Fig. 1. Aos três anos de idade Hildegarda de Bingen (1098-1179)
teve a sua primeira experiência espiritual, quando viu uma
luz de brilho deslumbrante e nos anos seguintes essas visões
repetiram-se com frequência: "E sucedeu no 1141º ano da
encarnação de Jesus Cristo, Filho de Deus, quando eu tinha
quarenta e dois anos e sete meses, que os céus se abriram e
uma luz ofuscante de excepcional fulgor fluiu para dentro de
meu cérebro. E então ela incendiou todo o meu coração e
peito como uma chama, não queimando, mas aquecendo… e
subitamente entendi o significado das exposições dos livros,
ou seja, dos Salmos, dos Evangelhos e dos outros livros
católicos do Velho e Novo Testamentos". in Khristianós
Uma extraordinária variedade de alucinações visuais pode ocorrer ao longo de uma
aura de enxaqueca. 1
As alucinações mais simples assumem a forma de uma dança de estrelas brilhantes,
centelhas, lampejos de f ormas geométricas simples que atravessam o campo visual.
Os fosfenos desse tipo são em geral brancos, mas podem às vezes ter brilhantes
cores espectrais. Podem chegar a muitas centenas, enxameando rápido pelo campo
visual (os pacientes com frequência os comparam ao movimento dos “blips” de
radar numa tela). Às vezes, um fosfeno isolado pode destacar-se dos demais, como
no caso a seguir (Gowers, 1892):
Uma paciente [...] com dores de cabeça características precedidas por hemianopia
queixava-se de ver estrelas cintilantes na frente dos olhos toda vez que olhava
para uma luz brilhante; às vezes uma das estrelas, mais brilhante do que as
demais, aparecia no canto inferior direito do campo de visão e o atravessava, em
geral rapidamente, em um segundo, ou às vezes mais devagar, e ao atingir o lado
esquerdo fragmentava-se, deixando uma área azul onde se moviam pontos
luminosos.2
Às vezes pode haver
um único fosfeno, bastante complexo no campo visual,
movendo-se de um lado para outro em uma rota determinada e
desaparecendo subitamente, deixando um rastro ofuscante ou
cegante por onde passou (figura 2A). Mais uma vez, as melhores descrições de fosfenos desse tipo podem ser
encontradas nos diversos trabalhos de Gowers sobre o tema (1904):
[...] em outro caso, um objeto estrelado que permanecia sempre inalterado
apresentava um movimento radial. Surgia comumente próximo à extremidade da
metade direita do campo, logo abaixo da linha horizontal, e consistia em cerca
de seis projeções em forma de pétalas alongadas, alternativamente vermelhas e
azuis [...] [o objeto] movia-se lentamente para a esquerda e para cima, passando
acima do ponto de fixação e indo um pouco além da linha média; a seguir
retornava ao ponto de partida, refazia essa trajetória uma ou duas vezes e
depois passava para a extremidade direita do campo [...] após duas ou três
repetições do último curso, ele desaparecia subitamente [...] [ao abrir os
olhos] a paciente sempre percebia que só conseguia enxergar na parte do campo
onde o espectro não havia passado.
Figura 2A.
Variantes de escotoma de enxaqueca.
Reproduzido de Gowers (1904).
Espectro estrelado móvel
Embora esses fosfenos possam restringir-se a uma metade ou a um quadrante do
campo visual, não é raro cruzarem a linha média (como no caso acima descrito);
enxames de fosfenos movendo-se rapidamente são mais comumente bilaterais. Às
vezes os fosfenos podem ser explicados ou interpretados pelo paciente como
imagens reconhecíveis; um paciente, por exemplo (na série de Selby e Lance),
descreveu pequenos gambás brancos com caudas eretas atravessando em procissão um
quadrante do campo visual.3
Outras alucinações elementares comumente experimentadas são o encrespamento, a
tremulação de luz e a ondulação do campo visual, que os pacientes podem comparar
a uma superfície aquática agitada pelo vento ou a olhar através de um retalho de
seda salpicada de água.
No decorrer ou depois da passagem de fosfenos simples, alguns pacientes podem
observar, ao fechar os olhos, uma forma de tumulto ou delírio visual na qual
predominam motivos entrelaçados, facetados e marchetados — imagens que lembram
mosaicos, favos de mel, tapetes persas etc., ou padrões em moiré. Essas ficções
(figments) e imagens elementares tendem a ser luminosas e brilhantes, coloridas,
altamente instáveis e sujeitas a súbitas transformações caleidoscópicas.
Esses fosfenos fugidios em geral não são mais do que um preâmbulo para a porção
principal da aura visual. Na maioria dos casos (mas não em todos), o paciente
passa a sofrer uma alucinação mais duradoura e bem mais complexa no campo visual
— o escotoma de enxaqueca. Outros termos descritivos são comumente usados: a
forma (e as cores) desses escotomas nos induz a falar de um espectro de
enxaqueca, e a estrutura de suas margens (muitas vezes lembrando o parapeito de
uma cidade murada) originou o termo espectro de fortificação (teicopsia). O
termo escotoma cintilante denota o bruxuleio característico do espectro luminoso
da enxaqueca, e o termo escotoma negativo denota a área de cegueira parcial ou
total que pode seguir-se ao escotoma cintilante ou, ocasionalmente, precedê-lo.
A maioria dos escotomas de enxaqueca apresenta uma repentina luminosidade
brilhante próxima ao ponto de fixação em uma metade do campo visual; dali o
escotoma gradualmente se expande e se desloca lentamente em direção à
extremidade do campo visual, assumindo a forma de um gigantesco crescente ou
ferradura. Seu brilho subjetivo é cegante — Lashley compara-o ao de uma
superfície branca à luz do sol do meio-dia. Nesse brilho pode haver um jogo de
intensas cores espectrais puras na orla do escotoma, e os objetos vistos através
dessa orla podem ser emoldurados por uma iridescência multicolorida. O escotoma,
no lado que está avançando no campo visual, tem muitas vezes a borda em
zigue-zague, justificando o termo espectro de fortificação
(figura 2B).
Figura 2B.
Variantes de escotoma de enxaqueca.
Reproduzido de Gowers (1904).
Espectro angular em expansão (Airy, 1868)
Essa borda que avança é invariavelmente fragmentada, em um
padrão mais fino, formando minúsculos ângulos luminosos e
linhas cruzadas — esse cheval-de-frise é particularmente bem
ilustrado nos esboços de Lashley, tendo um padrão mais
graúdo nas porções inferiores do escotoma
(figura 3). Ocorre um movimento característico de fervura, ou
cintilação, em toda a porção luminosa do escotoma; o efeito
é vividamente transmitido por uma descrição do século XIX:
“E ele pode ser comparado ao efeito produzido pelo rápido
volteio de pequeninos besouros d’água quando os vemos
enxameando na superfície da água à luz do sol [...]”.
A velocidade da cintilação fica abaixo da frequência que proporcionaria uma
sensação visual contínua, mas é rápida demais para permitir contagem; sua
frequência foi estimada, por métodos indiretos, em oito a doze cintilações por
segundo. A borda do escotoma cintilante avança a uma velocidade razoavelmente
constante, e geralmente demora de dez a vinte minutos para passar das
vizinhanças do ponto de fixação para a extremidade do campo visual
(figura 3B).
As figuras e descrições de escotomas de enxaqueca feitas por Airy (1868) são
talvez as mais minuciosas já apresentadas; elas foram reproduzidas em detalhes
por Liveing e Gowers e podem, justificadamente, ser citadas aqui mais uma vez.
Os estágios dos escotomas de Airy são mostrados na figura 2B.
Um objeto estrelado brilhante, uma pequena esfera com arestas, aparece
subitamente em um lado do campo combinado [...] ele rapidamente se expande,
primeiro como um zigue-zague circular, mas no lado interno, em direção à linha
média, o contorno regular torna-se tênue e, conforme vai prosseguindo o aumento
de tamanho, o contorno nesse trecho torna-se entrecortado, com o vão ficando
maior à medida que o todo cresce, e o contorno circular original passa a ser
oval. A forma assumida é aproximadamente concêntrica com a orla do campo de
visão [...] as linhas que constituem o contorno encontram-se em ângulos retos ou
em ângulos maiores [...]. Quando essa oval com arestas já se estendeu pela maior
parte da metade do campo, a porção superior expande-se; ela parece finalmente
vencer um pouco da resistência nas vizinhanças imediatas do ponto de fixação
[...] de modo que ocorre um abaulamento na parte superior, e os elementos
angulares do contorno nesse trecho aumentam [...]. Depois de ocorrer esse
estágio final, a porção exterior inferior do contorno desaparece. Essa expansão
final próximo ao centro progride com grande rapidez, e termina em um centro de
luz rodopiante do qual parecem sair faíscas de luz. E então isso termina,
sobrevindo a dor de cabeça.
Em outra parte, Airy menciona o rápido “movimento de ebulição e tremor” e o
contorno “com bastiões” do escotoma (ele sugeriu o nome “teicopsia”); menciona
ainda a “deslumbrante orla cromática” da figura, um espetáculo só prejudicado
para ele pela expectativa da dor de cabeça que viria a seguir.
As margens do escotoma luminoso deixam atrás de si uma sombra em forma de
crescente onde a cegueira é total, e atrás dela há uma região de penumbra onde a
excitabilidade visual se encontra em processo de restauração (figuras 2C e
3A).
Airy também faz referência (e o sintoma não é incomum) ao aparecimento ocasional
de um segundo foco cintilante que surge alguns minutos depois do escotoma
original, ou seja, assim que é recobrada a excitabilidade visual perto do ponto
de fixação.
Figura 2C.
Variantes de escotoma de enxaqueca.
Segundo Gowers (1904).
Escotoma negativo em expansão
Essa é a sequência do tipo mais comum de escotoma de enxaqueca (o espectro
angular em expansão de Gowers); no entanto, podem ocorrer muitas variações
importantes nesse tema, cuja existência deve ser levada em conta para se
desenvolver uma correta teoria do escotoma. Nem todos os escotomas começam
próximos ao ponto de fixação; para vários pacientes uniformemente, e para alguns
ocasionalmente, os escotomas começam excêntrica ou perifericamente no campo
visual (os espectros radiais de Gowers). Escotomas que se expandem podem
aparecer de maneira alternada ou simultânea em ambas as metades do campo, e sua
contínua alternação, no primeiro caso, pode originar um “estado” de aura que
dura horas. De grande importância teórica (e especial atração estética) são os
escotomas bilaterais cuja evolução é sincronizada com precisão em ambas as
metades do campo — os espectros centrais e periféricos de Gowers
(figura 2D). A
existência de tais escotomas traz vários problemas desconcertantes para quem
postula um processo local unilateral como base das auras de enxaqueca (ver
capítulos 10 e 11).4
Figura 2D.
Variantes de escotoma de enxaqueca.
Reproduzido de Gowers (1904).
Espectro pericentral
Escotomas luminosos ou negativos podem ser não apenas centrais, mas também
quadrânticos, altitudinais ou irregulares em sua distribuição. Um padrão
particularmente atrativo é o de um espectro em forma de arco, situado central e
bilateralmente no campo visual (figura 2E); para Gowers, eles são segmentos de
um espectro pericentral. Esse espectro foi descrito há quase 2 mil anos por
Areteus, que o comparou a um arco-íris no céu.
Figura 2E.
Variantes de escotoma de enxaqueca.
Reproduzido de Gowers (1904).
Espectro em arco-íris
Um escotoma negativo geralmente sucede um escotoma cintilante, mas às vezes o
precede e em certas ocasiões pode ocorrer em seu lugar. Neste último caso, como
com todas as manifestações de cegueira cortical, ele pode ser descoberto por
acidente, por exemplo observando-se subitamente a bisseção de um rosto ou o
desaparecimento de certas palavras ou figuras numa página. É importante notar,
porém, que pacientes observadores uniformemente aludem a um “ofuscamento”
especial que parece ser uma característica inata dos escotomas negativos. Nas
palavras de uma antiga descrição citada por Liveing: “Minha visão subitamente se
torna desordenada, mais de um lado do que do outro, como a de uma pessoa que
olhou para o sol”.
Figura 3A.
Trajetória e estrutura de um escotoma cintilante. Extraído de Lashley
(1941).
Fina estrutura de linhas cruzadas (chevaux-de-frise) na borda que avança
do escotoma cintilante.
Figura 3B.
Trajetória e estrutura de um escotoma cintilante.
Extraído de Lashley (1941).
Aumento e evolução do escotoma no campo visual.
Somos levados a contrastar esse “ofuscamento” com o brilho “cegante” da
cintilação quando esta ocorre. Ficamos pensando que a supressão da visão e a
excitabilidade visual talvez não sejam, afinal de contas, um fenômeno primário,
e sim consequência de alguma excitação precedente que afetou áreas não visuais
do cérebro. Essa hipótese será examinada mais adiante, e neste estágio podemos
simplesmente mencionar descrições que realmente indicam algum tipo de excitação
prévia:
Caso 67 Uma médica de 32 anos que tem enxaquecas clássicas e auras isoladas
desde a infância. Os escotomas são sempre negativos, mas parecem ser precedidos
por um tipo de excitação analéptica. Nas palavras da paciente, “começa com uma
espécie de sensação excitada, como se eu tivesse tomado anfetamina. Sei que
alguma coisa está acontecendo comigo, e começo a olhar em volta. Fico pensando
se haveria algo errado com a luz. E então noto que parte de meu campo visual
está faltando”.
Vemos aqui que um escotoma negativo pode ocorrer durante uma excitação
analéptica persistente e apesar dela. Outros pacientes apresentam o inverso:
escotomas cintilantes associados a forte sonolência. Em tais casos, há uma
simultaneidade paradoxal de excitação e inibição. [...]
ALTERAÇÕES DA FUNÇÃO INTEGRATIVA SUPERIOR
Alguns observadores clínicos eminentes afirmam que os distúrbios cerebrais da
enxaqueca ocorrem apenas em níveis primitivos e que a existência de distúrbios
mais complexos, quando eles acontecem, é indício de epilepsia ou de alguma
patologia orgânica. Essa interpretação é errônea. Um número imenso de complexos
sintomas cerebrais pode ocorrer no contexto de enxaquecas inconfundíveis,
sintomas que são tão numerosos e diversos quanto seus correspondentes
epiléticos.
Poderíamos, de fato, suspeitar que ocorrem alterações da função cerebral
superior na maioria das auras de enxaqueca, mas que elas passam despercebidas em
razão de sua complexidade ou estranheza ou porque o paciente não estava
executando uma atividade intelectual ou motora complicada quando aconteceu a
aura. Alvarez, por exemplo, um observador atento de suas próprias enxaquecas,
descreveu como notou, certo dia, que suas auras não eram simplesmente fenômenos
visuais “puros”, isolados:
Muitas vezes, quando tenho os olhos enevoados e não consigo ler
confortavelmente, uso o tempo para escrever a mão uma carta para a família. Mais
tarde, examinando a carta, vejo que escrevi palavras que não eram as que eu
pensava estar escrevendo.
É fácil entender por que uma sutil deficiência disléxica ou disfásica desse tipo
pode passar despercebida pela maioria dos pacientes. Em geral é necessário fazer
perguntas destinadas a trazer à luz a exata natureza desses sintomas. Muitos
pacientes podem confessar que se sentem “estranhos” ou “confusos” durante uma
aura de enxaqueca, que ficam com movimentos desajeitados ou que não dirigem
veículos nesse período. Em suma, podem estar cientes de que alguma coisa está
acontecendo além do escotoma cintilante, da parestesia etc., algo tão sem
precedentes cm sua experiência, tão difícil de descrever que muitas vezes é
evitado ou omitido ao enumerarem suas queixas. É preciso muita paciência e
insistência minuciosa para definirmos os sintomas mais sutis da aura de
enxaqueca, e só assim a frequência e a importância desses sintomas serão
percebidas.
Podemos afirmar que os distúrbios mais complexos da função cerebral ocorrem
depois dos fenômenos mais simples (embora não invariavelmente), e pode ser
possível obter descrições de sequências complexas; assim, as manifestações
visuais mais simples — pontos, linhas, estrelas etc. — podem ser sucedidas por
um escotoma cintilante, e este, por sua vez, por bizarras alterações de
percepção (visão em zoom, em mosaico etc.), finalmente culminando em complicadas
imagens ilusórias ou estados semelhantes ao sonho. Podemos reconhecer as
seguintes categorias importantes de distúrbio:
-
(a) Distúrbios complexos da percepção visual (convenientemente descritos como
visão liliputiana, brobdignagiana, em zoom, em mosaico, cinematográfica etc.).
-
(b) Dificuldades complexas de percepção e uso do corpo (sintomas apráxicos e
agnósicos).
-
(c) Toda a gama de distúrbios da fala e da linguagem.
-
(d) Estados de dupla ou múltipla consciência, muitas vezes associados a
sensações de déjà vu ou jamais vu, e outros distúrbios e deslocamentos da
percepção temporal.
-
(e) Complexos estados de sonho, pesadelo, transe ou delírio.
Essas categorias estão isoladas apenas por conveniência e, longe de serem
mutuamente exclusivas, se sobrepõem em muitos níveis; vários desses distúrbios
ou todos eles podem ocorrer simultaneamente por ocasião de uma severa aura de
enxaqueca. Podemos primeiramente descrever com mais pormenores alguns desses
sintomas e passar depois à apresentação de ilustrativas descrições de casos.
A expressão visão liliputiana (micropsia) designa uma aparente diminuição e
visão brobdignagiana (macropsia), um aparente aumento no tamanho dos objetos,
embora esses termos também possam ser usados para denotar a aparente aproximação
ou afastamento do mundo visual — sendo estas descrições alternativas de
alucinações ou tamanho desordenado —, constância de distância. Se tais
alterações ocorrerem gradualmente em vez de abruptamente, o paciente terá a
visão em zoom — o tamanho dos objetos aumenta ou diminui, como quando eles são
observados através das diversas distâncias focais de uma lente com zoom. As
descrições mais famosas dessas mudanças de percepção são, obviamente, as
deixadas por Lewis Carroll, que era acometido por impressionantes enxaquecas
clássicas desse tipo. Um escotoma cintilante não tem localização externa, e
portanto pode ser projetado como um “artefato” de qualquer tamanho, a qualquer
distância (ver caso 69, pp. 131-2, e figura 2E, p. 103).
Figura 4
- ABCD
Figura 4
- ABCD. Os estágios da visão “em mosaico”, conforme experimentados durante
aura de enxaqueca (ver texto)
VISÃO EM MOSAICO E CINEMATOGRÁFICA
O termo visão em mosaico designa o fracionamento da imagem visual em facetas
irregulares, cristalinas, poligonais, encaixadas entre si como em um mosaico. O
tamanho das facetas pode variar muito. Quando elas são extremamente diminutas, o
mundo visual adquire uma aparência de iridescência cristalina ou “granulação”
que lembra uma pintura pontilhista (mostrada esquematicamente na
figura 4B). Se
as facetas se tornarem maiores, a imagem visual assume a aparência de um mosaico
clássico (figura 4C), ou até mesmo uma aparência “cubista”. Se elas competirem
em tamanho com a imagem visual total, esta não pode mais ser reconhecida
(figura
4D), ocorrendo uma peculiar forma de agnosia visual.
O termo visão cinematográfica designa a natureza da experiência visual quando se
perde a ilusão de movimento. Nessas ocasiões, o paciente vê apenas uma série de
stills (fotografias de cenas de filme) que passam rapidamente, como num filme
rodado demasiado devagar. A frequência dessa “passagem de cenas” é semelhante à
frequência da cintilação de escotomas ou da parestesia de enxaqueca (seis a doze
por segundo), mas pode acelerar-se durante a aura até restaurar a aparência de
movimento normal ou (em uma aura particularmente severa, delirante) de uma
alucinação visual modulada continuamente.5
Verificou-se a ocorrência desses dois sintomas raros por ocasião de ataques
epiléticos e, mais comumente, durante psicoses agudas, induzidas por drogas ou
esquizofrênicas. O famoso pintor de gatos Louis Wain experimentou uma variedade
de distorções da percepção visual durante fases de psicose esquizofrênica aguda,
inclusive visões em mosaico, e conseguiu registrar notavelmente suas
experiências (figura 5).
Figura 5.
Figura 5. A B C | Algumas alucinações visuais na psicose aguda. Estes desenhos de gatos, feitos por um artista esquizofrênico (Louis Wain) durante psicose muito aguda, formalizam certas alterações da percepção que podem ocorrer também durante aura de enxaqueca. Na figura 5A, o rosto foi retratado sobre um fundo formado por um aglomerado de figuras semelhantes a estrelas brilhantes; na figura 5B, ondas concêntricas bruxuleantes expandem-se a partir do ponto de fixação; na figura 5C, toda a imagem foi transformada em um padrão de mosaico.
Os fenômenos da visão “em mosaico” ou “cinematográfica” são de grande
importância. Eles nos mostram como o cérebro-mente constrói “espaço” e “tempo”
demonstrando o que acontece quando o espaço e o tempo são despedaçados ou
desfeitos.
Em um escotoma, como vimos, a própria ideia de espaço é suprimida juntamente com
a extinção do campo visual, e ficamos “sem traço, sem espaço, sem lugar”. Na
visão em mosaico e na visão cinemática parece haver um estado intermediário que
possui um caráter inorgânico, cristalino, mas sem um caráter pessoal orgânico,
sem “vida”.
Isso, assim como o escotoma, pode infundir um estranho horror.6
FIM
NOTAS
-
1. A derivação e o significado original do termo foram descritos por Gowers da
seguinte maneira: “A palavra aura foi usada pela primeira vez por Pélopes,
mestre de Galeno, que se surpreendeu com o fenômeno que dá início a muitos
acessos — uma sensação que começa na mão ou pé, e parece subir à cabeça. Como os
pacientes descreveram-lhe a sensação como um vapor frio, ele supôs que poderia
ser isso mesmo que percorria os vasos, os quais, segundo se acreditava na época,
continham ar. Por isso, ele a denominou πνευματικὴ αύρα, vapor espirituoso”.
-
2. Essa descrição de caso também ressalta a capacidade específica da luz para
provocar várias formas de aura de enxaqueca, assunto que será exposto com mais
detalhes no capítulo 8.
-
3. Hughlings Jackson fez o seguinte comentário sobre a tendência de elaborar
imagens a partir de alucinações elementares quando ocorrem estados
fisiologicamente anormais: “Um homem sadio vê moscas volantes devido a manchas
intraoculares; elas lhe parecem pontos e filamentos em movimento à sua frente.
Mas suponhamos que o homem sofra de desintegração (como em casos de delirium
tremens) e que ocorra o primeiro nível de desintegração: então ele vê
camundongos e ratos. Grosso modo, a seu ver as moscas volantes ‘transformam-se’
nesses animais”.
-
4. Gowers, referindo-se aos escotomas negativos centrais, afirma: “Essa perda
central, de simetria tão perfeita, parece impossível de explicar por um suposto
distúrbio da função de um hemisfério. Ela só pode ser explicada [...] por uma
inibição funcional simultânea (de ambos os hemisférios), perfeitamente
simétrica”.
-
5. Uma descrição pessoal extremamente detalhada de visão em mosaico e
cinematográfica sofrida durante um severo ataque de enxaqueca é apresentada em
meu livro 'A leg to stand on', pp. 95-101.
-
6. Uma exposição recente intitulada “Visão em mosaico” — pinturas feitas por
enxaquecosos sobre suas próprias experiências visuais nos acessos — indica que a
visão em mosaico, pelo menos em certa medida, não é rara durante severas auras
de enxaqueca. Essas pinturas parecem indicar que primeiro pode surgir algo como
uma treliça poligonal sobre uma parte do campo visual ou sobre todo ele, e a
seguir a própria imagem torna-se “poligonal”. A ruptura de tempo e espaço nesses
distúrbios de percepção muito flagrantes parece relacionar-se à emergência de
dimensões fracionárias, ou “fractalidade”, no campo perceptual/cortical (ver
capítulo 17, “Aura de enxaqueca e constantes alucinatórias”).
ϟ
OLIVER SACKS é psiquiatra e autor de 'O homem que confundiu sua mulher com um
chapéu' e 'Tempo de despertar' (que inspirou filme homônimo, indicado a três
Oscar). Além destes, a Companhia das Letras publicou também 'Alucinações
musicais', 'Enxaqueca', 'Um antropólogo em Marte', 'A ilha dos daltônicos', 'Com uma
perna só' e 'Vendo vozes'. Sacks vive em Nova York e leciona neurologia e
pisiquiatria na Columbia University, onde também
ocupa o cargo de Artista. Para saber mais sobre seu
trabalho, acesse
Oliversacks.com.
Excerto da Parte I - 3
Enxaqueca
Oliver Sacks
Título original: Migraine
edição original: 1970
tradução: Laura Teixera Motta
EDITORA SCHWARCZ
Companhia de Bolso
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