
The Musicians' Brawl - Georges de La
Tour, c. 1625
Resumo: O presente artigo
apresenta o cognitivismo moral pragmático como forma de
superar as antinomias clássicas entre cegos e não-cegos e a
(im)possibilidade de representação mental do conteúdo moral.
Esta posição é sustentada a partir da reconstrução do debate
metaético instaurado entre cognitivistas e
não-cognitivistas, especialmente nas interpretações
fornecidas pelo realismo moral de McDowell e pelo
quase-realismo de Blackburn. Assim, o pressuposto comum a
essas duas teorias metaéticas [cognitivismo e
não-cognitivismo] pretende ser superado pelo cognitivismo
pragmático, uma vez que suas falsas dicotomias partem da
tese de que todo conhecimento moral é proposicional. Para
sanar esse paradoxo, evitamos uma dicotomia radical entre
fatos e valores, isto é, não há ações que podem ser
valoradas extrinsecamente ao contexto do seu uso.
Introdução
As obras de Diderot 'Lettre
sur les aveugles à l ́usage de ceux qui voient' e 'Lettre
sur les sourds et muets à l ́usage de ceux qui entendent et
qui parlent' [Carta sobre os Cegos endereçada àqueles que
enxergam e Carta sobre os Surdos e Mudos endereçada àqueles
que ouvem e falam] 1 parecem
expressar adequadamente o objetivo de nosso trabalho, isto
é, apresentar as rupturas metaéticas entre cognitivistas e
não-cognitivistas, sintetizadas, aqui, pela defesa de um
cognitivismo moral pragmático.
Partindo das percepções e sensações que os cegos
experimentam ao contato com objetos reais que não veem,
Diderot afirma que os cegos não teriam, necessariamente, a
mesma moral que aqueles com pleno uso da visão. Em outras
palavras, as atitudes do cego em relação à sexualidade, à
criminalidade, à estética, ao horror ou à geometria, por
exemplo, teriam outros parâmetros para a representação moral
(moral representation).
Neste sentido, a assertiva dos argumentos de Diderot permite
demonstrar claramente a problemática acerca da possibilidade
ou existência de “qualidades morais universais” que deveriam
ser cognoscíveis a toda natureza humana. Sendo assim, a
partir do paradoxo de Diderot, poderiam ser colocadas as
seguintes questões para um defensor de uma posição realista
(moral, semântica ou naturalista):
-
se cegos e não-cegos
mantêm a mesma “representação moral” acerca de objetos
reais, então, as qualidades ou propriedades morais
poderiam não depender das experiências físicas;
-
se cegos e não-cegos
mantêm a mesma “representação moral” acerca de objetos
reais e não-reais (por exemplo, os valores), então,
estaríamos discutindo a ética formalmente no plano
linguístico, isto é, na esfera metaética;
-
se cegos e não-cegos
não mantêm a mesma “representação moral” acerca de
objetos reais e não-reais, então, poderíamos dizer que
apenas os segundos podem experienciar propriedades
morais que são reais;
-
se cegos e não-cegos
não mantêm a mesma “representação moral” acerca de
objetos reais e não-reais, então, devemos concluir que,
da mesma forma que os primeiros, os não-cegos também não
podem estar objetivamente seguros das propriedades
morais que julgam usar adequadamente;
-
e, por fim, se apenas
os não-cegos podem ter “representações morais”
verdadeiras, então, deveríamos saber em que sentido tais
representações são objetivas e reais, na medida em que
se acredita serem físicas, ou, também, se entre eles
(não-cegos) as propriedades morais são experiências
subjetivas em primeira pessoa (como no exemplo das
qualias) 2 .
A resolução destas assertivas reflete, em metaética, o
próprio debate instaurado entre cognitivistas e
não-cognitivistas. Grosso modo, o cognitivismo moral defende
que os predicados éticos (bom, justo, correto etc.) não
exprimem qualidades objetivas e secundárias, mas
propriedades objetivas e primárias, passíveis de descrição
imparcial (por exemplo, o não-naturalismo de Moore
3 e McDowell) 4
. Já o segundo, o não-cognitivismo, compreende que os
julgamentos morais expressam estados não-cognitivos como
emoções e desejos (por exemplo, no emotivismo de Ayer
5; o quasi-realismo de Blackburn
6 ou até mesmo o expressivismo de
Gibbard 7 ). Em todas as correntes,
devemos considerar como gênese do problema a ruptura
realizada por Hume entre fatos e valores, isto é, entre
descrições e prescrições. Isso significa que o discurso
moral deveria, minimamente, ser considerado absolutamente
diferente do discurso proposicional da ciência, uma vez que
nesta os fatos devem descrições verdadeiras ou falsas. Do
ponto de vista científico, em qualquer caso, os conceitos
que interessam são aqueles que se usam com a pretensão de
substituir objetos realmente existentes, assim, os conceitos
deveriam ser entidades abstratas não localizadas
espaço-temporalmente.
Desta maneira, pretendemos, neste artigo, analisar em que
medida é possível falarmos em conhecimento moral sem cairmos
num reducionismo fisicalista do conteúdo moral. Para tanto,
inicialmente, reconstruímos as posições cognitivistas e
não-cognitivistas para, posteriormente, refutar parte de
seus argumentos, especialmente aquele que tornaria
impossível a discussão sobre a moralidade entre cegos.
É possível falarmos de uma
epistemologia naturalizada do conteúdo moral?
Ao separar a razão das paixões, Hume estabelece que não há
um bem supremo ao qual deva se conformar o comportamento
humano, da mesma forma que não existem ideias morais inatas
dos quais se poderiam derivar regras para as ações humanas.
Aliás, se elas existissem, então, a alternativa (1) seria
verdadeira. A moralidade é tida como um conjunto de
qualidades aprovadas pela generalidade das pessoas, conforme
se pode observar na seguinte passagem, na qual Hume indica
que:
[...] Talvez se diga que, embora nenhuma vontade ou ação
possa contradizer imediatamente a razão, tal contradição
pode ser encontrada em alguns dos concomitantes da ação, a
saber, em suas causas ou efeitos. [...]. Cabe agora
considerar que até que ponto essa verdade ou falsidade pode
ser a fonte da moral 8.
A exortação de Hume procura mostrar que a razão desempenha
um papel de correção do sentimento moral no qual, embora
cada homem tenha uma posição única no mundo e um ponto de
vista próprio, há um nivelamento sobre os diferentes juízos
morais. Sem isso não chegaríamos às qualidades aprovadas
pela generalidade das pessoas, questão indispensável para o
bom funcionamento, por exemplo, da conduta social dos
indivíduos na sociedade. Consequentemente, Hume sustenta, e
aqui Mackie (1980) está correto, uma espécie de
não-cognitivismo moral, uma vez que as paixões tornam os
juízos morais “objetivos”. Por exemplo, se valoramos algo
como bom, mau, agradável etc., esses não seriam traços
naturais do mundo 9, mas qualidades
aplicadas pela generalidade humana sobre este.
Desta forma, voltando ao problema inicial de nosso artigo,
podemos dizer que o problema de Diderot não tem em sua
solução uma resposta ética, isto é, possa estar nutrido pela
expectativa de que possamos encontrar uma ciência da conduta
humana capaz de resolver o dilema entre cegos e não-cegos.
Ao contrário, a solução mais própria deveria ser analisarmos
o discurso moral resultante do confronto entre as
proposituras em questão (entre cegos e não-cegos) para uma
possível descrição objetiva dos fatos morais e, com isso,
talvez, eliminarmos qualquer propensão em aceitar uma
epistemologia naturalizada do conteúdo moral. Em outras
palavras, poderíamos aceitar a normatividade das regras
morais sem associá-las ou reduzi-las às propriedades
primárias dos fatos.
A teoria do erro e a
(im)possibilidade de objetividade do conteúdo moral
Considerando novamente as dicotomias entre cognitivistas e
não- cognitivistas, é John Mackie que, na década de 1970,
especialmente em Ethics: inventing right and wrong,
primeiramente apresenta uma concepção subjetivista e cética
sobre a moral. Segundo afirma, os valores morais não serão
descobertos, mas construídos; não há valores morais
objetivos e as conclusões morais não podem ser derivadas dos
significados dos termos morais nem da lógica do discurso
moral 10. Por essa razão, recusando
análises metaéticas do tipo emotivista, o autor defende uma
aproximação da teoria cognitivista, sustentando que os
juízos morais não são redutíveis a simples expressões de
sentimentos subjetivos, pressupondo a existência de valores
morais objetivos como respostas naturais ao mundo, e que
esses poderiam ser usados como critério de correção para
nossas ações.
Podemos inferir que a teoria de Mackie centra-se numa base
ontológica, a qual é justificada pela ideia que o senso
comum é levado a manter falsas crenças morais que são
expressas por juízos morais falsos. Essas crenças morais são
falsas porque mantêm, a rigor, uma especulação sobre a
objetividade das qualidades e propriedades morais. Neste
sentido, seria um erro categorial acreditar que pessoas
não-cegas podem ter um “senso moral” mais habilitado apenas
porque possuem a faculdade da visão. Dizer que “o fato X é
moralmente correto” não é uma proposição que possa ser
verdadeira ou falsa”; ao contrário, pode ser moralmente
justificada apenas pela crença moral sobre o fato em
questão. A partir de sua “teoria do erro”, Mackie
caracteriza, em termos gerais, dois argumentos a respeito da
impossibilidade dos valores serem objetivos:
i. a primeira, que todas as afirmações morais são
falsas; ii. a segunda, que temos razões suficientes
para acreditas que todos os enunciados morais são falsos.
Assim, acreditar que nossos julgamentos morais possam ser
cognitivos é um erro, uma vez que nossa linguagem e o nosso
pensamento não podem representar a objetividade dos
acontecimentos do mundo.
Em outras palavras, a linguagem, assim como os estados
mentais [a consciência], não conseguem capturar a
objetividade do mundo, o que significa que podem apenas
externalizar reações morais diante dos fenômenos naturais.
A teoria do erro demonstra, portanto, que nos enganamos ao
afirmar que há valores morais como se eles fossem objetivos
e estivessem realmente presente no mundo como propriedades
reais. Neste sentido, Mackie apresenta dois argumentos para
sustentar sua posição contra a objetividade dos valores
morais que podem solucionar, ao menos aparentemente, a
questão da experiência moral entre cegos e não-cegos:
-
1. argumento da
estranheza: alegações morais implicam em um
internacionalismo motivacional, isto é, a priori deveria
haver disposições motivacionais para executar alguma
ação moral; e isso sempre exigiria infinitamente
motivações ulteriores (Por que acreditamos que roubar é
moralmente errado?);
-
2. argumento da
discordância ou relatividade: não temos razões e
justificativas racionais para argumentar contra alguém
que esteja disposto a sustentar que certas ações são
moralmente corretas ou incorretas (Que tipo de razões
devemos fornecer para alguém de que não é correto matar
crianças?) 11.
Enfim, por um lado, primeiramente em oposição aos
não-cognitivistas, Mackie considera que o realismo está
certo quando compreende que a exigência moral deve ser
entendida por sua aparência ou significado manifesto. Isto
significa que os predicados morais denotam apenas
propriedades genuinamente morais, e não estritamente reais.
Por outro lado, Mackie tende a concordar com os
não-cognitivistas para a implausibilidade do discurso moral,
uma vez que este é pautado numa interpretação
não-naturalista. Sendo assim, um argumento prático descrito
por Mackie, e que parece ser metodológica e
epistemologicamente válido, é a variação moral entre as
diferentes comunidades, entre os quais se poderiam destacar
os próprios paradigmas históricos construídos por uma
centena de fatores. A monogamia, por exemplo, assinalaria a
falta de um padrão objetivo na moral. Parece evidente,
portanto, que as regras morais são apenas modos de agir que
espelham os modos de vida instituídos por uma comunidade
12.
É possível concluirmos, a partir do pensamento de Mackie,
que sua visão sobre as proposições morais é, em metaética,
defensora do externalismo moral, uma vez que a inexistência
de valores objetivos torna dependente da vida comunitária a
correção do comportamento e das crenças morais. Segundo
Miller, no externalismo, os julgamentos morais não têm uma
conexão necessária ou conceitual com as motivações.
Isso significa que a inexistência de uma verdade moral
objetiva permite concluir que o guia para o comportamento
das pessoas deve ser outra coisa, exceto a objetividade dos
valores morais 13 .
Neste contexto, para tentar solucionar o paradoxo instaurado
pela ausência de objetividade, Mackie desenvolve uma
analogia entre os valores morais e as qualidades
secundárias, resgatando a terminologia usada na filosofia
Locke entre qualidades primárias e secundárias
14 , que representam duas dimensões
pelas quais podemos compreender a experiência direta ou a
reflexão indireta sobre a realidade. Além de responsáveis
por fornecer as ideias que temos sobre o mundo, as
qualidades primárias e secundárias desempenham o papel
corretivo para os limites do pensamento.
Assim, para vermos que Locke é significativo no debate meta-
ético, o trabalho de Mackie, intitulado Problemas en torno a
Locke 15 , procura resgatar a
argumentação do filósofo contra as ideias inatas.
Conforme Mackie compreende, os capítulos II, III e IV do
Livro I do Ensaio, são dedicados a argumentar que não há na
mente princípios especulativos como as máximas “É impossível
que a mesma coisa seja e não seja” e “O que é, é”.
Igualmente, não há princípios práticos, morais e, tampouco,
ideias inatas, referindo-se que são máximas espe- culativas
porque não se encontram impressas na alma de todos os
homens.
Entretanto, como vimos, o neoantirrealismo de Mackie pouco
ajuda- nos a resolver o problema inicial de nosso trabalho
[Se cegos e não-cegos devem ter a mesma experienciação moral
porque tal questão deve ser pensada em termos objetivos e
reais]. A teoria do erro de Mackie é válida, porém, para
eximir argumentos e traços metafísicos que possam suscitar a
necessidade de uma experiência direta com o mundo para
sermos capazes de falar em “conteúdo moral objetivo”. Se tal
premissa fosse verdadeira, então, cegos sempre estariam
impossibilitados da compreensão ou significação de regras
morais e deveríamos, por- tanto, passar a discutir o que
constitui uma “experiência normal” da realidade.
Entre o cognitivismo moral fraco e
o quase-realismo não-cognitivista
Há duas posições que merecem um resgate, embora talvez não
suficiente, para ajudar-nos a responder o debate metaético
em questão.
A primeira, a posição realista [TR] 16
de John McDowell 17 ; a segunda, o
quase-realismo [QR] 18 de Simon
Blackburn 19. A divergência entre
os autores permitirá mostrar duas questões metaéticas: a
primeira, de caráter metodológico, que a posição
antirrealista torna o conhecimento moral dependente das
qualidades secundárias; e, a segunda, de caráter
epistemológico, que o realismo moral pode ser caracterizado
como uma rejeição à impossibilidade de objetividade dos
valores morais, sustentando que esses dependem de certa
percepção e de qualidades que estão no objeto, não podendo
serem conhecidas sem que exista uma referência direta à
experiência. Sendo assim, podemos situar sete argumentos que
traçam o compromisso assumido pelas teorias em questão:
-
1. a TR sustenta que
os valores dependem de nossa experiência moral para
serem experienciados; já a teoria QR sustenta que os
valores são projeções que não podem ser explicados pela
razão, pois estes são apenas sentimentos projetos sobre
o mundo natural;
-
2. a TR apropria-se
da ideia de qualidades secundárias para afirmar que a
moralidade pode ser concebida como um conjunto de
propriedades acessíveis a partir de certos estados
subjetivos e, portanto, reais; a teoria QR critica tal
enfoque uma vez que, se os valores não existem como
propriedades intrínsecas dos objetos, e se os mesmos são
qualidades aplicadas sobre eles, então, dependeriam
sempre do grau de eficiência de nossa experiência moral
em condições “normais”;
-
3. a TR defende uma
ética de virtudes e compreende que a mesma expressa um
tipo de conhecimento moral, uma forma que permite
coordenar antecipadamente o resultado moral das ações
futuras.
-
Sendo assim, a
virtude não é um hábito, mas uma capacidade de decisão
sobre algo moralmente correto ou falso. Já a teoria QR
afirma que as propriedades avaliativas são projeções de
nossos próprios sentimentos, emoções, atitudes etc., não
havendo nada de superveniente aos fatos;
-
4. a TR sustenta que
só podemos compreender um conceito e, consequentemente,
realizar a aplicação correta de um juízo, utilizando
como pano de fundo uma prática pré-estabelecida.
-
A teoria QR, ao
contrário, mantém uma visão naturalista, no sentido de
que tenta ver o homem como parte da natureza e tenta
explicar a moralidade como decorrente da sua própria
natureza e situação;
-
5. a TR utiliza-se do
arcabouço teórico de Wittgenstein e sua concepção de
“seguir uma regra”. Neste caso, as regras são
construções sociais de certa prática ou conduta,
pressupondo que conforme seguimos uma regra está
pressuposto um conhecimento implícito dela. A teoria QR
admite a manutenção da visão não- cognitivista do
Tractatus nas Investigações, sendo que “seguir uma
regra” [moral, por exemplo] é apenas um processo
automático derivado, em grande medida, no hábito;
-
6. na TR as regas não
podem ponderar sobre a natureza da decisão moral; a
capacidade de ação depende do agente virtuoso. Para o
QR, a moralidade é superveniente ao mundo; adornamos e
manchamos o mundo, como se ele tivesse características
[morais] para responder aos nossos sentimentos e
projeções;
-
7. e, por fim, a TR
parece não explicar como uma pessoa pode fornecer razões
para si mesmo que está seguindo a regra, porém não
consegue fornecer razões para outra de que sabe que está
seguindo a regra corretamente. Por outro lado, segundo a
teoria QR, a crença moral não pode ser identificada com
nenhuma propriedade moral, mas com propriedades naturais
projetadas sobre o mundo.
As objeções entre a TR [de McDowell] e a teoria QR [de
Blackburn] permanecem distantes da resolução do problema
metaético entre cegos e não-cegos, a saber, se cegos
poderiam ter a mesma experienciação moral de alguém que
possui a visão, ou ainda, se podemos falar em objetividade
na percepção de fatos morais. Aceitando qualquer uma das
premissas, somos levados, pelas teorias em questão, a um
nível de discussão empírica que exigiria falarmos sempre em
condições normais de experienciação da natureza e, portanto,
de atribuição de valor sobre os fatos. Embora esta seja uma
premissa importante, o debate pode ser, em grande medida,
dissolvido pela análise do conteúdo linguístico que
utilizamos para expressar nossos juízos morais. Por sua vez,
devemos migrar o dilema entre cegos e não-cegos [e o debate
entre cognitivistas e não-cognitivistas] para a análise de
como nossas proposições, sentenças, juízos e conceitos
funcionam e, consequentemente, adquirem significação.
Resumidamente falando, a TR apela para a experiência moral
como um elemento subjetivo; logo, cegos estariam sempre numa
desvantagem [filosófica] frente a certas avaliações morais
como, por exemplo, nas técnicas de crueldade que foram
aplicadas sobre uma vítima. Já a teoria QR, ao afirmar que
fazemos naturalmente projeções sobre o mundo, não consegue
explicar por que fazemos certas projeções avaliativas ao
invés de fazermos outras, isto é, haveria uma
intencionalidade natural não racional no momento em que
fazemos certas projeções 20. Isso
significaria, para a teoria QR, que tanto um cego como um
não-cego deveriam sempre explicar as motivações das suas
motivações, o que tornaria o debate um regresso ad
infinitum.
Por que o cognitivismo moral
pragmático poderia responder ao problema da experienciação
moral entre cegos e não-cegos?
O pressuposto comum a essas duas teorias metaéticas
[cognitivismo e não-cognitivismo] partem da tese de que todo
conhecimento moral é proposicional o que, portanto,
prolifera a expectativa de eliminação dos discursos
não-formais. Para sanar esse paradoxo, evitamos uma
dicotomia radical entre fatos e valores, isto é, não há
ações que podem ser valoradas como, por exemplo, certas ou
erradas, corretas ou incorretas, extrinsecamente ao contexto
do seu uso. Na verdade, Putnam já alertara para um ponto de
vista adotado erroneamente desde o século XVII a respeito da
percepção: “A questão ́como é que a linguagem se encaixa no
mundo?’ é, no fundo, uma repetição da antiga questão ‘como é
que a percepção se encaixa no mundo?’” 21.
Desta maneira, concordando com Putnam, a indicação de uma
dualidade entre linguagem\pensamento, linguagem\realidade\,
pensamento\realidade ou fato\valor são resquícios de um
velho pseudoproblema.
Assim, acreditamos que o cognitivismo moral pragmático pode
indicar-nos certas escadas para superar o problema em
questão, mas que, posteriormente, também devem ser
abandonadas pelo seu interlocutor. Seguindo o pensamento de
Wittgenstein, e abandonando a construção de uma linguagem
ideal, própria do Tractatus e reassumida pela interpretação
do Neopositivismo Lógico [especialmente Carnap], é
significativo considerarmos alguns argumentos para dissolver
o debate tradicional entre cognitivistas e
não-cognitivistas:
-
1. toda justificação
do conteúdo moral só ocorre pela existência de uma
natureza comunicativa dos falantes; o conteúdo moral,
portanto, não pode ser pensado apenas de forma
fisicalista, isto é, em sentido proposicional;
-
2. o debate sobre a
existência de propriedades ou fatos morais é falsa pois,
se existissem, deveriam ser algo absolutamente diferente
das propriedades físicas existentes no espaço e no tempo
(e não saberíamos como observá-los, assim como temos
dificuldades para observar o átomo, a “realidade”, entre
outros ele- mentos);
-
3. a compreensão é um
fenômeno linguístico e não-linguístico (por exemplo, o
processo de compreensão dos surdos) que permite o
progresso da interação entre os falantes; em outras
palavras, o conteúdo moral torna-se cognitivo na medida
em que ele passa a ser entendido por meio de uma
representação mental que, não necessariamente, precisa
utilizar-se de “imagens”;
-
4. embora possamos
identificar uma variação significativa dos códigos
morais, o que poderia influenciar a defesa de um
ceticismo moral ou de uma teoria não-cognitivista, a
forma de vida humana deve ser considerada uma
pré-condição para a discussão de qualquer questão em
nível metaético. Neste sentido, não podemos falar em
significado do conteúdo moral, mas em termos de
compreensão e competência observável [de cegos ou
não-cegos];
Sendo assim, procuramos mostrar que tanto a posição
metaética do cognitivismo como aquela do não-cognitivismo
moral passam ao lado de uma interpretação adequada do
“discurso e do conteúdo moral”. Dizer que um juízo moral é
objetivo e, portanto, cognitivo, exige aproximar tanto a
objetividade dada pela regra, quanto a objetividade dada
pela realidade.
Mesmo assim, isso não significa dizer que um juízo é
cognitivo porque é verdadeiro ou falso, mas, ao contrário, é
cognitivo porque encontra no contexto [e aqui o uso do termo
pragmático) um uso efetivo que confere a compreensão entre
os falantes “verdadeira”. Neste sentido, os próprios
conceitos morais são conceitos linguísticos e, por isso, não
se pode pensá-los como derivados de um mundo extra-humano.
Precisamos, portanto, utilizando-nos dos termos
wittgensteinianos 22 , analisar a
gramática moral de nosso discurso e vê-la além de uma
estrutura proposicional.
Sob essas condições, acreditamos que Luckhardt está certo ao
afirmar que no jogar do “jogo de linguagem da valoração
moral não se define uma ação como imoral, sem alguma razão;
ao contrário, devemos estar [...] prontos para explicar os
motivos pelos quais se aplica tal termo” 23.
Quer dizer, os padrões morais de uma cultura são explicados
aos seus membros dando-lhes possibilidade para dizer que uma
ação é justa ou injusta. Consequentemente, se perguntarmos a
esses membros se os padrões morais são justos ou injustos, a
resposta certamente buscará fora um novo standard para
justificar e validar esses critérios. Assim, a partir da
posição de Luckhardt é possível defender que, numa leitura
wittgensteiniana, a posição dos relativistas éticos é
incoerente e absurda, uma vez que não podemos decidir sobre
os sistemas morais da mesma forma que respondemos a questões
sobre teorias físicas 24.
Considerações
Como consequência dos argumentos apresentados, acreditamos
que o cognitivismo moral pragmático dissolve a vagueza e o
mito da objetividade empírica na flexibilidade que os
conceitos e juízos morais adquirem nos jogos de linguagem
que fazem parte da forma de vida humana. Neste caso, se não
dependemos exclusivamente da percepção e da realidade para
formular nosso conteúdo moral, é analiticamente falso o
argumento de que cegos não poderiam ter uma “sensibilidade
moral”. Aliás, se tal premissa fosse incondicionalmente
verdadeira, então, deveríamos primeiramente discutir se a
“percepção” é universal ou apenas uma “representação
cerebral”, e, posteriormente, acreditar que uma deficiência
na natureza (por exemplo, visual) reduziria a atitude moral
e o comportamento de alguém (os óculos, portanto, seriam
sinônimo e início da imoralidade).
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NOTAS
-
1
DIDEROT, Denis.
Lettre sur les aveugles à l ́usage de ceux qui voient.
Lettre sur les sourds et muets à l ́usage de ceux qui
entendent et qui parlent. Paris: Flammarion, 2000.
-
2 Cf.
LEWIS, Clarence I. Mind and the World Order. New York:
Charles Scribners, 1956. DENNETT, Daniel. Consciousness
Explained. Boston: Little, Brown and Company, 1991. A
respeito das qualia, Dennett afirma pensá-las como
propriedades qualitativas intrínsecas é um erro. O que
há são nossos julgamentos, nossas decisões, nossa
memória, nossos pensamentos sobre as qualia, e não as
próprias qualias enquanto tais.
-
3 Cf.
MOORE, Georg E. Principia Ethica. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993.
-
4 Cf.
McDOWELL, John. Mind, Value, and Reality. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1998.
-
5 Cf.
AYER, Alfred. Are there objective values? In: Freedom
and Morality and Other Essays. Oxford: Orxfor University
Press, 1984, p.17-34.
-
6 Cf.
BLACKBURN, Simon. Essays in Quasi-Realism. Oxford:
Oxford University Press, 1993.
-
7 Cf.
GIBBARD, Allan. Wise Choices, Apt Feelings. Oxford:
Clarendon Press, 1990.
-
8
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e
os princípios da moral. São Paulo: UNESP, 2003, p. 126.
-
9 Cf.
MACKIE, John. Hume ́s moral theory. New York: Routledge,
1980
-
10
Cf. MACKIE, John. Ethics: inventing right and wrong.
London: Penguin Books, 1977, p. 105.
-
11
Cf. MACKIE, John. Ethics: inventing right and wrong.
London: Penguin Books, 1977, p. 105.
-
12
Segundo Dall ́Agnol, “o ceticismo de Mackie não é nem do
tipo pirrônico (isto é, nada é afirmado ou negado) nem
de um tipo cartesiano (de dúvida universal sobre o
conhecimento). Seu ceticismo é uma ‘tese ontológica’
(Mackie, 1966, p.18): ele nega que há valores objetivos”
(DALL ́AGNOL, Darlei. Valor Intrínseco: Metaética, Ética
Normativa e Ética Prática em G.E. Moore. Florianópolis:
UFSC, 2005, p.230).
-
13
MILLER, Alexander. An introduction to Contemporary
Metaethics. Cambridge: Polity Press, 2003.
-
14
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1999.
-
15
Cf. MACKIE, John. Problemas en torno a Locke. México:
UNAM, 1988.
-
16
TR leia-se Teoria
Realista.
-
17
McDOWELL, John. Mind, Value, and Reality. Cambridge and
London: Harvard University Press, 2002; McDOWELL, John.
Mente e Mundo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2005.
-
18
QR leia-se Teoria
Quase-Realista.
-
19
BLACKBURN, Simon. Essays in Quasi-Realism. New York:
Oxford University Press, 1993; BLACKBURN, Simon.
Verdade: um guia para perplexos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
-
20
BLACKBURN, Simon. Essays in Quasi-Realism. New York:
Oxford University Press, 1993.
-
21
PUTNAM, Hilary. A Tripla Corda: Mente, Corpo e Mundo.
Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 35.
-
22
Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
-
23
LUCKHARDT, Carol G. Wittgenstein e il relativismo ético.
In: ANDRONICO, Marilena; MARCONI, Diego; PENCO, Carlo.
Capire Wittgenstein. Genova: Marietti, 1996, p. 301.
-
24
Idem, p. 302-303.
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As Antinomias metaéticas entre cegos e não-cegos e o
problema do realismo moral
Léo Peruzzo Júnior | Professor do Programa de Pós-Graduação
Mestrado e Doutorado em Filosofia da PUCPR e da FAE Centro
Universitário. <leoperuzzo@hotmail.com>
in Veritas | Porto Alegre, v. 61, n. 1, jan.-abr. 2016, p.
62-74
http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.2016.1.20434
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