
Harém míope - Jorge Martins
(óleo sobre tela ,1969)
Resumo |
Na teoria do amadurecimento, a adolescência é uma etapa do desenvolvimento do
ser humano. É uma aquisição do indivíduo que significa crescimento emocional,
mas é, também, um momento no qual os sucessos e fracassos do bebê e das crianças
retornam para se acomodar. A adolescência é o momento em que os jovens, ao
emergirem da infância e se afastarem da dependência familiar em busca da posição
de adultos, enfrentam dificuldades e conflitos inerentes a esse momento. As
maiores dificuldades e conflitos relacionam-se às fantasias agressivas e
sexuais, agora em um corpo com mais potência física, sendo grandes questões a
dependência/independência, a escolha sexual e a definição da identidade como um
ser adulto e responsável. Para Winnicott, o adolescente tem sua própria
imaturidade e as atitudes, e a aceitação da família e dos pais é fundamental
nesse processo. Como ocorre esse processo em jovens com deficiência visual? A
perda ou limitação da visão é uma condição que já apresenta por si dificuldades
específicas com as quais o jovem tem de se haver. Acredita-se que estas se
agravam e se somam às dificuldades próprias da adolescência. Quais os cuidados
necessários para ajudar esses jovens? Com base na descrição do atendimento de
jovens com baixa visão, pode-se compreender melhor suas dificuldades e levantar
os cuidados necessários para ajudá-los a enfrentar e resolver suas dúvidas e
conflitos.
⁂
O tema Amadurecimento e Cuidado oferece muitas possibilidades de recorte com
base na teoria winnicottiana de desenvolvimento. A escolha de refletir sobre a
adolescência e os cuidados para com os jovens com deficiência visual deu-se
tanto porque esse período de desenvolvimento suscita grandes preocupações, e
parece estar se constituindo como um problema social, como pela política de
direitos humanos e inclusão social, universalmente proposta e defendida por
muitos, que levanta questionamento sobre os conflitos e dificuldades que afetam
aqueles que, por diferentes razões, apresentam uma condição somática
diferenciada.
A adolescência traz dificuldades para os pais que vivenciam conflitos e
ansiedades sobre como lidar com seus jovens, como também para os meninos e
meninas que, nessa fase do desenvolvimento, encontram-se em situações de difícil
solução, que os levam a sofrimentos e angústia.
A adolescência é considerada, por alguns autores, como um fenômeno basicamente
social, seja pelas diferentes peculiaridades que vem apresentando no decorrer
dos tempos, seja pela observação de que o conceito de adolescência surgiu da
sociedade industrial e ganhou força entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.
Antes desse período, segundo alguns autores (Aries, 1981; Calligaris, 2009),
passava-se da infância à idade adulta por meio de breves rituais e provas de
iniciação, como nos povos primitivos, ou, de acordo com a idade cronológica do
indíviduo, como na Idade Média, em que os jovens, ao atingir 14 anos, mudavam da
categoria de crianças para a de adultos, recebendo os encargos e obrigações
destes.
Todavia, para Winnicott, para quem "o ser humano é uma amostra-no-tempo da
natureza humana" (Winnicott, 1988/1990, p. 29), a adolescência é um fenômeno
psicológico, um fenômeno social, mas, também, uma condição da própria natureza.
"Precisamos considerar aquilo que é eterno no efêmero", diz ele (Winnicott
1969a/1996, p. 123), Assim, a adolescência deve ser considerada uma etapa do
desenvolvimento, uma aquisição do indivíduo que significa um crescimento
emocional, e tem por base as condições somáticas. "A base da psique é o soma, e,
em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar" (Winnicott 1988/1990, p.
37).
Por outro lado, a adolescência é também um momento no qual os sucessos e
fracassos do bebê e das crianças retornam para se acomodar. É o momento em que
os jovens, ao emergirem da infância, se afastam da dependência em busca da
posição de adultos, e enfrentam dificuldades e conflitos inerentes a essa
situação.
Algumas questões se levantam: por que, no momento histórico que vivemos, a
adolescência tem se constituído como um problema social? Por que para os pais é
tão difícil, nos dias atuais, lidar com seus filhos nessa etapa do
desenvolvimento? Por que a adolescência tem estado com frequência relacionada à
delinquência juvenil e uso de drogas? E, especificamente ao tema que me propus a
discutir, há situações diferenciadas e peculiares aos adolescentes com
deficiência visual? Quais os cuidados necessários para com os jovens com
deficiência visual nesse momento do processo de amadurecimento?
Para Winnicott, os seres humanos precisam de cuidados, ou seja, de uma provisão
ambiental que atenda às suas necessidades (Winnicott, 1960c/1983). Cuidado é o
termo usado por ele que define as condições do ambiente favorecedoras ao
desenvolvimento saudável, desde aquelas proporcionadas pela mãe devotada ao seu
bebê recém-nascido, como, também, a oferecida por ela aos seus filhos nos
diferentes estágios do desenvolvimento. Além disso, são as condições oferecidas
pela família a todos os seus membros em diferentes situações de vida. Esse termo
expressa, ainda, a provisão oferecida pelas sociedades democráticas aos seus
cidadãos adolescentes e adultos. Será que uma explicação possível para as
dificuldades atuais com as questões da adolescência é que nem as famílias nem as
sociedades democráticas têm condições de prover o cuidado necessário às suas
crianças e adolescentes? Como diz Winnicott:
A estrutura da sociedade é fornecida e mantida por seus membros saudáveis do
ponto de vista psiquiátrico. No entanto, ela precisa conter os que são doentes
e... os imaturos.... Digo isso mesmo sabendo que às vezes a proporção de membros
não saudáveis psiquiatricamente num grupo pode ser muito alta, de tal modo que
os elementos saudáveis, ainda que em conjunto, não podem vencê-los. (Winnicott,
1969a/1996, pp. 118-119)
Pode-se dizer que vivemos um momento particularmente difícil para o
amadurecimento saudável da maioria da população.
Winnicott (1986f[1970]/1996) usou, também, esse mesmo termo para referir-se a
uma qualidade essencial na clínica psicanalítica. O cuidado do terapeuta para
com seus pacientes. Uma condição que possibilitará aos indivíduos que não
tiveram sorte de receber os cuidados necessários na época certa a retomar seu
processo de crescimento, corrigindo as falhas e suturando as fraturas em sua
personalidade, que lhes traz sofrimentos e paralisia.
Seja no processo de desenvolvimento ou nas intervenções psicanalíticas
winnicottianas, o cuidado relaciona-se com a ética (Winnicott,
1962a[1961]/1993). É uma condição de responsabilidade, não só para com o
bem-estar físico ou psíquico dos indivíduos, mas, principalmente, e sobretudo,
para com a existência dos seres humanos e a continuidade de seu existir de um
modo que estes possam sentir-se reais.
Winnicott (1988/1990) compreende o desenvolvimento do ser humano como um
processo complexo e dinâmico. No início, há um organismo não integrado, vivendo
em solidão absoluta, com tendências inatas para:
– continuar a existir e – ao amadurecimento e à integração.
Na teoria do amadurecimento pessoal, nada está determinado de antemão, há uma
tendência, uma possibilidade virtual. O ser humano constitui-se na interação com
o ambiente, havendo, em sua origem, um organismo com um potencial herdado e com
uma força vital para um contínuo vir a ser.
A adolescência é um momento do processo de crescimento em que meninos e meninas
precisam lidar com as mudanças decorrentes da própria puberdade (Winnicott,
1962a[1961]/1993), que acontecem em seus corpos; o desenvolvimento da capacidade
sexual com a decorrente manifestação dos caracteres sexuais secundários, e o
crescimento físico, que lhes traz novas capacidades e lhes darão maior força e
potência reais.
Embora o Estatuto sobre os Direitos da Criança e do Adolescente situe essa fase
entre os 12 e 18 anos, a adolescência não tem início e fim precisos; ela se
caracteriza por flutuações progressivas e regressivas que se sucedem. É um
momento de descoberta pessoal, em que o jovem se vê mergulhado no problema do
existir.
Um aspecto importante, que deve estar sempre presente e lembrado, é que esse
momento do desenvolvimento é vivido por jovens que já possuem uma história "que
inclui um padrão próprio de organização de defesas contra a ansiedade de vários
tipos" (Winnicott, 1962a[1961]/1993, p. 116), inclusive uma determinada vivência
do complexo de Édipo. Chegam à adolescência com todas as suas histórias de
experiências anteriores, tanto de falhas como de sucessos em relações
triangulares.
Enfim, como nos diz Winnicott, a questão básica é:
como essa organização preexistente do ego reagirá à nova investida do id? Como
se acomodarão as mudanças da puberdade ao padrão de personalidade específica do
menino ou da menina em questão? Como poderão esse menino e essa menina lidar com
seu novo poder de destruir ou mesmo de matar, poder que então inexistente, não
complicava os sentimentos de ódio da infância? (Winnicott, 1969a/1996, p. 117)
Embora a adolescência seja muitas vezes tratada como um problema e suas ações e
manifestações levem com frequência os pais a procurarem tratamento
psicoterapêutico para o adolescente, ou ajuda pessoal para poder cuidar de seus
jovens, Winnicott chama a atenção para alguns pontos que observou como
característicos dessa fase, e que devem ser considerados como próprios do
crescimento.
Para ele, os adolescentes não devem ser "curados" como se fossem doentes, a
única "cura" para suas dificuldades é o passar do tempo, e surge com o lento
desenrolar do próprio crescimento. Muitos dos comportamentos, considerados pelos
pais e pela sociedade como problemas, é, na realidade, imaturidade. A
imaturidade é essencial à saúde do adolescente e faz parte desse período, sendo
indesejável não a imaturidade, mas, sim, a tentativa de curá-la por meio de
atitudes invasivas (Winnicott, 1971f[1967]/1996).
Em suas palavras:
A imaturidade é uma parte preciosa da adolescência. Ela contém as
características mais fascinantes do pensamento criativo, sentimentos novos e
desconhecidos, ideias para um modo de vida diferente. A sociedade precisa ser
chacoalhada pelas aspirações de seus membros não responsáveis. Se os adultos
abdicam os adolescentes tornam-se adultos prematuramente, mas através de um
processo falso. (Winnicott, 1969a/1996, pp. 126)
Alguns fenômenos são apontados por Winnicott como inerentes a esse momento de
crescimento.
Há a alternância entre uma independência rebelde e uma dependência regressiva, é
o momento em que meninos e meninas progridem assustados e de modo irregular do
estado da infância e da dependência familiar para uma vida de adultos, o que
lhes traz conflitos e ansiedades. A necessidade de confronto e rebeldia
observada em jovens pode ser compreendida como uma busca de independência e a
tentativa de assumir sua própria identidade. Eles não sabem quem são e no que se
tornarão. De maneira semelhante, em relação às experiências sexuais; eles não
sabem se serão heterossexuais, homossexuais ou simplesmente narcisistas. A
angústia que eclode desse estado os faz necessitar e buscar o aconchego e
proteção paternos.
Vemos assim a extrema necessidade de cuidados nessa fase de amadurecimento. O adolescente possui necessidade de desafiar e provocar continuamente "a
sociedade de modo que o antagonismo desta se faça manifesto, e possa ser
rebatido por um contra antagonismo" (Winnicott, 1962a[1961]/1993, p. 124). Há
uma necessidade de ser rebelde em um ambiente que possa acolher a rebeldia e a
dependência.
Essa característica pode ser observada por meio de vários comportamentos. Por
exemplo, as comuns pichações dos adolescentes, ou a eterna briga entre pais e
filhos quando aqueles estabelecem um horário para o jovem voltar para casa.
Todavia, para o jovem, é fundamental que os pais estabeleçam horários e estejam
lá para receber seu desafio. As regras precisam ser impostas para que os jovens
possam transgredi-las.
Em outras situações, em momentos de tranquilidade, é comum vermos o menino ou a
menina vendo TV ou apenas conversando recostados no colo de um dos pais. Assim
como o bebê, eles precisam do holding em momentos de excitação e tranquilidade.
E, assim como o bebê, eles são tomados por angústias primitivas e são
essencialmente isolados.
Como diz Winnicott (1955a/1997): "Existe uma fase adolescente que tem valor por
si mesma, e que faz os adolescentes quererem se agrupar numa mistura de desafio
e dependência" (p. 133).
O isolamento é outra característica do adolescente apontada por Winnicott. Nesse
momento, revivem a fase inicial do bebê, que é isolado pela natureza de seu
ambiente subjetivo. Os adolescentes sentem-se isolados e parecem não poder
confiar em ninguém, e, segundo ele, é o que os faz, com frequência,
organizarem-se em grupos, que, em suas palavras, "são ajuntamento de indivíduos
isolados que procuram formar um agregado por meio da identidade de gostos"
(Winnicott, 1962a[1961]/1993, p. 118). Esses grupos, com frequência, servem como
proteção ao sentirem-se atacados pela projeção e introjeção de suas necessidades
de ataque e destruição.
Outra característica observada por Winnicott (1964b/1994) é um repúdio às falsas
soluções e uma moralidade rígida baseada em noções de verdadeiro e falso. Os
adolescentes não aceitam o meio-termo, e só a passagem do tempo os ensinará que
o conceito de verdades essenciais não é absoluto.
É uma etapa da vida em que o jovem se vê às voltas com muitos desafios; o
estabelecimento de uma identidade estável que compreende a identidade sexual,
vive um longo período de incerteza quanto à própria existência do impulso
sexual, sendo as atividades masturbatória ou sexual uma forma de descarregar as
tensões e se ver livre do sexo. Há o crescimento físico, que lhe traz um perigo
real ao dar novo sentido à violência. Como diz Winnicott,
há uma suscetibilidade extrema à agressão, que se manifesta na forma de
suicídio; ou então a agressão se transforma numa busca de perseguição, que é
esperada delirantemente, há o risco de que ela seja provocada, numa tentativa de
evasão da loucura e delírio. (Winnicott, 1969a/1996, p. 127)
É, também, o momento da escolha profissional, que implicará numa definição
pessoal para a aceitação do trabalho como parte do cotidiano, ou seja, a
aceitação de uma responsabilidade social e compromisso com a comunidade em que
vive. É o momento em que buscam a independência dos pais com o estabelecimento
de uma nova relação com eles. Uma relação que estará essencialmente baseada em
trocas e na perda da idealização dos pais.
Há, portanto, na adolescência, a necessidade de cuidados que possibilite a
progressão do desenvolvimento saudável, ou seja, cuidados que acolham e segurem
esse momento difícil para os jovens, que possam ajudá-los a esperarem a passagem
do tempo que trará a "cura" para os conflitos e dificuldades vividos nesse
momento.
Nas palavras de Winnicott:
Crescer não depende apenas de tendências herdadas; também é um entrelaçamento
complexo com o ambiente facilitador. Se a família ainda puder ser utilizada,
será utilizada em larga medida. Se a família não estivar mais à disposição, nem
que seja para ser posta de lado (uso negativo), então é necessário prover
pequenas unidades sociais para conter o processo de crescimento do adolescente.
(Winnicott, 1969a/1996, p. 122)
E quando esse adolescente possui uma deficiência visual? Há peculiaridades que
perturbem ainda mais esse momento?
A deficiência visual compõe um grupo bastante heterogêneo, há desde uma grande
perda da percepção visual, os cegos, até as perdas menores, denominadas de baixa
visão e que apresentam vários graus de limitação visual. Além disso, estas podem
ocorrer no nascimento ou em outros momentos da vida. Algumas dificuldades são
inerente à própria condição de ausência ou limitação da visão, outras diferem,
considerando-se a cegueira ou a baixa visão, e também a época em que esta
ocorreu (Amiralian, 1997, 2010). Todavia, não se pode esquecer, como diz
Winnicott, que cada jovem chega a esse momento com uma história anterior de
relacionamentos e de experiências de sucesso e fracasso, e, nesse caso
específico, das diversas maneiras como sua perda foi vista pelos pais e
familiares.
Diante da diversidade de condições da deficiência e, principalmente, das
condições pessoais dos adolescentes que apresentam perdas visuais
significativas, creio ser importante ouvirmos a própria fala de jovens nessa
etapa do crescimento. Essas falas poderão esclarecer sobre os cuidados
necessários e, também, se existem diferenças significativas entre esses jovens e
aqueles sem deficiência visual nas condições descritas por Winnicott para esse
momento do processo de amadurecimento.
Falarei sobre alguns casos que atendi em diferentes situações.
Caso 1: Uma jovem que chamarei de Carla, tem 15 anos e cursa a 8ª série do 1º
grau. Tem percepção de sombra e luz devido à retinopatia da prematuridade. É a
caçula de três irmãs. É comunicativa e mostra facilidade em estabelecer
relações. Conta sua história de maneira natural. É um caso que acompanho
esporadicamente desde a idade de seis anos. A mãe solicita entrevista sempre que
sente alguma dificuldade para orientar a filha. Carla é uma jovem que tem
apresentado um bom desenvolvimento pessoal.
Nesta entrevista, cuja busca principal era a escolha profissional, foi utilizado
o Procedimento de Desenhos-Estórias para melhor compreensão da dinâmica que
apresenta no momento.
Em uma das estórias, Carla conta que, desde pequena, queria fazer astronomia:
– Adorava ficar misturando perfume com não sei o que, fazer coisas malucas
(sic).
– Coisas malucas?
– Sim, até hoje gosto, mas não vou fazer astronomia.
– Por quê?
– Era só um sonho.
– Por que malucas?
– São malucas porque estranhas na vida da gente, são coisas diferentes.
– Diferentes... como?
– São coisas... porque ninguém te falou que você tem que fazer isso.
– Você acha que as pessoas estão sempre falando para você fazer as coisas?...
(longo silêncio).
– E quanto a amigos, você tem muitos?
– Tenho, mas agora estou sentindo falta de amigos cegos. Conheço pessoas mais
velhas, não da minha idade. Durante toda a vida só conheci pessoas videntes; do
mesmo modo, se tivesse estudado no Pª Chico, ia sentir falta de pessoas
videntes.
– Por quê?
– Por que com pessoas cegas você tem problemas comuns. Na danceteria, por
exemplo, você não pode saber se uma pessoa é bonita ou feia.
– E o que você acha?
– Não sei, me sinto deslocada porque fico parada. Mas, ao mesmo tempo, com
pessoas videntes você tem outras experiências.
Pode-se ver em Carla um problema típico da adolescência acrescido de
dificuldades pelo fato de não enxergar. Como será sua vida? Como se definirá sua
identidade? Como expressar sua sexualidade? Deve conviver com cegos ou com
videntes? Mostra com extrema percepção as vantagens e desvantagens de uma opção
ou outra. Pode-se observar a dificuldade de Carla em confiar em suas
possibilidades, seus desejos são considerados de impossível realização, cria
rica vida de fantasia, local da realização de seus desejos. Vemos que a questão
da diferença é uma marca em sua vida. Fica silenciosa ao pensar nas formas de
relações interpessoais. Por outro lado mostra, também, como se sente controlada
pelo ambiente, por ter de estar sempre se submetendo ao outro, há o desejo de
liberdade, mas sua luta pela independência passa mais pela fantasia.
Uma questão própria da adolescência, e que surge com dificuldades acrescidas
para os deficientes visuais, é a sexualidade. Os jogos sexuais ficam restritos
assim como as experiências afetivas carregadas de sexualidade, comuns em jovens
que enxergam.
As questões da identidade e da pertença se sobressaem (Amiralian, 2004); se se
identifica como cega num mundo de videntes, sente-se deslocada, mas se for viver
no mundo dos cegos, perde ricas experiências. Essa é uma dificuldade com que as
pessoas cegas têm que se haver e que se manifesta intensamente nesse momento de
desenvolvimento. Será essa uma dificuldade das pessoas com deficiência visual? Como tornar-se
independente, se sempre vai precisar de alguém para atender algumas de suas
necessidades? Será que as pessoas com deficiência têm sempre que construir um
falso si- mesmo para serem aceitas?
Caso 2: Vou chamar de Luisa uma jovem com 13 anos que os pais nos procuraram por
dificuldades de aprendizagem. É a 1ª filha do 2º casamento do pai, tem um irmão
menor e duas irmãs mais velhas do 1º casamento que moram no interior. Tem baixa
visão, mas não utiliza nenhum recurso para melhorar sua capacidade visual. É uma
jovem tímida e contida. Segundo a mãe, ela não gosta de usar cadernos com linhas
aumentadas ou qualquer outro recurso que lembre o problema visual. Nesse
atendimento, o Procedimento de Desenhos-Estórias foi utilizado como psicoterapia
breve. 2
Na entrevista, Luísa fala bastante, de forma rápida e às vezes um pouco confusa.
Fala dos namoros, conta sobre o coral do qual participa aos sábados, das irmãs
por parte de pai que não ligam para ela. Volta ao assunto dos namoros, diz que
nunca beijou e que não pode falar sobre isso com a mãe "ela vai dizer que sou
muito nova, mas eu tenho 13 anos e ela se casou com 16". Conta que gosta de
fazer bagunça com as amigas, mas que também gosta de ficar tranquila no seu
quarto, ouvindo música e escrevendo em seu diário. Diz: – Sinto que sou
incompreendida
– Por quê?
– Sábado, quando cheguei no coral, fui proibida pelo professor de participar do
treino. Tinha chegado atrasada e não tinha participado do treino anterior. Ele
começa às 2 horas, mas só consigo chegar às 4 horas, o horário foi mudado e não
dá para eu chegar.
– Você falou para o professor?
– Não, mas ele devia saber. A minha mãe trabalha lá e deve ter dito para ele.
– E com seus pais, você fala quando alguma coisa te aborrece?
– Não, eles não vão entender.
– Não vão entender?... (silêncio). Você acha que eles não se preocupam com você?
– Às vezes acho que sim, mas outras vezes não. Sabe, outro dia minha mãe saiu
mais cedo do trabalho porque estava com dor. Eu fui para a escola, mas meu irmão
ficou o dia todo com a mamãe, quando cheguei de noite queria ficar com ela, mas
ela me mandou dormir, então eu fui. Acho que a minha mãe gosta mais do meu
irmão.
– E na sala de recursos, você vai?
– Não gosto de ir. Não quero usar a telelupa; é difícil e horroroso!
Luisa fala de namorados e passeios com as amigas de forma confusa e bastante
infantil, parecendo mais uma fantasia. Revela claramente que a mãe a quer
criança, mas, talvez se sinta mais confiante nessa posição. Sua sexualidade
nascente aparece mais verbalmente, mostra dificuldades para expressar seus
desejos e anseios, que se manifestam de forma fantasiosa. Não se sente aceita e
não consegue reivindicar seus direitos e nem se aproximar dos pais. Um ponto
importante aparece ao nos dizer que não usa os recursos especiais, dizendo que
esses são horrorosos. O adolescente sente-se muito mal em ser diferente, e,
principalmente, feio. A repressão instintual de Luiza a torna uma jovem apática
e confusa.
Caso 3: A jovem que chamarei de Maria tem 16 anos e cursa 2ª serie do 2º grau.
Sua visão é nula devido à retinite aguda ocorrida após caxumba, quando tinha
quatro anos. Procura aconselhamento por sentir dificuldades para definir sua
opção profissional. Descreve-se como uma adolescente normal.
Durante o atendimento em uma sessão de Desenhos-Estória, conta a seguinte
história:
– Ah, tinha uma menina que sempre queria... tinha muita amizade com um dos
primos dela e conversava bastante com ele, mas quando ela gostava de alguém e
pedia a ajuda dele, ele dava um jeito de não ajudar. Ela nunca tinha reparado
nisso, mas depois começou a reparar e começou a pensar que o primo sempre
procurava atrapalhar qualquer namoro dela. Ela então pensou que eram ciúmes de
primo. Aí tinha um amigo que era dos dois e ele percebeu que sempre que ela se
interessava por alguém, ia namorar, mas depois não conseguia.
– Como assim?
– Ela não queria mais. Então conversando com o amigo dos dois percebeu que
gostava do primo, mas aí não podiam ficar juntos, porque a família não ia
deixar. O primo sabia que ela era adotada, mas ela não sabia e ele não podia
contar para ela. Aí esse amigo que era dos dois percebeu que ela estava gostando
do primo e contou que ela era adotada. Aí ela descobriu e ficaram juntos.
– Não podiam ficar juntos?
– A família não ia deixar, acho que por preconceito; a sociedade é que impõe
esse preconceito.
– Qual?
– A de namorar parente.
– O que ela achava?
– Ela achava que não tinha nada a ver, principalmente porque ela estava gostando
dele.
– E ele.
– Ele estava confuso.
Pode-se observar em Maria a excitabilidade sexual própria dessa idade, que a faz
criar uma fantasia adolescente de um namoro impossível que se resolve
magicamente. Talvez um conflito edipiano não resolvido satisfatoriamente? Ou uma
repressão da sexualidade por perceber dificuldades em satisfazê-la? Aqui a
cegueira aparece novamente como responsável pelo atraso na expressão da
sexualidade. E a opção pela solução do conflito por meio de um mecanismo mágico.
A situação de preconceito aparece de forma camuflada. Será que o sentimento de
menos valor por ser cega a impede de procurar um parceiro que a agrade?
Como diz Winnicott (1964b/1994), ao estudarmos a adolescência, não se pode
deixar de reconhecer o novo impulso biológico que está se desenvolvendo, é um
impulso instintual. O adolescente está desenvolvendo uma nova forma de
genitalidade física e uma nova excitação, além disso, ocorre também uma nova
onda de sentimentos nas relações interpessoais.
Caso 4: Chamarei de Luís um jovem de 16 anos com baixa visão que cursa a 2ª
série do 2º grau. A mãe me procura pedindo ajuda por não saber como lidar com o
filho. Está rebelde, reclama de tudo, tem piorado na escola, não quer mais sair
com os colegas. Na entrevista, Luís se mostra aborrecido e desconfortável. Disse que se soubesse
que era para conversar com psicóloga não viria.
– Por quê?
– Minha mãe está sempre inventando coisas. Ela disse que era uma conversa para
me ajudar a enxergar melhor.
– Sim ela pediu para que eu ajudasse você nesse sentido.
– E você acha que é falando que eu vou enxergar?
– Não, essa conversa é só para eu conhecer melhor você, saber o que você precisa
para poder ajudar.
– Eu não preciso de nada, eu só preciso que minha mãe não fique me vigiando toda
hora, não fique me seguindo e me deixe em paz. Sabe o que ela fez outro dia, eu
saí para ir para escola e pedi para ir sozinho. É muito chato com essa idade a
mãe levar e trazer a gente. O que meus amigos vão pensar? Então ela disse que
deixava, mas sabe o que ela fez, uma hora eu me virei e vi a sombra dela atrás
de mim. Assim não dá.
Luís mostra com clareza uma grande dificuldade. A falta de confiança naqueles de
quem precisa. Luís sente-se isolado, parece não poder confiar em ninguém,
queixa-se da mãe faltar com a verdade para com ele. Como poderia confiar em um
terapeuta? Em quem confiar? Os adolescentes com deficiência visual precisam
dessa confiabilidade em alguém para poder sentir a raiva e a tristeza por sua
perda e sua diferença. Eles têm as mesmas necessidades dos jovens sem
deficiência, as mesmas características desse momento do desenvolvimento, mas a
dificuldade em enxergar traz outros complicadores. O que significa independência
ou autonomia para esses jovens?
A definição da identidade, problema típico dessa fase do desenvolvimento, para
esses adolescentes apresenta uma dificuldade a mais. Essa construção
necessariamente passa pela constatação e aceitação de sua perda física e dos
ônus que ela acarreta. Tornar-se independente da família implica assumir-se
diante dos outros como deficiente. Como ser deficiente em um mundo de pessoas
videntes?
Outra questão fundamental parece ser o da pertença. Com quem posso me
identificar? Qual é o meu grupo? Quem são os meus iguais? Como diz Winnicott,
todos nós precisamos ter nosso clube, saber a que grupo pertencemos, saber quem
são nossos iguais.
Carla, uma jovem saudável, expressa com clareza essa dificuldade, nos diz que é
bom a convivência com os videntes, mas é importante também estar com os cegos,
os seus iguais.
Essa questão parece relacionar-se aos sentimentos de isolamento e solidão;
estes, embora próprios da adolescência, são aqui agravados pela questão da
aceitação. Os jovens sentem que suas relações com o outro estão sempre marcadas
pela diferença. O uso de telelupas, a necessidade de ajuda para atravessar uma
rua, a necessidade de estar muitas vezes submetendo-se aos outros faz com que
eles se sintam excluídos e, muito frequentemente, inferiores aos seus
semelhantes.
A questão da sexualidade está bem presente, manifesta-se de forma inibida,
infantil e fantasiosa, com soluções mágicas ou nos dizendo da dificuldade em
encontrar um parceiro. Talvez seja por essa a razão que, muitas vezes, vemos que
o parceiro escolhido pelas pessoas com deficiência visual são, também, pessoas
que apresentam a mesma deficiência.
Um ponto comum que se pode observar em relação ao grupo de jovens com
deficiência visual é a preocupação e o medo dos pais diante do crescimento dos
filhos. A adolescência muitas vezes se transforma em um fantasma para os pais e
toda a família. O crescimento físico, envolvendo o despertar sexual, a maior
potência física, a busca da independência e a escolha profissional trazem muita
angústia aos pais, que procuram retardar esse processo o quanto podem. Há, por
parte deles, uma tendência à infantilização do jovem, o que para eles vai se
constituir como um problema a mais diante das angústias e sofrimentos próprios
da adolescência.
Em algumas famílias de jovens com deficiência visual, é possível que a
desinformação e a repressão sexual permeiem a relação com os filhos e filhas,
mostrando a complexidade e a dificuldade da família em lidar com essa questão.
Essa condição vem reforçar o estigma que marca a pessoa como incapaz, inválida
e, por vezes, assexuada. Situação que interfere no desenvolvimento da identidade
social e sexual desses adolescentes, quando comparados com outros jovens de sua
idade.
Assim, por essa breve reflexão, pode-se notar que essa é realmente uma etapa do
desenvolvimento que traz, talvez, mais problemas para os jovens com limitação ou
ausência da visão. É uma questão que traz dificuldades para os pais, e acredito
mesmo que para toda a comunidade. Todavia, é um tema em que há escassos estudos
e trabalhos que possam esclarecer as necessidades desses os jovens e de suas
famílias.
Acredito que tanto os jovens como seus pais precisam de apoio e cuidados para
enfrentar as dificuldades que certamente ocorrerão, e penso que grupos de pais e
de adolescentes são de grande importância nesse momento. O grupo de pais os
ajudará a conhecer outros pais que sofrem de dificuldades semelhantes e, talvez,
os auxiliem a perceber os cuidados de que seus filhos necessitam, sem
invadi-los. Por outro lado, pode dar-lhes força para enfrentar esse momento
difícil sem cercear o amadurecimento dos meninos e meninas com deficiência
visual. O trabalho com grupo de jovens teria por objetivo ajudá-los a entenderem
e conhecerem seus iguais, levando-os a perceber que suas dificuldades podem ser
compartilhadas e que soluções podem surgir da troca de experiências.
Referências
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Notas
1 Dra. em Psicologia Clínica pela USP, Docente do Instituto de Psicologia da USP
do curso de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano,
Orientadora e membro do Centro Winnicott de São Paulo, Coordenadora do LIDE −
Laboratório Interunidades para o Estudo das Deficiências do IPUSP, Conselheira e
Assessora Técnica da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Especialista em
Psicanálise e Deficiência. 2 Pesquisa realizada no LIDE/IPUSP de 2000 a 2005 sobre Crianças deficientes
visuais com problemas de aprendizagem: um modelo para atendimento integral. Com
o apoio do CNPq.
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Maria Lucia Toledo Moraes Amiralian Instituto de Psicologia da USP e-mail:
mtma@usp.br
fonte:
http://pepsic.bvsalud.org/
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