiências concretas, pois o ensino, por meio da linguagem,
de todas as características dos objetos oferece dificuldades consideráveis. É a
partir da apresentação de um grande número de exemplos que essa abstração da
informação, que define a classe ou categoria, passa a ser realizada. A autora
parte do pressuposto de que:
as estruturas conceitual e semântica se referem a um mesmo nível de
representação conceitual – e portanto o significado léxico é expressão da
estrutura conceitual (...) e se uma das funções da linguagem, se não a
principal, é expressar o pensamento, as capacidades cognitivas têm que
apresentar um grau de sistematização semelhante ao das lingüísticas. (Peraita,
1992: 12)
Peraita, assim como Ausubel e Vygotsky, também considera que categorizar, isto
é, organizar as coisas do mundo em categorias segundo características
essenciais, não ocorre de uma maneira estática. Ela expõe duas formas de
categorização que ocorrem simultaneamente – a ecológica e a intelectualista. Na
primeira, válida em níveis básicos de categorização, o aparato perceptual e
funcional é prioritário, captando as características concretas mais evidentes de
objetos, ações e eventos para sua denominação, conceituação e aprendizagem da
língua. Na segunda, utilizada para níveis supra-ordenados e conceitos
científicos, a categorização se dá a partir de construtos teóricos do indivíduo
sobre objetos reais com a mediação da linguagem. E mais: que os conceitos e as
categorizações estão no contexto e não na mente.
A partir desse ponto, Peraita inicia a discussão sobre o papel da categorização
e da formação de conceitos e procedimentos na aquisição de conhecimentos, e como
estes são representados na mente. Propõe um modelo mental baseado em esquemas –
conjunto de regras interrelacionadas – que vão conduzir as inferências feitas
pelo sujeito sobre as ocorrências no mundo. Essas regras podem ser traduzidas
por:
-
só as hipóteses sobre o mundo que adaptam o sujeito ao mesmo e que se
consolidam;
-
só os feitos que acontecem juntos no tempo chegam a ser associados pelo
sujeito;
-
só se incorporam os feitos que são atendidos e codificados devidamente pelo
sujeito;
-
para induzir um nexo relacional entre feitos/objetos do mundo, as associações
entre os mesmos têm que ser suficientemente fortes, estatisticamente falando.
(Peraita, 1992: 29)
Em sua pesquisa sobre a representação de categorias naturais em crianças cegas,
Peraita parte das hipóteses de que o processo de categorização fica comprometido
na falta da visão, por ser esta o principal canal de captação das informações do
mundo concreto; que existe uma certa estabilidade nos objetos e classes de
realidades do mundo, que funcionam como uma referência para o processo de
denominação e conceitualização; e que a falta da visão impede o acúmulo de
informações suficientes para abstrair as características essenciais e
generalizar com flexibilidade, deixando os esquemas mentais rígidos. Conclui que
os sujeitos cegos estudados demonstram categorias de conceitos mais
significativas do que se poderia pensar, embora tenha registrado atrasos nessa
aquisição em crianças de seis a dez anos, no que diz respeito à abstração e
generalização de propriedades de categorias supra-ordenadas, o que não ocorreu
em idades mais avançadas. Percebe que a linguagem tem um papel socializador,
ampliando as possibilidades de percepção e compreensão da realidade pelo cego,
mas não esclarece como os conhecimentos estão representados, deixando
subentendidoque há um sistema de representação diferente. Observa ainda que, em
relação à generalização, o nível básico foi muito mais significativo e,
finalmente, que todos os elementos conceituais que apareceram nos videntes, se
mostraram também nos cegos, indicando uma mesma estrutura de organizadores
linguísticos e conceituais em cegos e videntes, porém com defasagem no tempo
para os primeiros, como também diferenças de conteúdo.
Assim como Ausubel deixa clara a inter-relação existente entre linguagem e
aquisição de conceitos, o trabalho de Peraita, descrito acima, também traz uma
contribuição importante nesse sentido, já que insiste na relevância da linguagem
para o processo de aquisição de conhecimento, o que para o cego parece ser
fundamental.
2.4. O papel da linguagem na constituição do sujeito e sua relação com o
pensamento e aquisição de conhecimento
Como vimos, para muitos autores da psicologia, a linguagem tem sempre uma
participação expressiva na constituição psíquica do sujeito e da cultura. É um
sistema simbólico, ou seja, um sistema de signos criado pelo grupo social, que
vai servir de mediação entre o sujeito e o mundo. A linguagem é a expressão de
uma interpretação dos dados da realidade e influencia totalmente os processos de
aquisição do conhecimento – representação mental, pensamento e formação de
conceitos. Todas essas operações mentais não poderiam se dar sem a linguagem, o
que nos permite pensar em estruturas similares e interdependentes que vão se
constituindo simultaneamente. Vygotsky foi um dos estudiosos que mais enfatizou
a linguagem como a produção que legou humanidade ao homem, isto é, que o
diferenciou de outros animais, levando-o a transcender o aspecto biológico e
instalando o sócio-histórico, pois sua maneira de estar e reconhecer-se no mundo
é sempre mediada por um sistema que oferece os significados que podem ser
compartilhados por todos os membros do grupo. Ela permite ordenação do mundo na
mente e comunicação entre os indivíduos. Vejamos como isso ocorre nas relações
entre pensamento e linguagem.
De acordo com Oliveira (1995), Vygotsky propõe que pensamento e linguagem são
fenômenos que nascem e se desenvolvem por caminhos distintos, porém, em um
determinado momento do desenvolvimento da criança, em torno dos dois anos, ambos
se encontram e permanecem interligados, inaugurando um novo modo de
funcionamento psicológico. O que se caracterizava como fase pré-
lingüística do pensamento, sem expressão verbal – uso de instrumentos como
mediadores e inteligência prática – passará a ser pensamento verbal, constituído
por significados; o que era a fase pré-intelectual da linguagem, sem pensamento
racional – sistema simbólico representado pelo choro, riso, grito, balbucio,
como descarga emocional e função de contato social – tornar-se-á fala
intelectual, com função simbólica generalizante. No desenvolvimento
filogenético, isto se deu pela necessidade do homem trabalhar e construir
cultura; no indivíduo, esta transformação acontece porque ele está entre adultos
que lhe transmitem os dados dessa cultura, inclusive a linguagem. O homem não
tem acesso direto o tempo todo e a tudo no mundo, a linguagem é que faz a
mediação entre ele e os objetos. Os signos lingüísticos foram criados pela
cultura para que todos os membros do grupo humano compartilhem significados –
que organizam a realidade em categorias – que não podem permanecer no nível dos
instrumentos e dos sinais, desenvolvendo as funções superiores do funcionamento
psicológico.
De acordo com Vygotsky:
O significado é um componente essencial da palavra e é, ao mesmo tempo, um ato
de pensamento, pois o significado de uma palavra já é, em si, uma generalização. Isto é, no significado da palavra é que o pensamento e a fala se unem em
pensamento verbal. (...) É no significado que se encontra a unidade das duas
funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante.
(...) O significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como
as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos
considerar o significado como um fenômeno do pensamento. (Vygotsky apud
Oliveira, 1995: 48)
Se o sujeito constitui-se, como tal, a partir das vivências dadas por seu corpo
em um mundo significado por outro semelhante, representante da cultura na qual
está inserido; se esta significância se dá por meio de códigos comuns que
permitem o acesso ao conhecimento do mundo em uma instância mental; se o
pensamento e a linguagem são compostos por uma estrutura lingüística –
significantes e significados –, a partir de um certo momento do início da vida;
somos levados a admitir que a linguagem tem um papel estrutural para o sujeito
vidente ou para o cego, já que ambos compartilham da mesma possibilidade de
constituição psíquica.
Para Peraita (1992), apesar de serem poucos os estudos que abordam as relações
entre visão e linguagem, como também cegueira e linguagem, esta tem um papel no
desenvolvimento da criança maior do que Piaget pensava e, para a criança cega,
ela representa o meio mais importante para a aquisição do conhecimento físico e
social, podendo mesmo suprir as informações visuais. Isto porque comumente os
caminhos perceptuais do cego não são explorados, ficando-se apenas no verbal.
Podemos fazer referência a alguns estudos como os de Fraiberg (1977), que
considera que a ausência da visão dificulta o início da expressão e restringe as
oportunidades de comunicação; de Burlingham (1961), que aponta atraso no ritmo
de aquisição das primeiras palavras nas crianças cegas em torno de dezoito
meses, o que é compensado posteriormente. Entre os três e os cinco anos, o
desenvolvimento lingüístico das crianças cegas é como o das crianças videntes.
Este autor também constatou que a criança cega pode ter dificuldade em usar
referentes para as experiências táteis e auditivas, pois o discurso das pessoas,
em geral, não é muito permeado de palavras que se associem com estas percepções.
Haspiel (1965) faz menção de que o desenvolvimento da linguagem, na criança
cega, parece ser mais vulnerável às condições afetivas e ambientais do que nas
que enxergam. ( apud Peraita, 1992) Outro ponto levantado por essa autora, e
sempre enunciado por pesquisadores e profissionais que trabalham com cegos, é
sobre o uso que eles fazem de referentes visuais – ver, nomes de cores,
fotografia – que não têm equivalência com outra modalidade sensorial, a saber,
os verbalismos. (Warren apud Peraita, 1992). O que se pode perceber pelas
pesquisas é que há opiniões contrastantes em relação a esse tema e as razões
apontadas são: as dificuldades para avaliar em porcentagem o uso desses
referentes visuais, qual o verdadeiro significado desses termos para os cegos, e
quais as conseqüências desse uso. As observações positivas de vários autores
apresentadas em Peraita (1992) são muito interessantes: Landau (1983), em um
estudo de caso, percebeu que havia consistência na significação dos termos
visuais usados por uma menina cega, destacando que a experiência vivida é mais
complexa e rica que simplesmente uma resposta direta ao estímulo sensorial. Mil
ar (1983) verificou que os cegos podem fazer inferências corretas sobre os
termos visuais, e que estes se apresentam plenos de conhecimento conceitual.
Sholl e Easton (1986) constataram que o grau de proximidade com os referentes
pode ser o mesmo entre cegos e videntes, o que mostra que essa familiaridade não
é totalmente mediada pelo canal visual.
No que diz respeito à distinção entre pensamento e linguagem antes dos dois
anos, notou-se que as crianças cegas podem adquirir antes o nível léxico e
depois o conceitual, como também acontece com as videntes (Cromer apud Peraita,
1992). Segundo Mulford ( apud Peraita, 1992), deve haver uma maior compreensão
dos referenciais usados pelo ouvinte e falante cego, bem como do ouvinte e
falante vidente para que a comunicação se dê em uma verdadeira interação.
Podemos assinalar também que para as palavras não serem vazias e poderem
encontrar sentido precisam sempre estar vinculadas à experiência; pois já
enfatizamos a importância da linguagem na aquisição de conhecimento e
especificamente na formação de conceitos.
Finalmente, vamos nos referir mais uma vez às divergências entre as opiniões de
vários autores, o que melhor expressaremos com a seguinte citação: Os autores
(Cutsforth, 1932; Naguerra e Colonna, 1956) que têm encontrado na linguagem de
crianças cegas, “nefastas” influências da pressão cultural e social para que se
adaptem à norma e sejam socialmente aceitas e identificadas com os videntes, com
as conseqüências de uma linguagem visual que não está ligada de modo algum a
experiências visuais; e por outro lado aqueles (Demott, 1972; Nolan, 1960) que
assinalam a não diferença entre cegos e videntes na rede de associações verbais
ligada à linguagem visual. Neste segundo grupo de estudos, portanto, as
perguntas sobre se os referentes das palavras usadas pelos cegos são
incompreensíveis, e sobre se há um predomínio de compreensão simbólica ou de
imitação social, ficariam abertas, mas tanto para cegos como para videntes.
(Peraita, 1992: 94)
Continuando o movimento de buscar especificidades do cego e de pinçar
generalidades humanas, voltamos a Vygotsky (Oliveira apud La Taille, 1992),
quando ele salienta que, ao falarmos da importância do significado das palavras
na aquisição da linguagem, não estamos considerando apenas os aspectos
cognitivos, mas a ligação entre estes e os afetivos no quadro psicológico como
um todo. Para Vygotsky, há o significado propriamente dito das palavras – aquele
núcleo central objetivo compartilhado pelas pessoas – e há o sentido das
palavras – o significado para a experiência individual, relativo ao contexto e
às vivências afetivas. Portanto, se queremos compreender a fala de alguém, temos
que ser capazes de entender suas palavras, seu pensamento e sua motivação.
Ainda sobre a aquisição da linguagem, esse autor reserva um lugar de destaque
para a questão da internalização – processo de constituição do mundo
interno/subjetivo – e da construção do significado. Para ele, no início a
criança usa a fala socializada para a comunicação no contato social. Em seguida
a internaliza para atender ao seu pensamento e à sua adaptação pessoal,
auxiliando-a nas operações psicológicas, nas quais o sentido predomina sobre o
significado. Esse processo de internalização, Vygotsky chamou de formação da
consciência, ou seja, um processo de construção de um mundo interno psicológico
a partir de experiências no plano exterior das relações sociais.
Em vários momentos neste trabalho chamamos a atenção para o fato de que a
aquisição do conhecimento se dá integrada à dimensão afetiva, e todos os
cognitivistas aos quais nos reportamos reconhecem esse fenômeno. Entre eles,
porém, o que respalda sua teoria da constituição do sujeito e do conhecimento
com base na afetividade é Wallon. Para ele, a natureza da atividade afetiva é,
ao mesmo tempo, biológica e social. No início sua forma de expressão é corporal
e a presença do adulto é condição de humanidade para que ela se constitua. O
toque e a voz, conforme indica o autor, é a comunicação inicial, e isto nos
alegra ao imaginar que, se tudo corre bem na relação da mãe com seu bebê cego,
ele não será privado dessa troca afetiva, pela ausência da visão.
A afetividade é responsável, por meio da mediação sócio-cultural, pela passagem
que o ser humano vive da vida orgânica à organização da vida racional, ou seja,
no início da vida há uma supremacia do modo de existir afetivo, que vai passar a
alternar-se com a atividade cognitiva no consumo da energia psicogenética, uma
influenciando a outra, a partir das aquisições sensório-motoras no conhecimento
do mundo. Seguindo na linha da constituição do sujeito e do objeto, ao adquirir
a função simbólica e a linguagem, a comunicação afetiva se fortalece e
retroalimenta a cognição. Com as aquisições do pensamento categorial, a
afetividade se manifesta nas relações com o social, por meio de uma elaboração
mais racional. (Dantas apud La Tail e, 1992) Assim, reiterando a dimensão da
afetividade no funcionamento psíquico, mais uma vez constatamos que corpo e
linguagem – esta última como instrumento da cultura, com função de interpretação
nas relações do homem com seu semelhante e consigo mesmo – são elementos
inseparáveis do sujeito do conhecimento. Como então, dentro da concepção de que,
partindo do corpo, todas as formas cognitivas se organizarão – sendo a tomada da
consciência de si um momento especial – se dará no cego esse processo?
É interessante a noção apresentada por Schilder ( apud Barrès, 1974) sobre a
imagem do corpo como fundamento da referência do sujeito em relação a si mesmo e
ao mundo, ou seja, como fundamento do processo que leva à construção da pessoa,
à constituição do sujeito psicológico. É a estrutura de articulação do corpo
biológico com o psicológico. É esclarecedora também sua idéia que diferencia
imagem corporal de esquema corporal. A primeira já foi definida acima, e a
segunda trata-se de um dos níveis de estruturação da imagem corporal –
fisiologia e neurologia da integração das sensações e percepções, imagem
tridimensional do corpo, referência do corpo e fundamento das aquisições
instrumentais, dado funcional não só perceptivo, mas também das noções de tempo
e espaço, da entrada da linguagem, da capacidade para identificar as partes do
corpo e para usar essas competências.
Barrès (1974) retoma também as idéias de
Wallon que nos fazem compreender o
desenvolvimento da consciência de si ligadas à imagem corporal, especificamente
à imagem especular – o papel da emoção e do tônus muscular na relação mãe-bebê,
quando o corpo ganha vida ao ser manipulado, pois vive “para e no corpo do
outro”; o encontro das impressões e sensações do corpo e a imagem visual
percebida no espelho, permitindo a unificação do eu no espaço.
Considerando o desenvolvimento da criança,
Wallon (1995) propõe pensarmos esse
momento tão importante no qual ela encontra-se em condições de adquirir uma
compreensão da totalidade de seu corpo, sabendo que é seu o aspecto que percebe
como exterior a esse corpo físico – exteroceptivo – dado concretamente pelo
espelho de modo inteiro e evidente. O pressuposto que sustenta essa
possibilidade de organização da vida psíquica é a existência de uma
sensibilidade do corpo próprio, a soma das impressões que órgãos e funções
forneceriam de si mesmos – a cenestesia – que leva ao reconhecimento de si
mesmo, a um sentimento de personalidade. Para que se dê esta noção de um eu
corporal é preciso que haja uma diferenciação, dentre as impressões, do que se
relaciona com o mundo externo e o que diz respeito ao próprio corpo.
Funcionalmente, este acontecimento depende de um amadurecimento do sistema
nervoso que ocorrerá do terceiro ao décimo segundo mês de vida, e as várias
formas de sensibilidade do corpo dão-se nos domínios da percepção visceral –
interoceptiva; das sensações de equilíbrio, atitudes e movimento –
proprioceptiva; e da percepção de estímulos externos – exteroceptiva.
Wallon explicitará uma seqüência temporal para essa aquisição que vai do
terceiro mês até quase os dois anos de idade na criança, em que passará da total
indiferença diante das imagens que se formam no espelho, ao reconhecimento da
imagem de outrem e, finalmente, ao reconhecimento da própria imagem. Em relação
a esse momento o autor indica:
existiria um desdobramento, embora fugaz, entre a percepção e a adesão, isto é,
o nascimento da representação em face do real. (...) É um estágio que a criança
não atinge de repente. Se o adulto o ultrapassa é porque, tendo reconhecido o
real na imagem, ele sabe, não obstante, manter a distinção e dissociar
definitivamente das coisas a sua representação. (Wallon, 1995: 205)
Esquematizando a seqüência de desenvolvimento da criança diante da imagem
refletida pelo espelho temos que:
-
aos 3 meses: indiferença diante do espelho;
-
aos 4 meses: fixa o olhar sem interesse pela fisionomia, como se estivesse
diante de um estranho e, depois de dias, sorri;
-
aos 6 meses: além das mímicas afetivas, começam outras associações a partir de
situações exteriores – ao ouvir alguém às suas costas, mostra surpresa, não
junta ainda a imagem de quem falou no tempo e no espaço, mas acontece uma
transferência, uma reação de associação do objeto com a imagem, e esta adquire o
poder de evocar a mesma reação sem que precise novamente ser provocada pelo
objeto. O estímulo auditivo, somado à situação e ao gesto que fez a associação,
não foram intuídos a priori, mas como conseqüência da identificação. Há, então,
uma redução da imagem ao objeto, que traduz sua justaposição em identidade, que
coincide com o desenvolvimento da experiência sensorial imediata e, para além
dela, integra novas formas de estruturação mental.
-
aos sete meses: percebe a relação de semelhança e concomitância entre imagem e
objeto, mas não pode apreender as verdadeiras relações que subordinam e nem
reduzem uma coisa a outra como identidade virtual, apenas atribui a cada uma
realidades independentes. A criança tem a ilusão de poder agarrar a própria
imagem e se surpreende por ela parecer superposta à pessoa. Não porque confunda
imagem e pessoa, por impressões sensoriais insuficientes, mas porque ainda não
compreende a realidade da imagem, não estaria tão substancialmente ligada às
coisas no espaço sensório-motor.
-
aos 8 meses: surpreende-se ao ver a própria imagem no espelho e tem a ilusão
de realidade da imagem. O espelho viabiliza a imagem exteroceptiva que
transcende a experiência do eu proprioceptivo de ouvir alguém pronunciar seu
nome.
Entre a experiência imediata e a representação das coisas, torna-se necessária a
intervenção de uma dissociação que possibilite o destaque da existência e das
qualidades inerentes ao objeto das impressões e ações onde, inicialmente, o
mesmo se implicou, atribuindo-lhe entre outros caracteres essenciais, os da
exterioridade. Não existe representação sem isso. Aquela do corpo próprio deve
necessariamente atender a essa condição. Ela só pode se formar
exteriorizando-se. (Wallon, 1995: 210-211)
-
com 1 ano: apresenta-se sensível à semelhança entre a imagem e a pessoa,
surpreendendo-se com a situação; a pessoa prevalece sobre a imagem, pois é dela
que vem o som;
-
com 1 ano e 3 meses: procura o outro no espelho, brincando com a díade
imagem-pessoa, distinguindo realidade e irrealidade, identificando o traço
totalmente simbólico da imagem;
-
com quase 2 anos: brinca com sua própria imagem como um duplo, e não como se
fosse uma parte de si mesma;
-
aos 3 anos: procede e se conhece como um sujeito distinto dos outros.
Wallon certifica todo esse processo que conflui para a consciência de si e do
próprio corpo dizendo que a criança vai, pouco a pouco, pelas vivências de
muitos referenciais do mundo, pela assimilação e associações com o que já
percebe, conferindo identidade a si e aos elementos próximos, até que
distingue-se como um corpo e um ser entre outros, adquirindo uma representação
de si mesma, podendo formá-la no exterior de si mesma. A criança vive um dilema
– aceitar imagens sensíveis, mas não reais, e imagens reais, mas não acessíveis
ao sensorial – que somente será resolvido ao ultrapassar a vivência
sensório-motora e ascender à atividade simbólica.
Referindo-se à função simbólica e à construção do eu na teoria de
Wallon, Dantas
escreve:
instrumentada pela função simbólica, a percepção de si poderá transformar-se em
“consciência de si” (...) corresponde a trazer para o plano da pessoa uma
conquista que é da ordem da inteligência. Tal elaboração se faz pela interação,
sem dúvida, mas por um tipo especial de interação, caracterizado pela oposição e
negação do outro: é pela expulsão do que há de alheio dentro de si, que se
fabrica o Eu. (Dantas apud La Tail e, 1992: 94).
Podemos pensar, então, que a imagem de si mesmo forma-se a partir do exterior
conjugado com a prontidão interior, no reconhecimento da própria imagem
especular refletida fora. Essa pode ser visual, possibilitada episódica e
metaforicamente pelo objeto espelho – porque o olhar do outro é que espelha, e
esse olhar é simbólico – e, na ausência da visão, pela percepção do próprio
corpo e pela reverberação da própria voz. Esta ocupa um espaço que é sonoro; tem
exterioridade, não pode ser agarrada, mas é substancial; é a criança, mas se
distingue dela. Outra idéia que poderíamos apenas arriscar, pois não temos
conhecimento de estudos concludentes sobre o tema , é a de que se a imagem tem
um caráter de exterioridade, se a imagem de si é dada pelo outro, e se as
pessoas têm sensações proprioceptivas da presença do outro, a percepção que o
cego tem da presença do outro, como de sua voz e do contato com seu corpo,
ajudam na aquisição do conhecimento de si mesmo.
Peraita (1992) aponta uma dificuldade para a criança cega na aquisição da imagem
de si mesma, que provocará um atraso no estabelecimento do pronome “eu”, o que
implica em problemas na comunicação, quer seja no desenvolvimento cognitivo,
quer seja na linguagem. Esse plano superior da atividade psíquica, que é a
imagem de si, afirma a autora, terá que ser conseguido pela própria percepção e
pelo reconhecimento da própria voz.
Como foi exposto, outro dado revelador para esta aquisição na criança cega, como
também na vidente, é a linguagem, pois, como vimos, a interpretação da realidade
surge do significado dado às vivências.
Vygotsky ( apud Van der Veer e Valsiner, 1996), como parte da premissa que a
personalidade é formada na interação social; que o pensamento é social, verbal a
partir dos dois anos de idade – o que coincide com o reconhecimento da imagem no
espelho e com um discurso interior consigo mesmo –, conclui que a linguagem
verbal, como meio de reciprocidade social, é também um meio de reciprocidade
consigo mesmo. Em suas palavras mais precisas: Conhecemos a nós mesmos na medida
em que conhecemos os outros, ou, mais exato ainda, que estamos conscientes de
nós mesmos apenas na medida em que somos outro para nós mesmos, ou seja, um
estranho. (Vygotsky apud Van der Veer e Valsiner, 1996: 70)
Finalmente, temos um outro momento da construção da pessoa que diz respeito à
puberdade e adolescência, quando ocorre uma reorganização do esquema corporal,
com um alcance maior em relação ao pensamento abstrato, uma ampliação do plano
da temporalidade e uma possibilidade de reposicionamento do “eu”. (Dantas, apud
La Tail e, 1992)
Neste trabalho, interessou-nos pensar na aquisição da consciência de si,
traduzida por nossos sujeitos adultos, pensando que estes, já tendo vivido as
várias etapas de identificações pelas quais passa o ego, resultando na
identidade, poderiam expressar como isso ocorreu.
FIM
ϟ
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-Aquisição do conhecimento no cego-
in 'Os Caminhos da Aquisição do Conhecimento e a Cegueira: do universo do
corpo ao universo simbólico'
Eliana Maria Ormelezi
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Educação - Universidade de
São Paulo - como requisito para a obtenção do título de Mestre na área de
Psicologia e Educação, São Paulo, 2000
Δ
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