imagem:
Cegos -
fotografia de Robert Capa, 1950
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RESUMO | Os aspectos depressivos nos sujeitos com incapacidades
físicas adquiridas assumem-se como fundamentais
no processo geral de reabilitação. Neste trabalho o
autor aborda esta temática através da análise de um caso
clínico, onde expõe aspectos teórico-técnico inerentes.
1. SOBRE O PENSAR
Presume-se que o pensar se associa à história
genética do indivíduo, subordinando-se à própria
actividade muscular e, portanto, primária, com
um fim dominado pelo prazer.
Podemos considerar o pensar como um processo
que depende do resultado bem sucedido de
dois desenvolvimentos mentais básicos: a progressão
de pensamentos; e um segundo desenvolvimento,
que é o do aparelho que toma em si
esses pensamentos, e que denominamos pensar.
Em ambas as fases se podem desenrolar componentes
perturbadores: podem estar associados
a um colapso no desenvolvimento de pensamentos
ou no próprio aparelho para pensar ou
lidar com os pensamentos. Ou ainda, em ambos
os processos.
Em «Os dois princípios do funcionamento
mental», Freud revelava-nos que a predominância
do princípio da realidade é sincrónica ao desenvolvimento
de uma capacidade para pensar.
Desta forma podemos perceber que a capacidade
para tolerar a frustração é que capacita a psíque a
desenvolver pensamentos como um meio de tornar
a frustração tolerada ainda mais tolerável.
Temos então que a criação de um pensamento
torna necessário o desenvolvimento de um aparelho
para pensá-lo, e o pensamento é definido,
por esta linha de ideias como a aptidão de construir
a ligação sobre o abismo da frustração instalada
entre o momento em que uma falta é sentida
e a ocasião em que a acção apropriada para
satisfazer a falta culmina pela satisfação desta.
A união da pré-concepção com a realização
negativa desenvolve algo que recebeu o nome de
«mau objecto», que se procura evacuar através
do mecanismo de Identificação Projectiva descrito
por Melanie Klein. A frustração e o sofrimento
podem ser evitados pela expulsão da frustração
e de um fragmento associado ao ego.
Consequentemente, o desenvolvimento de um
aparelho para pensar fica perturbado e, ao contrário,
dá-se o desenvolvimento hiperatrofiado
do mecanismo de Identificação Projectiva.
Em virtude disso, o que é considerado como
instrumento adequado não é um aparelho para
pensar os pensamentos, mas um aparelho para
livrar a psíque do excesso de objectos internos
maus.
«O ponto crucial está na decisão entre modificação
e fuga da frustração» (Bion, 1963).
Esta falha pode ser grave porque, em adição às faltas óbvias que se seguem à
incapacidade de
aprender com a experiência, há a necessidade de
perceber a experiência emocional.
E a falta de tal percepção implica estar privado
da verdade, que surge como essencial à saúde
psíquica.
O problema parece simplificado por Bion,
quando considera os pensamentos como epistemologicamente
anteriores à capacidade de os
pensar, e que o pensar se desenvolve como aparelho
para lidar com os pensamentos.
Se é este o caso, então, quase tudo vai depender
de se evitar ou de se transformar num verdadeira
acção reabilitadora ou de se usar os pensamentos
como parte da tentativa de evitar ou
modificar algo mais.
Apercebeme-nos então de que a Verdade é essencial
para o crescimento mental.
Sem ela, o aparelho psíquico não se desenvolve.
Morre como que por falta do indispensável
para se poder desenvolver.
A personalidade, desde o início da vida, tem
um contacto com a realidade que percepciona e
sente.
Se a realização não se aproxima de um modo
satisfatório da concepção, o sentimento de frustração
resulta como um mal estar generalizado.
Quando a frustração pode ser tolerada, a associação
de concepções e realizações, sejam negativas
ou positivas, dá início a procedimentos necessários
para aprender com a experiência.
Se a intolerância à frustração não é excessiva
a ponto de activar os mecanismos de fuga, mas
tiver uma intensidade que impeça suportar o predomínio
do princípio da realidade, a personalidade
desenvolve a omnipotência como um substituto
da associação da percepção, ou concepção,
com a realização negativa, procurando substituir
este processo pelo de aprender com a experiência
através da ajuda dos pensamentos e do aparelho
para os pensar.
Desta forma, parece não haver actividade psíquica
que discrimine entre o verdadeiro e o falso.
Esta diferenciação é substituída por uma espécie
de elemento ditatorial de que uma coisa é
moralmente correcta e a outra é errada.
Com isto, nega a realidade e a dor que aí encontra.
Se a capacidade para tolerar a frustração não é
suficiente, o mau objecto interno, que uma personalidade
capaz termina por reconhecer como
um pensamento, confronta a psíque com a necessidade
de decidir entre fugir da frustração ou
modificá-la.
Se a incapacidade para tolerar a frustração
predomina, inclinamo-nos para a fuga a essa realidade
frustrante, ou, ao invés quando isso não é
possível, proceder a ataques destrutivos.
A capacidade do indivíduo para harmonizar a
sua fantasia omnipotente da Identificação Projectiva
com a realidade relaciona-se, então, directamente
com a sua capacidade de tolerar a
frustração.
Se não consegue tolerá-la, a fantasia omnipotente
de Identificação Projectiva apresenta, proporcionalmente,
um equivalente factual menor
na realidade externa.
Experimenta-se um sentido de verdade quando
as concepções encontram uma realização satisfatória
e estável, tornando-se desejável que se
dê expressão a este sentido, numa afirmação análoga
a um enunciado funcional da verdade.
O fracasso em realizar esta conjunção conduz
a um estado mental de debilidade, como se a
inanição por falta de verdade fosse de algum modo
análoga à inanição alimentar.
2. SOBRE QUEM PENSA
Se surgem ou não, os pensamentos têm importância
apenas para o pensador, e não para a verdade. A
não-verdade, faceta da verdade e não o
seu antídoto, depende também ela do pensador, e
através dele adquire significação.
Em psicoterapia, o paciente temendo sofrer
afigura-se compelido a livrar-se da eficácia terapêutica,
prosseguindo compulsivamente e rejeitando
as interpretações que lhe ameaçam a defesa,
ostentando convicção nos seus posicionamentos,
preservando, no seu entender, o equilíbrio
mental contra o impacto da verdade.
Alguns mesmo, não obstante darem-se conta
dos riscos que correm, sacrificam a vida sustentando
certezas.
Sabemos no entanto que para o pensador não
importa para a verdade; ao passo que a verdade
lhe é logicamente indispensável.
A não-verdade depende epistemologicamente
do ímpeto da ansiedade do pensador. O pensar
do pensador torna-se absolutamente indispensável. Para produzir mentiras e
falsidades é necessário
o pensador.
O pensamento e o pensador encontram-se numa
simbiose, modificando-se mutuamente. O
pensamento prolifera e o pensador desenvolve-se.
Num relacionamento parasítico entre o pensamento
e o pensador existe uma correspondência,
significando que, embora se saiba que a formulação
é falsa, procura-se retê-la como uma
barreira contra a verdade, temida como destruidora.
2.1. Da dor depressiva na reabilitação da incapacidade
física adquirida
As particularidades de uma qualquer incapacidade
crónica podem fazer realçar aspectos
diversos, dependendo da sua gravidade e prognóstico
e consequências no grau de satisfação
pessoal. Esta nova situação é capaz de provocar
uma regressão afectiva e necessidades novas de
segurança e protecção, acrescidas de ansiedades
destruturantes.
As percas de capacidades significam essencialmente,
e a um nível fundamental, «percas»
de aspectos do próprio ego, destruturando os relacionamentos
a múltiplos níveis.
Um acontecimento, como uma doença por
exemplo, mesmo que insignificante clinicamente
e sem repercussões de relevo, pode causar um
sofrimento por vezes brutal. Este fenómeno resulta
de conflitos psíquicos envolvendo dimensões
como a percepção do self, auto-estima, a capacidade
de lidar com as perdas (físicas, funcionais
ou outras) e a percepção dos processos relacionais.
O sofrimento não se limita à dor física,
decorrendo da violação da integridade da própria
pessoa (Langer, 1994) como um todo, e não somente
da agressão ao corpo ou às funções por si
usualmente desempenhadas.
Muitos aspectos da situação de doença, de
perca de funcionalidade, e do tratamento podem
ser profundamente desumanas. Na fase inicial, a
consciencialização das incapacidades e desvantagens
podem ser extraordinariamente desintegradoras
ao sentido de unidade do self, capaz de alterar
as relações entre o corpo, o ego e os outros.
A situação de incapacidade adquirida pode
desafiar alguns dos pressupostos básicos sobre o
próprio sujeito e o mundo em geral. Os aspectos
psicológicos envolvidos podem ser múltiplos,
capazes no seu extremo de desencadear reacções
verdadeiramente catastróficas. As percas inerentes
à deficiência, independentemente da sua
maior ou menor gravidade, de físicas, cognitivas
ou simbólicas podem originar respostas emocionais
mais ou menos previsíveis, certamente sujeitas
a uma importante variabilidade individual
(e, por isso, sempre imprevisíveis na sua globalidade).
Factores como funcionamento psicodinâmico,
aspectos culturais, recursos sociais e
materiais, fases do ciclo de vida e história pessoal
prévia, são aqueles mais vulgarmente apontados
como capazes de influenciar a experiência
de incapacidade.
A compreensão destes fenómenos, em que lidar
com as perdas é algo central, remete-nos
obrigatoriamente para a obra de Sigmund Freud.
Em «Luto e melancolia», Freud, referindo-se a
um objecto de amor, debateu-se com os processos
intrapsíquicos que permitem a uma pessoa
superar uma experiência de perda, possibilitando-nos
perceber o processo de luto aplicado à
perda de parte do corpo: negação, aceitação gradual,
depressão e progressivo desinvestimento
em relação ao objecto e reinvestimento da líbido
em novo objecto, são de uma forma geral, os
principais mecanismos descritos pormenorizadamente
na sua obra.
Por outro lado, sabemos que a incapacidade
física adquirida coloca grandes exigências à
mente. As defesas do ego são potencialmente
úteis em prevenir uma manifestação exagerada
de ansiedade, aparecem outros mecanismos de
defesa: negação, repressão, projecção, formação
reactiva e regressão, por exemplo.
Podemos igualmente perceber uma incapacidade
física adquirida como uma falha narcísica
profunda. Através do conceito de narcisismo e
de auto-imagem, pode-se entender o desenvolvimento
da identidade como um compósito do self
psicológico e somático, os quais apresentam
enraizadas significações arcaicas. Danos físicos
podem então ocasionar distúrbios emocionais,
perda de identidade e baixa de auto-estima.
A intervenção psicoterapêutica considerou-se,
primeiro, como algo semelhante à acção médica.
Mas o seu desenvolvimento revelou-se no entanto
diferente da medicina.
O que de modo claro revela essa diferença é
depender o médico da realização da experiência sensível, em confronto com a do
psicoterapeuta,
que se baseia na experiência suprasensível.
A dor, no contexto médico, pode ser definida
como um conceito abstracto referente à sensação
pessoal, privada, de um sentimento de mal estar
perante um estímulo nocivo que desencadeia
uma reacção fisiológica, com um padrão de resposta
destinada a proteger o organismo contra
uma possível agressão.
Estas respostas podem ser descriminadas e
descritas em diferentes aproximações conceptuais:
neurológica, fisiológica, comportamental, etc.
A Associação Internacional para o estudo da
dor, reformulando uma definição já proposta
por Mesrskey e Spear em 1967 (in Melzak,
1982), estabeleceu que a dor é uma sensação desagradável
ou uma experiência emocional que é
associada a uma reacção do tecido nervoso, sendo
descrita em termos dessa mesma reacção.
O que se pressupõe é que a relação entre a dor
e a lesão parece tão evidente que, geralmente, se
acredita que a dor é sempre o resultado de uma
destruição física, e que a sua intensidade é proporcional
à severidade da lesão.
Acontece, porém, que a lesão pode ocorrer
sem dor, e a dor sem lesão, tornando altamente
variável a relação entre as duas, como aliás o
comprovam diversos estudos (Melzack, 1982).
Perante a queixa de dores, surge quase como
inevitável a pergunta «onde dói?» capaz de orientar
o clínico para uma região ou sistema funcional.
Perguntar «o que dói?», ou o que aconteceu
possibilita já alguma abertura para o revelar
de um outro sofrimento.
Pensamos que o que ultrapassa provavelmente
o modelo médico e holístico na problemática da
dor em que a capacidade de escutar se resume no
essencial para a prescrição possível, é a incapacidade
para se relacionar e empatizar, que transpõe
as eventuais lesões orgânicas, e justifica a
eficácia da administração de um placebo.
Ocorre, essencialmente, quando acontece movimento
num precário equilíbrio mental, que
Bion caracterizou como o sentimento de estar
atolado entre a posição esquizo-paranóide e a
depressiva como Melanie Klein as desenvolveu.
Esta dor é experienciada como fisicamente localizada
no corpo, mas contudo, de modo bastante
definido, sentido como sofrimento psíquico:
situa-se na linha fronteiriça entre o físico e o
mental.
Este sofrimento não possui uma clareza que
permita ao indivíduo perceber culpa, preocupação
ou sentimento de perca.
Bion discrimina sofrimento doloroso inevitável
de uma dor desnecessária. A intenção de conhecer,
por exemplo num tratamento psicanalítico,
implica um sentimento doloroso que é inerente
à própria experiência emocional do conhecimento.
A dor não pode estar ausente da personalidade
do indivíduo.
De uma maneira análoga ao que sucede na
medicina, o desaparecimento da sensibilidade à
dor é desastroso em qualquer circunstância.
O sujeito tende frequentemente a evitar a dor
em vez de a procurar modificar, para a tolerar.
Este procedimento pode mesmo, em casos extremos,
colocar em perigo o contacto com a
realidade.
O progresso numa intervenção psicoterapêutica,
nas palavras de Grinberg (1973) «é inseparável
da necessidade de tolerar as concomitâncias
dolorosas do crescimento mental».
Dentro destas diferentes perspectivas respeitantes
à concepção da dor, percebemos que os
progressos, sem dúvida notáveis, que se conheceram
na fisiologia sensorial e na psicofisiologia
no decurso deste século, previligiaram a concepção
da dor como uma sensação e relegaram para
lugar secundário o papel dos afectos.
Hoje, no entanto, a dor trata-se mais de uma
experiência eminentemente pessoal que depende
da aprendizagem cultural e dos significados atribuídos
às situações e também de outros factores
essencialmente individuais.
Vemo-nos então, impelidos a acrescentar adjectivos
qualificativos à dor, tal como com o prazer.
O que merece actualmente destaque é o que
diz sobretudo respeito a experiências concretas e
infindáveis classificações aferidas de qualquer
emoção ou afecto.
As referências à dor sem nome, dor orgânica,
psicogénica, física e mental, dor especifica, localizada
no corpo, resultantes de uma ocorrência,
servem para apaziguar qualquer angústia ou medo
da dor.
Tudo se vai dispondo no amplo e vago sistema
de «verdades» científicas que pretendem garantir
o acesso ao prazer último e à felicidade.
Na concepção psicanalítica, Freud procurou a
origem daquilo a que chamou «Defesa Primria», que seria o embrião destas
reacções de defesa,
numa vivência de dor.
Num plano mental, esta linha de pensamento
demostra que, como resultado de uma experiência
de sofrimento psíquico particular, os indivíduos
constroem mecanismos para ultrapassar
este sentimento doloroso.
Os mecanismos primitivos de defesa alinhamse,
de facto, contra ansiedades que derivam da
actividade da pulsão de morte. Podem abrangem
fundamentalmente a negação, a clivagem, as
projecções e introjecções ditas excessivas e ainda
a idealização.
A defesa, em última análise, consiste num
processo que impede o reconhecimento da realidade
de uma percepção traumatizante.
Uma das suas características talvez mais importante
é a qualidade da omnipotência subjacente,
que pode provocar alterações de vulto na
estrutura da mente e da personalidade.
Estes mecanismos acham-se ligados a um
funcionamento de fantasias primitivas e inconsciente
que negam ou transformam a percepção
dos conteúdos do self ou do mundo externo.
Acompanhando de perto os mecanismos
omnipotentes, podemos falar nas defesas maníacas
que, na realidade, não são mais que uma colecção
de defesas que envolvem: a negação da
realidade psíquica e, portanto, da importância
dos objectos que são amados e incorporados; um
desprezo denegridor pelos objectos que são amados,
de maneira a que a sua perca não seja experienciada
como importante; e um forma triunfante
e omnipotente de corrigir tudo.
Todas elas são meios de minimizar os sentimentos
de perda e culpa.
Central à defesa maníaca está a ideia omnipotente
de que os relacionamentos não são de grande
importância.O ego diz para si mesmo que o objecto
amado, que é sentido como morto ou danificado
não é realmente de grande importância.
E ele, todo poderoso, pode sair-se perfeitamente
bem sem depender de ninguém.
Mais tarde, até mesmo tensões normais podem
provocar a fantasia desdenhosa de que, de
qualquer maneira, o objecto não vale a pena que
por ele se tenha preocupação.
O desdém e a depreciação, porém, são defesas
maníacas contra a gravidade da angústia e ajudam
o sujeito a sentir-se menos desamparado e
dependente dos seus importantes objectos bons,
que lhe aparecem como danificados, e fazem vir
à tona uma pesada responsabilidade.
Paralelamente encontramos uma idealização do
objecto bom, de maneira que ele possa ser mantido
tão distante quanto possível do objecto mau e
perseguidor e, assim, evitar confundirem-se.
Este processo combina-se com a negação,
que por sua vez é submetido ao mecanismo
omnipotente: é a negação omnipotente que pode
fazer desaparecer completamente as realidades
incomodativas.
No inconsciente, este processo é equivalente à
aniquilação de todo o relacionamento objectal
perturbador, de maneira que envolve a negação
não apenas do objecto mau, mas também de uma
parte importante do ego, que está em relação
com o objecto.
A omnipotência funciona assim como uma
«espécie de manta mental que ajuda a lidar com
a tensão psíquica, permitindo adiar ou suspender
a consciência, significada aqui como impacto e
significância dos acontecimentos» (C. Amaral
Dias, 1988).
Um dos problemas associados é a impossibilidade
do objecto ideal permanecer perfeito.
Qualquer imperfeição que ocorra (uma sensação
de dor ou frustração) conduz a uma mudança
abrupta para um objecto mau.
Esta imensa precaridade só diminui quando há
uma aproximação da posição depressiva e se desenvolve
uma certa tolerância de um objecto
bom que não é o ideal.
Estes estados de sofrimento podem originar
uma necessidade de se livrar das complicações
emocionais da percepção da vida e da relação com
os objectos vivos, fazendo prevalecer a ingratidão
e o desinteresse pelos outros e pelo próprio.
Implica consequentemente um aniquilamento
da preocupação com a verdade.
Uma vez que estes mecanismos não conseguem
livrar o indivíduo dos sofrimentos que sente,
o seu empenho em curar-se assume a forma
de procura de objecto perdido e termina numa
subordinação crescente à comodidade material.
A experiência emocional que se considera
penosa inicia uma tentativa, seja de fugir ou de
modificar o sofrimento, segundo a capacidade da
personalidade de tolerar a frustração.
Mas há indivíduos que sendo tão intolerantes
ao sofrimento ou à frustração, podem sentir o sofrimento sem sofrê-lo e assim
não o descobrem,
embora o manifestem.
3. A HISTÓRIA DE ADRIANO
Adriano foi vítima de um Acidente Vascular
Cerebral (AVC) há cerca de 3 meses. Tem 37
anos. É bem constituído, moreno de cara arredondada,
com boa aparência apesar das sequelas
físicas evidentes.
Chega de cadeira de rodas, vestido com roupas
de marca, próprio de alguém de um estrato
social médio-alto.
Os membros inferior e superior do lado esquerdo
não têm qualquer acção.
Mesmo nas condições em que se encontra tem
um ar decidido e confiante, próprio de quem tem
completo domínio da situação. Postura que parece
adequada ao estilo de vida de um empresário,
economista que é.
Os seus pais, já reformados, são originários
de uma classe social um pouco mais humilde,
mas sem grandes restrições.
Ele é o irmão mais velho, «quase filho único»
como realça, de dois gémeos que são 9 anos
mais novos.
Tendo casado há 8 anos com uma mulher 13
anos mais nova, separou-se há cerca de um
ano, por «ela ser imatura» nas suas palavras, e
não cuidar do marido.
Encontra-se actualmente casado com outra
mulher, 9 anos mais nova, e de quem espera um
filho.
O primeiro contacto foi somente para proceder
a uma avaliação de diversas capacidades
cognitivas, sem qualquer fim psicoterapêutico.
É o próprio que passados alguns dias solicita
uma consulta. Diz então que ficou impressionado
por o psicólogo ter comentado a sua distracção.
Que acha que até é distraído, mas que não
é fácil perceber.
Queixa-se das falhas de memória, e de embrulhar
as palavras. Por vezes pensa que gosta
demasiado de se arriscar, e que depois do AVC
esse pensamento lhe vem à cabeça.
Usa habitualmente expressão «avançar até
aos limites» para se caracterizar.
Viveu com os pais até casar, sendo uma «espécie
de pai» para com os irmãos gémeos mais
novos.
Foi sempre um excelente aluno, sendo conhecido
por ter capacidades de memorização extraordinárias
e por conseguir conjugar a «boa vida» com os estudos: «sempre gostei de desafios»,
comenta.
Tem tido igualmente uma carreira profissional
de sucesso, tendo no momento a cargo um grande
projecto industrial, que não sabe se irá ou
não vender.
Pensa que os sócios não são capazes de continuar
o que ele criou.
Para ele tudo funcionou até aqui a «200
km/h» – os estudos, o emprego, os tempos livres
e a própria vida sentimental.
Salienta que o AVC ocorreu quando percorria
os 6 Km de corrida semanais que costumava
fazer, independentemente do muito ou pouco
trabalho em mãos.
Quando o psicoterapeuta fala em sentimentos
e no que ele poderá estar a sentir, ri-se, simultaneamente
com desprezo «(psicólogos é para os
malucos)», mas prestando sempre muita atenção,
pedindo para repetir, achando que nunca
ligou a «essas partes», mas que sente necessidade
de se conhecer.
Todo o seu discurso é de uma racionalização
exacerbada.
Após algumas consultas, não retoma o seguimento
regular. Quando está em presença do terapeuta,
ou de funcionários do serviço, pede
sempre espontaneamente para marcar nova consulta,
porque acha que precisa, mas frequentemente
falta.
Diz que nunca duvidou das suas potencialidades
de recuperação física. Mesmo quando o
tratamento fisiátrico termina, deixando-o com
sequelas relevantes (na marcha, na postura e
força muscular).
Afirma sempre acreditar que ainda vai provar
que vai melhorar muito, com um ar muito convicto,
mas sem estar sentido com a equipa hospitalar
que colocou um término na reabilitação.
Não aceita pôr em dúvida questões sobre o
impacto que a sua doença poderá ter no relacionamento
com a esposa.
Mas sabemos, no entanto, que a mesma pede
apoio emocional a terceiros, sem o conhecimento
dele.
Todo o seu discurso é sempre remetido para
os assuntos referentes aos outros (estado de saúde da esposa ou filha que irá
nascer) e principalmente
à empresa.
Os assuntos que aborda são invariavelmente
economicistas, independentemente do pessoal
que com ele se encontra, ou da situação, facto
que é comentado pela equipa de tratamento.
Os projectos empresariais prendem-se com
questões melindrosas com os sócios, a quem
chama de incompetentes frequentemente, e que
acusa tentarem aproveitar-se da situação do
seu internamento.
Todos os assuntos pessoais são reduzidos unicamente
à situação profissional.
Toda e qualquer discussão referentes ao seu
estado de saúde e processo de reabilitação, ao
relacionamento familiar e social é bloqueado
por um «isso não é problema», retomando constantemente
o tema empresarial.
Toda a história da vida de Adriano, pré-acontecimento
traumático (leia-se, antes da ocorrência
do Acidente Vascular Cerebral), é descrito
fundamentalmente tendo em conta duas perspectivas:
uma tendencialmente omnipotente, que
se julga capaz de vencer em múltiplas frentes a
enfrentar na vida (nos estudos, na profissão, no
companheirismo, nas relações sentimentais e
até nas farras); e outra, que implica já a primeira
que consiste no estabelecimento de relações de
rivalidade e de luta («ir aos limites das questões»;
gosto por desafios e fascínio pelas situações
de risco), que certamente o têm auxiliado,
até ver, na sua brilhante carreira profissional.
A sua presente e descabida obsessão pelo
mundo empresarial, onde estas duas vertentes se
manifestam (como aliás não poderia deixar de
ser), leva-o a adoptar atitudes de desdém e julgamento
sobre as competências dos sócios, desconfiando
permanentemente das intenções destes
para consigo, receando que possam tirar proveito,
não de uma visível debilidade, mas sim pelo
facto de estar afastado por hospitalização.
Este voltar-se para a fábrica, quase como se
esquecendo do seu estado de saúde, parece ser
mais uma forma de negar um sentimento de
perca (das suas capacidades, mentais e físicas),
facto por si nunca aceite anteriormente em situações
inegáveis (atente-se no desprezo e desvalorização
pela primeira mulher após ter sido abandonado).
Os acontecimentos ocorridos (AVC) certamente
são causadores de um sofrimento extremo
e incompreensível para si, originado por uma
realidade que sente não estar preparado para tolerar.
O seu funcionamento mental revela uma racionalização
quase absurda, desprezando os estados
emocionais.
A ambivalência gerada (racionalizar a emoção
e a percepção de sentir algo) é o que lhe permite
simultaneamente rir-se das palavras do psicoterapeuta
e demonstrar uma grande preocupação
em retê-las na memória. Reter também na procura
talvez de adquirir um «esquema mental
mágico», capaz de o organizar, roubando por assim
dizer essa capacidade que advinha no psicoterapeuta.Falta
às consultas, mas clama sempre
para o marcar «porque precisa»; como uma parte
de si desejasse pensar sobre si, o que outra prefere
negligenciar.Em última análise, procura por
todos os recursos de que dispõe, negar o sofrimento,
desprezando inclusivé o corpo, preferindo
não comentar esses assuntos, por não os considerar
verdadeiros problemas, de maneira a que
os danos e percas não sejam experienciados como
importantes.
Considera-se suficientemente poderoso e
omnipotente para conseguir resolver tudo perfeitamente
bem e sem uma ajuda exterior significativa.
Repudia a importância do seu estado de saúde
e o perigo das ameaças que pairam: ficar inválido
ou mesmo ter outro AVC e poder falecer.
Assim, consegue manter distante estas possíveis
ameaças fantasmáticas.
Mecanismo que é transposto para o relacionamento
com a esposa, não exprimindo sequer
preocupação sobre o relacionamento de ambos
(«a nossa relação é 100%»), quando sabemos
não ser verdade, e que se manifesta numa procura,
meses mais tarde, de um apoio conjugal.
Próprio de quem não pode tolerar a verdade
que percepciona, sem dúvida ameaçadora de um
ideal de si já construído, demarca-se uma superioridade
que denominaríamos de Moral, afirmando
Adriano que, ao contrário de todas as evidências,
sabe que ainda tem muito por melhorar.
Os sentimentos de inveja que, numa posição
mais próxima da depressiva, se poderiam revelar
no questionar de «porquê eu?», são colocados
nos sócios, na sua opinião a sentirem uma grande admiração e inveja pelas suas
capacidades
profissionais, e até pela força de vontade posta à
prova no seu processo de reabilitação física.
Com evidentes dificuldades em tolerar a realidade,
desenvolveram-se mecanismos omnipotentes
substitutivos, que sempre foram importantes
na sua vida, e que não lhe permitem agora
distinguir a verdade da falsidade.
As pequenas dores localizadas no corpo, as
«confusões» e o embrulhar de palavras servem
para apaziguar qualquer angústia ou medo da
dor, ajudando-o a sentir-se menos desamparado e
dependente.
É algo que serve para adiar o confronto com a
verdade, que ainda não pode ser tolerada.
Quando pede para marcar nova consulta, após
ter faltado à anterior, e sem conseguir definir
plenamente um objectivo, pede na realidade
alívio para a experiência dolorosa, procurando
garantir ajuda para enfrentar o perigo assinalado.
Parece que a capacidade de um qualquer ser
humano para tolerar verdades acerca de si mesmo
é precária.
A verdade é uma fonte permanente de dor.
Mas a aspiração de a conhecer nunca é satisfeita
ou completa.
A tendência para criar acções evitativas é
grande, e parece que a mente está sempre em condições
de criar mentiras para se opôr a essa dor.
Mentiras que, perante a dor e a incapacidade
de a tolerar, vão mais ou menos eficazmente tentando
evitá-la.
Mentiras que, ainda assim, podem fundamentar
uma relação, e mostrar que se existe, e sofre.
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Oliveira, R. A. (2001). Psicologia clínica e reabilitação física. Lisboa: ISPA.
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RUI ARAGÃO OLIVEIRA 'Para pensar... a dor depressiva na reabilitação da incapacidade física
adquirida' Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa Análise Psicológica (2002), 3 (XX): 471-478
FONTE:
http://publicacoes.ispa.pt/
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