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 Sobre a Deficiência Visual

Acesso tátil:  uma introdução à questão da acessibilidade estética para o público deficiente visual nos museus

Filipe Herkenhoff Carijó, Juliana Quaresma Magalhães & Maria Clara de Almeida
 

Bichos - Lygia Clark, 1960

Homenagem a Cara de Cavalo - Hélio Oiticica, 1966

 Bichos, 1960 - Lygia Clark
Homenagem a Cara de Cavalo, 1966 - Hélio Oiticica

 

Introdução

A ideia de que os deficientes devem dispor do mesmo acesso que possuem todos os cidadãos às diversas esferas da vida social torna-se mais forte a cada dia. Em particular, é hoje ponto pacífico que os deficientes devem possuir acesso à arte e que os séculos de exclusão que fizeram de museus e galerias de arte locais pouco convidativos a esse público é um grave equívoco e uma situação a ser revertida o quanto antes 51. Munidos desta convicção, muitos museus e centros culturais lançam-se num esforço, inédito em sua história, de trazer para dentro de suas portas um tipo de visitante novo: o deficiente visual 52.

Trata-se, de fato, de um movimento inédito, uma vez que, salvo raras exceções (entre as quais podemos citar algumas obras de arte contemporânea, como as de Lygia Clark e Hélio Oiticica), as artes plásticas foram tradicionalmente concebidas como pertencentes exclusivamente ao domínio visual. Entretanto, apesar do insight que assaltou os museus nas últimas décadas, a inclusão de pessoas com deficiência visual nesses espaços não se deu de maneira imediata e sem dificuldades. Muito pelo contrário, até hoje são frequentes as discussões sobre como implementá-la 53, e persistem obstáculos significativos. No Brasil, os museus que possuem programas de acessibilidade são poucos e, mesmo neles, as propostas encontram-se em estado incipiente.

Podemos dizer com segurança que as barreiras ao acolhimento de pessoas com deficiência visual, dentre aquelas que se interpõem à inclusão, em museus, dos deficientes em geral, são as que exigem mais inventividade para serem contornadas. Afinal, receber pessoas que apresentam perda parcial ou total do sentido visual requer não somente uma reorganização do espaço físico do museu – algo já custoso – mas, o que é um desafio ainda maior, requer também a invenção de estratégias que viabilizem a apreciação, por pessoas sem visão, de obras de artes plásticas e visuais. Fornecer acesso a obras tão visuais quanto pinturas e esculturas é uma tarefa para a qual não existe padrão ou caminho pré-definido. Não está claro o que se deve fazer para dar acesso, através do tato e de outros sentidos, a um acervo que sempre se pretendeu e foi visual.

Fazê-lo de uma maneira que desperte o interesse de todos os públicos, e não apenas dos deficientes visuais, é algo ainda mais difícil; trata-se, porém, de uma meta que caracteriza o horizonte de uma inclusão efetiva.

Neste capítulo, buscamos introduzir o leitor à questão do acesso aos museus através de uma discussão sobre os próprios objetivos das iniciativas inclusivas atualmente em curso no Brasil 54, sobre seus métodos, estratégias, pressupostos e sobre o valor que, implícita ou explicitamente, atribuem às modalidades sensoriais não visuais, notadamente ao tato. Buscamos mostrar que a concepção que o senso comum possui da modalidade tátil pode em muito beneficiar-se de uma discussão sobre o seu funcionamento e sobre sua dimensão estética potencial.

Em linhas gerais, a discussão sobre a acessibilidade de museus para o público deve atravessar dois níveis diferentes: o acesso ao espaço físico e o acesso às obras. Estes dois problemas são distintos e devem ser tratados separadamente. O acesso ao espaço físico refere-se à necessidade de se criar um ambiente transitável, que permita a locomoção da pessoa cega com o máximo de autonomia e segurança possível. Isto pode ser alcançado através da remoção de obstáculos, da criação de mapas táteis, da instalação de piso tátil, de indicações em Braille, entre outros.

Em 2004, a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) publicou a NBR 9050, que consiste num conjunto de normas gerais de acessibilidade a serem seguidas pelos espaços de exposição. Apesar do alto custo desta reestruturação espacial e de todas as dificuldades envolvidas nas políticas institucionais de cada museu, podemos dizer que o acesso ao espaço é um problema conceitualmente bem resolvido. Afinal, ainda que a implementação das normas de acessibilidade ao espaço seja difícil, as normas estão disponíveis. Isso não é sem motivo, já que, no que diz respeito ao acesso ao espaço, está relativamente claro o que precisa ser feito, mesmo que seja difícil realizá-lo. Em compensação, nenhuma norma foi criada para estabelecer critérios de disponibilização das obras de arte ao público de cegos 55. Esta ausência é, no fundo, a expressão do fato de que ninguém sabe ao certo o que fazer desta face do problema. Assim, cada museu se vê encarregado de criar suas próprias estratégias de disponibilização do acervo, ora permitindo que se toquem as obras originais, ora criando adaptações acessíveis ao tato.

Por se tratar de um campo pouco explorado, tomamos como foco para nossa discussão o contato com as obras de arte por cegos e deficientes visuais, elegendo como recorte sua fruição tátil.

Tal escolha se deve principalmente ao fato das principais estratégias de acessibilidade para esse público atualmente existentes no Brasil serem táteis. Como veremos, a promoção de acesso às obras, que, afinal de contas, constituem o objetivo principal da visita ao museu de arte, é povoada de controvérsias e indefinições que estão longe de serem resolvidas.


O Cego no Museu - fonte da imagem: Turismo Adaptado


A Proibição do Toque

Um eixo fundamental envolvido nas controvérsias que povoam o campo da acessibilidade a museus para deficientes visuais é o tabu relativo ao toque nas peças, o qual é rotineiramente concebido como danificador. Através de uma análise mais minuciosa, entretanto, é possível perceber que a aparente incompatibilidade das obras de arte com o toque está calcada não somente na possibilidade de dano, mas também em estigmas relativos ao tato e ao cego.

A presença de tais estigmas fica clara nos argumentos da historiadora da arte Fiona Candlin (2004), que busca desnaturalizar a noção de toque como produtor de dano, trazendo à cena outras possibilidades. No caso em que aquele toca é alguém considerado “importante”, o toque agrega valor ao objeto tocado, sobretudo se forem deixadas marcas. Já no caso dos curadores, que têm intenso contato com as obras, muitas vezes sem luvas, a possibilidade de danificação não é nem ao menos cogitada, como se o toque destes experts fosse neutro.

O status do toque do grande público, por outro lado, é visto como radicalmente diferente graças ao sentido pejorativo que lhe é historicamente atribuído por curadores e artistas plásticos, que o concebem como algo que trará sujeira e danos. Esta concepção é, no fundo, efeito da constituição de um saber e de um toque ingênuo, em oposição a um saber e a um toque especialista, ou da constituição de um toque danificador em contraponto a um toque atribuidor de valor. Em alguns casos, a resistência chega a se mostrar desproporcional aos danos reais que a exploração tátil continuada poderia provocar, como é o caso das peças feitas de materiais resistentes e que não se desgastam, além daquelas que, com a higienização das mãos antes do toque, não se danificam.

O sucesso pedagógico do ritual de visita a um museu depende da posse de certa capacidade cultural, a qual pode ser identificada pela maior escolaridade, que possibilitaria a decodificação dos significados do museu. Tal escolaridade, é claro, está intimamente relacionada a uma classe social mais elitizada. Assim, o museu até hoje permanece como uma instituição voltada a poucos, um espaço de conservação. Hetherington (2000) afirma que ocorre nos museus uma primazia dos objetos sobre os sujeitos, daí ele ser concebido como um lugar de olhar, um lugar de não tocar.

A ideia de se expandir o acesso aos museus e galerias de arte a um público mais amplo gera duas posições (Barr, 2005). De um lado, estão aqueles que defendem que tais instituições devem atentar ao cumprimento de um acesso mais amplo e criar políticas sociais de inclusão. De outro, os que consideram que os esforços em tornar a visita a museus mais interessante para um público mais amplo acabam decidindo diminuir o nível de dificuldade de ideias complexas, promovendo uma simplificação exagerada. Para estes, a arte seria intrinsecamente destinada a um círculo restrito.

Nesse contexto, o público deficiente visual enfrenta uma situação bastante crítica no que diz respeito a seu acesso estético aos museus, já que a cegueira tem sido historicamente associada à incapacidade e mesmo à ignorância, em contraponto ao museu, tido como instituição erudita e formulada para o usufruto do público vidente.

Essa associação entre cegueira e ignorância tem suas raízes no que Belarmino (2005) denomina paradigma visuocêntrico: a identificação do conhecimento com a visão, sendo os demais sentidos desqualificados enquanto agentes no processo cognitivo.

Este projeto, de acordo com Humphrey (1994), pode ser encontrado inclusive em Platão, já que este faria uma clara distinção entre os sentidos superiores, a visão e a audição, e os inferiores, o olfato, o paladar e o tato, sendo os primeiros assim categorizados devido à sua capacidade de suscitar conhecimentos racionais.

Charles Feitosa (2004) argumenta que essa hierarquia dos sentidos é o motivo pelo qual as obras de arte são feitas para a audição e a visão.

Para Candlin (2006), tal hierarquia pode também ser encontrada nos argumentos de historiadores da arte do séc. XX, como Erwin Panofsky, Bernard Berenson e Alois Riegl, para os quais o tato não seria um sentido adequado para a fruição das obras de arte por ser um modo mais primitivo, imediato ou intuitivo, “carnal” (por ser proximal) e não intelectual, de perceber o mundo que a visão. Em contraposição, a arte estaria vinculada à transcendência do corpo, ao sublime e à racionalidade.

Assim, realizando uma análise crítica da proibição ao toque no âmbito dos museus, fica claro que uma iniciativa de acessibilidade que sublinhe apenas o caráter danificador do toque pode acabar por pecar em promover uma inclusão efetiva ao fundamentar-se em preconceitos e estigmas, muitas vezes sem se dar conta disto.


The Sense of Touch - José de Ribera (série 5 sentidos), 1615-1616
Sentido do Tacto - José de Ribera, 1615-16


Informação ou experiência estética?

Para que possamos proceder a uma avaliação criteriosa das estratégias inclusivas, devemos, antes de mais nada, conhecer melhor algumas nuances do problema. É preciso distinguir os objetivos pretendidos pelas diferentes formas de se promover acesso. Afinal, de acordo com a forma como disponibilizamos obras para a apreciação tátil podemos atingir diferentes resultados. Uma primeira estratégia é priorizar a informação, valorizando o aspecto pedagógico da experiência com a arte. Em abordagens que se propõem a perseguir tal objetivo, são oferecidos ao público deficiente visual, através de audioguias ou de textos em Braille, informações sobre a história da arte, sobre determinado período ou movimento ou sobre a vida e obra do artista em questão.

Descreve-se verbalmente a obra, expõe-se o contexto histórico, e assim por diante. Tudo isso concorre para produzir um visitante mais bem informado, melhor conhecedor da arte após a visita do que era antes dela. Mas, mesmo reconhecendo que a informação sobre arte é importante – saber as condições em que se criou certa obra, conhecer seu significado e sua importância na história da arte, ler ou ouvir sobre seu conteúdo –, é preciso também reconhecer que receber informação sobre uma obra não equivale a contemplá-la.

Afinal, a experiência estética de uma obra de arte é algo que não se reduz à aquisição de informação. Assim, numa política diferente, pode-se tomar como objetivo a promoção de experiências estéticas por meio do contato direto com as obras. Tal orientação preocupa-se menos com o conhecimento formal que o público vai adquirir sobre as obras, movimentos e artistas, e mais com a emoção estética que a experiência com as obras pode despertar.

Entretanto, embora a oposição informação X estética 56 pareça clara, nem sempre os museus com programas de acessibilidade têm noção da diferença entre os efeitos produzidos por uma e outra forma de acesso. Não estamos dizendo que é preciso optar exclusivamente pela informação ou pela estética, mas sim que é muito problemático confundi-las, tomando-as como se, no fundo, fossem a mesma coisa. Não é que estética e informação estejam necessariamente opostas. É possível, sem dúvida, provocar experiências estéticas através de uma boa descrição verbal; inversamente, o contato sensorial com uma obra não necessariamente dá lugar a experiências estéticas. Entretanto, parece-nos claro que um programa inclusivo com propósitos estéticos é, em essência, diferente de um programa com propósitos informativos. Uma confusão entre essas duas dimensões leva muitos museus a se acreditarem perfeitamente acessíveis ao público deficiente visual quando, na verdade, sua proposta de inclusão alcança somente o nível da informação. Ora, a experiência estética é objetivo essencial de qualquer museu; deve estar presente, portanto, também naquilo que os museus oferecem aos cegos. Isto é especialmente verdadeiro para os museus de arte, mas também é válido para outros. Um museu de ciências onde não se fizesse nada além de fornecer informações ao visitante poderia ser perfeitamente substituído por um livro igualmente informativo.


O conceito de experiência estética

De que estética falamos aqui? Afinal, o que se entende por experiência estética tátil? Quando tocamos neste ponto, corremos o risco de cair em um campo de imprecisões, dadas as diversas formas de se entender o termo estética. O senso comum muitas vezes considera que a principal característica da experiência estética seja o sentimento do belo. De acordo com essa perspectiva, uma verdadeira obra de arte é aquela que desperta sensações de beleza, harmonia e perfeição no espectador. Esta forma tradicional de entender a experiência estética parece-nos limitada, pois não é difícil citar exemplos de obras de arte cuja principal característica é a produção de estranheza, de angústia ou mesmo da própria feiura. Assim, quando falamos de experiência estética, não estamos nos restringindo à experiência do belo.

Para explicarmos melhor o que entendemos por experiência estética, recorreremos às ideias de John Dewey (2005). Este autor busca mostrar que a arte não deve estar sobre um pedestal, afastada da experiência cotidiana. A arte não é isolável das condições humanas sob as quais foi trazida à existência e nem das consequências que ela gera na experiência vivida. Assim, o conceito de experiência estética não aponta para nenhuma transcendência, nem exige do sujeito uma forma de preparação especial, lentamente trabalhada na academia de arte. Ao contrário, Dewey faz notar que, na vida ordinária, vivemos situações comuns que possuem caráter estético: tempestades, viagens ou a degustação de um prato saboroso. A experiência estética gerada por uma obra de arte nada mais é do que uma forma mais intensa desta experiência estética primária, presente na vida cotidiana. É uma experiência destacada, marcante e com caráter de completude (cf. Dewey, 2005).

É a partir dessa ideia de experiência estética que defendemos a possibilidade e a necessidade de uma estética tátil.

Afinal, é certo que, em nossa experiência comum, nos deparamos com sentimentos estéticos ocorridos no domínio tátil. Tome-se, por exemplo, a sensação de tomar um banho de mar ou o encontro com um vento que nos coloca em um estado estético irrefutável. Assim como existem experiências de caráter estético ligadas ao tato em nossa experiência cotidiana, acreditamos que seja possível haver uma estética tátil na arte.

Considerar a visão como o sentido estético por excelência e o tato como excluído de toda esfera estética 57: eis uma forma de desconhecimento da potencialidade de nossos sentidos e de nossa cognição. Além disso, aceitar tal ideia é desconsiderar que pessoas cegas, por exemplo, são tão capazes de ter experiências estéticas quanto qualquer um, apenas dentro de um funcionamento cognitivo diferente. Este é o primeiro passo para que a diferença possa ser tratada com seriedade e com respeito à forma de viver de cada um.

Uma boa proposta de acessibilidade é, então, aquela que não se ocupa somente dos direitos das pessoas cegas no que concerne ao acesso à informação e aos espaços, mas que vai além, buscando assumir um compromisso estético (Quaresma e Kastrup, manuscrito).

É essencial que se criem iniciativas inclusivas de qualidade artística. Considerar que, para incluir pessoas cegas em museus, basta tornar o espaço transitável e permitir que se toquem peças é muito pouco.

Ora, o museu é mais que um espaço físico.

Quando se exige e se conduz uma investigação sobre o modo como os deficientes visuais percebem o mundo, suas especificidades e potencialidades, pode-se então garantir condições mínimas para uma experiência estética, que vai além da mera atividade recognitiva usualmente oferecida nas propostas de acessibilidade. O que defendemos é uma inclusão mais inventiva e mais verdadeiramente tátil 58. Além disso, consideramos que obras de qualidade desenvolvidas para o público cego despertarão o interesse também do público vidente, levando a uma inclusão efetivamente integradora.

Muito longe deste quadro ideal, o que vemos hoje é uma espécie de ciclo vicioso. Propostas pouco refletidas impõem-se sob a égide da inclusão; ainda que altamente deficitárias, tais propostas são bem aceites pela maior parte do público a que se destinam e por outros museus, dada a escassez de ofertas desta natureza; tal sucesso leva ao surgimento de propostas semelhantes às primeiras.


Adaptações e estratégias de inclusão

A seguir, analisaremos algumas das estratégias inclusivas mais comuns em museus e centros culturais: as adaptações de pinturas (tanto para o alto relevo quanto para as três dimensões), as estratégias multissensoriais, a produção de réplicas de esculturas e o uso de “kits táteis”.

Veremos que as estratégias inclusivas costumam deixar a desejar no que diz respeito à sua adequação à modalidade perceptiva do tato, ora em sua dimensão expressiva, ora no que concerne ao respeito à capacidade cognitiva do deficiente visual (muito frequentemente infantilizado). Em geral, elas também deixam a desejar em sua visibilidade, divulgação e acessibilidade para o público vidente.

Uma das maiores dificuldades que museus e centros culturais encontram ao abrirem suas portas ao público deficiente visual é a de tornar seu acervo de pinturas, gravuras e fotografias acessível a um público que não dispõe da visão para apreciá-lo. Em consequência disto, temos visto muitos esforços para a invenção de estratégias e dispositivos que permitam ao público deficiente visual apreciar estas formas de arte de maneira alternativa. Uma opção muito comum tem sido a criação de versões táteis, em alto ou baixo relevo, das obras em questão. O intuito é fazer dos contornos visuais contornos tangíveis, mantendo-se, assim, com um aparente alto grau de fidelidade, a bidimensionalidade do original.

Alguns museus trabalham, de maneira alternativa ou complementar, com adaptações tridimensionais, que geralmente consistem em maquetes que reproduzem o conteúdo das obras. Assim, se um quadro retrata um casal sentado em um banco de praça, cria-se uma maquete que busca reproduzir este conteúdo geral, mantendo-se, tanto quanto possível, a disposição espacial dos elementos que participam da cena. A maquete geralmente implica numa eliminação de alguns elementos considerados menos importantes, de modo a facilitar sua exploração pelo tato. O público deficiente visual é convidado a tocar estas adaptações bi ou tridimensionais e, no caso de algumas maquetes em que as peças são destacáveis da base, recomenda-se o manuseio dos diferentes elementos, que se prestam a uma espécie de jogo de encaixe.

Uma terceira forma de dar acesso ao conteúdo das pinturas são as adaptações multissensoriais. Aqui, a disposição espacial dos elementos da obra costuma ser posta em segundo plano, visto que o objetivo é fazer emergir experiências sensoriais relacionadas ao conteúdo da obra. Uma prática comum é a disponibilização de materiais, como diferentes tecidos ou tipos de madeira, que exemplificam as características físicas daquilo que está sendo representado na pintura. Se o quadro apresenta uma jovem usando um vestido de seda, disponibiliza-se um retalho deste mesmo tecido para o toque. Também encontramos, por vezes, apelo aos sentidos olfativo, auditivo e gustativo como uma forma complementar de produzir sensações relacionadas ao tema da pintura. Através de um odorizador, posicionado ao lado da obra, que apresente um jardim repleto de rosas, emite-se, por exemplo, o perfume desta flor.

Quanto às esculturas, a adaptação nem sempre se faz necessária. Afinal, elas são objetos tangíveis e tridimensionais.

Assim, alguns museus optam por separar algumas das peças de seu acervo, disponibilizando-as ao toque do público deficiente visual.

Isto só é possível, porém, quando as peças são feitas de material resistente, como bronze. Quando não é este o caso, os originais podem ser substituídos por réplicas feitas de outros materiais (por exemplo, de resina), às vezes em tamanho reduzido, às vezes nas dimensões originais.


O problema da adequação cognitiva

À primeira vista, todas as formas de adaptação de obras de arte que descrevemos parecem igualmente promissoras e capazes de atender às necessidades do público a que se destinam. Na verdade, é comum que sejam encaradas como ótimas soluções para o problema do acesso às artes plásticas. No entanto, uma avaliação mais detalhada revela que, em muitos casos, certas características básicas do funcionamento cognitivo do tato não são devidamente consideradas quando da concepção das adaptações. Como mostraremos a seguir, adaptações feitas sem se considerar o funcionamento próprio do tato muito frequentemente falham em fornecer as condições para que os cegos compreendam aquilo que lhes é oferecido. Inadvertidamente, muitas das formas mais comuns de fornecer acesso geram mais confusão do que inclusão.

Vejamos o caso das réplicas em duas dimensões. Este tipo de reprodução apresenta sérios problemas, sendo, em geral, pouco compreensível e ineficiente. Isto ocorre por um motivo muito simples: a representação em alto relevo mantém a estrutura essencialmente visual da obra. Não raramente, recorre a elementos visuais que pouco ou nenhum sentido fazem para a modalidade tátil em seu funcionamento comum, como as leis da perspectiva e a sobreposição aparente de objetos em planos diferentes (ver Hatwell e Martinez-Sarocchi, 2006; Almeida et al., no prelo).

Sentido tridimensional por excelência, o tato encontra imensas dificuldades na exploração de representações planificadas de objetos. Em sua atividade comum, esta modalidade perceptiva busca sempre as propriedades tridimensionais dos objetos e das formas.

Por exemplo, o encontro com arestas, vértices e concavidades é extremamente importante para a identificação de objetos pelo tato 59. Em representações planificadas, estes elementos estão ausentes, o que equivale a retirar do tato seus pontos de apoio.

Um segundo problema é que o tato, diferentemente da visão, não é um expert no reconhecimento da forma pura dos objetos, mas os reconhece principalmente através de suas propriedades materiais: de sua textura, de seu peso, de sua temperatura, de sua dureza ou maleabilidade (Lederman et al., 1990; Lederman, 1997) – propriedades que também estão ausentes no alto relevo. As adaptações de pinturas em relevo sofrem, portanto, de um duplo problema. De um lado, pressupõem a familiaridade com elementos visuais estranhos ao tato, tais como a perspectiva e a sobreposição. De outro, dão como única pista para a compreensão de seu conteúdo a forma dos objetos, destituídos aqui de suas propriedades materiais originais. Para o deficiente visual (assim como para qualquer vidente que as explore com o tato), as representações em alto relevo aparecem, na maior parte das vezes, como uma confusão generalizada, em que é difícil reconhecer o que quer que seja. Em comparação com esta forma de adaptação, as maquetes, tridimensionais, são muito mais apropriadas; a compreensão das obras é muito maior quando este recurso é utilizado, sobretudo se, na produção das maquetes, concede-se a devida atenção à escolha dos materiais.

Menos complicado parece ser o caso da exposição de esculturas. As esculturas são tomadas, à primeira vista, como obras tanto visuais quanto táteis. Entretanto, quando observamos pessoas cegas tocando esculturas sem a ajuda de informações complementares, notamos uma dificuldade inesperada na compreensão das peças. Com frequência, os cegos enfrentam problemas no reconhecimento do conteúdo da obra (um fenômeno que também pode ser observado em videntes vendados explorando esculturas com as mãos). Este tipo de problema nem sempre aparece, mas o fato de se apresentar em algumas pessoas no contato com determinadas peças deixa evidente que a apreciação de esculturas não é tão natural assim para o sistema háptico. Mas por que, se as esculturas são objetos tangíveis e tridimensionais? Ora, na escultura, as propriedades materiais dos objetos representados encontram-se totalmente modificadas. Todos os diferentes elementos, todas as diferentes partes da peça apresentam as mesmas propriedades materiais – aquelas do material de que é feita. Se para a percepção tátil de um cabelo é central a identificação da textura, da maleabilidade e da temperatura, então, é de se esperar que a apreciação de certas peças (bustos, por exemplo) esbarre em alguns problemas. Aquele mesmo cabelo, que é tatilmente reconhecido por suas propriedades materiais específicas, passa, na escultura, a possuir as propriedades materiais do mármore, do bronze, da resina, etc. E, realmente, a modificação destas propriedades, essenciais para a percepção tátil, dificulta em muito a compreensão de algumas peças, fazendo da experiência com a obra uma atividade mais ou menos bem sucedida de reconhecimento, tornando improvável o contato estético com a obra de arte (Almeida et al., no prelo).

É claro que isto não significa dizer que pessoas cegas não devam tocar esculturas. Em primeiro lugar, não é sempre que o reconhecimento das peças encontra-se prejudicado. Além disso, outros sentidos costumam ser atribuídos à experiência de tocar uma escultura. Por exemplo, o fato de se tratar de uma obra importante, ligada a um certo movimento ou produzida por um artista renomado, são razões pelas quais as pessoas podem querer tocar uma peça. Certos cuidados também são bem-vindos no caso da exposição de esculturas, pois facilitam a apreciação das obras, como a seleção de peças não muito grandes, evitando-se fazer da exploração uma atividade cansativa, ou a disponibilização de peças que apresentem diferentes texturas, dando ao percebedor tátil mais pistas a explorar.


O problema da expressão

Vimos que uma desconsideração do funcionamento cognitivo do tato pode implicar a criação de adaptações bidimensionais de pinturas, gravuras e fotografias que permitem pouca ou nenhuma compreensão pelo público deficiente visual.

Se, no que concerne a este tipo de adaptação, é urgente apontarmos um fracasso, há que se deixar claro, entretanto, que o fracasso deve ser atribuído ao museu e não aos deficientes visuais: é o museu que faz ao deficiente visual um convite equivocado, não são os deficientes que respondem de maneira inadequada. Ao colocar à disposição dos cegos adaptações como essas, o museu faz da experiência estética – e mesmo da informação – uma possibilidade remota, levando os visitantes a se perderem numa longa atividade de reconhecimento.

Poderíamos imaginar que, em contraste, a estética comparece com maior frequência no caso da adaptação tridimensional de pinturas, visto que aí a tridimensionalidade e o uso de diferentes materiais garantem condições mais propícias para uma percepção tátil dotada de sentido. De fato, esta estratégia é mais bem sucedida que o alto relevo no que diz respeito ao acesso ao conteúdo do quadro, pois permite que o deficiente visual compreenda quais são os objetos representados e a posição relativa entre eles no espaço da obra. Assim sendo, ela certamente pode contribuir para a aquisição de conhecimento sobre um determinado movimento artístico ou determinado artista, se acompanhada de informações verbais pertinentes. Mas, apesar de todas estas vantagens, apreciar pinturas através desse tipo de adaptação ainda causa decepção. Em parte, esta decepção é fruto de uma espécie de infantilização presente em alguns usos dessa técnica, em que o que se apresenta ao deficiente visual não é mais que uma proposta de caráter lúdico (voltaremos a este ponto adiante). Mas a decepção decorre, principalmente, de não se proporcionar condições para a ocorrência de experiências estéticas. Com certeza, aqui, o caso é bem diferente daquele de adaptações em alto relevo, em que o fracasso resulta de uma falta de compreensão do próprio material.

Afinal, quando a maquete é construída com os materiais adequados, os cegos são, em ampla medida, capazes de identificar os objetos.

Mas o problema é que, quando se trata de arte, essa identificação, mesmo que presente, não é o bastante. O mero reconhecimento de objetos não é suficiente para a emergência de uma experiência estética. O problema maior, no caso das maquetes, está na perda da expressividade da obra. Segundo Arnheim (2002), a expressão refere-se à percepção de qualidades dinâmicas nos objetos, qualidades estas que são estruturais e que podem ser apreendidas por todas as modalidades sensoriais. Dizemos que uma pintura é agressiva, delicada, alegre, triste, doce, sombria, leve, etc.

Todas estas qualidades, ingredientes básicos da experiência estética, estão para além da mera informação de que estamos diante da representação de uma mulher, de um vaso ou de uma árvore, de um pássaro ou de uma natureza morta. Importam, isso sim, as qualidades dinâmicas que estes elementos possuem. Nas palavras de Arnheim:

"Não se pode fazer justiça ao que vemos descrevendo-o somente pelas medidas de tamanho, configuração, comprimento de ondas ou velocidade. (...) Enquanto se fala sobre meras medidas ou registros de objetos visuais, há possibilidade de se ignorar sua expressão direta. Observamos: este é um hexágono, um dígito, uma cadeira, um pica-pau cristado, um marfim bizantino. Mas, assim que abrimos os olhos para as qualidades dinâmicas transmitidas por quaisquer dessas coisas, inevitavelmente vemo-las carregadas de sentido expressivo." (Arnheim, 2002, p. 437)

Quando transpomos a cena de um quadro para uma maquete sem atenção a esse problema, perdem-se os elementos expressivos da pintura. É importantíssimo notar, porém, que isto não ocorre por qualquer deficiência inerente à experiência tátil: tal perda ocorre mesmo se a adaptação é explorada com a visão. Tudo o que resta são meras “coisas” e suas descrições. Ao adaptar obras de artes visuais para os cegos, estamos sempre correndo o grave risco de transpor objetos, sem nada transpor de sua expressividade – e, assim, de perder a liberdade de um voo, da tristeza da luz, do frescor de um jardim. Numa adaptação inexpressiva, resta ainda sentido pedagógico e lúdico, mas nenhum sentido estético.

Elementos expressivos táteis, auditivos, poéticos, entre outros, podem ser recursos muito mais interessantes e estão ainda por ser mais bem explorados num esforço de proporcionar novas experiências. É preciso, urgentemente, abandonar a ideia de que a melhor forma de adaptação é aquela que reproduz conteúdos e elementos visuais como uma espécie de cópia tátil correspondente.

O resultado desta orientação, a que poderíamos chamar representacional, são peças que agradam somente àqueles que, cegos ou videntes, esquecem-se que uma obra de arte não é um mero objeto e acreditam, por isso, que representações de objetos podem substituir uma obra de arte. É preciso criar adaptações expressivas, é preciso encontrar novos caminhos, dos quais a exploração da dimensão expressiva dos demais sentidos pode ser um dos melhores.


O uso de kits

A maioria dos museus acessíveis brasileiros oferece “kits” de acessibilidade. Tais kits consistem na reunião do material adaptado para o público deficiente, ou seja, das reproduções de obras do acervo do museu, incluindo tanto as réplicas bi e tridimensionais quanto recursos multissensoriais, como os expostos acima. Este material, via de regra, fica isolado do acervo em exposição, guardado em um armário ou baú, sendo recrutado apenas quando um deficiente visual visita o museu. É claro que, assim isolados, os kits possuem, para os museus, a vantagem de conservar melhor o material especial e de ocupar pouco espaço. Por outro lado, o uso de kits caracteriza uma iniciativa não integradora na medida em que o material destinado aos deficientes é segregado do restante do acervo. O visitante comum não chega a tomar conhecimento de sua existência. Claramente, pressupõe-se tanto que o material que compõe o kit deve ser preservado do toque de muitas pessoas quanto – o que é muito mais grave – que o contato com o material não proporcionaria ganho algum para os videntes. Por isso, os kits acabam por contribuir para uma segregação ainda maior entre cegos e videntes dentro do espaço do museu.

Além disso, os kits representam uma perda de autonomia para o público a que se destinam, já que, para acessá-los, é necessária a presença de um mediador. Para grupos de pessoas cegas que agendam sua visita com antecedência e desejam ser acompanhados por um mediador, este problema pode passar despercebido. Mas, quando uma instituição se pretende acessível e busca de fato incluir novos públicos, espera-se que crie condições para que a pessoa com deficiência possa ir a qualquer exposição a qualquer momento. Do contrário, torna-se impossível a visita que não foi planejada com antecedência. O uso do kit como principal ou único recurso revela uma desconsideração do fato de que um cego pode querer ir ao museu sozinho, ou mesmo acompanhado de um amigo, a qualquer momento, e de que ele pode fazer questão de caminhar e apreciar as obras por conta própria, como qualquer visitante tem o direito de fazer.

Outro problema dos kits é que eles costumam restringir a visita do cego a uma porção muito pequena (geralmente irrisória) do museu.

Se um cego chega à recepção de um museu que possui como única ou principal oferta um ou mais kits táteis, ele é imediatamente encaminhado, na maioria das vezes, à sala onde se encontram os kits. Num grande número de casos, fica logo evidente que estas – e apenas estas – são as salas às quais se espera que o deficiente vá. Em geral, os mediadores não possuem preparo para conduzir a visita de um cego a partes do museu que não constam neste curto script. No fundo, os kits são uma espécie de museu alternativo dentro do museu. Quando o kit é a única ferramenta de que o museu dispõe, este museu alternativo é tudo a que os deficientes têm acesso e, reciprocamente, só é acessado pelos deficientes. Ora, como dissemos no início, incluir é fazer equivaler os direitos e oportunidades de pessoas com e sem necessidades especiais, em qualquer espaço social. Vistos por este ângulo, os kits portam algo de contrário à própria ideia de inclusão.

Uma última objeção a ser feita quanto ao uso dos kits refere-se a uma confusão entre os distintos tipos de necessidade que diferentes visitantes podem apresentar. Às vezes, deparamo-nos com adaptações a princípio criadas para serem utilizadas por crianças ou por pessoas com déficit intelectual, mas que são oferecidas também ao público cego. Em outros casos, embora tenha sido criado especificamente para o público deficiente visual, o material é infantilizador e parece mais adequado para crianças.

Parece haver aí uma confusão, como se a deficiência visual necessariamente determinasse alguma restrição intelectual. Este equívoco, que já mencionamos acima como uma das razões da exclusão ao longo da história, é ainda hoje mais frequente do que se imagina. É crucial que não se misturem as várias formas de deficiência em um único caldeirão, como se as necessidades de pessoas com deficiências diferentes fossem sempre as mesmas ou pudessem, de alguma forma, se equivaler. Um cego adulto, tal como um vidente adulto, vai a um museu de arte em busca de arte; não espera ser recebido com um material de caráter predominantemente lúdico e mais apropriado às crianças. É certo, como acabamos de afirmar, que as melhores propostas de inclusão devem ser aquelas cujo alcance abarque os mais diversos públicos: o material desenvolvido para atender às pessoas com deficiência visual pode ser interessante também para outros visitantes, inclusive para os videntes, sejam adultos ou crianças. Porém, a extensão das propostas inclusivas para os muitos públicos deve estar baseada na adequação do material para todos eles. Caso contrário, o efeito pode ser diametralmente oposto ao que se esperava: em vez de se verem acolhidos, alguns deficientes visuais sentem-se “enganados”, infantilizados e inferiorizados por propostas que desconhecem seus verdadeiros limites e subestimam suas verdadeiras capacidades 60.


A complexidade da inclusão e seus efeitos para além das fronteiras do museu

Buscamos apresentar de maneira introdutória o campo problemático da acessibilidade em museus para deficientes visuais e suas múltiplas facetas, que em muito transcendem o cumprimento das normas técnicas. Neste sentido, fica patente que um museu ou galeria que cumpra todas as normas de acessibilidade não necessariamente apresenta-se como esteticamente acessível. Isto requer uma política do toque pautada na compreensão das especificidades e potencialidades cognitivas do tato, no questionamento à naturalização do caráter danificador do mesmo, bem como na inventividade para transmitir o caráter expressivo de uma obra destinada à contemplação visual para a fruição tátil.

Esta última exigência, por sua vez, requer a consciência de que uma adaptação não cumpre a função de reproduzir fielmente a obra original, já que normalmente seus aspectos materiais e tamanho, propriedades mais características do modo de conhecer e experimentar através do tato, são transformados. Ao contrário, sua potência reside justamente na recriação, na releitura da obra.

Essa concepção tem como efeito uma maior abertura à criação e, consequentemente, à possibilidade de tornar palpável, para aquele que não enxerga, a expressividade da obra que ele contempla.

A consideração de todos esses pontos que rondam o conceito de acessibilidade, em museus, para deficientes visuais tem uma finalidade: a criação de um terreno propício para o florescimento de experiências estéticas para este público, o que significa tornar sua experiência de ir ao museu mais significativa.

Um ponto importante a ser considerado é que não estamos propondo que a permissão ao toque se dê de modo irrestrito, mas que seja feita uma análise caso a caso, conforme a fragilidade e raridade das obras em questão. De modo geral, entretanto, é necessário que a proibição do toque não seja determinada a priori, mas que sejam pesados os custos e benefícios da disponibilização das peças à apreciação tátil.

Para que a acessibilidade possa dar-se de modo efetivo, acreditamos que deva ser erguida sobre dois pilares: a investigação cognitivo-estética e o engajamento político.

O primeiro deve garantir que o paradigma visuocêntrico não se imponha de modo disfarçado, como no caso de adaptação para o tato de obras cuja estética permanece visual, com grande apelo para os aspectos formais, resultando pouco interessante ou até incompreensível ao tato. O segundo, por sua vez, pretende que seja aberto um canal de comunicação entre o museu e o público-alvo de sua acessibilidade e que este possa analisar crítica e experiencialmente a qualidade da inclusão que lhe é oferecida, sendo seu feedback legitimado por meio da revisão das propostas e mesmo no próprio planejamento das iniciativas. Sobre estes dois pilares, então, deve haver uma integração entre os aspectos científicos e políticos que envolvem a acessibilidade.

Como o paradigma visuocêntrico consiste em um desdém do valor cognitivo dos outros sentidos que não a visão, é de suma importância, no movimento de resistência que deve embasar toda a iniciativa de democratização da cultura para o público deficiente visual, que haja essa integração, de forma que a inclusão se mostre mais efetiva. Deste modo, buscamos evitar o risco de reproduzir tal estética adaptada a outros sentidos e acabar, perante a dificuldade de compreensão das adaptações, por reforçar ainda mais o pressuposto da soberania cognitiva da visão sobre os outros sentidos, realizando uma inclusão excludente.

Em suma, os desafios para a realização de uma boa iniciativa de acessibilidade a museus para deficientes visuais são muitos e permeados por estigmas, controvérsias e desconhecimento. Entretanto, atentar a eles com cuidado é reconhecer que trazem consigo em germe a possibilidade para uma gradual, mas verdadeira, mudança paradigmática, que pode beneficiar tanto cegos como videntes.

 

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Notas:

Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada junto ao NUCC-UFRJ (Núcleo de Pesquisas Cognição e Coletivos), sob orientação da professora Virgínia Kastrup, e contou com uma parte de campo, em que os autores realizaram visitas técnicas a diversos museus do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nas visitas aos museus do Rio de Janeiro, ocorridas em 2009, os autores foram acompanhados por um grupo de deficientes visuais do Instituto Benjamin Constant, que também participou de discussões que contribuíram de maneira importante para o presente texto. As visitas aos museus de São Paulo ocorreram por ocasião de um estágio realizado pelos autores sob orientação de Viviane Sarraf em 2008. Agradecemos calorosamente a Virgínia Kastrup, Viviane Sarraf e aos deficientes visuais que participaram do nosso grupo de discussão e visitação: Virgínia Menezes, Alexandre Barel, Valéria e Waldir.

51 A este respeito cf. também os capítulos de Sarraf e Kastrup inseridos nesta coletânea.

52 Para uma discussão histórica sobre a acessibilidade em museus, ver Sarraf (2008).

53 Ver, p. ex., Candlin, 2004, 2006; Sarraf, 2008; Almeida et al., no prelo; Quaresma e Kastrup, manuscrito.

54 Para maiores informações sobre os museus brasileiros que possuem programas de acessibilidade, consultar o site http://museuacessivel.incubadora.fapesp.br/portal, mantido pela RINAM (Rede de Informação de Acessibilidade em Museus), criada por Viviane Sarraf.

55 Nota sobre o acesso à informação.

56 Quem introduz esta distinção no que diz respeito à acessibilidade para deficientes visuais em museus são Hatwell e Martinez-Sarocchi (2006).

57 Esta posição, se no mais das vezes está apenas implícita, é manifestamente declarada no trabalho de certos autores (ver, por exemplo, RÉVÉSZ, 1950). Para uma perspectiva contrária, porém, ver Arnheim (1990) e Löwenfeld (1951).

58 Para uma discussão mais extensa, ver Almeida et al., no prelo.

59 Para uma discussão mais detalhada a este respeito, ver Gibson (1962); Almeida et al. no prelo.

60 Foi esse o caso, p. ex., de alguns dos deficientes visuais que participaram de nosso grupo de discussão e visitação a museus.


Referências Bibliográficas:

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  • SARRAF, V.P. Reabilitação do Museu: políticas de inclusão cultural por meio da acessibilidade. 180 p. Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciência da Informação/Escola de Comunicações e Artes/USP. Orientador: Prof. Dr. Titular Martin Grossmann. São Paulo, 2008.

 

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excerto da obra: 
Exercícios de Ver e Não Ver: arte e pesquisa com pessoas com deficiência visual
Organizadoras: Marcia Moraes e Virgínia Kastrup, 2010

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21.Jul.2012
publicado por MJA