A Genética Médica é uma especialidade médica relativamente recente em Portugal e
em grande expansão em todo o mundo.
A genética encerra a chave do que nós somos num código simples, mas de muito
complexa leitura e avaliação. O nosso código é constituído por 4 letras (C,A,T e
G) que se sucedem e que em determinadas regiões do nosso genoma codificam
proteínas. Estas regiões, que são apenas cerca de 2% do nosso genoma, são os
genes. Existem em torno de 20.000 genes conhecidos e destes cerca de 7.000
associados a doenças.
O estudo destes genes, do ponto de vista médico, abre as portas para um
conhecimento muito útil e que está a revolucionar a forma de realizarmos
medicina, pois permite:
o diagnóstico etiológico de patologias raras,
aferir predisposições e susceptibilidades para outras doenças mais comuns,
avaliar respostas a fármacos, a seleção da terapia mais apropriada a cada situação, numa medicina, cada vez
mais, personalizada.
Qual a importância de um diagnóstico genético?
A importância do diagnóstico de uma doença genética é cada vez maior: se por um
lado nos permite perceber melhor a doença na sua componente clínica
(variabilidade sintomática, definição de planos de vigilância e estabelecimento
de prognóstico), por outro, é cada vez mais uma porta para entendermos a doença
na sua componente básica (mecanismos da doença e aplicação dos mesmos na
investigação terapêutica e para a cura das doenças).
O diagnóstico não é importante só para o próprio. O nosso código genético é uma
herança: herdamos 23 cromossomas do nosso pai e outros tantos, com cópias
diferentes para a mesma informação, da nossa mãe; e dos 46 cromossomas
resultantes (23 pares), passaremos uma seleção aleatória de um elemento de cada
par, para os nosso filhos.
Assim sendo, um diagnóstico genético é, muitas vezes, um diagnóstico familiar.
Diferentes alterações genéticas têm diferentes probabilidades de recorrência na
mesma família. Existem vários tipos de hereditariedade mendeliana, exemplos:
hereditariedade autossómica dominante, hereditariedade autossómica recessiva,
hereditariedade ligada ao X.
O diagnóstico genético, com confirmação molecular, permite a identificação e
vigilância dos familiares em risco de desenvolver sintomas e a oferta de opções
reprodutivas, como diagnóstico pré-natal (DPN) ou pré-implantação (DGPI), a
todos os portadores de variantes patogénicas da doença.
Qual é a relevância da Genética Médica nas doenças oftalmológicas?
Um número importante de patologias oftalmológicas têm etiologia genética, de
apresentação congénita, aparecimento infantil ou na idade adulta. São exemplos
das primeiras as cataratas e glaucoma congénito, patologia do desenvolvimento
ocular como microoftalmia e anooftalmia, defeitos do segmento anterior. A
patologia da retina é também muitas vezes de etiologia genética, afectando a
mácula, os cones ou os cones e bastonetes.
Tomando o exemplo da retinite pigmentar, neste momento existem mais de 2
centenas de genes identificados, envolvidos em diferentes vias:
Estrutural (ex: cílios);
Tráfico de proteínas;
Ciclo da fotoactivação;
RNA splicing;
Metabolitos .
Cerca de 20 a 30% dos casos de retinite pigmentar estão associados a sintomas
extra-oculares, ou seja, apresentam-se de forma sindrômica. O diagnóstico de uma forma sindrômica é importante para que o planeamento da
vigilância do doente contemple a possibilidade de diferentes sinais e sintomas.
Importância do Diagnóstico Genético
Terapia Genética e Visão
A Oftalmogenética tem sido uma das áreas de maior avanço na Genética,
principalmente pela promessa de terapias genéticas. A terapia genética pretende usar o conhecimento genético para tratar ou prevenir
as doenças.
São várias as abordagens estudadas:
Substituição do gene defectivo;
Inactivação de um gene mutado;
Introdução de um gene com nova função.
As terapias genéticas, estão cada vez mais perto da sua concretização, pelo
maior conhecimento da patogénese molecular (mais genes e mecanismos
identificados), pelo desenvolvimento de formas de transporte (ex. adenovírus) e
avanços na edição genómica (ex. CRISPR-Cas9). Existem factores limitativos desta
evolução, por um lado os custos, por outro, e um dos grandes entraves à sua
concretização, a chegada e entrega dos produtos às células.
O olho, pelas suas características anatómicas (facilmente acessível, espaço
sub-retiniano natural, facilmente monitorizado) e mecanismos imunológicos
próprios, tem-se afigurado como um potencial candidato de sucesso.
O diagnóstico molecular (genético) tem vindo a ter uma relevância cada vez maior
para a prescrição terapêutica e um pré-requisito para a inclusão em ensaios
clínicos.
Como se faz um diagnóstico genético?
O diagnóstico clínico da doença pela Oftalmologia é essencial, bem como toda a
informação obtida nesta especialidade (fundoscopia, ERG, angiografia, OCT,
microperimetria, etc.).
Para um correcto diagnóstico molecular (genético) é ainda importante a colheita
da história clínica do doente, incluindo a história familiar e realização de
heredograma, a idade de início e progressão da doença, a sintomatologia
acompanhante e a realização de exame objectivo completo (somatometria,
dismorfismos faciais, alterações osteo-articulares, sintomas neurológicos,
sintomas cardíacos, outros).
Em alguns casos podem ser necessários outros exames laboratoriais (ex. glicémia,
ácidos gordos de cadeia muito longa, aminoácidos plasmáticos, ácido fitânico,
abetalipoproteína B), de imagem (ex. ecografia renal, ecocardiograma , RMN-CE),
ou mesmo exames invasivos, como biópsia muscular.
Um diagnóstico de uma doença genética, após esta componente clínica, é
complementado com um estudo molecular ou citogenético, realizados mediante
análise de sangue ou saliva.
A tecnologia mais frequentemente usada nesta área é a sequenciação por Next
Generation Sequencing (NGS). Esta técnica permite a sequenciação de vários genes
ao mesmo tempo (de dezenas a milhares), com bons tempos de resposta (a partir de
3 semanas) e a custos, cada vez mais, acessíveis.
Nas últimas décadas tem havido uma grande mudança no padrão das
doenças. Houve uma grande diminuição nas doenças de caráter infeccioso e
nutricional, enquanto que as de fundo genético se tornaram proporcionalmente
mais evidentes. Os avanços nas ciências básicas, assim como as
mudanças na prevalência das doenças apontaram para a necessidade de se
reconhecer a genética humana como uma importante disciplina dentro da
formação do médico, não importando qual área ele venha a se dedicar. Conquanto
na era pré-antibióticos era comum se dizer que “quem soubesse sobre
sífilis já saberia uma boa parte da medicina”, pode ser que no futuro se
possa dizer que “quem conhece a genética clínica certamente será um bom
médico”.
Além dos geneticistas clínicos, os oftalmologistas são os especialistas
que vêem na sua prática diária grande número de pacientes com doenças de
fundo genético. Há mais de 1.300 doenças de caráter monogético e quase
outras 1500 em que há suspeita que sejam causadas por mutações de apenas
um gen. O fato que quase um terço das mais de 100 patologias ligadas
ao cromossoma X serem puramente oftalmológicas ou terem um componente
oftalmológico importante é um forte indicativo do estreito relacionamento
entre a genética clínica e a oftalmologia. Além disso, quase 50% dos casos
de cegueira em crianças são causados por doenças em que estão envolvidos
um par de gens. Para ressaltar ainda mais a importância do componente
genético nas doenças oculares basta lembrar que a maioria dos problemas
oculares como os defeitos refracionais (miopias, astigmatismos,
hipermetropias), os estrabismos, os glaucomas e boa parte dos problemas de
retina têm claramente um fundo genético.
À medida que a medicina caminha, se torna cada vez mais importante
que todos especialistas e clínicos se familiarizem com os conceitos básicos
de genética clínica e os incorpore em sua prática diária. Esperamos que este
capítulo os auxilie neste mister.
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GENÉTICA E OFTALMOLOGIA
JAIME ROIZENBLATT
excerto de
'Genética baseada em evidências: Síndrome e Heranças' (2000)
por Zan Mustacchi e Sergio Peres