

imagem: Homem cego - quadro de John Kirby, 1990
índice
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Nota Introdutória
Ao longo deste capítulo, pretende-se tratar o exercício da função docente e tudo
o que
ela implica, porém, o ator principal é o professor com deficiência visual.
Este capítulo, pela sua extensão, e para que melhor se compreenda, subdivide-se
em
duas partes principais.
Na primeira parte, porque parece à autora deste relatório demasiado importante,
tratase
a questão do acesso ao ensino superior, pois é aí que tudo começa, evidenciando
a
existência do contingente especial como algo que facilita a entrada no ensino
superior dos
deficientes e alguns aspetos com ele relacionados, que, em seu entender, são, no
mínimo
contraditórios. É que casos há em que esse acesso lhes é vedado a certos cursos
pelos ditos
pré-requisitos, limitando estes cidadãos, muitas vezes, de exercer a profissão
que gostariam.
Na segunda parte, destinada à profissão docente, a autora começa por refletir
como é
que o Ministério da Educação tem legislado sobre o acesso à profissão docente
por parte dos
deficientes, desde 1974 aos nossos dias.
Por fim, dar-se-á resposta às várias questões orientadoras que movem a autora
deste
Relatório, a partir de testemunhos profissionais de terceiros, recolhidos,
essencialmente, num
Workshop levado a cabo para o efeito, no Dia Internacional da Pessoa com
Deficiência (3 de
Dezembro de 2014), bem como da sua experiência pessoal e profissional enquanto
docente
com deficiência visual na prática do ensino em História e Geografia.
1. A Orientação Vocacional e o Acesso ao Ensino Superior dos Deficientes
Visuais
É conhecido por todos que a inserção profissional dos deficientes obedece a um
leque
reduzido de profissões, pelo que se torna essencial alargar a amplitude das
saídas profissionais
para estes cidadãos, deixando de se focar nas limitações, passando a
valorizar-se as
potencialidades demonstradas por cada pessoa. Assim, as pessoas com deficiência
visual,
quando confrontadas com o momento de fazer a sua escolha profissional,
deparam-se com um
reduzido leque de profissões consideradas possíveis, e é nesta altura que a
escola poderá ter
um papel preponderante na medida em que compete ao Psicólogo da escola (se
existir),
selecionar a bateria de testes psicométricos que permitirão ajudar o jovem na
escolha da
formação que melhor se adequa ao seu perfil (Arándega, 1999).
No momento de concorrer ao Ensino Superior, e segundo o Decreto-Lei n.º 99, de
30
de Março, Artigo 14.º, n.º 1, a pessoa com deficiência tem a possibilidade de o
fazer ao abrigo
do contingente especial. Porém, esta benesse é apenas aplicável na primeira fase
de
candidatura ao referido ensino, onde lhe são reservadas 2% das vagas.
Chegados ao Ensino Superior, e tendo em conta informação recolhida através do
Núcleo de Apoio ao Estudante com Deficiência da Universidade do Porto, tem-se
constatado
que nos últimos anos os estudantes deficientes visuais enveredam por
Licenciaturas que os
habilitem ao ensino da História, da Filosofia, das Línguas e da Economia; nas
Profissões
Técnicas, escolhem Licenciaturas em Psicologia, Ciências da Educação, Advocacia,
Técnicos
de Serviço Social, Técnicos informáticos; nas Profissões Paramédicas, é comum
ver estes
jovens enveredar por formações ligadas à área das massagens e da fisioterapia;
entre outras
profissões como intérpretes e tradutores.
A entrada no Ensino Superior constitui para o estudante um desafio e um momento
de
transição entre dois níveis de ensino completamente distintos, não só pelas
mudanças que
produz (estudar fora da zona de conforto), mas também pelas constantes
adaptações que exige
ao nível de um novo contexto, dos conteúdos, dos métodos de ensino, da avaliação
e das
novas estratégias de estudo. Se para um estudante dito «normal» as alterações e
dificuldades
são evidentes, para um estudante deficiente, além deste processo de transição,
acresce a sua
singularidade, com as suas reais dificuldades e limitações.
Neste sentido, e incapaz de ultrapassar as barreiras vindouras, uma elevada
parte
destes jovens acaba por desistir quando terminam o Ensino Secundário; é que,
segundo
Fernandes e Almeida (2007), mais do que os obstáculos físicos, a discriminação
da qual estes
jovens são alvo, são fatores maioritariamente valorizados, resultantes da falta
de aceitação e
preconceito por parte da comunidade académica. Algumas vezes, os alunos sem
deficiência
tendem a avaliar negativamente o impacto da deficiência na vida académica e da
qualidade de
vida das pessoas portadoras de deficiência, seja qual for o seu tipo (Fernandes,
Almeida, e
Mourão, 2007). Para além destes fatores, Rodrigues et al. (2007), acrescentam a
falta de
acessibilidade aos documentos e bibliografias adequados, a falta de recursos por
parte do
corpo docente e a inexistência de regulamentos que prevejam as necessidades
destes jovens.
De forma a eliminar tais obstáculos, Fernandes e Almeida (2007) afirmam que as
Instituições de Ensino Superior têm a obrigação de desenvolver condições de
acolhimento
favoráveis a este público, tendo em conta as suas fragilidades. É que, segundo a
Declaração
de Salamanca (UNESCO, 1994), a Universidade deve ser um espaço de inclusão e de
igualdade de oportunidades. Para que tal seja possível, a universidade e os
parceiros sociais
devem promover a acessibilidade arquitetónica, tecnológica e humana.
Tais sugestões estão consagradas em vários atos legislativos como a Constituição
da
República Portuguesa de 1976, nos já referidos artigo 74.º e na Lei de Bases do
sistema
Educativo de 1986. Porém, em 1998, na Declaração Mundial sobre o Ensino Superior
para o
Século XXI da UNESCO, “Visões e ações”, vai-se mais além na concetualização do
acesso
ao Ensino Superior por parte das pessoas com deficiência, podendo ler-se que o
"(…) acesso
ao ensino superior para membros de alguns grupos específicos especiais tais como
povos
indígenas, minorias culturais e linguísticas, grupos desfavorecidos, povos que
vivem sob
ocupação e pessoas com deficiência deve ser ativamente facilitado, já que estes
grupos podem
possuir, coletiva e individualmente, uma experiência e talentos que podem ser de
grande valor
para o desenvolvimento social e nacional. A ajuda material especial e soluções
educativas
podem contribuir para superar os obstáculos que enfrentam estes grupos para
aceder ao ensino
superior e prosseguir os seus estudos”. Por fim, na Convenção das Nações Unidas
sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), no artigo 24, à semelhança dos
demais atos
legislativos, define que a Educação é um direito de todos. Mais acrescenta no
n.º 5 do mesmo
artigo que os Estados-membros “deverão assegurar que as pessoas com deficiência
possam ter
acesso à educação comum nas modalidades de ensino superior, formação
profissional,
educação dos jovens e adultos na formação contínua, sem descriminação e em
igualdade de
condições com as demais pessoas. Para tal, os Estados membros deverão assegurar
a provisão
das adaptações razoáveis para as pessoas com deficiência.
Conscientes e conhecedores da legislação que regula os direitos das pessoas com
deficiência, em Janeiro de 2002, a Associação Portuguesa de Deficientes (APD),
refletindo
sobre a inclusão dos jovens com deficiência no ensino superior, visando a
igualdade de
direitos e a luta contra a discriminação, indicou três pontos essenciais para a
resolução urgente
destas barreiras, a saber: “1 – Legislar a obrigatoriedade e financiamento de
gabinetes de
apoio ao aluno com deficiência em todas as universidades portuguesas e a
funcionarem em
rede em todo o país; 2 – Dotar os estabelecimentos do ensino superior de
condições de
acessibilidade, iniciando com uma inventariação das inacessibilidades dos
estabelecimentos
de modo a calendarizar de forma orçamentada e com investimento estatais a sua
plena
acessibilidade; 3 – Legislar a abolição de todo e qualquer pré-requisito que
condicione o
acesso a um curso superior com base em qualquer tipo de deficiência” (APD, 2002:
5).
Dando resposta ao ponto n.º 1, a 15 de Junho de 2004, as Universidades do ensino
superior público de Coimbra, Lisboa, Porto, Técnica de Lisboa, Aveiro, Minho,
Évora, Trás-os-Montes e Alto Douro, e as Faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de
Lisboa
“(…) celebraram um protocolo de cooperação visando proporcionar ao estudante com
deficiência um serviço de melhor qualidade e promover a aproximação
inter-serviços que
apoiam estes estudantes, de forma a facilitar a troca de experiências, o
desenvolvimento de
iniciativas conjuntas e a racionalização de recursos” (Petronilho, et al, 2008:
16).Sensíveis e
atentas à problemática da deficiência, algumas universidades já na década de
1990 criaram o
Gabinete de Apoio ao Estudante com Deficiência.
Em resposta à solicitação do ponto n.º 2 da APD de 2002, a 17 de Janeiro de 2007
é
aprovado em Conselho de Ministros o Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade
–
2007/2015, com um conjunto de medidas que visam possibilitar à pessoa com
deficiência uma
utilização plena de todos os espaços públicos e edifícios, mas também dos
transportes e das
tecnologias de informação.
Por fim, comentando a sugestão n.º 3, o acesso ao ensino superior deveria ser
aberto
sem distinção de idade e sem nenhuma discriminação, a quem tenha conseguido
finalizar
satisfatoriamente o Ensino Secundário ou outros estudos equivalentes ou que
reúna as
condições necessárias para a admissão. Mas, o que se passa em Portugal é bem
distinto,
apesar de haver legislação que proíbe e pune a discriminação em razão da
deficiência e da
existência de risco agravado de saúde, como previsto na Lei n.º 46/2006, de 28
de Agosto, o
certo é que continuam a existir resquícios de discriminação em algumas
situações. Tomemos
como exemplo o acesso de pessoas com deficiência a diversos cursos superiores,
em função
de pré-requisitos existentes. Tal obstáculo tem sido justificado em função da
indisponibilidade
de recursos humanos, financeiros, técnicos e físicos suficientes.
Para que melhor se entenda o que são pré-requisitos, a DGES define que “(…) os
prérequisitos
são condições especiais que certos cursos exigem aos estudantes que a eles se
pretendem candidatar. Trata-se de condições de natureza física, funcional ou
vocacional que
assumem particular relevância para acesso a determinados cursos do ensino
superior e são,
por isso, exigidas pelos estabelecimentos de ensino. Compete a cada instituição
de ensino
superior decidir se a candidatura a algum dos seus cursos deverá estar sujeita à
satisfação de
pré-requisitos e fixar o seu conteúdo”.
Feito o parêntesis, refira-se que quando um estudante com deficiência escolhe um
determinado curso, tem plena consciência das suas necessidades e dificuldades; é
que
ninguém melhor que ele conhece as suas capacidades e limitações. Apesar de
precisar de
algum apoio, isso não poderá ser nunca motivo de impedimento ao curso que gosta.
Infelizmente são muitos os exemplos que se conhecem vítimas dos tais
pré-requisitos.
A título de exemplo, recorrendo aos relatos do estudo de Martins (2006: 102),
isso foi o que
aconteceu com Lara. “Após terminar o liceu, Lara candidatou-se para a
licenciatura de
Geografia em Coimbra. No entanto, foi excluída porque, embora tivesse média para
o
ingresso, o curso define como pré-requisito a capacidade visual” (…) “Em
consequência, Lara
entrou no curso de Ciências da Educação. Com a sua visão a piorar
progressivamente, Lara
contou com algum apoio do Gabinete de Apoio ao Estudante com Deficiência. No
entanto, só
conseguiu concluir o curso com o apoio de colegas e com a sua força para
improvisar
soluções”.
Se Lara tivesse sido candidata ao curso de Geografia na Universidade do Porto,
não
teria sido «obrigada» a enveredar por outra licenciatura; é que nesta
Instituição, não existem
cláusulas de admissão a este curso.
Contudo, não nos podemos nunca esquecer que muitas vezes, para se tornar
deficiente
basta uma fatalidade na vida, e que apesar de tudo, a pessoa consegue «dar a
volta por cima»
e vencer, sem que passe pela injustiça dos tais pré-requisitos exigidos a quem é
deficiente no
ato de concorrer ao Ensino Superior. Foi o que aconteceu com um estudante de
medicina, que
teve um acidente durante o curso, colocando-o numa cadeira de rodas. Isso não o
impediu de
continuar o curso e ser médico (APD, 2002). Porém, se fosse deficiente motor
antes do acesso
à Universidade, nunca poderia ter entrado.
António Paulo é outro exemplo conhecido. Era um jovem que a meio do curso de
Medicina (que inviabiliza o acesso de qualquer estudante que possua qualquer
tipo de
deficiência), teve um descolamento de retina que lhe afetou ambos os olhos,
deixando-o cego
de um e com baixa visão no outro. O certo é que o jovem lá terminou o curso, e
hoje é
membro efetivo da Equipa de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de
Coimbra, onde
desempenha funções em iguais condições dos seus colegas de trabalho.
Dada a existência de pré-requisitos no acesso a determinados cursos, uma grande
percentagem destas pessoas envereda por cursos de letras, por serem uma das
poucas
alternativas e porque, aparentemente, são cursos mais acessíveis (APD, 2002).
Porém, estas
pessoas nem sempre têm o melhor aproveitamento, não só pelas dificuldades
inerentes à sua
deficiência (falta de livros e material adaptado, por exemplo), mas também por
não ser o
curso que gostariam de fazer. Estão lá por exclusão de partes!
Para finalizar, importa destacar que muito embora já tenham sido dados «passos
significativos» rumo à inclusão e à eliminação de qualquer tipo de
discriminação, o certo é
que muito há a fazer para a aplicação de toda a legislação que regula neste
sentido, até que a
inclusão das pessoas com necessidades especiais seja uma realidade para todas,
em todos os
lugares.
2. O Professor com Deficiência Visual: Limitações e Potencialidades
Como pudemos verificar, historicamente as pessoas com deficiência enfrentam um
cenário marcado por barreiras e preconceitos, agravados principalmente pela
falta de acesso a
materiais adaptados à sua condição, inviabilizando a sua progressão académica.
Porém, os
que conseguem vencer tais obstáculos acabam por terminar e finalmente entrar no
mercado de
trabalho.
De todas as profissões possíveis de serem desempenhadas por uma pessoa com
deficiência visual, apenas importa, para o presente relatório, refletir sobre a
profissão docente
Como ponto prévio desta abordagem, é importante destacar o facto de terem sido
inúmeros os estudos encontrados acerca das experiências pedagógicas vivenciadas
entre
professores ditos «normais», com alunos com deficiência frequentando o ensino
regular, sob a
bandeira da escola inclusiva. Porém, o inverso não aconteceu. Foram escassos os
textos ou
estudos encontrados que pudessem servir de suporte para a abordagem das relações
entre um
professor com deficiência e os alunos ditos «normais». Por isso, este trabalho
que ora se
apresenta pretende preencher essa lacuna, tendo como base, sempre que a
bibliografia seja
inexistente, a trajetória da autora como professora com deficiência visual,
atuando no ensino
regular, nomeadamente no 3.º ciclo, lecionando as disciplinas de História e
Geografia.
Antes de refletir sobre a relação professor/aluno e nas implicações que isso
envolve,
tal como atrás fora dito, comece-se por refletir sobre a forma como o Ministério
da Educação
tem assumido a sua responsabilidade na contratação de professores com
deficiência, num
esforço de inclusão.
2.1 Passos para o Direito à Profissão Docente
Após o 25 de Abril de 1974, a democratização do ensino em Portugal tem vindo a
ser
concretizada na sua aceção mais ampla (obrigatoriedade, gratuitidade e
universalidade). Tais
direitos estão regulamentados na Constituição democrática de 1976, no artigo
43.º, número 1,
onde se garante a todos os cidadãos a “liberdade de aprender e ensinar”.
Nesta altura, com a massificação do ensino, a carência de professores tornou-se
uma
realidade visível, permitindo a contratação fácil dos candidatos a “(…)
«ensinadores», como
forma de responder às necessidades criadas pela entrada massiva de alunos”
(Portugal, 2014:
34). Diante de tal abertura, os professores deficientes tinham a oportunidade de
concorrer em
pé de igualdade com os seus homólogos normovisuais. Porém, todos os anos para os
docentes
contratados esperavam-se, e ainda hoje se esperam, novas dificuldades
decorrentes do facto
de serem desenraizados da sua zona de conforto, mas para os colegas com
deficiência, para
além deste aspeto e de tudo o que isso implica, acrescem novos desafios
decorrentes das
dificuldades inerentes à própria deficiência: é que o simples facto de um
indivíduo ser
deficiente, independentemente da natureza da sua deficiência, obriga-o, de
imediato, a todo
um conjunto de despesas e desafios que os normovisuais não têm: “(…) é o
transporte que se
perde; são as barreiras arquitetónicas a vencer; são os acessos ao local de
trabalho que se
mostram quase impraticáveis para quem não se desloca com facilidade (…) por
outro lado,
qualquer pessoa sente dificuldades com o vento e com a chuva, mas para o
deficiente,
especialmente os visuais, que dependem do ouvido e da bengala que o vento
desgoverna, as
dificuldades são imensas e incalculáveis e inimagináveis para quem as não sinta
em si mesmo
(…)” (Portugal, 1982: 42).
A tais dificuldades, importa ainda acrescentar que se
para qualquer
professor colocado num determinado local, tendo a possibilidade de ir e vir para
casa todos os
dias, apesar dos 50 ou 60 quilómetros para cada lado, pode sem sombra de dúvida,
rentabilizar os momentos mortos das viagens para ir lendo ou corrigindo fichas
de avaliação
ou qualquer outro trabalho, tal não é possível para um deficiente visual, para
quem “(…) as
viagens são períodos mortos, de total desaproveitamento que, por isso, acabam
por levar a um
considerável desgaste de ordem psicológica. Tais lapsos de tempo poderiam ser
aproveitados
pelo professor deficiente para as correções que os outros podem fazer no
comboio, se ele
estivesse mais próximo da sua residência, onde o seu esquema pessoal de apoio
poderia
funcionar” (Portugal, 1982: 43).
Conscientes destas e de outras dificuldades, o Grupo de Estudos de Reabilitação
e
Integração Social apresentou ao Ministério da Educação uma série de propostas
saídas da
conferência organizada por este grupo a 12 de Novembro de 1982 que, a serem
acolhidas, não
pretenderiam dar aos deficientes, que à época pouco ultrapassariam uma centena,
um estatuto
de privilégio, mas apenas permitir que eles se pudessem integrar na sociedade,
sem
violências, sem sobressaltos, num direito que lhes assiste, enquanto seres
humanos. Tais
propostas passariam por medidas tão simples como: a colocação de professores
deficientes se
concretizar fora do processo do computador, tendo em conta as preferências
indicadas no
boletim de inscrição e admissão a concurso, e em todas as escolas se pudesse
destacar um
professor que tivesse redução de horário para apoiar o colega deficiente visual
nas tarefas de
vigiar e corrigir testes e fichas de trabalho, porque os professores deficientes
visuais, para
cumprirem com o seu dever (por Ex. o de corrigir trabalhos) são obrigados a
socorrer-se da
preciosa ajuda dos amigos, ou então, muitas vezes têm de pagar a quem lhes leia
os testes,
fichas ou trabalhos, o que representa, no mínimo uma injustiça, pois acabam por
estar perante
a situação em que, para trabalho igual, salário diferente!
No fundo, o que era reivindicado não era assim tão impossível e excecional, pois
se se
pensar nos professores que pedem destacamento com base na lei do cônjuge e da
aproximação
à residência, ou com base na gravidez, porque não poderiam os deficientes
beneficiar de tais
condições? É que, quer a gravidez, salvo algumas exceções, quer os demais
professores ditos
«normais» que pedem destacamento pelas razões acima, nunca se poderão assemelhar
às
razões reivindicadas por qualquer deficiente. Tome-se como exemplo alguém que
pede
destacamento invocando a gravidez. Na verdade, “(…) a grávida desloca-se, com
certa
facilidade, por zonas não asfaltadas, por entre árvores, por locais onde apenas
se distingue o
passeio da rua, por passeios pejados de carros ou de outros obstáculos, sabendo
como e onde
pode utilizar a estrada, etc.” (Portugal, 1982: 42).
Ora, tomando conhecimento
de tais
propostas, o Ministro da Educação de então, a 1 de Junho de 1983, e à semelhança
do que já
acontecia noutros países, promulga o Decreto-Lei n.º 235-C/83, visando a
integração
profissional de docentes portadores de deficiência. Porém, tal como afirma
Portugal (1988:31), “(…) três anos mais tarde o mesmo Ministro preparava-se para publicar o
Despacho
Ministerial 84/MEC/86, podendo ler-se no «malfadado» documento que eram
condições
impeditivas ao exercício de funções docentes «ser cego», «ser deficiente visual
com menos de
um décimo de visão»”.
Tendo tomado conhecimento de tais pretensões do Ministério da Educação,
indignados, os professores deficientes visuais reuniram-se, lutaram pelos seus
direitos e esse
despacho acabou por não ser publicado (Portugal, 1988). Mas, sentindo que a
qualquer
momento o exercício da função docente poderia estar ameaçado por um qualquer
Decreto-Lei,
os professores deficientes visuais, reunidos no seu 1.º Encontro Nacional,
promovido pela
ACAPO nos dias 27 e 28 de Novembro, aprovaram um conjunto de resoluções e
recomendações, que foram apresentadas ao Ministério da Educação.
Para além das que já haviam sido expostas em 1982, e agora de novo apresentadas,
outras reivindicações saíram deste Encontro, das quais se destacam:
“(…) 1. Que,
ao nível
institucional, sejam dadas condições de trabalho aos professores deficientes
visuais de forma
a reduzir a dependência de boas vontades; (…) 4. Que sejam criados mecanismos
pelo
Ministério da Educação para que o professor deficiente visual possa ser
integrado em escolas
de maior acessibilidade e lhe sejam reservados horários que evitem uma
sobrecarga de níveis;
(…) 7. Que ao nível da formação sejam garantidas as seguintes condições aos
professores
deficientes visuais: a) integração nos núcleos de estágio; b) Proporcionar aos
orientadores de
estágio a formação necessária que permita uma plena integração dos formandos
deficientes
visuais; c) Criar condições de acesso à formação contínua dos deficientes
visuais; (…) 9. (…)
d) Contribuir para a resolução do problema da produção bibliográfica através de
uma
coordenação dos centros de produção a nível nacional e de uma otimização dos
recursos
existentes; e) Contribuir para a aplicação de critérios uniformes para a
produção de materiais
bibliográficos utilizados pelos cegos e amblíopes, que salvaguardem exigências
culturais,
técnicas e científicas; f) Criar um Centro de produção bibliográfica em suporte
informático e
difundir essa informação; g) Proporcionar um conhecimento o mais aprofundado
possível das
ajudas técnicas, sobretudo as ligadas à informática, disponibilizando informação
via faxmodem
ou em suportes tradicionais e garantir a sua manutenção; (…)” (ACAPO, 1993: 4).
Apesar de todo o cuidado e reivindicações, parece que o «malfadado destino» da
exclusão da carreira docente teima a repetir-se sucessivamente, embora de
maneira mais ténue,
que dá ao legislador uma certa “salvaguarda”… Foi o que aconteceu com as
sucessivas
reformulações que o Estatuto da Carreira Docente sofreu ao longo dos tempos.
Contudo,
apesar de se falar tanto em inclusão, na reformulação de 2010, ainda se poderá
ler no capítulo
IV, no artigo 22, número 2, o seguinte: “constitui requisito físico necessário
ao exercício da
função docente a ausência, comprovada por adequado atestado médico, de quaisquer
lesões ou
enfermidades que impossibilitem o exercício da docência ou sejam suscetíveis de
ser
agravadas pelo desempenho de funções docentes”.
Em 2001, tentando recuperar um atraso de muitos anos no quadro do acesso ao
emprego de pessoas com deficiência a funções públicas, é publicado o Decreto-Lei
29/2001,
que no seu artigo 3.º, com principal destaque para o número 1, o Estado garante
que “(…) em
todos os concursos externos de ingresso na função pública em que o número de
lugares postos a concurso seja igual ou superior a 10, é obrigatoriamente fixada
uma quota de 5% do total do
número de lugares, com arredondamento para a unidade, a preencher por pessoas
com
deficiência”.
Pelo exposto, parece que as coisas se iam encaminhando rumo à inclusão, isto se
o
Decreto fosse bem aplicado; é que no caso da colocação de professores, o
Ministério da
Educação entendeu por bem aplicá-lo ao círculo mais pequeno, ou seja, à escola.
Um grupo de docentes inconformados com tal aplicação reuniu, sem sucesso, com o
Ministro da Educação de então, confiantes de que esta estaria a acontecer de
forma injusta, já
que se tratava de um único concurso, a nível nacional, era assim que deveria, no
seu entender,
ser aplicado e não a esta ou àquela escola; é que à época, já escasseavam as
vagas para a
docência e eram poucas as escolas que abriam mais que uma ou duas vagas para
determinado
grupo de docência.
Afinal, se o concurso de professores tem apenas um único aviso de abertura, como
é
que seria entendível por alguém espartilhá-lo? Alicerçados nesta convicção, os
docentes
defendiam que se a nível nacional abriam, por exemplo, 100 vagas para o grupo
400
(História), 5% dessas seriam legitimamente preenchidas por professores com
deficiência.
Apesar das inúmeras tentativas para reverter a situação, só em 2013 é que, ainda
mal
aplicada à luz do que entendem estes professores que todos os anos se sentem
prejudicados
pela má aplicação deste Decreto, este acaba por sofrer um pequeno reajuste, mas
que sendo
pequeno faz toda a diferença; é que passou a ser aplicado, não ao número de
vagas abertas a
concurso por escola, mas aos Quadros de Zona Pedagógica (QZP). Portanto, as
condições de
acesso, por enquanto, ainda não estão a ser devidamente aplicadas em
conformidade com a
lei, mas o apelo que se nos impõe neste momento é que o acesso à docência seja
feito apenas
com base na vocação e na aplicação justa da legislação, e não seja limitado por
impedimentos
de ordem física, sensorial, ou outra.
2.2 O Ensino da História e da Geografia pelo Professor com Deficiência Visual:
Que
Dificuldades? Que Estratégias de Superação?
Ser professor é o resultado de um processo evolutivo, construído diariamente ao
longo de uma carreira que começa desde o momento da tomada de decisão pela
profissão
docente, até, quem sabe, ao final de uma vida preenchida de experiências boas e
más, que no
fundo só nos fazem crescer como pessoa digna de tal responsabilidade, que é
ensinar e educar alguém. Neste sentido, tal como afirma Nóvoa (1991), o bom
professor é aquele que é capaz
de controlar o seu trabalho de forma autónoma, responsável e consciente de que,
sempre que
necessário, terá de conceptualizar os conteúdos, as metodologias, as
estratégias, os recursos,
etc., por forma a conseguir que os alunos aprendam. Assim, o professor é um ser
unitário,
entrelaçado pelo seu percurso pessoal e profissional, e a ele está atribuído um
conjunto de
funções, às quais, com mestria e dedicação, saberá dar resposta.
Mas será que ser professor dito «normal» é muito diferente de ser professor com
deficiência?
À partida, dir-se-ia que não! Pois se a pessoa, apesar da sua condição de
deficiente,
conseguiu ser professor, logo as funções deverão ser as mesmas. Porém, para além
das
inúmeras funções definidas no Estatuto da Carreira Docente (2010), ordenadas de
a) a o), das
quais podemos destacar a planificação, organização, preparação, lecionação e
avaliação das
atividades letivas dirigidas aos alunos, bem como a promoção, a organização, e a
participação
em atividades complementares, curriculares e extracurriculares, incluídas no
plano de
atividades ou projeto educativo da escola, um professor deficiente, para além
destas, tem
outras tarefas, as quais resultam das necessidades próprias em virtude da sua
condição, que
um professor dito «normal» não tem.
Particularizando para o caso do professor deficiente visual, ainda antes de
qualquer
tipo de função, a primeira barreira a vencer é o completo desconhecimento do
espaço da
escola ou até mesmo do percurso entre casa e a escola, que são, no mínimo, uma
luta diária
com obstáculos a vencer até que seja capaz de, com o tempo, ir vencendo os seus
preconceitos, medos e agonias.
Tal situação foi sentida pela autora deste relatório. Se já conhecia bem o
trajeto até à
escola, quando passasse o portão da escola saberia que iria sentir-se perdida,
sem saber para
onde avançar. Com receio de ser «julgada» assim que entrasse, pediu ajuda ao
marido para
que a ajudasse a reconhecer o espaço; desta forma, sentir-se-ia mais confiante
da próxima vez
que lá fosse; é que pelo menos ficou a conhecer o mínimo para se poder
desembaraçar
sozinha nos primeiros dias.
Mas será que as primeiras dificuldades são apenas o desconhecimento do espaço?
Claro que não! Outras há, às quais ninguém é indiferente. Então, como será
encarada a
inclusão de um professor com deficiência visual no ambiente escolar?
Queira ou não aceitar a realidade, a pessoa com deficiência é sempre diferente
dos
outros, e por isso, muitas vezes, é olhada com desconfiança e confrontada com
duas análises
simplistas a seu respeito: se se sai bem, é impressionante, mas se as coisas
correm menos bem, como acontece com qualquer dos mortais, regra geral, é porque,
sendo cego, não é capaz
de fazer melhor.
A autora tem noção que a primeira imagem que se passa é aquela que perdura por
muito e muito tempo. Tal como afirma Portugal (1988: 46), tendencialmente, “(…)
toda a
escola faz essa mesma análise, desde o Conselho Diretivo aos auxiliares,
passando pelos
alunos”. Prova disto mesmo é o testemunho de Vera (Professora de Geografia), no
Workshop
(2014) que, referindo-se à relação entre pares, deu a conhecer algumas
situações, no mínimo,
constrangedoras. Assim, referiu que situações houve em que durante as suas
aulas, colegas e
funcionários da escola a vigiaram pela janela de outros blocos, ou, não raras
vezes, se
colocaram por trás da porta da sala à escuta. Conhecedora destas e de outras
situações, decidiu
lecionar de porta aberta, solucionando rapidamente o problema; é que, muitas
vezes o seu
trabalho foi olhado com desconfiança e a sua prestação era vista com descrédito,
situação que
atribui à falta de conhecimento do trabalho desenvolvido pelas pessoas com
deficiência, por
parte da comunidade escolar. Porém, acrescentou que teve outras experiências, as
quais
relembra com manifesta satisfação; em alguns estabelecimentos de ensino foi bem
acolhida,
não tendo sentido qualquer tipo de preconceito em relação à sua prestação, facto
que atribui
ao conhecimento que alguns colegas evidenciaram sobre a forma de trabalho de um
professor
com deficiência visual.
Quanto à experiência profissional, é de realçar que a autora deste relatório
referiu que
jamais sentiu ou se apercebeu na Escola de situações discriminatórias como as
que foram
sentidas por Vera. Porém, quando começou o Estágio, e no que à sua preparação
para ensinar
História e Geografia diz respeito, isso é que a preocupava. Se por um lado
considerava que,
no que tocava à disciplina de História, haveria quase sempre uma forma de dar a
volta à
situação (é que são imensos os casos de professores de História que são cegos ou
com baixa
visão e sempre deram provas da sua capacidade, também ela seria capaz), já com a
Geografia,
por natureza uma disciplina muito visual, que exige do professor uma maior
supervisão dos
alunos para a consolidação de saberes e conteúdos, é muito mais procedimental,
sentia-se
muito preocupada; tinha medo de não conseguir acompanhar o trabalho individual
ou em
grupo dos jovens, e por isso ser, logo à partida, rotulada de incapaz, quer
pelos alunos, quer
pelos colegas professores.
Mas a prática tem-lhe ensinado que quando se tem gosto e persistência, tudo se
consegue; se por um lado, tem sido uma luta diária em adaptações de materiais
para conseguir
levar avante os seus propósitos, por outro, tem sido uma agradável surpresa; é
que
sinceramente, acreditava, teria mais dificuldades.
2.3 A Adaptação dos Materiais e Recursos
Ultrapassadas as dificuldades pelo reconhecimento do espaço e das
potencialidades de
um professor com deficiência, a inacessibilidade aos manuais escolares em
suporte acessível,
ferramenta essencial no desempenho e acompanhamento dos alunos, são uma
importante
barreira a enfrentar.
Como relatou Tomás (Professor de História), no Workshop (2014), como professor
cego, no início da sua carreira (início dos anos 80 do século XX), sem a ajuda e
massificação
das Novas Tecnologias, tal como os demais professores cegos, teve sempre a
necessidade de
transcrever para Braille muitos dos livros adotados. Era uma tarefa árdua,
morosa e de imenso
desgaste, pois para além de necessitar da ajuda de terceiros para que lhe
ditassem os manuais,
necessitava ainda que lhe descrevessem e interpretassem todas as imagens,
gráficos, quadros,
mapas, etc., para que, quando estivesse a lecionar as suas aulas, fosse capaz de
desempenhar
com sucesso as suas funções.
Mas será que as Novas Tecnologias vieram solucionar a inacessibilidade aos
manuais
escolares?
Segundo Caldas (Professor de Educação Especial), no referido Workshop, e
abordando a acessibilidade dos manuais escolares, referiu que, tal como antes,
ainda hoje nos
continuamos a debater com grandes dificuldades no acesso aos mesmos, sendo
necessário
proceder à sua digitalização (porque os e-books não são totalmente acessíveis
aos leitores de
ecrã), com os consequentes erros resultantes desta tarefa, além de que a
acessibilidade
continua a não ser total, ficando totalmente à margem a informação constante em
mapas,
gráficos, imagens, quadros e esquemas, tendo que recorrer sempre à ajuda de
terceiros para a
sua leitura e interpretação.
A vida estará um pouco mais facilitada no caso dos professores com baixa visão,
pois
em muitos casos, a visão que possuem permite-lhes o acesso e o recurso aos
manuais sem que
tenham a necessidade de os adaptar para qualquer outro tipo de suporte (digital,
Braille ou
ampliado), porém, tal como referiu Vera, no dito Workshop, apenas demoraria mais
tempo na
leitura dos manuais que um professor normovisual.
À semelhança da adaptação para suporte acessível dos manuais, o professor com
deficiência visual tem também a necessidade de adaptar os vários recursos que
utiliza ou de
que se serve (mesmo que não os utilize em sala de aula), para que possa ter
acesso à
informação contida em mapas, gráficos, quadros, etc., garantindo-lhe assim o
sucesso do trabalho com os alunos. Para tais adaptações, o professor tem ao seu
dispor um conjunto
variado de opções, as quais se descrevem de seguida.
Em primeiro lugar, é possível a adaptação da mais diversificada cartografia,
quer para
relevo, quer, hoje em dia, recorrendo a alta tecnologia, para a produção de
circuitos sonoros
que emitem informações sobre a área tocada.
A Cartografia Tátil é uma área específica da Cartografia, cujo objetivo é o de
permitir
ao deficiente visual, em especial ao cego, a partir de documentos em relevo, o
conhecimento
do mundo, podendo assim desenvolver habilidades de representação espacial de
conceitos
relacionados com a Geografia ou com a História, por exemplo.
Como afirmam Freitas e Ventorini (2011: 3), “(…) a busca por procedimentos
metodológicos de construção e utilização de recursos didáticos táteis para o
ensino de
Geografia e Cartografia, aos sujeitos com deficiência visual, é antiga e tem a
sua origem com
o início das políticas educacionais direcionadas a este público”.
As primeiras adaptações em relevo de recursos didáticos, como mapas, maquetas,
globos, entre outros, surgem em meados do século XIX, na Escola de Weissenburg
(Baviera-Alemanha), elaborados pelos próprios alunos. Inicialmente, os recursos táteis
eram
construídos sem a utilização de recursos tecnológicos, recorrendo-se para tal a
materiais
convencionais de baixo custo, como o alumínio, as tintas em alto-relevo, a cola
quente e as
colagens, que através de técnicas artesanais, possibilitavam adaptar o material
às necessidades
dos sujeitos cegos. Porém, atualmente, graças aos avanços tecnológicos
alcançados nas
últimas décadas do século XX e início do século XXI, investigadores têm
desenvolvido
sistemas integrados de softwares e de equipamentos eletrónicos conectados a
computadores
para inserir e disponibilizar informações sonoras e visuais em documentos
cartográficos,
como por exemplo, em mapas, maquetas e gráficos em alto-relevo e com circuitos
sonoros
que emitem informações sobre a área tocada.
Pese embora as inegáveis vantagens no recurso e utilização deste tipo de
materiais por
parte de alunos e professores com deficiência visual, o facto é que tais
equipamentos
requerem alto investimento financeiro e, por isso, atingem um número restrito de
utilizadores
(Freitas e Ventorini, 2011).
Mas será que a produção de material em relevo resolve a questão da
acessibilidade ao
material cartográfico? Como refere Caldas (Workshop, 2014), como a perceção da
informação constante em mapas, gráficos, maquetas, figuras geométricas, quadros,
entre
outros documentos se faz pelo tato e não pela visão, faz com que a pessoa cega
apenas
percecione a informação de forma parcial, conquistando as partes, e nunca a
totalidade, como acontece com os normovisuais. A acrescentar a esta dificuldade,
Caldas referiu que muitas
vezes estas adaptações implicam a elaboração de uma legenda suplementar (em
Braille), o
que constitui um acrescento à informação do documento original.
Para além da adaptação do material e dos recursos didáticos para Braille e
relevo, hoje
em dia é possível a adaptação e produção de material 3D.
Como deu a conhecer António Costa no referido Workshop, a Impressão 3D, também
conhecida como prototipagem rápida, surgiu em 1984, inventada por Chuck Hull, na
Califórnia. É uma forma de tecnologia de fabricação aditiva (processo de criação
de objetos
sólidos tridimensionais, a partir de modelos digitais), onde um modelo
tridimensional é criado
por sucessivas camadas de material, e num simples processo de impressão, é
possível
produzir partes de alguns materiais com diferentes propriedades físicas e
mecânicas.
Esta tecnologia de impressão avançada permite imitar com precisão quase a exata
aparência e funcionalidade dos protótipos dos produtos, dando-lhes a terceira
dimensão, a
altura, para além das dimensões já bem conhecidas do comprimento e da largura.
Segundo António Costa, uma vez possível a impressão deste tipo de materiais
(ainda
de elevado custo), quer a partir de impressoras 3D, quer por canetas de relevo,
estes tornar-seiam
acessíveis a todos, sem exceção, permitindo a tão ambicionada igualdade de
acesso à
informação, independentemente de se tratar de uma pessoa normovisual ou privada
da visão.
Pese embora as inegáveis vantagens na adaptação dos materiais e dos recursos
para
relevo ou 3D, o certo é que, tal como se referiu, estes representam, para a
pessoa cega, um
elevado investimento que, muitas vezes, não está ao seu alcance. Assim sendo,
importa referir
de que forma, com menos investimento, o professor cego ou com baixa visão adapta
os seus
recursos e materiais.
Recorrendo ao computador, o professor constrói os seus PowerPoint, porém, para
que
a informação lhe seja acessível e sem prejuízo para o público-alvo, há regras
específicas na
sua construção. Assim, quando se pretende, por exemplo, projetar um mapa, uma
imagem, um
quadro, ou outro recurso visual, o professor terá que, em primeiro lugar,
colocar a informação
acessível para si em forma de texto corrido, para que o leitor de ecrã lhe leia,
e em segundo
lugar, colar em cima dessa informação textual a imagem que pretende que os
alunos analisem
e interpretem (deixando assim escondida e apenas acessível ao leitor de ecrã, a
informação de
que necessita para orientar a exploração dos vários recursos a utilizar).
No caso dos professores cegos, tal como referido, a descrição deste tipo de
documentos terá de ser feita sempre com recurso a terceira pessoa, o que implica
a
conjugação de esforços, muitas vezes financeiros, e de tempo.
Durante as suas aulas, e para que o professor seja o mais autónomo possível,
será de
todo imprescindível que disponha de um auricular e um teclado Bluetooth ou
wireless, para
que, no primeiro caso, possa ouvir a descrição orientadora do que está a ser
projetado, e assim
acompanhar e explorar, sem dificuldade, com os alunos os vários recursos. No
segundo caso,
terá a possibilidade de comandar à distância o projetor, a partir de qualquer
ponto da sala de
aula. É que, outros recursos tecnológicos mais baratos, e sobretudo mais
portáteis, existem no
mercado; é o caso dos apontadores ou mesmo os ratos sem fios; porém,
infelizmente
interferem com os leitores de ecrã, tornando a sua utilização impossível.
Hoje em dia, o recurso aos equipamentos tecnológicos veio, sem dúvida, dar uma
autonomia ao professor cego, inigualável a qualquer outro momento. Mas, por
vezes, os
equipamentos também falham.
Durante este ano, em que a autora iniciou a sua prática profissional, por duas
ou três
vezes, a meio da aula, os auriculares deixaram de colaborar, desemparelhando-se
com o
computador. Como não os conseguiu emparelhar de novo, optou por não os usar,
tendo os
alunos de ouvir também pelo software de voz os tópicos que levava para
desenvolver a aula.
Tal situação não prejudica em nada a aprendizagem dos alunos, porém, requer do
docente um
esforço adicional para gerir a informação do computador e a participação dos
alunos.
No caso da exploração de imagens ou mapas, o importante é que o professor
conheça
muito bem os equipamentos que tem ao seu dispor na sala de aula, pois se por
acaso algo não
funcionar tão bem, poderá comprometer a validade da informação que transmite aos
seus
alunos; é que por vezes, os projetores das salas desfocam e alteram as cores
originais dos
documentos, levando-o a incorrer em graves erros na informação que dá para
orientar os
estudantes na exploração dos recursos. Um exemplo evidente destas fatalidades,
aconteceu
logo na primeira aula que lecionou ao 9.º ano, subordinada ao tema “os
antecedentes da 1ª
Guerra Mundial”. Como tinha uma descrição por cores dos mapas a explorar, estes
foram
explorados, sem dúvida alguma de acordo com a descrição que possuía, e que
correspondia ao
original; porém, o que não sabia é que ao projetar, as cores se estavam a
alterar
completamente, levando-a a incorrer em erros graves, como por exemplo dizer que
a tríplice
aliança correspondia aos países que estavam demarcados com a cor «X», e ser uma
outra que
nada tinha a ver.
No final da aula, em conversa com as colegas e com a orientadora, é que teve
conhecimento desta ocorrência. Ficou triste! Pois tudo tinha feito e adaptado às
suas
necessidades específicas para que nada corresse mal, e no fim de contas nem tudo
se consegue
controlar! Face a tão incómodo acontecimento, decidiu jamais fazer qualquer
referência a cores para destacar o que quer que fosse, para não incorrer em
erros desnecessários, optando
por pedir aos alunos que, a partir da análise da legenda, interpretem a
informação constante
em mapas, imagens ou gráficos, evitando expor a sua condição de pessoa cega. É
que estas
situações magoam mesmo!
Para uma pessoa privada da visão, o ideal seria que, nos manuais escolares, as
diferentes realidades constantes em mapas ou gráficos se distinguissem por
tramas em vez de
cores. Desta forma, o professor cego nunca incorria em erros na interpretação da
informação
que difundia aos alunos.
Uma outra realidade, da qual importa falar, é a referente às tarefas exigidas na
construção de diferentes materiais de trabalho; é que no âmbito das disciplinas
de História, e
em especial da Geografia, existem conteúdos que, à partida, exigem muito mais
supervisão
por parte do docente, porque são mais procedimentais. É o caso, por exemplo, da
construção
de pirâmides etárias ou sociais; de mapas mudos com a evolução das rotas
comerciais,
invasões ou etapas de determinado conflito; de vários tipos de gráficos; de
perfis
topográficos; de redes cartográficas; a realização de cálculos matemáticos,
entre tantos outros
exemplos que aqui se poderiam elencar. Como vencerá o professor cego estas
dificuldades,
sabendo que, por um lado, são matérias tão sensíveis para si, pois, à partida,
requereriam o
uso da visão, e por outro, que, pela abstração que exigem, tendo em conta a
faixa etária dos
alunos, representam um grau de dificuldade acrescido?
A estratégia mais assertiva será a de construir um PowerPoint contendo um
conjunto
sequencial de slides, que, pela sua sucessão, permita construir o produto final,
completando os
vários passos para o atingir; de resto, esta é uma prática bem conhecida de
todos os
professores que ainda utilizaram os retroprojetores e os velhinhos acetatos que
se iam
sobrepondo até que se construísse a figura ou mapa pretendidos. Felizmente que
agora, com a
utilização das novas tecnologias, este processo deixou de ser manual, não sendo
portanto
necessário marcar, em Braille ou com um pequeno recorte, os acetatos, ou levar
folhas
intermináveis de informação que agora, tal como referido, se coloca sob a
informação visual.
A autora relata que, quando lecionou no 7.º ano a matéria relativa à “Utilização
das
Escalas”, tema sensível, e que geralmente os alunos têm imensa dificuldade,
porque implica
cálculos matemáticos, para ela foi assumido como um desafio. Se, por um lado,
era necessário
tentar ajustar estratégias que tornassem tal tarefa mais prazerosa para os
alunos, por outro,
seria para ela um desafio, na medida em que era necessário supervisionar o
trabalho
desenvolvido pelos discentes; era «pôr à prova» as suas capacidades! Além disso,
ainda tinha
que ter em conta na construção dos PowerPoint, que seria necessário tornar a
informação acessível para si, o que muito facilitaria a explicação ou
explicações que sempre são
necessárias nestes casos.
Tendo consciência de que seria uma matéria sensível para os discentes, decidiu
criar
uma sequência de tarefas, para que a resolução dos três tipos de problemas com
escalas se
tornasse numa tarefa mecânica. Assim, os alunos deveriam: 1.º) ler o problema;
2.º) retirar os
dados; 3.º) fazer as reduções, caso necessário; 4.º) substituir na fórmula três
simples os dados
pela informação contida no problema; 5.º) fazer os cálculos; 6.º) apresentar os
resultados.
Quando supervisionava os discentes durante a realização dos exercícios, ia
pedindo
aos mesmos que lhe fossem verbalizando o que escreviam, para que os pudesse
ajudar e
esclarecer; é que tinha memorizado o resultado de cada um dos problemas, e
quando a
solicitavam para verificar se estava certo ou errado o trabalho, tal tarefa
era-lhe mais fácil; é
que se não correspondesse ao resultado que guardava na memória, isto significava
que o
problema tinha sido mal compreendido e, consequentemente, estaria errado.
Com a colaboração dos discentes, lá os foi ajudando a encontrar o erro e a
corrigir o
seu trabalho; é que os alunos são extraordinários! Não têm qualquer dificuldade
em entender
as suas necessidades como professora cega.
Por fim, certificando-se primeiro de que os exercícios estavam corretos,
solicitou a
participação dos estudantes para que fossem fazer a correção ao quadro, apesar
de ter levado a
correção feita em PowerPoint, para que, se algo corresse menos bem, por parte
dos alunos na
execução da tarefa, fosse ela a projetar e explicar a correção, para que todos
pudessem corrigir
o trabalho.
Enfim! Acredita-se que ficou clara a metodologia a adotar no ensino de conteúdos
que
exijam um conjunto de tarefas procedimentais, como é o caso de cálculos
matemáticos; é que
a metodologia não é diferente no caso do trabalho com outros conteúdos que à
partida serão
sensíveis, como os acima mencionados.
No caso da exploração de textos, o professor cego é completamente autónomo,
tendo
acesso à informação neles constante, sem que tenha de proceder a qualquer tipo
de adaptação,
nem o recurso a terceiros.
Relativamente à vigilância e correção de testes e outros trabalhos escritos, que
de resto
constituem a curiosidade maior de alunos e professores, Tomás (Workshop, 2014)
referiu que
se socorria de colegas e amigos para vigiar as turmas, e, como nunca teve
dificuldade em
fazer amizades, socorria-se destas para o ajudarem na leitura das respostas dos
estudantes,
cuja avaliação do conteúdo era da sua responsabilidade.
Certa de que a avaliação também é uma importante função do trabalho docente, a
autora terá, tal como Tomás e os demais professores deficientes visuais, no
futuro, socorrer-se
da boa vontade de amigos ou, em pior situação, ter de pagar, para que lhe leiam
as respostas
de testes e outras fichas que venha a utilizar; são as contingências a que se
obriga o professor
cego que, não baixando os braços, movido pelo gosto de ensinar, tem que passar
por todas as
provas aqui referidas, acrescidas, não raras vezes, de elevados custos
monetários.
Espera-se que esta situação se ultrapasse, assim haja vontade e estejam reunidas
as
condições necessárias para que o professor cego, aquando da realização de
testes, fichas ou
outros trabalhos, possa contar com a disponibilidade de uma sala de informática,
onde os
alunos possam realizar os trabalhos em suporte digital, evitando desta forma o
recurso a
terceira pessoa para o que quer que seja.
2.4 A Relação Professor/Aluno: Uma Convivência de Respeito
Para além das responsabilidades inerentes à prática profissional de docência,
importa discorrer, de que forma o contacto entre um professor com deficiência
visual
contribui para a formação dos discentes.
Assumindo a posição de «professor», a pessoa com deficiência, tal como os
demais,
ocupa um papel de referência; todas as suas atitudes despertam, por vezes,
curiosidades, e
provocam efeitos significativos nos alunos que, com o tempo, percebem as
diferenças como
algo natural, passando a respeitar os limites, reconhecendo a luta e o esforço
do docente para
ver os seus direitos respeitados e, por fim, acabam por compreender que a
deficiência não é
um impedimento à aquisição e transmissão do saber. Tal consciência contribui
para a
formação dos jovens, inseridos numa sociedade que se pretende seja mais justa e
inclusiva; é
que um espaço inclusivo não é aquele em que convivemos com os iguais, mas aquele
que
possibilita ser transformado a cada instante e se torne um ambiente melhor para
todos. Porém,
a autora tem consciência de que só se conseguirá ter um ambiente de respeito e
de entreajuda,
se desde o início for explicada aos alunos a realidade, as dificuldades e as
necessidades
específicas do professor cego, para que no futuro não existam surpresas, e se
saiba como é
que tudo funciona. Esta sempre foi a sua filosofia de vida.
À semelhança de experiências anteriores, também este ano de iniciação à prática
profissional não foi diferente. Logo no primeiro contacto com as turmas, quis
saber o que os
alunos sabiam sobre o que é uma pessoa com deficiência visual, verificando com
agrado que
todos, ou quase todos tinham uma noção desta realidade.
Esclarecidas as dúvidas sobre o assunto, era a hora de lhes explicar como é que,
como professora quase cega, iria proceder durante as suas aulas. Começou por
lhes explicar
que não iria escrever no quadro, pois tudo o que precisasse escrever, fazia-o no
computador e
seria de imediato projetado. Informou-os de que como não via, precisaria de usar
um software
de voz no computador (algo que todos, ou quase todos, já sabiam o que era), e
para que não
incomodasse ninguém, iria utilizar um auricular para lhe «segredar» ao ouvido o
que estava a
ser projetado, enquanto eles poderiam acompanhar a projeção recorrendo à visão.
Ultrapassada a barreira do impacto da diferença (é sempre uma situação bastante
constrangedora, com receio da reação dos alunos), outros desafios se colocam. É
o caso da
supervisão do trabalho desenvolvido pelos discentes em sala de aula.
No que diz respeito a esta dificuldade, os alunos sempre foram muito recetivos.
Uma
vez entendidas as dificuldades do professor, os alunos nunca demonstraram
qualquer
contrariedade em colaborar consigo.
Ilustrando a sensibilidade dos estudantes, registam-se alguns exemplos desta
realidade vivenciada pela autora ao longo do ano.
Certa vez, logo no início das aulas, uma jovem da turma do 9.º ano chamou-a, e
ela
lá se aproximou com algum receio por não conseguir antever a questão.
- “Ora diz”.
- “Oh stôra, tem aqui na ficha duas imagens, a da figura A, é um rapazito
muito gordo, e a da figura B, é a de um rapazito esquelético. E a pergunta é
a seguinte: (…) “Eu não consigo perceber o que é para fazer”.
A autora ficou agradavelmente surpreendida com a postura da jovem. Sem que lhe
dissesse o que quer que fosse, teve o cuidado, por iniciativa própria, de fazer
o que deveria ser
feito, ou seja, a descrição da questão com o maior cuidado.
Sem qualquer dificuldade, lá lhe explicou o que ali se pretendia.
Um outro exemplo, aconteceu numa das suas turmas do 7.º ano. Um rapaz chamou-a,
e, apontando com o bico do lápis para a folha de papel, lá a questionou:
- “Stôra, eu não consigo perceber esta pergunta”.
Ela lá olhava para a mesa do aluno, mas sem ver o papel, pois não contrastava em
nada com o
branco da mesa, apenas via o vulto do lápis apontando em determinada direção.
Mas, sem que
o miúdo se apercebesse da situação e da dificuldade que sentiu, disse-lhe:
- “Ora bem, se não te importas, podes ler a questão?"
E o jovem leu. Esclarecidas as dúvidas, lá se afastou dali, girando pela sala
tirando
esta ou aquela dúvida. E de resto, o procedimento que tem adotado tem sido
sempre este: quando os alunos a questionam sobre situações que se reportam à
análise ou interpretação de
recursos visuais, pede-lhes para que os descrevam, pois é uma forma de a ajudar,
enquanto os
ajuda a entender melhor o que se pede. Já nas questões sem recurso a imagens,
pede sempre
para que os alunos lhe leiam a questão em voz alta; é que este é um exercício
que ajuda a
todos, pois quando se lê em voz alta, o normal é perceber melhor o que se pede.
Contudo,
apesar de ter adotado estratégias tendentes à resolução destas dificuldades, o
certo é que se
sente sempre desconfortável na hora de circular pela sala, olhando para os
alunos a escrever
nos cadernos, fazendo de conta que está a ver alguma coisa! Mas confessa que nem
sabe
como há-de dar a volta a situação, pois acredita e reconhece que é
importantíssimo que o
professor vigie e supervisione os alunos na realização das tarefas,
principalmente numa
disciplina tão procedimental como é o caso da Geografia. Sente que neste
particular, por mais
experiência que venha a adquirir, e por mais compreensão e respeito que haja por
parte dos
alunos, nunca se há-de sentir plenamente à vontade!
Quanto à diretividade das questões, é de realçar que no início do ano, é uma
dificuldade que todos os professores sentem, mas em particular o professor cego,
pois para
além de não ter presente o reconhecimento da voz de cada estudante, também ainda
não
adquiriu uma noção espacial da localização de cada um na sala. Estas são
situações que se
esbatem completamente ao fim de algum tempo.
Como disse Tomás (Workshop, 2014), referindo-se à gestão e controlo da sala de
aula,
em alguns casos, as estratégias não são diferentes das utilizadas pelos
restantes professores
(utilização de plantas de sala) salientando o facto de, como professor cego, ter
necessidade de
ter muito presente a localização de cada discente. Este controlo posicional pelo
reconhecimento da voz, que só se adquire após algum tempo de convivência,
permitem-lhe
controlar a atenção dos alunos pelas solicitações indiferenciadas que faz, as
quais lhe
permitem confirmar a localização espacial dos alunos, bem como a sua atenção na
aula.
À semelhança dos demais professores privados do sentido da visão, também para a
autora, no início da prática docente, a diretividade das questões foi assumida
como um ponto
fraco; é que, nesse momento, era-lhe ainda extremamente difícil apelar à
participação deste ou
daquele menino ou menina, pois ainda não sabia o nome deles (coisa que qualquer
professor
resolve, solicitando aos estudantes a colocação do nome sobre a mesa), e como
também não
os conseguia ver, nunca sabia se apontando com o dedo se estaria a solicitar
alguém ou a
apontar para o vazio! Exemplo disso foi o que lhe aconteceu numa das primeiras
aulas que
lecionou, deixando-a extremamente embaraçada. Tentando ser diretiva, apontou o
dedo para
uma mesa onde via dois vultos, os quais não sabia se eram meninos ou meninas, e
disse: “responde tu!”, mas como possivelmente não estava a apontar para um
especificamente, os
alunos ficaram calados sem saber qual dos dois iria responder.
A sua orientadora, apercebendo-se da situação, disse: “responda um de vocês!”
Nesse
momento, teve a noção de que tinha procedido menos bem, expondo a sua situação
de pessoa
cega, que, mesmo sabendo que terá de conviver com ela, é algo que, neste
momento, a magoa
imenso, talvez por estar a passar, neste último ano, por uma perda relâmpago da
visão,
situação que a deixa muito fragilizada; é que, muitas vezes, sente que
emocionalmente não
está a ser capaz de lidar com tal perda.
Na tentativa de solucionar o problema, enquanto não conseguiu memorizar a
localização dos alunos na sala e reconhecê-los pela voz, optou, em vez de
apontar ou de os
chamar pelo nome, solicitá-los pelo seu número de aluno na turma.
Numa aula, para além da relevância das questões direcionadas, a autora entende
que
também deverá haver lugar para as questões colocadas à turma em geral, dando aos
alunos a
oportunidade de serem voluntários na participação. Neste sentido, sempre optou
por equilibrar
os «dois pratos da balança», colocando, por várias vezes, questões ao
grupo-turma. Mas
também foi aqui que residiu um dos seus pontos fracos; é que ao voluntariarem-se
para
participar, nem sempre conseguia localizar ou direcionar de imediato o olhar
para quem pedia
a vez para falar, pois por vezes os alunos até levantavam o dedo, mas não os
conseguia ver.
Exemplo disto foi o que aconteceu numa aula lecionada ao 7.º ano. Após a
colocação de uma
questão à turma, um aluno levantou o dedo para responder, mas ela não se
apercebeu. Porém,
de imediato o colega do lado alertou-o:
- “Oh pá, tens de falar! Não vês que a stôra não vê!"
É claro que o jovem estava coberto de razão, mas o outro estava corretíssimo,
isto se o
professor não fosse cego!
Para além das dificuldades já referidas e de algumas estratégias para as
ultrapassar, a
autora não poderá deixar de realçar a barreira do reconhecimento da escola, e em
especial do
espaço das salas de aula. Logo no início do ano, assumindo a sua função de
professora, lá
vagueava, de um lado para o outro, por entre carteiras e mesas, tentando
«disfarçar» o
nervosismo em virtude da falta de visão; é que como já não vê mais que vultos, o
medo de
tropeçar em algum obstáculo era imenso! Esta dificuldade esbateu-se logo nos
primeiros dias,
pois o reconhecimento da escola e do espaço das salas de aula foram tarefa
fácil.
Pelo exposto, espera-se ter conseguido explicar a forma como um professor
privado do
sentido da visão é capaz de encontrar as estratégias adequadas ao exercício da
função docente,
os «sacrifícios» e constrangimentos a que se está sujeito, que, se encarados com
normalidade, quer pelo professor, quer pelos alunos, são motivo de gracejo e
compreensão, mas, se pelo
contrário, porque não foram equacionadas e explicadas aos alunos as razões dessa
possibilidade, jamais serão compreendidos e desculpáveis, o que constitui uma
dificuldade
acrescida na aceitação do professor.
Uma vez compreendidas as limitações próprias da falta de visão, acaba por se
estabelecer uma grande empatia entre alunos e professor, o que muito contribui
para o
exercício pleno da função docente, pelo que, assim conseguimos ser transparentes
e capazes
de assumir as dificuldades/limitações impostas pela deficiência, e esta tarefa
fica mais fácil.
Claro está que é sempre de ter em conta a necessidade de adaptação de materiais,
correção de
testes ou outros trabalhos com a colaboração de terceiros, mas, embora com
sacrifício pessoal
acrescido, a deficiência visual não impede, de todo, o ato de educar, formar e
ensinar, fim
último da função docente.
FIM
ϟ
O texto 'A FUNÇÃO DOCENTE E O PROFESSOR COM DEFICIÊNCIA
VISUAL'
é um excerto de:
"O Professor com Deficiência Visual no Ensino da História e Geografia: questões
em torno da sua adaptação e sucesso profissional"
autora: Elisabete Marcelino Domingos
Relatório realizado no âmbito do Mestrado em Ensino de História e Geografia no
3.ºciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário, orientada pela Professora Doutora
Elsa
Maria Teixeira Pacheco
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