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imagem: A Dream of Motion - fotografia de Evgen Bavcar - 1997
Quem vê não faz a menor ideia do que é não ver. Podemos fechar os olhos e tatear
as paredes por breves momentos; podemos apagar as luzes e caminhar às escuras;
podemos até fazer uma experiência de cegueira em restaurantes ou outros lugares
públicos, que estão na moda e foram criados para isso mesmo, para nos sentirmos
mais próximos dos invisuais; podemos tentar atravessar uma rua ou andar à
beira-mar de olhos tapados, mas nunca saberemos o que é não ver. Quem vê nunca
saberá verdadeiramente o que é não ver 24h sobre 24h, meses, anos a fio. Uma
vida inteira, para tantos.
Nós, os que vemos, damos-nos a luxos incríveis. Esquecemo-nos, por exemplo, de
ser gratos ‘só’ por nos ser dado ver o olhar dos que amamos. Também nem sempre
nos lembramos de agradecer podermos contemplar a beleza que existe na natureza.
Quem vê sabe que também observa miséria, desumanidade, crueldade e desrespeito,
mas pode ver tudo isso e muito mais. E pode agir sobre aquilo que vê, tentando
resgatar, curar, restaurar, melhorar. Ou destruir, se for essa a lógica, porque
ver também confere muito poder. Dá, seguramente, muito conforto e confiança.
Não ver é estranho para quem vê. Sobretudo quando os que, não sendo cegos, temem
a cegueira por viverem com a sensação de que perder a visão equivale a apagar a
luz do mundo. Toda a luz de todo o mundo. É terrível a ideia de poder ficar para
sempre nas trevas e ter que atravessar a vida numa escuridão de breu. Mesmo
sabendo que se pode continuar a ser sensível à luz ou até distinguir sombras,
deixar de ver é verdadeiramente apavorante para quem sempre viu. E, no entanto,
quanto mais cegos conheço, mais me convenço de que eles veem muito mais e muito
melhor que eu.
Ontem adormecemos e hoje acordamos com a notícia feliz de que Portugal esteve
muitíssimo bem representado nos Europeus de atletismo adaptado, em Berlim. Os
atletas nacionais subiram 17 vezes ao pódio e trouxeram da Alemanha 7 medalhas
de ouro, 7 de prata e 3 de bronze. Uma proeza olímpica, no sentido literal e
metafórico. Como as notícias são frescas e as medalhas são muitas, abstenho-me
de enunciar os nomes dos atletas e as respectivas medalhas (que podem ler aqui),
mas gostava de me deter na única atleta da Selecção Nacional que conheço:
Carolina Duarte, que trouxe uma medalha de ouro e duas de prata.
Conheci pessoalmente a Carolina antes do Verão, mesmo nas vésperas do fim do
semestre académico, quando um grupo de alunos nossos a levou à Nova, para as
apresentações finais que contam (e muito) para a nota. A Carolina Duarte foi
desafiada a estar com os estudantes universitários em palco e foi convidada a
dar testemunho da sua visão (!) do mundo, partilhando com centenas de alunos o
que a faz correr. Com apenas 21 anos e 10% de visão, Carolina não se intimidou
nem um segundo. De sorriso fácil e discurso muito natural contou como é a sua
vida, como começou a treinar e o que a motiva a superar-se em cada dia.
Muito alta e muito bonita, a Carolina podia ser de origem nórdica. Talvez pela
cor do cabelo ou pela figura, não sei bem, passava facilmente por atleta
escandinava. A maneira como fala e a forma como olha para nós enquanto conversa
fazem-nos esquecer que não vê quase nada. Alegre e espontânea, partilhou
connosco as suas rotinas e os seus sonhos. Ir aos Europeus, de onde agora trouxe
uma medalha de ouro e duas de prata, estava nos seus planos, mas confessou ter
metas mais ambiciosas. Pessoais e desportivas, quero dizer. Ouvimos tudo em
silêncio e quando ela se calou todos nos levantamos para a aplaudir de pé,
massivamente, torrencialmente.
A Carolina sorriu e agradeceu com uma certa timidez, que só lhe acrescenta
graça. Depois respondeu a todas as perguntas e retirou-se com tranquilidade e
passos firmes. Fiquei muito impressionada com a sua assurance e não consegui
esquecer-me do seu testemunho. De tal forma que já voltamos a falar um par de
vezes e combinamos que no próximo dia 4 de Outubro a Carolina volta à
universidade, desta vez ao novo Campus da Nova SBE, para falar a todos os alunos
deste semestre.
E para falar de quê? De superação, endurance, confiança, espírito de sacrifício,
trabalho árduo, resiliência e conquista, mas também de fracassos e da forma como
recupera dos fracassos e volta à pista quando não atinge os resultados que
esperava. Acima de tudo para mostrar como se cultiva e treina a vontade e a não
desistência, porque afinal tudo o que a Carolina revela se pode transpor para a
vida de cada um de nós, sejamos alunos ou professores. Aos 21 anos, a Carolina
Duarte está na Selecção Nacional de atletismo adaptado única e exclusivamente
por mérito próprio. Ela e todos os atletas que agora nos representaram tão bem
em Berlim correm contra o tempo, mas também contra todas as adversidades de quem
não vê ou tem algum tipo de deficiência.
Quem não experimenta na pele a vivência diária num bairro, numa cidade, num país
que não foi feito para pessoas com acessibilidade limitada, nunca saberá o
cúmulo de nervos, frustração, dores e, até, humilhação por que passam os que não
veem, não ouvem, não caminham sozinhos ou precisam de se deslocar em cadeira de
rodas. Há e haverá sempre atletas como os desta nossa Selecção, como a nossa
Carolina e os nossos, muito nossos, Luís Gonçalves, Sandro Baessa, Érica Gomes,
Odete Fiúza, Carina Paim, Mário Trindade, Miguel Monteiro, Carlos Freitas e
Maria da Graça Fernandes, mas são muitíssimo mais os que ficam em casa, os que
não conseguem sair à rua ou atravessar uma estrada porque não há condições para
o fazerem em segurança. E, pior, os que não se atrevem a sonhar porque lhes
fazem crer que mais vale desistir.
A Carolina e tantos como ela acreditam que só é impossível o que não tentamos e
essa é, porventura, a maior lição que podemos aprender com ela. Com todos eles.
E é por isso que a sua presença na universidade é imperativa, nesta rentrée e
sempre.
Conheço, como disse, várias pessoas que são ou ficaram cegas. E é por elas que
escrevo, também. Falo da Catarina, da Luizinha, da Joana, do Jorge, da Maria e
do Bernardo, a quem presto a minha homenagem, mas penso em muitos outros. Eles
não veem, mas conseguem correr e vencer. Nós vemos, mas passamos a vida a
queixar-nos ou a querer desistir.
FIM
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Ver ou não ver, eis a questão
Laurinda Alves
fonte:
Observador
28/8/2018
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