|
|
Janet Dailey

CAPÍTULO I
Lá em cima, uma gaivota soltou seu grito rouco. O vento forte que soprava do
oceano Pacífico envolvia os barcos ancorados no porto dos iates da baía de São
Francisco. Bem ao longe, ouvia-se o tilintar de um bonde antiquado subindo pelas
íngremes ladeiras da Hyde Street.
Um Lincoln Continental azul-claro, com a parte superior revestida de couro
azul-escuro, fez uma baliza perfeita no parque de estacionamento diante do
porto. A motorista, uma mulher impressionantemente bela, de cabelos ruivos, com
trinta e poucos anos de idade, estacionou o carro exatamente entre as linhas
brancas de demarcação e desligou o motor. Ao mesmo tempo que estendeu a mão para
abrir a porta, seus olhos verde-esmeralda pousaram na moça sentada em silêncio
ao lado dela.
- Está bastante frio lá fora, Melina. Acho que, provavelmente, seria melhor se
você esperasse aqui no carro, enquanto eu vou ver se o seu pai já voltou. Melina
Lane abriu a boca para protestar. Ela estava cansada de ser tratada o tempo todo
como uma inválida. Mas, de repente, compreendeu que Deborah não estava
preocupada com o estado de saúde dela, e sim, interessada em poder passar algum
tempo sozinha com seu pai.
- Como você achar melhor, Deborah - concordou ela a contragosto.
Os momentos silenciosos que se seguiram à partida de Deborah foram uma prova
ainda para os nervos já tensos de Melina. Já era difícil ter de suportar sua
própria deficiência, além das restrições impostas pela namorada de seu pai.
Seu pai tivera muitas outras, desde que a mãe de Melina morrera, quando tinha
sete anos de idade. Mas Deborah Mosley não era apenas mais uma namorada. Se não
fosse o acidente sofrido por Melina meses antes, Deborah certamente já seria
dele.
Antes do acidente, Melina sempre achara maravilhoso seu pai ter finalmente
encontrado alguém com quem gostaria de se casar. Deborah Mosley não seria
exatamente a madrasta que Melina teria escolhido, apesar de gostar dela, mas
isto não tinha muita importância, desde que seu pai se sentisse feliz ao lado
dela.
Esta era a situação antes do acidente, quando Melina era totalmente
independente. Morava sozinha, num apartamento muito pequeno, mas apenas dela.
Naquele tempo tinha uma carreira, não muito lucrativa, mas que lhe rendia
bastante para pagar seus gastos.
"Por que isto tinha de acontecer comigo?", perguntou-se silenciosamente. "O que
foi que eu fiz para merecer tudo isto? Por que comigo?"
Sentiu um nó na garganta, diante da dor desta pergunta sem resposta. Mas havia
tempo demais para pensar sobre tudo o que poderia ter acontecido.
O estrago estava feito e era irreversível, como todos os especialistas tinham
explicado a Melina e ao seu pai. Continuaria incapacitada pelo resto de sua vida
e só um milagre poderia modificar o atual estado das coisas.
Uma semente de rebelião ganhou vida própria. Sentiu raiva por estar condenada a
ficar eternamente sentada nos carros ou esperando em casa, até que outras
pessoas decidissem o que seria melhor para ela.
Um pensamento horrível cruzou sua mente. E se, pensou Melina, o desejo de
Deborah de ficar sozinha com seu pai não se devesse apenas à sua vontade de
passar alguns momentos sozinha ao lado dele, mas fizesse parte de um plano
destinado a persuadi-lo a enviá-la para aquele instituto de reabilitação?
Reabilitação,.. Esta palavra sempre a fazia se sentir como se fosse uma
criminosa.
"Por favor, meu Deus", implorou Melina, mentalmente, "não permita que papai ouça
os argumentos dela. Não quero ir para esse lugar. Certamente deve existir alguma
outra alternativa para esta situação toda."
Sentiu a ajuda. Era doloroso necessitar da ajuda de outras pessoas. Tinha sido
sempre tão auto-suficiente! E nesse exato momento, Deborah poderia estar
persuadindo seu pai a enviá-la para alguma outra escola, enquanto ela estava
ali, sentada no carro, aceitando
seu destino pelo simples fato de não estar participando da discussão,
contentando-se em pedir a Deus que intercedesse a seu favor.
Respirando fundo para acalmar um pouco sua excitação Melina abriu a porta,
saindo do carro e firmemente apoiada na bengala.
Começou a se movimentar lentamente em direção ao porto.
Estimulada pelo sucesso inicial, Melina inconscientemente começou a caminhar
mais depressa, quando então tropeçou e não conseguiu recuperar o equilíbrio. A
bengala escorregou de sua mão, voando longe, enquanto ela se estatelava no chão.
A excitação cedeu lugar ao medo. Seus dedos trémulos procuraram a bengala, mas
estava fora do seu alcance. Além do choque, não sentiu nenhuma dor.
Não se machucara, mas como chegaria até o barco sem a ajuda da bengala?
Melina começou a se auto-recriminar pela tolice de ter tentado fazer a caminhada
sozinha.
- Você está bem? - A voz grave e masculina que lhe oferecia ajuda tinha um tom
ligeiramente divertido.
A cabeça de Melina girou bruscamente em direção à voz, enquanto um rubor de
embaraço lhe subia ao rosto, pelo fato de um homem estranho encontrá-la daquele
jeito e também pela humilhação de ser forçada a aceitar seu auxílio.
- Eu não estou machucada - respondeu ela rapidamente, acrescentando a
contragosto: - Minha bengala... você poderia apanhá-la para mim?
Mãos fortes seguraram Melina debaixo dos braços e a colocaram de pé, antes que
pudesse expressar uma reação de protesto. Seus dedos tocaram os músculos rijos
dos braços dele, cobertos pelo tecido fino do paletó.
- Muito obrigada por sua ajuda - murmurou ela, de má vontade, ao mesmo tempo que
deu um passo hesitante para trás.
Virando-se, esperou, durante alguns intermináveis segundos, que ele continuasse
a andar para onde estava indo. Ela imaginou que ele devia estar esperando, para
ter certeza de que realmente ela não tinha se machucado na queda, momentos
antes,
com medo de que ele pudesse se sentir obrigado a lhe prestar mais assistência
por estar usando bengala, Melina corajosamente deu um passo à frente. O barulho
estridente e chocante de uma buzina, acompanhado simultaneamente pelo ruído de
freios, deixou-a paralisada. Teve a impressão de que alguma coisa de aço envolveu sua cintura,
puxando-a bruscamente para trás.
A voz rouca e máscula continuava muito grave, mas não havia nenhum sinal de
gentileza ou coisa parecida em seu tom, quando resmungou perto de seu ouvido: -
Você está tentando se suicidar? Você não viu que vinha vindo um automóvel?
- Como poderia ter visto? - murmurou Melina amargamente, incapaz de se livrar do
braço que continuava enlaçado à sua cintura. - Sou cega!
Ela percebeu quando ele encheu os pulmões de ar, uma fração de segundo antes de
obrigá-la a se virar de frente para ele; agora ele a segurava firmemente pelos
braços.
Teve a impressão de que os olhos dele lhe queimavam o rosto. Seu queixo abaixado
foi agarrado pelos dedos dele e levantado violentamente. Melina sabia que seus
olhos inúteis estavam fixos no rosto dele. Pela primeira vez se sentiu contente
pelo fato de não poder ver. A piedade que deveria estar estampada no rosto dele
teria sido insuportável para ela.
- Por que você não disse isso?! - Havia um tom irritado em sua voz, que a
surpreendeu. Raiva era uma reação que ela esperava. - E posso saber por que você
não usa uma bengala branca?
Sentindo-se atacada, Melina replicou no mesmo tom: - Por que usar uma bengala
branca? Por que usar óculos escuros o tempo todo? Será que não deveria também
andar o tempo todo com uma canequinha de lata, pedindo esmolas? Por que o fato
de eu ser cega me torna tão diferente de todo mundo? Por que tenho de ser
diferente, isolada? Odeio quando os pais apontam para mim com os dedos e dizem
às crianças para deixarem a moça cega passar na frente. Minha bengala não é
branca porque não quero qualquer tipo de consideração especial e também porque
não quero sentir a piedade das pessoas!
- E a sua implicância com as bengalas brancas quase lhe custou a vida - disse o
estranho, irritado. - Se o motorista do carro que quase atropelou você tivesse
visto uma bengala branca em sua mão, poderia ter tomado precauções, poderia ter
diminuído a velocidade para deixar você passar ou talvez tivesse buzinado para
que tivesse certeza de que ele estava ali. Mas continue assim, alimentando seu
orgulho, que você não vai continuar viva por muito tempo. Continue se colocando
na frente dos carros e, mais cedo ou mais tarde, um deles vai passar por cima de
você. Talvez isto não preocupe sua consciência,
mas tenho certeza de que o motorista do carro que vai acabar atropelando você
vai ter muita dificuldade para compreender que o orgulho era o que impedia você
de usar uma bengala branca que poderia salvar sua vida.
- Não é tão difícil assim de compreender - replicou Melina com voz estrangulada.
- Se ele não enxergasse como eu, saberia perfeitamente como é humilhante ter de
fazer propaganda da própria cegueira.
- Está bastante óbvio o motivo por que você rejeita a piedade dos outros - disse
o homem com sarcasmo. - Você está ocupada demais com o tamanho da sua própria
autopiedade.
- De todos os homens arrogantes. . . Melina não se deu ao trabalho de terminar a
frase, pois, após calcular corretamente a distância e a altura necessárias,
estapeou o rosto dele.
Seu braço não tinha ainda voltado ao lugar, quando sentiu uma mão vigorosa
contra a sua própria face. Foi apenas um tapinha de reprovação, mas o choque
multiplicou seu efeito muitas vezes.
- Como é que você tem a coragem de bater numa pessoa cega?!
- exclamou ela, sentindo-se ultrajada.
- Pensei que você não fazia questão de privilégios especiais zombou ele. - Ou
será que isso não inclui o privilégio de distribuir tapas por aí, certa de que
ninguém irá se defender de uma pobre mocinha cega?
- Você é um sujeito intolerável! - exclamou ela, virando-se para embora.
- Não tão depressa. Uma mão pousou no ombro dela, impedindo que continuasse seus
passos. - Você é pior do que uma criança murmurou ele, impaciente. - Você está
ouvindo algum carro? Você sabe para onde está indo? Você tem certeza da direção
que vai tomar?
- Quero ficar sozinha! - exigiu Melina. - Meu bem-estar é uma responsabilidade
que só a mim diz respeito!
- Sinto muito.
Não havia nenhum tom de desculpa em sua voz.
- Mas acontece que fui educado acreditando que todos nós temos responsabilidade
pelo bem-estar do próximo. Portanto, quer você queira ou não, vou cuidar para
que chegue em segurança ao lugar aonde quer ir. Você pode ir andando e ficar
certa de que estarei a alguns passos atrás de você.
Ela se sentiu tão frustrada que teve vontade de gritar, mas a atitude daquele homem desconhecido parecia lhe dizer que até mesmo isso seria uma
perda inútil de energia. Não podia mais ir para as docas, com esse homem
insuportável se comportando como um guarda-costas indesejável. A última coisa
que ela queria era que seu pai sentisse que ela não podia ficar sozinha, nem
mesmo durante alguns minutos. Assim que seu pai visse esse homem a seu lado,
faria uma série interminável de perguntas e toda a história embaraçante teria de
ser contada.
Ela apertou os dentes com força. - Eu tinha a intenção de ir até as docas para
encontrar meu pai e Deborah. Mas já que você insiste em me acompanhar, prefiro
esperar por eles dentro do carro.
- Eles saíram para velejar e deixaram você esperando aqui no carro?
- Não, meu pai foi velejar sozinho. Deborah e eu viemos aqui só para nos
encontrarmos com ele. Ela deve estar em algum lugar do porto, agora, e eu estava
querendo ir até lá para saber por que estão demorando tanto - respondeu Melina.
- Deborah é sua irmã?
- Você parece mesmo estar resolvido a se intrometer em minha vida particular,
não é mesmo? - replicou ela, impaciente. - É bastante provável que dentro de
pouco tempo Deborah venha a se tornar minha madrasta, já que você insiste em
saber, apesar de achar que não é da sua conta!
A mão dele se fechou em torno do cotovelo dela, guiando-a com firmeza na direção
em que Melina sabia que estava o carro. Depois de mais alguns passos, ela sentiu
que a ponta da bengala bateu contra o pára-lama.
- Que tipo de barco é o do seu pai? Se você quiser, vou lá para ver o que está
acontecendo - ofereceu-se o homem.
- Não, muito obrigada, não é necessário - recusou ela, cortesmente. - Ele já
está quase convencido de que eu preciso de uma babá que trabalhe em tempo
integral. Se você for lá e começar a contar histórias, nunca serei capaz de
convencê-lo de que não quero ninguém à minha volta o tempo todo.
- Sinto muito, mas acho que já é tarde demais para impedir que seu pai fique
sabendo deste nosso encontro secreto - respondeu ele.
- O que é que você quer dizer com isso? - perguntou Melina, franzindo a testa.
- Bem, estou vendo um homem se aproximando do portão do porto, acompanhado de
uma mulher de cabelos vermelhos. E ele está olhando nesta direção com uma
expressão, digamos, ansiosa, estampada no rosto - replicou ele.
- Por favor, vá embora bem depressa, antes que ele chegue aqui
- pediu ela.
- Ele já me viu e, caso fosse eu, ficaria muito desconfiado se um homem
desconhecido estivesse conversando com minha filha e fosse embora assim que me
visse chegando. Acho melhor eu ficar aqui mesmo - declarou o homem
enfaticamente.
- Não - sussurrou Melina, protestando.
- E agora não faça essa cara, como se tivesse acabado de lhe fazer uma proposta
indecente. Sorria.
Seu tom de voz era cheio de calor humano e, obviamente, divertido com essa
situação embaraçosa.
A moça relutou até que os cantos de sua boca se forçaram a dar um sorriso lento
e pouco entusiasmado.
- Melina... - Na voz de seu pai, ela percebeu certa preocupação, em vez da
maneira afetuosa como ele costumava cumprimentála. - Você estava ficando cansada
de tanto esperar?
- Oi, papai. - Ela forçou sua própria voz a manter um tom despreocupado e
normal. - Estava bom no barco?
- Como não haveria de estar? - respondeu ele, rindo da pergunta.
- Você deve ser o pai de Melina. Ela me perguntava justamente se eu tinha visto
o Lady Melina atracando quando eu estava lá embaixo, no trapiche. Meu barco
costuma ficar perto do seu; é o Dame Fortune. Meu nome é Bay Cameron -
apresentou-se o desconhecido.
- E eu sou Grant Lane - respondeu o pai dela.
Melina sentiu a mão de seu pai pousando em seu ombro e virou-se para encará-lo,
agora com um sorriso verdadeiro nos lábios.
- Você não estava se preocupando comigo, estava, Melina? brincou ele.
- Nem um pouquinho. Imagine só, eu me preocupando com o melhor marinheiro do
mundo. Se bem que, é claro, você estava sem o melhor grumete que você já teve -
respondeu ela rindo.
- Sim, bem... - Quando percebeu a maneira embaraçada de seu pai concordar,
Melina teve vontade de morder a língua. Ela não tivera a mínima intenção de
fazer com que ele se lembrasse das muitas horas que tinham passado juntos,
velejando naquelas mesmas águas.
- As nulheres sempre se preocupam, quando seus homens estão no mar - comentou
Bay Cameron.
- Isso faz parte da nossa natureza - disse Deborah. - E vocês homens nem
gostariam que fosse diferente, não é mesmo?
- Concordo com você, Deborah - disse o pai de Melina.
- Sr. Cameron, esta é minha noiva, Deborah Mosley.
- É um prazer, senhorita. Mas eu não devo continuar tomando o tempo de vocês.
Tenho certeza de que todos devem ter planos pela frente - respondeu Bay.
- Eu lhe agradeço por ter feito companhia a Melina. - Havia uma sincera gratidão
nas palavras de Grant.
- Sim, sr. Cameron - acrescentou Melina -, o senhor foi muito gentil.
Melina ouviu os passos dele se afastando em direção a uma outra parte do
estacionamento, logo depois das despedidas. Perguntou então a si mesma por que
motivo ele, com toda sua arrogância, não resolvera contar a seu pai como eles
realmente tinham se conhecido.
A porta do carro foi aberta e seu pai ajudou-a a instalar-se no banco traseiro.
- Pensei que você iria ficar esperando por nós dentro do carro
- disse Deborah, num tom levemente reprovador, quando todos já estavam
instalados.
- Estava abafado demais, por isto decidi sair para tomar um pouco de ar fresco -
mentiu Melina.
- Pelos menos, serviu para botar um pouco de cor no seu rosto
- observou Grant Lane. - Você provavelmente deveria sair mais. Isto seria um
simples comentário inocente ou uma observação provocada por uma conversa com
Deborah, a respeito daquela nova escola para cegos que ela conseguira descobrir
recentemente? Era impossível saber ao certo. Melina cruzou os dedos, fazendo uma
figa.
- Esse sr. Cameron - disse Deborah - você já o conhecia antes?
- Não. Por quê? Melina sentiu-se tensa e colocou-se numa posição defensiva.
- Simplesmente porque não combina com você ficar conversando com pessoas
desconhecidas, só por causa disso - respondeu Deborah.
- Você quer dizer que eu não faço isso desde que fiquei cega corrigiu-a, num tom
incisivo. - Nunca fui tímida. Além do mais, a única coisa que fiz foi perguntar
a respeito de papai.
Fez-se um silêncio embaraçador dentro do carro. Sua resposta não precisava ter
sido tão cortante assim, mas às vezes Deborah era de uma solicitude e de uma
preocupação tão aparentes que realmente irritavam Melina.
- Você acha - perguntou Deborah, quebrando o silêncio - que ele é um dos Cameron
do ramo imobiliário?
- Não imagino qualquer outro Cameron possuindo um barco como aquele - respondeu
o pai. A família é uma das mais tradicionais de São Francisco.
Tendo nascido ali, Melina estava bem informada a respeito da colorida e
movimentada história de sua cidade natal. Até que outro fosse descoberto, em
1849, existia apenas um pequeno povoado na baía de São Francisco, chamado Yerba
Buena. A baía era um porto perfeito para todos os navios que circundavam a
América do Sul em busca do ouro na Califórnia. E sua entrada natural realmente
acabara se transformando num "portão de ouro" para muitos pioneiros.
A família Cameron era uma das fundadoras da cidade.
Uma anedota a respeito deles dizia que, noutros tempos, tinham sido
proprietários da cidade inteira, mas agora possuíam a quarta parte do território
urbano. Isto dificilmente poderia ser considerado como um sinal de decadência,
nos tempos atuais, pensou Melina, e com toda a certeza servia muito bem para
explicar a arrogância daquele sujeito.
E daí, suspirou ela, de que adiantava ficar pensando nele? Ele não era o tipo de
pessoa que ela iria encontrar com muita frequência. . . sobretudo com esse
lastro familiar e financeiro.
No entanto, bem que tinha gostado da voz dele. Imediatamente, Melina corrigiu
seu pensamento.
Tinha gostado da voz dele nos momentos em que ele não lhe estava dizendo
ditatorialmente o que deveria fazer. Seu timbre grave e aveludado exprimia muito
calor humano, muita maturidade e era até vagamente carinhoso.
Perguntou então a si mesma qual seria a idade dele.
Ele era um homem alto, entre um metro e oitenta e um metro e oitenta e cinco.
Quando ele a tinha puxado para impedir que fosse atropelada pelo carro, tivera a
sensação de ombros largos, de ausência de barriga e de quadris estreitos.
Julgando pela firmeza de seus músculos, deveria estar em excelente forma física.
Ela se reclinou no banco, triunfante e satisfeita consigo mesma. Conseguira uma
porção de informações, considerando-se a rapidez do encontro. Havia apenas duas
coisas que ela não sabia: a idade dele, que podia variar entre trinta e
cinquenta anos, considerando-se a maturidade da sua voz e a sua forma física; e
certos detalhes de sua figura, como, por exemplo, a cor dos cabelos, dos olhos,
etc.
Por um instante, ficou imóvel. Havia outra coisa que ela não sabia: seu estado
civil. Mas isto era uma coisa da qual ela não poderia ter certeza, mesmo se não
fosse cega, a não ser que ele fosse um daqueles homens que usavam fielmente a
aliança no dedo.
CAPÍTULO II
Domingo era o dia em que Deborah se encarregava de tudo o que era preciso fazer
na cozinha, como ocorrera no último fim de semana. Era uma cozinheira
requintada, enquanto Melina, em sua melhor fase, só conseguia ser razoável, o
que a deixava duplamente consciente das refeições às vezes queimadas ou cruas
demais que ocasionalmente preparava durante a semana, comparando-as com os
pratos sempre perfeitos da namorada de seu pai.
No entanto, ele nunca se queixara, ignorando os resultados menos satisfatórios e
elogiando os mais bem-sucedidos.
Sem a ajuda da luz do sol era quase impossível, para Melina, avaliar a passagem
do tempo. Às vezes, o tempo parecia lhe fugir, cinco minutos acabavam se
transformando em dez ou até em meia hora. Outras vezes, quando a solidão de seu
mundo eternamente escuro se fechava em torno dela, acontecia o oposto.
Essa sensação de vazio sempre ocorria, invariavelmente, após uma grande onda de
energia criativa que não conseguia canalizar.
Melina aprendera a suportar as inúmeras inconveniências de não poder enxergar.
Era até mesmo capaz de controlar sua amargura.. . desde que não pensasse em sua
carreira tão abruptamente interrompida por aquele acidente.
Para Melina, a pintura tinha se transformado na grande paixão de sua vida. Seu
talento natural, aprimorado com a aprendizagem junto a alguns dos melhores
professores na cidade, transformara-a numa artista relativamente bem-sucedida,
aos vinte e dois anos de idade, após quinze anos de estudos e dedicação.
Perdera a visão num acidente automobilístico e até então Melina não conseguira
compreender direito o que tinha acontecido.
Estava voltando para casa tarde da noite, após um fim de semana passado com uma
amiga em Sacramento. Já era muito tarde e ela adormecera no volante.
Agora, perdida em suas lembranças, a pressa em poder voltar para casa parecia
sem sentido, considerando-se o mês que passara internada no hospital,
recuperando-se da fratura nas costelas e de uma concussão, além do golpe na
cabeça que afetara irremediavelmente a sua visão.
Balançando a cabeça com uma expressão decidida, Melina fez o possível para
afastar estas lembranças desagradáveis. Sua sobrevivência estava no futuro, e
não no passado,
por melhor que tivesse sido. No momento, tudo lhe parecia extremamente vazio,
mas, sete meses atrás, Melina não acreditava sequer que seria capaz de realizar
tudo o que já tinha conseguido.
Agora precisava ir até o supermercado para comprar um vidro de xampu. A loja
ficava a cinco quarteirões de sua casa, com, obviamente, quatro cruzamentos.
Fazia apenas dois meses que reunira coragem suficiente para tentar fazer isso
sozinha.
Melina desceu a escada em direção à porta da frente, lembrandose de fechá-la
cuidadosamente atrás de si. O portão de ferro rangeu ruidosamente, quando abriu
e voltou a fechá-lo. Repentinamente, a calçada tornou-se muito íngreme, e Melina
foi contando lentamente seus passos enquanto descia, virando à direita
exatamente diante da porta da casa vizinha.
Após pressionar a campainha do interfone, esperou pela resposta. Como medida de
precaução, seu pai insistia na necessidade de ela sempre avisar alguém, dizendo
para onde estava indo, e de comunicar a volta mais tarde; isto podia ser feito
com Peggy Collins, sua vizinha há quase quinze anos.
- Sim, quem está aí? - respondeu uma jovem.
- Sou eu, Melina. Estou indo até o supermercado. Você precisa de alguma coisa de
lá?
- Ken me telefonou há uma hora, avisando que vai trazer um casal de clientes
muito importantes para jantar aqui em casa. Obviamente, não há nada para se
comer e estou tentando me arrumar com algumas latarias para ver se improviso
qualquer coisa. Veja você, logo hoje ele foi inventar esse programa! - respondeu
a jovem.
- Estarei de volta dentro de uma hora, mais ou menos - informou Melina,
sorrindo.
Sempre parecia haver uma crise iminente na casa de Peggy, que invariavelmente
comentava a situação com humor exagerado. - Se você achar que posso ser útil de
alguma forma .sei lá, gelo, bebidas, comida... é só me avisar.
- A melhor solução seria tentar encontrar um marido com pouco mais de bom senso
- respondeu Peggy, com um suspiro. - Cuide-se bem, Melina. Se descobrir alguma
coisa em que possa me ajudar, falarei com você na volta.
Cantarolando baixinho, Melina continuou seu caminho. O humor de sua vizinha
servira para melhorar um pouco o seu estado de espírito um tanto deprimido. O
percurso até o supermercado transformou-se em mais uma aventura.
Havia uma sensação agradável em descer a ladeira, provocada pelo vento que
soprava constantemente nas ruas de São Francisco.
Sua concentração foi interrompida por um instante e ela se viu obrigada a fazer
uma pausa para colocar outra vez em ordem seus pensamentos.
Tinha muita dificuldade em controlar suas fantasias, durante o dia. A
extremidade da sua bengala bateu na caixa do correio e ela percebeu
imediatamente em que quarteirão
estava naquele instante.
Cruzando a rua, começou a contar os seus passos. Não tinha a mínima inttenção de
entrar na barbearia, em vez de no supermercado, como lhe acontecera da última
vez.
Sentiu então uma sensação estranha em sua nuca, semelhante a um arrepio. Passou
seus dedos ao longo da gola de sua suéter e franziu a testa, não conseguindo
atinar qual seria a causa.
- Então você continua a não usar uma bengala branca - disse uma voz,
familiarmente. - Você é uma garota muito teimosa, senhorita Lane.
- Sr. Cameron! - disse ela, friamente. - Não esperava encontrá-lo tão cedo.
- A cidade não é tão grande quanto parece ser. Estava descendo a rua em meu
carro e vi uma moça andando com o auxílio de uma bengala. Depois, olhando
melhor, percebi que a moça com a bengala era você mesma. Está outra vez
procurando por seu pai? - perguntou Cameron, novamente com um tom de voz
gozador, do qual ela se lembrava tão bem.
- Não, estava indo até o supermercado - respondeu Melina, fazendo um gesto vago
na direção para onde queria ir. - Você estava de carro?
- Sim, estacionei mais acima, nesta mesma rua. Você vive perto daqui?
- Ê bem perto daqui! - respondeu ela, inclinando a cabeça para o lado. - Por que
você estacionou o carro?
- Para perguntar se você gostaria de tomar uma xícara de café comigo - respondeu
ele com naturalidade.
- E por que isso? - Ela não conseguiu disfarçar a preocupação em sua voz.
- Você. acha mesmo que preciso ter alguma segunda intenção? Isto não pode ser
apenas um gesto amigo de minha parte?
- Simplesmente não compreendo por que você haveria de querer tomar café com... -
Melina quase disse: com uma cega. O orgulho exagerado desapareceu completamente
de sua voz quando concluiu a frase: ... comigo.
- Melina, estou ficando com a impressão de que você não sofre apenas de um
complexo de perseguição, mas também de inferioridade - comentou ele, naquele seu
tom gozador.
- Isso é um absurdo! - Os olhos castanhos, que até então estavam fixos no ponto
em que ela julgava estar o rosto dele, viraram-se acintosamente em direção ao
trânsito da rua.
Dedos fortes a pegaram pelo cotovelo, guiando-a em direção ao supermercado. -
Onde você gostaria de tomar o café? Conheço uma confeitaria muito agradável no
quarteirão seguinte e acho que poderíamos ir até lá.
- Tenho certeza de que sua esposa preferiria que você passasse seu tempo livre
com ela, e não comigo - disse ela, fazendo mais uma débil tentativa de se livrar
dele.
- Também tenho certeza de que ela preferiria isso, se eu fosse casado.
- Eu... eu preciso comprar uma coisa no supermercado - protestou ela outra vez.
- Isso vai demorar muito tempo?
- Não - admitiu ela, abaixando o queixo -, acredito que não vá demorar muito.
- Sua evidente falta de entusiasmo não é nada lisonjeira para mim - declarou Bay
Cameron, gentilmente. - Você se sentiria mais à vontade se eu ficasse esperando
aqui fora até você terminar suas compras?
Sabendo que o simples fato de ele estar por perto já era mais do que suficiente
para deixá-la nervosa, Melina balançou a cabeça num gesto negativo. - Não faz
diferença alguma.
- Nesse caso, vou entrar com você. Preciso comprar cigarros. Ela sentiu o braço
dele encostando-se em seu ombro, quando ele
estendeu a mão para abrir-lhe a porta. Seu cotovelo foi solto e ela entrou na
loja mais ou menos sozinha. com o auxílio da bengala, caminhou em direção ao
balcão dos fundos, entregou a sua lista de compras.
- Foi você quem pintou este retrato? - perguntou ele em voz baixa.
- Fui eu, sim - respondeu ela.
- É um retrato muito bom, o senhor não acha? - interrompeu Gino, o dono do
supermercado, amigo de Melina. - Fui eu quem vendeu a Melina seus primeiros
crayons. Em seguida, ela passou para a aquarela e depois para o giz colorido.
com toda a modéstia, eu também contribuí, em parte, para que ela se tornasse uma
artista. Tempos depois ela me deu este retrato de presente. Melina sempre vem à
minha loja, pelo menos uma ou duas vezes por semana. Quero dizer, ela sempre
vinha, até que aconteceu o acidente. - Sua voz tornou-se triste. - Agora, ela já
não vem mais com a mesma frequência.
- Já ocupei demais o seu tempo, Gino - disse ela, no momento em que suas compras
estavam embrulhadas, apressada. - Sei que você tem muito que fazer e que outros
fregueses estão esperando por você. A gente se vê na próxima semana.
- Promessa é dívida, Melina.
- Venho, sim, Gino. - Ela se virou rapidamente, consciente de Bay Cameron ter
dado um passo ao lado para lhe dar passagem.
- A confeitaria fica à esquerda - informou-lhe Bay, assim que saíram do
supermercado. - É só virar a esquina e descer um lance de escadas.
- Eu acho que conheço esta confeitaria... só que faz anos que não vou lá -
respondeu ela.
Eles andaram lado a lado pela calçada, até chegarem à esquina. Bay não fez
qualquer tentativa para guiá-la, deixando que encontrasse o caminho por si
mesma.
- É um retrato muito bom - comentou ele, rompendo o silêncio.
- Você fez algum curso?
- Tomei aulas de pintura durante praticamente toda minha vida. - Ela se esforçou
para engolir o nó que se tinha formado na garganta e continuou, com a maior
calma possível: - Era a minha carreira. Já me sentia relativamente bem-sucedida.
- Acredito que sim - concordou ele. - O seu trabalho é muito bom! Deve ter sido
um golpe duplamente cruel o fato de você ter perdido a visão, justamente por ser
artista. É lógico que isso teria de provocar uma sensação de injustiça, senão
você não seria humana. - Ele a tocou levemente no braço para lhe chamar a
atenção.
- O corrimão de ferro da escada está à sua esquerda. Você pode se apoiar nele
até o final dos degraus.
Quando sua mão esquerda encontrou o corrimão, Melina imaginava que Bay retraíra
a sua mão. Ele aceitara a dor que ela sentia pela interrupção de sua carreira
como sendo uma coisa natural, uma coisa que dispensava quaisquer outras
explicações. Também não tinha apelado para rótulos ou palavras vazias, como
acontecera com outras
pessoas, que lhe disseram que algum dia ela acabaria se conformando com a
situação.
Quando chegaram ao fim do lance de degraus, Bay estendeu a mão para abrir a
porta da confeitaria. Uma das mãos dele pousou firmemente na cintura dela e
permaneceu ali até que uma garçonete veio lhes indicar uma mesa desocupada.
- Eu vou pegar a sua bengala - ofereceu-se ele - e pendurá-la aqui ao lado de
sua cadeira, assim ela não atrapalhará ninguém.
Melina entregou-lhe a bengala e sentou-se, apoiando nervosamente os dedos na
mesa. No passado, ela evitara sempre tais lugares, consciente demais de sua
própria situação para poder ficar realmente à vontade.
Evidentemente, a garçonete devia ter voltado à mesa deles, porque ouviu Bay
pedindo dois cafés. - Eles fazem doces ótimos, aqui. Uns doces realmente
excelentes. Você gostaria de experimentar algum deles, Melina? - Bay perguntou.
- Não! - Em seu nervosismo, ela fora ríspida demais, o que a fez acrescentar
rapidamente: - Não, muito obrigada.
- Você aceita um cigarro? - ofereceu ele.
- Sim, por favor.
A garçonete chegou, com os cafés, logo depois de Bay ter colocado um cigarro
aceso entre os dedos dela e de ter empurrado um cinzeiro em direção à sua mão
discretamente tateante.
- Você coloca alguma coisa em seu café? - perguntou Bay, solícito.
- Nada, muito obrigada. - Melina soltou a fumaça, libertandose simultaneamente
de uma parte da tensão que continuava a dominá-la, embora com menor intensidade.
O calor do café permitiu que ela encontrasse a xícara com uma certa facilidade.
Depois disto, seguiu-se um momento de silêncio, porém, agradável- Seu primeiro
encontro com Bay Cameron tinha sido distorcido pela aparente arrogância dele.
Esta sua característica continuava evidente; prova disto era o simples fato de
eles estarem sentados ali, naquele instante, tomando café naquela confeitaria;
mas, de certa forma, sua arrogância tinha sido suavizada por sua capacidade de
compreender as coisas.
Apesar daquela perturbadora discussão a respeito da bengala branca, ele parecia
aceitar o desejo dela de se considerar mais independente. A assistência que ele
lhe dera tinha sido objetiva e nem um pouco exagerada. Isto e mais seu
comentário seco e direto a respeito da perda de sua carreira fizeram Melina
pensar se talvez não deveria reformular a opinião a respeito dele. Bay Cameron
parecia ser um homem fora do comum. Melina pensou que era uma pena não o ter
conhecido antes de perder sua visão. Ele provavelmente deveria ser um excelente
modelo. Depois de pensar nisto, suspirou.
- Posso saber o motivo deste suspiro? - perguntou ele, em seu tom levemente
gozador.
- Eu estava sendo envolvida pelos meus pensamentos - respondeu ela, erguendo os
ombros.
- Essa é uma de suas maneiras prediletas de passar o tempo?
- Só quando não me distraio com outras coisas. Às vezes - continuou ela,
acompanhando com o dedo o contorno da borda de sua xícara de café - eu fico
perguntando a mim mesma, quando.estou sozinha, se não recebi o dom de ver
pessoas, lugares e coisas com os seus mínimos detalhes, desde bem cedo na minha
vida, para que pudesse armazenar uma grande quantidade de imagens e cenas
bonitas a fim de me lembrar delas mais tarde.
- Isso quer dizer que você acredita em destino? - perguntou Bay suavemente.
- Às vezes, o destino parece ser a única explicação possível. E você? Acredita?
- Acho que todos nós somos contemplados com certos talentos e habilidades. O que
fazemos com eles é a marca de nosso próprio caráter. Não posso aceitar a
possibilidade de não ser o condutor do meu próprio destino. - Sua resposta
estava repleta de ironia.
- Duvido que existam muitas coisas que você tenha desejado e não tenha
conseguido - concordou ela, com um leve sorriso nos lábios.
- Talvez! É, talvez eu tenha sido apenas um pouco cuidadoso com as coisas que
desejei. Diga-me uma coisa, Melina. Há quanto tempo você perdeu sua visão?
Ela estava começando a notar que Bay Cameron tinha o hábito de ir direto ao
assunto.
A maior parte das pessoas tomavam um cuidado todo especial para omitir toda e
qualquer referência à sua cegueira e fazia verdadeiros malabarismos de linguagem
para evitar o uso de palavras que se referissem de alguma forma à visão.
- Quase oito meses. - Ela inalou, a fumaça do cigarro, perguntando a si mesma
por que a franqueza dele não a deixava desconcertada. Talvez porque ele não
parecesse ficar embaraçado ou excessivamente consciente do fato de ela ser cega.
- Um número redondo e aproximado. Pensei que você fosse responder em dias e
horas.
- Desisti de tentar fazer uma contagem exata desde que o quarto especialista
disse a meu pai e a
mim mesma que eu jamais poderia voltar a ver outra vez. - Melina
fez o possível para dar um tom mais leve à sua resposta, mas não foi
completamente bem-sucedida.
- O que foi que aconteceu?
- Um desastre com o carro. Era tarde da noite. Eu estava dirigindo e vinha de
Sacramento para casa; acontece que adormeci no volante e não sei exatamente como
tudo aconteceu. - Seus dedos movimentaram-se inquietos pelo ar e depois voltaram
a segurar a xícara de café. - Só fui acordar num hospital. Não houve testemunha
alguma do acidente. Um outro motorista disse que viu meu carro caído num
barranco; segundo os cálculos das autoridades, só fui encontrada algumas horas
depois do acidente.
Melina esperou pelos comentários supostamente consoladores, que sempre vinham
depois de ela relatar os detalhes do acidente, todas aquelas afirmativas de que
poderia ter sido muito pior ou de que ela deveria estar feliz por não ter
morrido ou ficado paralítica.
Mas nenhuma destas frases feitas foram ditas por Bay.
- E o que é que você pretende fazer agora?
- Não sei. - Ela ainda não conseguira encontrar uma solução para seu problema.
Tomou mais um gole do seu café e continuou:
- Estou, por enquanto, apenas vivendo o dia-a-dia, reaprendendo novamente a
fazer todas as coisas que eu antes julgava serem normais e fáceis. Eu tinha
tanta certeza de que iria fazer carreira como artista que nunca aprendi qualquer
outra coisa. Entretanto, vou ter de tomar uma decisão sobre meu futuro, dentro
em breve. Não posso continuar sendo um fardo para meu pai.
- Duvido que ele a considere como um fardo.
- Eu sei que ele não pensa isso - enfatizou ela inconscientemente.
Bay Cameron era suficientemente observador para perceber detalhes desse tipo. -
Mas alguma outra pessoa pensa isso, não é? insistiu ele. - É a noiva de seu pai?
Melinà abriu a boca para negar, mas depois balançou a cabeça, num relutante
gesto positivo. - Não tenho nada contra Deborah. Acho até natural que ela queira
meu pai só para ela... Não quero que você me compreenda mal. Gosto dela. Aliás,
fui eu quem os apresentou um ao outro. Ela é proprietária de uma pequena loja de
antiguidades aqui em São Francisco. O problema é que sabemos que nunca daria
certo nós morarmos na mesma casa. Ela quer que eu frequente uma escola onde
pessoas cegas podem aprender novas habilidades e profissões.
- E o que é que seu pai acha dessa idéia?
- Não acredito que Deborah já tenha mencionado essa escola para ele. - Um
sorriso desajeitado surgiu nos lábios de Melina.
- Acho que ela está querendo que eu me sinta tremendamente culpada, para que eu
mesma defenda a idéia quando papai tocar no assunto.
- Você tem sentimento de culpa? - perguntou Bay, enquanto ela apagava
cuidadosamente seu cigarro no cinzeiro.
- Suponho que sim. E é bastante natural, você não acha? Todo mundo quer ter a
sensação de ser útil pelo menos em alguma coisa.
- E você não está fazendo coisa alguma que julgue ser útil?
- Eu cuido da casa e faço quase tudo o que precisa ser feito numa cozinha.
Dificilmente poderei continuar fazendo isso depois que papai e Deborah se
casarem. Afinal de contas, vai ser a casa dela. Sei que poderia aprender a fazer
alguma coisa. Eu me sinto ainda excessivamente orgulhosa, dou-me importância
demais. Minhas mãos sempre seguraram pincéis. Acho apenas
que não quero abrir mão disso. E, provavelmente, é por causa disso que eu fico
sempre adiando o dia de tomar a decisão de finalmente começar a fazer alguma
outra coisa.
- E o que é que seu namorado acha disso tudo?
- Namorado? Eu não tenho namorado. Tenho uma porção de amigos, mas nenhum
namorado - disse Melina com firmeza.
- Você é muito atraente. Acho meio difícil acreditar que você não tenha um
envolvimento romântico com alguém - comentou Bay, com um tom de dúvida.
- O que sempre tive foi minha carreira - respondeu ela, erguendo os ombros. -
Não posso negar que tive alguns namorados, mas sempre procurei escapar de todo e
qualquer envolvimento romântico mais sério. Amor e casamento sempre foram duas
coisas que iriam acontecer apenas num futuro muito remoto. Agora, mais do que
nunca me sinto feliz por ter pensado assim. Quantos homens gostariam de se
sentir amarrados eternamente a uma esposa cega?
- Você não acha que essa é uma opinião um tanto quanto cínica a respeito dos
homens? - perguntou ele.
- Não, não acho - respondeu ela, com um sorriso. - Nem tampouco uma opinião
cínica sobre amor. É apenas realista. Os cegos tendem a fazer com que as outras
pessoas se sintam constrangidas, pouco à vontade e muito conscientes de nossa
situação. Todo o mundo tenta tomar cuidado para não ferir nossos sentimentos,
evitam mencionar determinadas coisas das quais simplesmente não podemos
participar, e isto tudo acaba criando um relacionamento pouco confortável.
- É engraçado - comentou ele -, mas não me sinto nem um pouco constrangido, ou
pouco à vontade ou qualquer coisa do género, apesar de estar aqui, sentado ao
seu lado.
Por um momento, Melina se sentiu chocada com a observação dele. Principalmente
porque era a pura verdade. Não havia qualquer sinal de tensão na atmosfera que
os circundava.
- Na verdade, não estava pensando em você - admitiu ela. Estava me referindo a
alguns dos meus outros amigos e amigas. Todos eles continuam mantendo contato
comigo; pelo menos, todos os que eu realmente considero. Eles telefonam ou
aparecem para bater papo, ou me convidam para sair, mas já não é mais a mesma
coisa. com alguns deles, o que tínhamos em comum era a arte, de maneira que
compreendo perfeitamente quando não querem abordar este assunto em minha frente.
E os outros, bem, acho que existe simplesmente uma vaga sensação de
desconforto de ambas as partes. com você ainda não consegui compreender direito
a situação. Estou falando com você a respeito de coisas que certamente não lhe
interessam e nem sei por que estou falando. Ou será que você é alguma espécie de
psiquiatra amador?
- Não, a psiquiatria não é o meu passatempo predileto. - Ela sentiu que ele
estava sorrindo. - E não achei nada enfadonho ou monótono o que você contou.
Imagino que todas essas coisas foram se armazenando durante algum tempo dentro
de você. E sempre é muito mais fácil conversar com pessoas estranhas, que não
têm opiniões
preconcebidas. Acontece simplesmente que eu fui o estranho mais disponível no
momento.
- Neste caso, qual é o sábio conselho que você tem para me dar?
- indagou ela com um sorriso desafiador.
- Os estranhos não servem para dar conselhos. Eles servem apenas para ficar
escutando. - A vontade de rir era evidente, na voz dele, quando ele escapou
agilmente da pergunta.
Os dedos de Melina tocaram a superfície de vidro, com sinais em Braile, do seu
relógio de pulso. - Preciso voltar para casa.
- Nossa conta, por favor - pediu Bay.
Quando Melina se levantou, Bay já estava a seu lado, entregando-lhe a bengala.
Novamente, sua mão pousou na cintura dela, guiando-a discretamente por entre as
mesas, em direção à porta de saída.
Ela teve a impressão de que seu coração deixou de bater durante um segundo.
Melina descobriu que queria acreditar que aquilo tinha sido um comentário
pessoal, e
não apenas casual. Isto a colocava, porém, num terreno perigoso, por isso
preferiu ficar em silêncio.
- Meu carro está logo ali, na outra rua - disse Bay, como se não esperasse
resposta dela. - Posso lhe dar carona até sua casa?
Já passava da hora em que Melina estaria em casa, segundo o que dissera a Peggy
Collins. Por este motivo, resolveu aceitar a oferta.
O trânsito mais intenso já começara e pouco conversaram no percurso.
Tomando como referência as freadas do carro nos sinais, Melina foi contando os
quarteirões, de maneira que pôde perceber direitinho quando Bay dobrou a esquina
da rua em que ela morava.
- Nossa casa é aquela pintada de dourado-escuro, com frisos brancos e castanhos
- disse-lhe ela. - Bay estacionou o automóvel junto à calçada e mal dera a volta
no carro e abrira a porta para ela, quando Melina ouviu a voz de sua vizinha.
- Melina, você está bem? - A pergunta foi seguida imediatamente pelo som do
portãozinho de madeira se abrindo e dos passos apressados de Peggy,
aproximando-se deles. - Já estava querendo ir até sua casa; pensei que talvez
você já tivesse chegado e simplesmente tivesse esquecido de me avisar.
- Acabei demorando mais do que imaginei - disse Melina.
- Ê, deu para perceber. - O tom de curiosidade em sua voz demonstrou que Peggy
esperava que Melina a apresentasse a Bay.
- Peggy, este é Bay Cameron. Peggy Collins é minha vizinha disse ela.
Depois de costumeira troca de cumprimentos, Bay virou-se para Melina e disse:
-
E agora é a minha vez de dizer que preciso ir andando, Melina.
- Muito obrigada pelo café e pela carona - disse ela, estendendo-lhe a mão.
- - Foi um prazer, para mim. - Seu aperto de mão era quente, agradável,
transmitia uma sensação de segurança e foi rápido demais. - Eu a vejo de novo
qualquer dia destes.
A última frase soou como uma promessa, e Melina desejou ardentemente que fosse
mesmo uma promessa. A arrogância que ele revelara no primeiro encontro
apagara-se totalmente. Era realmente estranho pensar como ela tinha confiado
tantas coisas a ele, pensou Melina, quando ouviu a porta do carro se abrir e
fechar; logo em seguida, ouviu o motor dando a partida. Nem mesmo com seu pai
conseguira conversar de uma maneira tão livre e solta.
- Onde foi que você o conheceu? - perguntou Peggy, curiosa.
- Outro dia, lá no Iate Harbour, quando Deborah e eu fomos apanhar papai -
explicou ela, esquecendo-se durante um instante que a vizinha estava parada ao
lado dela. - E hoje à tarde, simplesmente tropecei nele. Quero dizer, não
tropecei literalmente - acrescentou Melina, enquanto a sua cabeça acompanhava o
ruído do motor se distanciando, até não poder mais ouvi-lo. Virou-se então para
a vizinha: - Peggy, me diga uma coisa: como é que ele é?
Peggy fez uma pausa, como se estivesse recolhendo suas impressões. - É um homem
alto que ainda não chegou aos quarenta anos. Seus cabelos são castanhos, puxando
um pouco para o avermelhado; seus olhos são da mesma cor. Diria que ele é
exatamente o protótipo do homem bonito. Dizer que tem uma boa aparência também
não é exato, mas, de certa forma, ele se enquadra nestas duas definições.
- Depois de hesitar um pouco, Peggy continuou: - Parece ser um homem de verdade.
Você entende o que eu quero dizer?
- Claro - respondeu Melina, suavemente. - Pelo menos, acho que sei o que você
quer dizer.
CAPÍTULO III
- Você tem certeza de que quer mesmo andar pelo ancoradouro, Melina? - perguntou
Deborah, meio impaciente.
- Gostaria muito de poder fazer isso - admitiu ela. Inconscientemente, Melina
ergueu o queixo, formando um ângulo desafiador. Mas, obviamente, só se isso não
for atrapalhar alguma conversa íntima sua com papai.
- Você sabe que não se trata disso - suspirou Deborah. - Grant se preocupa muito
com você e não existe qualquer tipo de amurada lá no trapiche.
- Todos os pais se preocupam, Deborah - argumentou Melina calmamente. - Papai
apenas acha que ele tem mais motivo para se preocupar do que os outros pais, e
até com uma certa procedência. Mas não posso passar o resto da minha vida
deixando de fazer coisas que eventualmente venham a lhe causar preocupações.
- Acredite-me, se eu pudesse encontrar uma maneira para fazêlo deixar de se
preocupar tanto com você, eu a punha em prática com a maior boa vontade -
respondeu Deborah maldosamente, quando saiu do carro.
Melina seguiu-a lentamente, contornando o automóvel no parque do Iate Harbour.
- Papai disse mais alguma coisa sobre a necessidade de marcar uma data
definitiva? - perguntou Melina, quando as duas começaram a caminhar em direção
aos portões.
- Não! E eu também procurei não mencionar mais o assunto.
- Fez-se uma pequena pausa, antes que Deborah continuasse: Há muito tempo,
reconheci que sou uma mulher possessiva e extremamente ciumenta, Melina. Se eu
casasse com o seu pai enquanto você ainda estivesse morando com ele, isto com
toda certeza serviria para criar uma série de atritos entre todos nós. Você
ficaria magoada, seu pai ficaria magoado e eu também. Sei perfeitamente bem que
você é uma pessoa extremamente independente e que não tem desejo algum de se
transformar num fardo que seu pai terá de carregar até o fim de seus dias.
- E é justamente por causa disso que você está forçando a idéia da tal escola -
atalhou Melina, respirando fundo, sabendo que havia muita verdade nas palavras
de Deborah.
- Talvez não seja uma solução, Melina; mas seria um início sugeriu ela, com toda
a seriedade.
- Preciso de mais tempo para pensar. - Melina ergueu o rosto contra o vento,
sentindo em cheio a brisa do mar. - Não perco a esperança de que possa surgir
alguma outra alternativa, embora não saiba qual seja.
- Mas você também está considerando a possibilidade de ir para essa escola, não
está?
- É uma opção que eu preciso considerar - suspirou Melina -, independentemente
de gostar ou não dessa idéia.
- Obrigada. - A voz de Deborah tremeu levemente, antes de assumir seu tom
férreo, cheio de determinação:
- Gosto muito de você, Melina, mas amo seu pai. Esperei muito tempo até
conseguir encontrar um homem como ele. Portanto, por favor, compreenda os meus
motivos ao insistir tanto para que você se mude.
- Compreendo. - Elas já caminhavam agora sobre as tábuas do trapiche. - Se eu
amasse um homem, estaria tão ansiosa quanto você para ficar sozinha com ele. Mas
não estou disposta a ser forçada a tomar uma decisão precipitada, preciso
primeiro ter toda a certeza de que não existe mesmo outra alternativa que me
satisfaça mais.
Melina adivinhou a tática adotada pela outra e concordou plenamente em mudar de
assunto. - O barco de papai já chegou?
- Já. No momento, ele está amarrando as velas e arrumando o barco - respondeu
Deborah. Passados alguns instantes, ela o chamou, num tom mais alto: - Alo,
querido! Você se divertiu bastante?
- Claro que sim. - Havia um tom de alegria na voz de seu pai; Melina sorriu, ao
perceber isto. - Melina? Eu não esperava ver você aqui, ao lado de Deborah.
- Está fazendo um dia bonito demais para ficar esperando lá no carro. Prometo
que serei uma menina boazinha e que não vou sair do meio do trapiche.
- Estarei pronto dentro de mais alguns minutos - prometeu ele.
- vou buscar a garrafa térmica e as outras coisas lá embaixo, na cabine, se você
quiser, Grant - ofereceu-se Deborah.
Houve um curto momento de hesitação antes que a proposta dela fosse aceita..
Melina percebeu que seu pai estava relutante, diante da sugestão, o que
implicaria deixá-la sozinha ali.
Melina .sentiu uma sensação estranha quando percebeu que estava sozinha à beira
do cais. Imediatamente, ficou alerta ao som de passos que se aproximavam; não
eram os passos de uma só pessoa. Sua intuição lhe disse que podia ser Bay
Cameron que estava vindo em sua direção, e no mesmo instante percebeu que
torcera o tempo todo querendo que ele viesse. Mas ele não estava sozinho, havia
mais alguém com ele, umas três pessoas talvez. Melina percebeu, um pouco
alarmada, que uma das pessoas que o acompanhavam deveria ser uma mulher, talvez
pelo perfume ou pelos passos mais leves.
- Satisfeito por hoje, sr. Lane? - perguntou a voz de Bay Cameron, à guisa de
cumprimento.
- Oh, sr. Cameron, como vai? - respondeu Grant, com uma nuance de surpresa na
voz. - Sim, por hoje chega; acho que recarreguei minhas baterias até a próxima
semana.
O senhor está chegando ou também já está indo embora?
- Estamos saindo. Resolvemos apreciar um pôr-do-sol no oceano
- respondeu Bay, confirmando indiretamente, para Melina, que os outros passos
que ela ouvira eram das pessoas de seu grupo. Ele parara ao lado dela. - E como
está você hoje, Melina?
- Mui to bem - respondeu ela.
- Pelo que vejo, você conseguiu percorrer hoje o caminho todo até o ancoradouro,
sem nenhum acidente. Você caminhou sozinha?
- As palavras foram pronunciadas num tom suave.
- Não, não vim até aqui sozinha - murmurou ela, mal movimentando os lábios.
- Bay, você não vem? - perguntou uma voz feminina, cheia de impaciência.
- Já estou indo, Roni - respondeu ele. - Nós nos veremos outra vez. - Esta
promessa meio ambígua serviu de despedida; dita em voz alta, foi uma promessa
feita a todos e não apenas a Melina em particular.
- bom passeio para vocês! - desejou-lhes Grant. Melina ficou em silêncio.
Uma leve depressão tomou conta dela e aumentou quando ouviu a pergunta da amiga
de Bay querendo saber quem eram eles.
Seus dedos comprimiram com força o cabo da bengala. Não teria suportado a
sensação de olhares penalizados sobre ela.
Já era suficientemente desagradável imaginar a explicação que estariam ouvindo
de Bay naquele exato momento.
- Você já está pronto, papai? - perguntou ela, um pouco incisiva, subitamente
interessada em ir embora dali.
- Já estamos indo - respondeu ele.
Alguns momentos depois, ambos estavam ao lado de Melina; o braço de seu pai
envolveu-a pelos ombros e a conduziu de volta pelo caminho que as duas tinham
percorrido pouco tempo antes.
Tentara bloquear as lembranças daquele domingo, mas elas permaneciam como
sombras espreitando seu mundo já tão escuro. Os sons melancólicos dos violinos
no disco contribuíam para aumentar a profunda depressão que sentia. As posições
dos móveis na casa tinham sido memorizadas por ela há muito tempo, por isso foi
até a vitrola e, decidida, desligou-a.
A campainha da porta da frente começou a tocar. Com um suspiro impaciente, provocado por essa intromissão indesejada, Melina
caminhou até o interfone.
- Sim, quem é? - indagou ela, de maneira algo brusca.
- BayCameron.
A surpresa manteve-a em silêncio durante alguns segundos.
- O que deseja, sr. Cameron?
- Eu lhe garanto que não estou vendendo enciclopédias, nem escovas, nem apólices
de seguros - respondeu com seu habitual tom gozador. - O único motivo forte para
vir até aqui é ver você.
Melina soltou um suspiro de irritação diante do tom desafiador da voz dele. -
Chego até aí em um minuto - respondeu ela e desligou o botão.
Depois de abrir a porta, Melina caminhou quatro passos e parou. Havia um portão
de ferro batido a menos de um palmo diante dela, evitando que as pessoas na rua
tivessem acesso direto à casa. Bay se encontrava do outro lado do portão.
- Então, o que é que deseja, sr. Cameron? - disse ela, friamente.
- Posso entrar?
O bom senso de Melina acabou perdendo a batalha silenciosa que se travou em seu
íntimo. Seus dedos irritados abriram o trinco do portão, permitindo que ele
entrasse.
- Posso saber agora por que motivo você quis me ver?
- Está fazendo um dia daqueles que os fotógrafos aproveitam para fazer
cartões-postais. Não há uma única nuvem no céu. O sol brilha e a brisa está
suave e morna. Acho que é um dia ideal para se dar um passeio - concluiu Bay. -
E passei por aqui para ver se você não gostaria de me acompanhar.
Melina duvidou da sinceridade de suas palavras. Não conseguia imaginar que o
motivo que o levara a convidá-la se resumisse no desejo verdadeiro de apreciar
sua companhia.
Devia estar sentindo pena dela, nada mais.
- Sinto muito, mas não é possível - recusou ela, com toda a sinceridade possível
na voz.
- Não é possível? - questionou ele.
- Estou preparando um assado para o jantar. Preciso colocá-lo no forno dentro
de... - ela tocou em seu relógio especial - ... de quarenta e cinco minutos.
- E esta é a única desculpa que você tem? í
- Acho uma desculpa muito válida - replicou Melina com firmeza.
- Se esta for a única, podemos resolver isso facilmente - disse Bay,
complacente. - Seu forno certamente tem um dispositivo de tempo. Enquanto você
termina de preparar
a carne, acerto o dispositivo automático.
- Mas. . . - ela tentou protestar, mas nenhum argumento lhe veio à mente.
- Mas o quê? Você não quer dar um passeio? O dia está bonito demais para ficar
dentro de casa o tempo todo.
- Oh, está bem - suspirou ela, exasperada, virando-se em direção a porta.
O riso foi a resposta que ele deu à maneira relutante com que ela concordara. -
Estou impressionado com o entusiasmo com que você sempre aceita meus convites.
- Talvez meu entusiasmo possa ser explicado por eu não conseguir compreender os
motivos que o levam a me fazer estes convites
- respondeu Melina.
- Tenho a impressão - disse ele, estendendo a mão e abrindo a porta para ela -
de que se você alguma vez deixar de tomar tantas atitudes defensivas só porque é
cega, poderá se transformar numa companhia bastante agradável.
Melina ficou de novo silenciosamente irritada com as palavras de Bay. Como toda
a sua vida e todo o seu futuro tinham se baseado na habilidade que seus olhos
tinham de ver as coisas que as mãos poderiam pintar, era natural que ela se
sentisse amargurada diante da injustiça de seu destino. Até mesmo Bay
reconhecera isto. E se concordava com isto, que direito tinha ele de condená-la?
Bay Gameron parecia ser um homem que ditava suas próprias leis, admitiu Melina.
Ela o acompanhou em silêncio, atravessaram a sala de jantar e entraram na
cozinha. Enquanto temperava a carne e a colocava na assadeira, ele se encarregou
de regular o forno.-
- Estamos prontos para ir agora? - perguntou ele.
- Ainda não. Preciso telefonar antes para o meu pai - respondeu ela. - Quando
Peggy Collins, nossa vizinha, que você conheceu outro dia, não está em casa, ele
faz questão que eu o avise sempre que saio de casa, dizendo para onde vou e
quanto tempo ficarei fora.
- Como medida de precaução, caso algum motorista inocente a atropele por aí? -
indagou ele, naquele mesmo tom de voz que parecia dizer que ele não a levara a
sério. - Agora vá e telefone para seu pai.
- É o que vou fazer e fico muito agradecida por ter sua permissão para fazer
isto - retrucou Melina.
Logo depois, Melina telefonou ao pai, explicando rapidamente que Peggy não
estava em casa e que iria dar um passeio. Sem mencionar, porém, seu
acompanhante.
- Quanto tempo você ficará fora de casa? - perguntou Grant Lane.
- Umas duas horas. Eu telefono assim que voltar - asseguroulhe Melina.
- Sei que está fazendo um dia maravilhoso, mas você acha mesmo que precisa ficar
fora de casa tanto tempo assim? Não gosto da idéia de você ficar vagando sozinha
pelas ruas - disse ele.
- Não se preocupe comigo. - Ela se mostrava estranhamente relutante em dizer ao
seu pai que estava na companhia de Bay Cameron.
- A mão de Bay tomou-lhe o telefone da mão.
- Sr. Lane, quem está falando aqui é Bay Cameron. Melina vai sair em minha
companhia. Eu lhe prometo que a trarei de volta em tempo para jantar. - O pai
deve ter dado resposta afirmativa, porque logo em seguida Bay se despediu e
desligou o telefone. - Ele lhe deseja um bom divertimento.
Retirando a bengala do lugar onde sempre a guardava, ouviu Bay abrindo a porta
da escada. Quando chegaram à rua, ele disse:
- Acho que deveríamos tomar o bonde da Hyde Street e ir até a praça Ghirardelli.
Você concorda? - Havia um tom de divertimento em sua voz, o que levava a crer
que ele achava engraçados os acessos temperamentais de Melina.
- Como quiser. - Ela ergueu os ombros, de uma maneira rígida. Bay agradeceu
cortesmente por ela concordar com sua proposta e, sem qualquer comentário,
manteve-se em silêncio. Não fosse a mão dele que a pegava pelo cotovelo todas as
vezes que era necessário atravessar a rua, Melina caminhava como se estivesse
sozinha. E, excetuando-se algumas breves palavras de agradecimento quando ele a
ajudou a subir e a descer do bonde, também não lhe disse palavra.
- Ainda está fazendo beicinho? - A pergunta escondia um sorriso disfarçado,
quando sua mão se fixou firmemente na cintura dela, para conduzi-la em meio ao
fluxo constante de turistas.
- Não estava fazendo beicinho - respondeu Melina friamente.
- Bem, talvez um pouquinho - reconheceu ela, relutante, mas ainda com um certo
vestígio de irritação. - Mas você é capaz de ser insuportavelmente mandão às
vezes.
- Acho que todo mundo exagerou um pouco, ao fazer todas as suas vontades. As
pessoas que gostam de você, não gostam de lhe dizer não - comentou ele.
- Acredito que a mesma observação também seja válida em relação a você.
- E eu tenho certeza de que é válida. - Novamente, ele mostrou uma calma
aceitação das críticas dela. - Mas nós não estamos falando a meu respeito.
Afinal, quem estava fazendo beicinho era você.
- Só porque você sempre comanda tudo, sem que ninguém lhe peça para fazer isto -
retrucou Melina.
- E agora? Vamos manter de pé nosso estado de guerra ou vamos continuar o
passeio como bons amigos? Nós nos entendemos bem outro dia.
Melina respirou profundamente, sentindo que estava se rendendo ao charme do
timbre grave da voz dele. - Está bem, amigos então
- concordou ela, novamente atendendo ao seu bom senso.
Tendo sucumbido, percebeu que facilmente se deixava levar pela persuasão de Bay,
e, gentilmente, ele foi levando a conversa para assuntos menos problemáticos.
Eles passearam em volta da fonte da praça central da velha fábrica de chocolates
Ghirardelli, transformada posteriormente num shopping center extremamente
original. Pararam num dos cafés com mesas ao ar livre e comeram panquecas.
O passeio levou-os a passar pelas vitrines das diversas lojas que circundavam a
praça. Bay, rindo, desafiou Melina a identificar o tipo de estabelecimento pelos
ruídos e pelos cheiros. E ela se saiu bem nas floriculturas e nas lojas de
artigos de couro; também conseguiu reconhecer com exatidão que tipo de comida
era servida nos diversos restaurantes típicos, mas fracassou diante das
joalherias e das lojas de artigos para presentes.
Quando Bay parou diante de outra loja, ela soltou um suspiro de derrota diante
da vitrine: - Realmente, Bay, eu já não consigo mais. Por favor, vamos acabar
com esta brincadeira.
- Está bem - concordou ele, como se estivesse pensando em alguma coisa
completamente diferente. - É uma loja de roupas femininas, e tem um vestido aqui
na vitrine, que eu acho que foi feito especialmente para você. Venha comigo. -
Seu braço a envolveu subitamente pela cintura. - Vamos entrar na loja para você
ver o vestido.
Instantaneamente, Melina ofereceu resistência ao braço dele. Você está se
esquecendo de um detalhe sumamente importante, Bay. Sou cega!
- Não me esqueci de detalhe algum, minha altiva princesa cega
- disse ele com muita paciência. - De maneira que você pode tirar do rosto esta
máscara de profunda indignação. Onde foi parar toda aquela imaginação criativa
da qual você tanto se vangloriou outro dia? Estou querendo entrar com você na
loja para você ver o vestido com suas mãos.
Sentindo-se um pouco envergonhada com as palavras de Bay, Melina concordou em
silêncio que ele a conduzisse para dentro da loja.
- Posso ajudá-los em alguma coisa? - perguntou uma das vendedoras.
- Pode sim - respondeu Bay. - Gostaríamos de dar uma olhada no vestido que está
exposto na vitrine.
- Não vendemos roupas prontas aqui, meu senhor - respondeu a mulher, com muita
educação. - Aquele vestido é apenas um modelo, do qual fazemos uma cópia exata
para nossas clientes.
- Permita-me que eu explique melhor o que quis dizer. A senhorita Lane é cega.
Eu admirei o vestido na vitrine e gostaria muito que ela também o apreciasse.
Mas para que ela possa fazer isto, é necessário que toque com as mãos. Seria
possível isto?
- Claro que sim e me desculpe. vou precisar apenas de alguns minutos.para tirar
o vestido do manequim - disse a vendedora.
Melina estava embaraçada, ficou mudando o peso do corpo de um pé para o outro e
sentiu que a pressão da mão de Bay apoiada na sua cintura aumentava cada vez
mais, transmitindo-lhe confiança. Pouco depois, ela ouviu um farfalhar de seda
diante dela.
- É este o vestido, senhorita Lane - declarou a atenciosa vendedora.
- A senhora não poderia descrever o vestido para ela, mencionando todos os
detalhes? - pediu Bay.
- Mas é claro que sim - concordou a mulher. - É uma seda estampada em tons de
vermelho, dourado, laranja e amarelo em tiras dispostas em camadas irregulares;
que
se enrolam normalmente nas pontas, como verdadeiras chamas. - Os dedos sensíveis
de Melina acompanharam o contorno das diversas camadas. - O modelo tem um decote
bastante discreto. As mangas são feitas com tiras triangulares aplicadas
diretamente na linha do decote.
À medida que seus dedos tocavam o vestido, Melina começou a formar uma imagem
cada vez mais completa do conjunto, auxiliada pela descrição da simpática
vendedora.
- Será que a senhora não poderia ignorar um pouco as regras da casa e permitir
que ela o experimentasse? - perguntou Bay à vendedora, após observar que o
tamanho
poderia servir para Melina, e utilizando novamente o tom persuasivo que Melina
sabia muito bem ser irresistível para qualquer pessoa.
A mulher respirou fundo, mas depois sorriu. - Eu não consigo imaginar nada que
impeça isso. Temos uma cabine de prova lá no fundo. Senhorita Lane, por favor,
venha comigo.
Melina hesitou um instante, mas Bay lhe fez uma pequena e afetuosa pressão nas
costas.
- Não consigo entender por que permito que você sempre me coloque nestas
situações em que não tenho qualquer alternativa.
- É porque, bem lá no fundo, você gosta que as coisas sejam assim - respondeu
ele, em tom de brincadeira. - Além disso, aposto que você ainda não comprou
nenhuma roupa nova depois do acidente.
- Acontece que eu não senti necessidade de comprar coisa alguma - protestou ela,
fracamente.
Realmente, não teria sido preciso insistir tanto para que ela experimentasse o
vestido. A imagem que ela formara em sua mente e a sensação ao tocar o tecido de
finíssima qualidade já a tinham deixado muito interessada em prová-lo, mesmo
sabendo que não poderia ver o efeito final.
Mudando rapidamente suas roupas esportivas, necessitou da ajuda da vendedora
apenas para fechar o zíper. com a mão pousada levemente no braço da moça,
voltou, algo nervosa, para a parte da frente da loja, onde Bay a esperava.
- E então? - perguntou Melina, quase sem fôlego, quando percebeu que o silêncio
estava se prolongando dolorosamente.
- Você está muito bonita, Melina - declarou Bay com simplicidade.
- Isto é o menor elogio que já ouvi em toda minha vida - afirmou a vendedora. -
A senhorita está maravilhosa e não estou dizendo isto porque trabalho aqui. O
vestido parece ter sido feito especialmente para você. O vestido, as cores, o
corte, tudo combina perfeitamente com sua figura. É impressionante!
Os dedos de Melina acompanharam lentamente o contorno do decote, sentindo a
textura do tecido. - Será que.. . seria possível a senhora me vender este
modelo?
- Não costumamos trabalhar desta maneira aqui - hesitou a mulher, depois
acrescentou com um sorriso na voz: - Um momento; eu vou verificar.
Quando a mulher se afastou, Melina virou-se novamente para Bay. - Você tem mesmo
certeza de que o vestido fica bem em mim?
- perguntou, com uma certa ansiedade.
- Você está querendo ouvir mais elogios ainda?
- Não. Não é isto - negou ela, passando as mãos nervosamente em sua própria
cintura e olhando sem enxergar as camadas de tecido que caíam graciosas sobre
seu braço. - É que não posso ter certeza de que. . .
- Tenha certeza. - com passos silenciosos como os de um gato, ele se colocou ao
lado dela e ergueu seu queixo com a ponta de um dedo. - Eu lhe disse a verdade.
Você está muito bonita.
Ela desejou ardentemente poder ver a expressão que devia estar estampada no
rosto dele. Não duvidou da sinceridade que sua voz transmitia, mas sentiu que
ele se retraíra um pouco, que ficara mais distante.
- E o que é que está preocupando você agora? - zombou Bay.
- Eu... - Ela sentiu que seu rosto ficou livre novamente quando ele deu um passo
para trás. - Estava simplesmente imaginando quando é que terei a oportunidade de
usar um vestido como este respondeu Melina, escondendo um pouco a verdade.
- Pois tenho certeza de que vai haver uma ocasião especial para usá-lo e então
você vai ficar muito contente por tê-lo comprado respondeu ele, num tom quase
indulgente.
- Eu nem perguntei o preço - murmurou ela. Depois uma lembrança a assaltou,
fazendo seus ombros penderem. - Não trouxe muito dinheiro comigo. Você acha que
eu poderia deixar apenas um sinal e mais tarde viríamos buscá-lo e pagar o
restante?
- Poderia pagar para você - sugeriu Bay, meio distante.
Melina mordeu o lábio inferior; estava tremendamente interessada em ter o
vestido, em poder levá-lo já, mas não tinha vontade de ficar devendo uma
obrigação ao homem que não podia considerar ainda como amigo.
- Se isto não lhe causasse muito transtorno... - aceitou ela, hesitante - ...
você poderia me dar seu endereço e a quantia num papel e eu pediria a papai que
lhe enviasse um cheque ainda hoje mesmo.
- Você não aceitaria o vestido como um presente?
Melina afastou-se um pouco. - Não. - A recusa foi firme, não cederia caso ele
insistisse.
- Nem pensei que você aceitasse. - Ele parecia estar vagamente irritado. - Muito
bem, neste caso, lhe empresto o dinheiro para comprar o vestido.
- Fico-lhe muito grata - murmurou Melina, aliviada, porque o episódio não iria
terminar numa discussão.
- Em vez de seu pai me mandar um cheque, poderia passar na sua casa, sexta-feira
à tarde - sugeriu ele.
- Se você quiser - respondeu ela, franzindo a testa.
A vendedora retornou com a informação de que seria possível, excepcionalmente,
vender o modelo. O preço não foi tão elevado quanto Melina temera. Enquanto ela
foi trocar novamente de roupa, Bay se encarregou de acertar os detalhes da
compra.
Quando saíram da loja, ele lhe disse, não muito feliz, que já tinham passado as
duas horas e que estava na hora de levá-la de volta para casa. Em seguida,
sugeriu que em vez de tomarem o bonde, voltassem para casa de táxi. A esta
altura, Melina teria preferido prolongar o passeio o mais possível, mas
percebera que tinha ocorrido uma mudança sutil na atitude dele, por isso achou
melhor concordar com sua sugestão.
CAPITULO IV
Melina tocou a superfície do relógio com a ponta dos dedos. Duas horas da tarde.
Em seguida, estendeu a mão em
direção à mesinha de centro, para certificar-se de
que o cheque continuava onde seu pai o colocara pela manhã antes de sair de
casa. Reclinou-se no encosto do sofá, esfregando a nuca na parte superior, numa
tentativa
de relaxar um pouco os músculos tensos. Era uma tolice ficar num tal estado de
nervos só porque Bay Cameron vinha visitá-la, pensava ela.
A campainha da porta da frente soou e ela correu para o interfone, respondendo o
chamado com um excitado: - Quem é?
- Sou eu, Bay Cameron.
- Já estou descendo para abrir a porta.
Um sorriso estava estampado no seu rosto quando ela abriu a porta e caminhou em
direcão ao portão de ferro.
- Você chegou em cima da hora ?- disse ela.
- Sempre faço o possível para ser pontual.
- Estou com tudo prontinho para lhe preparar um café, se é que você tem tempo
disponível.
- Claro que sim - respondeu Bay.
Melina subiu na frente e chegando ao andar superior indicou-lhe a sala de estar.
- Acomode-se enquanto vou buscar a bandeja do café. O cheque do vestido está
sobre a mesinha de centro, diante do sofá.
Bay não se ofereceu para ajudá-la a servir o café quando voltou, deixando que
ela resolvesse sozinha este problema.
- Você tem uma casa agradável. Estes quadros na parede foram pintados por você?
- perguntou ele.
- Foram sim - respondeu ela, equilibrando cuidadosamente
a xícara. - Meu pai gosta muito de paisagens, por isso acabou escolhendo aquela
para nossa casa. Mas como ele gosta muito do mar, as paisagens são marinhas.
- Estes são os únicos quadros seus que você ainda tem? Melina inclinou a cabeça
para trás. - Não. Não são os únicos.
- Poderia ver os outros quadros mais tarde? - pediu Bay, de maneira muito suave
e cautelosa.
- Eu realmente preferiria não mostrá-los.
- Se você prefere não mostrá-los, não vou insistir - resignou-se ele. - Mas não
vou fingir que não estou curioso para saber por que você não os quer mostrar.
Afinal, já tive a oportunidade de ver diversos trabalhos seus. Por que não quer
mostrar o resto?
- Está bem, vou mostrá-los a você. - Não sabendo ao certo se tinha mudado de
idéia pelo tom paciente da voz dele ou por ter concluído que realmente não
existia nenhum motivo válido para não fazé-lo, ela continuou: - Os quadros estão
no atelié, lá em cima. Dito isto
levantou-se, parando um instante para dirigir o rosto em direção à cadeira
ocupada por ele.
- Mostre-me o caminho, então - disse Bay, levantando-se também.
Após subirem a escada que levava ao pavimento superior, Melina encostou a mão na
parede, tateando-a até chegarem à segunda porta que dava para o atelié.
- Este atelié não é usado, quero dizer, não é mais usado, por isso você poderá
achar que está um pouco abafado aqui - explicou Melina, desnecessariamente,
parando e encostando-se na parede ao lado da porta.
Bay não se deu ao trabalho de responder a seu comentário. Ela ficou parada onde
estava, prestando muita atenção aos pequenos ruídos que ele fazia andando de um
lado para o outro, parando aqui e ali para examinar alguma coisa que lhe tinha
chamado a atenção. Outras vezes, pôde ouvi-lo mexendo com os quadros encostados
nas paredes, querendo ver o que havia atrás deles.
- São quadros muito bons, Melina - disse ele, finalmente. Ela moveu a cabeça na
direção da voz. - É uma pena deixá-los escondidos neste atelié.
- Papai e eu já conversamos muito sobre a possibilidade de vendê-los. Certamente
acabaremos fazendo isto qualquer dia destes -
respondeu Melina, esforçando-se para engolir o nó que se formara em sua
garganta.
- Você alguma vez chegou a modelar alguma coisa?
- Ah, sim, trabalhei um pouco em argila, quando tive de estudar outros meios de
expressão artística, mas foram apenas noções gerais
- declarou Melina, franzindo um pouco a testa. - Por que você quer saber?
- Você já considerou alguma vez a possibilidade de se desenvolver nisto, agora
que ficou cega?
- Nunca - respondeu ela, meneando a cabeça num gesto negativo.
Sem perceber direito, permitira que ele a conduzisse até o corredor. Sua
pergunta tinha sido completamente inesperada e deflagrou dentro dela uma série
de pensamentos contínuos.
O assunto não voltou a ser mencionado quando Bay deixou que ela descesse a
escada na frente dele, permitindo deliberadamente que ela repassasse sozinha a
idéia, sem que ele fizesse qualquer tentativa de influenciá-la. Apesar do imenso
desejo de rejeitar a idéia de fazer qualquer coisa que não estivesse ligada à
pintura, não restava qualquer dúvida de que a semente tinha caído em solo
fértil.
O café que Melina servira esfriara nesse meio tempo. Enquanto ela foi levar as
xícaras, teve mais tempo para refletir sobre aquela sugestão que lhe fora feita
de maneira indireta. Ficou pasma pelo fato de nenhum dos seus amigos também
ligados à arte tivesse se lembrado de mencionar essa possibilidade. Talvez fosse
mesmo necessária a objetividade de uma pessoa relativamente estranha ao assunto.
- Gostaria de lhe fazer uma pergunta - declarou Bay quando Melina lhe trouxe
outra xícara de café. - Você e seu pai já fizeram planos para amanhã à noite?
- Não - respondeu Melina, num tom de espanto. - Papai costuma passar a tarde e a
noite de sábado na companhia de Deborah. Por quê?
- Pensei que poderíamos jantar juntos em algum lugar. Isto lhe daria
oportunidade para usar seu vestido novo - respondeu Bay com a maior
naturalidade.
- Não, muito obrigada - recusou-se ela.
- Mas por que você não quer ir jantar comigo? - perguntou ele, sem se mostrar
constrangido com a rejeição dela. Com um movimento orgulhoso, Melina jogou a
cabeça para trás, ao mesmo tempo que recolocava o bule na bandeja e recostava-se
no sofá, segurando a xícara de café com ambas as mãos. - Pelo simples fato de
que não como em restaurante, pois posso deixar cair alguma coisa no chão e, você
tem de admitir, será bastante constrangedor para mim - concluiu ela.
- Pois estou disposto a assumir esse risco - replicou ele.
- Pois eu não estou. - Impaciente, tomou um gole de café quente que lhe queimou
a língua.
- Se isto não for um pretexto para recusar minha companhia, você aceitaria
sugestão menos formal? Por exemplo, poderíamos comprar alguns camarões e
caranguejos lá no Wharf, pão e salada e improvisaremos uma espécie de piquenique
em alguma praia.
Melina hesitou. A proposta era tentadora e divertida, mas ela não sabia se
aceitava ou não o convite dele. Nos momentos em que não sentia raiva de sua
arrogância, Melina descobrira que gostava dele e de sua companhia. No entanto,
duvidava de que uma amizade duradoura pudesse algum dia vir a existir entre
eles.
- É um convite tão difícil assim de ser aceito? - perguntou ele, irónico.
Isso fez com que ela se sentisse uma tola. Ela estava dando importância
desproporcional a um simples convite. Um suave tom rosado tingiu-lhe as faces.
- Não é difícil - murmurou ela, curvando a cabeça em direção à xícara que estava
no seu colo, procurando disfarçar seu embaraço.
- Aceito o convite.
Em seguida, ela ouviu o ruído surdo de alguma coisa que caíra no chão; seu rosto
virou-se rapidamente na direção de onde viera o ruído. - O que foi isto?
- Uma coisinha que eu trouxe de presente para você - respondeu Bay, com uma
naturalidade meio ensaiada. - Minha intenção era lhe entregar antes, mas depois
a conversa nos levou a outros assuntos. Tinha deixado o seu presente aqui no
lado da poltrona e, acidentalmente, acabei derrubando-o. Pegue-o por favor.
Uma caixa comprida e estreita foi colocada no colo dela depois de Melina ter
posto a xícara sobre a mesa.
- Por que você me trouxe um presente? - perguntou ela, meio inquieta.
- Porque senti vontade de fazer isto, e, por favor, não me peça para levar o
presente de volta. Não poderia ser usado por nenhuma outra pessoa que conheço.
Duvido que o aceitem de volta, onde o consegui - declarou ele.
- O que é? - perguntou Melina curiosa, inclinando a cabeça para o lado.
- O melhor jeito de descobrir é abrir a caixa e verificar o que tem lá dentro -
respondeu Bay, sem revelar mais nada., com um certo nervosismo, Melina ergueu a
tampa da caixa e a colocou sobre o sofá.
O objeto da caixa era cilíndrico e sólido.
De início não conseguiu identificá-lo até que percebeu seu comprimento. Sua mão
acabara de se fechar em torno do objeto para retirálo da caixa e ela o soltou
outra vez, cruzando as mãos firmemente em seu colo.
Sentiu então desagradável sensação de enjoo.
- É uma bengala, não é mesmo? - acusou ela quase sem movimentar os lábios e
sentindo um gosto desagradável na boca ao mesmo tempo que pronunciava aquelas
palavras.
- É sim - admitiu Bay, sem demonstrar o mais leve sinal de remorso. - Mas não se
trata de uma bengala branca comum.
A caixa foi retirada do colo dela. Melina mantinha os lábios firmemente
comprimidos e os dedos entrelaçados. Os dedos de Bay se fecharam em torno de seu
punho e firmemente separaram suas mãos, ignorando a resistência que ela lhe
opunha.
Uma mão ficou solta; a outra foi segura por ele com pouco esforço. O cabo curvo
da bengala foi pressionado na palma de sua mão e Bay a forçou a fechar os dedos
em torno dele.
A primeira impressão de Melina foi a de uma superfície lisa e vitrifiçada; logo
em seguida, seu tato sensível sentiu os entalhes. Quase involuntariamente, as
pontas dos seus dedos começaram a explorar o traçado do relevo.
Ali, finalmente, ela foi capaz de identificar o formato de uma cabeça de dragão.
- É uma bengala de marfim entalhada - explicou Bay. - Eu a vi outro dia na
vitrine de uma loja no bairro chinês.
- É uma peça muito bonita - admitiu Melina com uma certa relutância. A mão que
cobria a sua relaxou um pouco. Ela continuou a explorá-la durante mais alguns
momentos. - Deve ser uma peça
muito valiosa - comentou, e a estendeu em direção a ele. - Jamais poderia
aceitá-la.
- Realmente o trabalho é artístico. - Ele simplesmente ignorou a mão que lhe
estendia a bengala. - O que você está realmente querendo dizer é que não quer
aceitá-la porque, apesar de ser de marfim, ela continua sendo uma bengala de cor
branca.
Melina não negou sua afirmação. - Não posso aceitá-la.
- E eu não posso devolvê-la na loja onde a comprei - replicou ele, sem mudar o
tom de voz.
- Sinto muito. - Ela empurrou a bengala para as mãos dele e a soltou. - Eu
compreendo a significação do seu gesto, Bay, mas você sabia o que eu penso sobre
bengalas brancas antes de comprála. Ela parece muito bonita, mas não vou
aceitá-la.
- Suponho que se eu tentar mudar sua opinião, você desiste do que combinamos
para amanhã à noite - suspirou ele com um tom quase resignado de aceitação.
- Provavelmente sim - declarou ela, erguendo os ombros, mas torcendo intimamente
para que ele não a colocasse em tal posição.
- Neste caso, prefiro guardar todos os meus argumentos para outra ocasião. - Ela
ouviu novamente o ruído do papel de seda e depois a tampa sendo recolocada sobre
a caixa. - Mas vamos deixar uma coisa bem clara: não estou desistindo, estou
simplesmente adiando a batalha.
- Pois fique sabendo que eu não tenho a mínima intenção de mudar minha opinião -
replicou Melina teimosamente, mas com a sombra de um sorriso aparecendo no canto
de sua boca menos tensa.
- Aceito o desafio. - Ela percebeu claramente o sorriso na voz de Bay. - E
aproveitando que ainda estamos em pleno período de armistício, você poderia me
servir mais uma xícara de café?
- Claro que sim - respondeu ela.
O assunto da bengala de marfim não foi abordado outra vez, mas quando Bay
Cameron se despediu cerca de meia hora depois, Melina certificou-se de que ele
estava levando a caixa pois receava que ele pudesse esquecê-la acidentalmente.
Foi somente à noite, quando Deborah chegou, que Melina descobriu que Bay
conseguira enganá-la.
- Onde foi que você conseguiu isto, Melina? - perguntou Deborah, num tom de voz
que revelava simultaneamente curiosidade e surpresa.
Os dedos de Melina pararam no meio da leitura de um texto em Braille, quando ela
virou a cabeça na direção da voz de Deborah.
- Você está se referindo a quê?
- A esta bengala de marfim. O cabo tem um dragão entalhado dos lados.
Encontrei-a no chão da sala, ao lado da poltrona. Você estava querendo esconder
a bengala nova?
- Não estava querendo esconder coisa alguma - respondeu Melina, apertando os
lábios.
- É uma peça muito elegante. Onde foi que você a conseguiu?
- indagou Deborah.
- Sim, onde? - perguntou seu pai. - Não a tinha visto antes. Você também a
trouxe no dia em
que saiu com Bay Cameron?
- Papai, você já deveria estar sabendo que eu nunca concordaria em usar uma
bengala branca e muito menos de marfim - retrucou ela. - Essa bengala foi um
presente de Bay. Eu a recusei, é lógico. E pensei que ele a tivesse levado de
volta.
- Recusou a bengala? - perguntou Deborah, assombrada. Mas por que é que você
haveria de recusar um presente tão maravilhoso?
- Pelo simples fato de que não gostei dela - respondeu Melina, num tom de voz
quase malcriado.
Ela percebeu que a almofada do sofá a seu lado cedeu um pouco ao receber o
impacto do peso do seu pai. A mão dele gentilmente pousou sobre seus dedos
rígidos que estavam apoiados agora sobre a capa fechada do livro que ela
estivera lendo.
- Você não acha que está se comportando de uma maneira um pouco tola, meu bem? -
A pergunta repreensiva foi dita num tom extremamente suave. - Nós sabemos que
você não a recusou porque achou que era um presente caro demais, e nem porque
não se trata de uma peça bonita. Você a recusou simplesmente por ser branca. Mas
você não pode escapar do fato de ser cega simplesmente por se recusar a usá-la.
- Não tenho a maior intenção de ficar alardeando por aí que sou cega - respondeu
ela secamente.
- As pessoas acabam percebendo isto, independentemente da cor da bengala que
você estiver usando, minha querida. E, pelo amor de Deus, não é vergonha alguma
ser cego - argumentou Grant Lane.
- Eu não tenho vergonha disto! - respondeu Melina, rispidamente.
- Às vezes, sim, você se comporta como se tivesse - disse ele.
- Eu suponho que você deve achar que eu poderia usá-la - desafiou ela com um
movimento impertinente de cabeça.
- Sou seu pai, Melina. Não há necessidade alguma de ficar se defendendo em
relação a mim. Você está crescida demais para eu lhe dizer o que pode e o que
não pode fazer. Você sabe perfeitamente qual é a forma mais inteligente e
correta de agir. Se vai usá-la ou não é uma decisão que depende única e
exclusivamente de você.
- Desculpe-me, mas quero ir para o meu quarto agora. - Melina colocou ô livro
que estava lendo sobre a mesa e levantou-se.
Era impossível discutir o assunto se seu pai não estava disposto a isso. Ela
detestava profundamente todas as ocasiões em que ele fazia um apelo a seu bom
senso. Nestas ocasiões, ela invariavelmente acabava perdendo.
- E o.que é que eu faço com esta bengala? - perguntou Deborah, hesitante.
- Por enquanto, coloque-a ali dentro do porta-guarda-chuva respondeu Grant. -
Melina pode decidir o que pretende fazer antes que Bay venha buscá-la amanhã à
noite.
Quando Melina colocou o pé no primeiro degrau da escada, ouviu Deborah
perguntando: - Posso saber por que ele virá aqui amanhã à noite?
- Ele convidou Melina para irem juntos ao Wharf - respondeu o pai.
- Você quer dizer que ela tem um compromisso com ele? - perguntou ela, incrédula
e surpresa.
- Creio que sim. Ele me telefonou ontem à tarde para o escritório depois de ter
visto Melina, para me perguntar se eu faria alguma objeção. Não podia
perguntar-lhequais eram suas intenções, podia? Acho que teria sido uma atitude
grosseira, principalmente considerando-se a maneira educada e as atitudes
simpáticas que ele tem tido em relação a ela.
Alguns minutos antes das seis horas da tarde, Melina estava sentada no sofá. Sem
conseguir se concentrar direito em coisa alguma, estendeu a mão pela segunda vez
para ter certeza de que o casaco azul de capuz estava mesmo ali ao lado. Logo
depois, ouviu a campainha da porta da frente.
Rapidamente, vestiu o casaco. Audaciosamente juntou os cabelos, prendendo-os em
um coque no alto da cabeça. Sua pergunta pelo interfone foi respondida por Bay.
- Desço num instante - disse ela.
Sua mão fechou-se sobre a maçaneta, mas ela hesitou um instante. A outra mão
estava apoiada no cabo da velha bengala de carvalho. Durante alguns segundos,
permaneceu ali parada, imóvel; depois, com um suspiro de resignação, trocou a
bengala de carvalho pela de marfim.
Lentamente, desceu os degraus, abriu a porta da frente, trancou-a e caminhou em
direção a Bay.
- Você demorou bastante - comentou ele. - Já estava começando a me preocupar,
achando que alguma coisa a estava impedindo de sair.
- Tive de vestir meu casaco - mentiu Melina, esperando que ele fizesse algum
comentário sobre a bengala.
O suspense da espera pela expressão de triunfo por parte dele começou a aumentar
ainda mais no momento em que ele a ajudou a entrar e a se instalar dentro do
carro. Como continuou calado mesmo depois de ter dado a partida e posto o carro
em movimento, Melina percebeu que não seria capaz de continuar esperando mais e
perguntou:
- E então? Você não vai fazer nenhum comentário sobre a bengala?
- O que é que você está querendo que eu diga? - A voz grave e calma continuava
perfeitamente controlada.
- Imagino que você deva estar se sentindo tremendamente realizado. Afinal de
contas, você esqueceu a bengala em casa deliberadamente - disse Melina em tom de
acusação.
- Eu lhe dei a bengala. Foi um presente e não costumo aceitá-los de volta. O que
você fez ou deixou de fazer com ele é um problema exclusivamente seu. Não
insisti que você a usasse, como também não teria impedido se você resolvesse
jogá-la no lixo - respondeu Bay.
- Bem, resolvi usá-la - declarou ela, virando a cabeça para a frente como se
pudesse enxergar alguma coisa no trânsito.
- Fico contente com isto. - O carro dobrou uma esquina e começou a descer por
uma ladeira íngreme: - Será que podemos deixar de lado agora toda esta história
da bengala?
Melina suspirou: - Sim, podemos.
Todas as vezes que Melina pensava saber como Bay iria reagir, ele fazia
exatamente o oposto. Ele deveria sentir-se vitorioso, mas, ao contrário, estava
tão calmo e objetivo que ela não tinha como sentir qualquer tipo de
ressentimento por ele. Ela é quem tomara a decisão de usar a bengala de marfim,
não Bay, e ele sabia perfeitamente disto.
No final da ladeira, Bay virou outra esquina.
Depois de estacionarem o carro, começaram a caminhar num ritmo pausado; Bay
colocou o braço esquerdo de Melina em seu braço direito.
Apesar das barracas que vendem frutos do mar serem o local para onde se
dirigiam, resolveram, de comum acordo, continuar caminhando até mais longe e
voltariam mais tarde. As calçadas estavam repletas de turistas atraídos pela
vista daquela área extremamente pitoresca e colorida.
Quando chegaram ao fim do cais atravessaram a rua em direção a uma série de
lojinhas e começaram a caminhar lentamente de volta para as barracas.
- A neblina está chegando? - perguntou Melina.
- Está começando a ganhar a baía - confirmou Bay. - Já não está dando para ver
os cabos superiores da Golden Gate e as colinas de Màrin no lado norte da baía.
Parece que a neblina vai ser muito espessa hoje à noite.
- Neste caso, vou ter de conduzir você de volta até o carro declarou ela com um
sorriso, provocando o riso em Bay. Melina virou-se para ele e perguntou, com
bastante curiosidade: - Como é que você conseguiu este nome tão estranho: Bay?
- Foram meus pais que me deram ou você pensava que eu não tinha pais?
- Lógico que sim. Eles ainda estão vivos? - perguntou ela, desviando-se por um
momento da pergunta anterior.
- Pelo que me consta, estão vivos sim. Estão viajando pela Europa, em uma
segunda lua-de-mel. - Seu braço apertou o dela durante uma fração de segundo,
pedindo que tomasse cuidado. - Você terá de descer um degrau agora.
- Bay é algum nome de família? Algum sobrenome? - perguntou Melina.
- Bem que gostaria que fosse. Mas não. Meu nome me foi dado por motivos mais
simples. É que minha mãe podia ver toda a São Francisco Bay da janela do
hospital. O que eu nunca entendo muito bem, porque afinal ela nasceu e viveu a
vida inteira aqui em São Francisco e não era a primeira vez que via a baía -
explicou ele.
- Mas chega de falar sobre mim. Por que você foi batizada com o nome de Melina?
- É que minha mãe gostava do som deste nome. Ela o achava muito musical. Mamãe
era uma mulher muito romântica.
- Escute, já estamos andando há mais de uma hora; não está ficando com fome? -
indagou Bay, mudando de assunto.
- Estou quase morrendo.
- E por que você não disse antes?
Na longa fileira de barracas que vendem frutos do mar, Bay escolheu o caranguejo
cozido, um pão redondo feito com massa azeda, uma salada e um coquetel de
camarões.
Bay entregou-lhe o farnel e pediu-lhe que o esperasse do lado de fora, enquanto
iria comprar uma garrafa de vinho branco gelado para acompanhar o improvisado
piquenique.
Melina percebeu que ficou toda arrepiada um instante antes da mão dele tocar em
seu braço, avisando que ele já estava de volta. Chegou a conclusão de que
deveria ter uma espécie de poder telepático, que lhe avisaria sempre quando Bay
se aproximasse.
Já estavam à beira do porto quando Melina sentiu que a garoa fina que lhe batia
no rosto se tornara mais forte. - Isto já não é mais maresia; já está começando
a chover de verdade - comentou ela, contrafeita.
- Você tem razão - declarou Bay, com um suspiro, aborrecido também.
- Bem, acho que podemos levar isto tudo para casa e faremos o nosso piquenique
lá - sugeriu Melina.
- Pois eu tenho uma idéia melhor ainda. Meu barco está ancorado bem perto daqui.
Nós poderíamos comer a bordo. O que você acha?
- Acho esta idéia bem mais simpática do que a minha.
Bay deixou Melina esperando no trapiche, enquanto ele levava os pacotes com a
comida e o vinho para a cabine. Para subir novamente convés, suas mãos fortes
circundaram a cintura dela e com um único movimento ela estava a bordo. Ele a
manteve segura durante mais alguns minutos para que pudesse recuperar o
equilíbrio e Melina apoiou as mãos nos antebraços musculosos dele.
- Faz tanto tempo que estive num barco - disse Melina, com um tom estranho na
voz - que minhas pernas de boa marinheira ainda não conseguiram se acostumar
inteiramente.
Com um braço segurando-a firmemente pela cintura para que não caísse, Bay a
conduziu à cabine, abaixo do convés. Certificando-se de que ela estava se
segurando no corrimão, ele desceu a sua frente. Lá embaixo, ele lhe indicou onde
estavam as cadeiras e deixou que ela mesma encontrasse o caminho até elas.
- Você não velejou mais depois do acidente, não é mesmo? Por quê? - A voz grave
de Bay parecia estar aguçada de curiosidade.
- Bem, fui algumas vezes, mas sempre tive de ficar na cabine. Papai não sabe
nadar e ele tinha medo que eu escorregasse e caísse no mar. Mas gosto mesmo é de
ficar no convés, com o vento batendo com força no rosto e as ondas quebrando na
proa e respingando água para todos os lados. Por isso é que não quis velejar
mais – concluiu ela.
Um coquetel de camarões foi colocado diante dela, ao mesmo tempo que Bay se
sentava a sua frente. Durante algum tempo a conversa ficou girando em torno de
barcos a vela, passando depois aos mais variados assuntos, enquanto comiam.
- O que eu gostava mesmo de fazer antigamente era ficar observando as pessoas,
estudando os seus rostos - disse ela tomando mais um pequeno gole de vinho. -
Obviamente, eu fazia isto com frequência quanto pintava. A maior parte de meus
melhores quadros foi inspirada no rosto de pessoas que eu via andando nas ruas.
A meu ver,boa parte das atitudes de uma pessoa perante a vida está estampada em
seu rosto. O olhar sombrio de um pessimista, a dureza de um sujeito cínico, a
autoridade de alguém com talento para a liderança, o aspecto preocupado de
alguém que sente um ímpeto doentio de vencer, a vontade de viver, a satisfação
com a família e com o lar. Existem tantas coisas - Melina suspirou suavemente.
- Não é muito fácil ser obrigada a se contentar apenas com vozes, mas eu estou
começando a aprender. É difícil, entretanto, visualizar o aspecto de uma pessoa
tendo como ponto de partida apenas a voz.
- Bem, e quais foram as conclusões a que você chegou a meu respeito? -
desafiou-a Bay, por brincadeira.
- Bem, você tem tanta confiança em si mesmo que chega às raias da arrogância. É
muito bem educado, mas acostumado a exercer muita autoridade sobre as demais
pessoas. Você obviamente adora a vida ao ar livre, principalmente no mar. Tem
acessos temperamentais com facilidade, mas pode ser extremamente cortês, quando
isto lhe convém.
- E você já imaginou um rosto que combine com a minha voz? Melina virou o rosto
para o outro lado, sabendo que ele a estava
encarando fixamente. - Somente uma imagem meio vaga de características muito
fortes e marcantes. - Mudando de assunto, ela empurrou o prato para longe de si,
dizendo:
- Foi tudo muito agradável.
- Por que você não pediu para olhar para mim? - perguntou Bay calmamente,
preferindo ignorar a tentativa que ela acabara de fazer para mudar de assunto.
- O... o quê? - gaguejou ela.
- Olhar da mesma maneira como você olhou aquele vestido outro dia - explicou ele
pacientemente.
Melina mexeu-se no banco, sentindo-se pouco à vontade. O pensamento, a
possibilidade, de explorar o rosto dele com suas mãos era realmente algo
perturbador.
- Eu poderia ir preenchendo as lacunas para você. Sabe, tenho cabelos verdes e
olhos ruivos, e uma comprida e feia cicatriz no lado esquerdo do rosto; mas
quase ninguém percebe isso porque eu a escondo por trás de uma mal cuidada e
cerrada barba, de cor verde também. E o que mais? Ah, sim. . . tenho uma
tatuagem no meio da minha testa, mostrando uma caveira e dois ossos cruzados;
tíbias, para ser mais específico, e não vou jamais revelar o que representa a
tatuagem que tenho gravada no meio do peito. - O sorriso cada vez mais amplo
estampado no rosto de Melina espoucou em riso, diante de sua descrição absurda.
- Você não acredita no que eu digo?
- É meio difícil acreditar nisto tudo. Além do mais, minha vizinha já me fez o
favor de me informar que seus cabelos são castanhoavermelhados e que os seus
olhos são castanhos também - contou Melina rindo, sentindo que a tensão ia
desaparecendo.
- Meus olhos são cor de canela, na opinião de minha mãe, e ela não mente -
corrigiu Bay. - Bem, isto tudo significa que você, pelo menos, ficou curiosa o
suficiente para perguntar. Mas é natural - respondeu ela, fazendo o possível
para que ua voz soasse da maneira mais natural possível. E o que mais ela lhe
contou a meu respeito? - insistiu ele.
- Peggy não tem muito talento para descrever as pessoas - esquivou-se Melina,
pouco disposta a repetir o comentário que sua amiga fizera a respeito de sua
figura.
- Mais um motivo para que você tente descobrir tudo por você mesma - desafiou
ele.
Ela ouviu o ruído de pratos sendo empilhados, depois a movimentação dele quando
os pratos foram levados para a cozinha. Isso deulhe o tempo necessário para
inventar uma desculpa que lhe permitisse não tocar nos seus traços fisionómicos,
como ele propusera. No entanto, por mais que tentasse, Melina foi incapaz de
encontrar uma única desculpa que não revelasse suas próprias apreensões em
relação a tal intimidade.
Quando Bay retornou, ele não se sentou no lugar que ocupara antes, diante dela,
mas preferiu sentar-se a seu lado. Antes que ela pudesse fazer um protesto, Bay
já tinha segurado seus pulsos gentilmente impossibilitando que ela escapasse.
Puxou então suas mãos em direção a seu próprio rosto.
- Não há necessidade alguma de você se sentir tímida e constrangida - disse ele,
enquanto ela tentava escapar. - Isto não vai me deixar embaraçado.
O contorno rígido do seu potente maxilar estava sob suas mãos, pressionadas uma
de cada lado do rosto dele.
À medida que sua resistência desaparecia, ele soltou suas mãos. O contato
inicial tinha sido estabelecido e o calor que emanava do corpo dele animou as
mãos frias de Melina. Tateando, começou a deslizar os dedos pelo rosto de Bay.
Partindo do maxilar, as pontas dos dedos passaram pelas faces, chegando ao osso
malar. Depois tocou levemente nos longos cílios curvados, em seguida as
sobrancelhas espessas e a testa larga. Cabelos espessos, levemente ondulados,
caíam-lhe naturalmente pelo rosto. O nariz tinha curvatura arrogante e os lábios
cheios eram de consistência firme, sem serem rígidos. Após inspecionar o ângulo
quase prepotente do queixo, Melina deixou cair as mãos.
Era um rosto másculo, pensou ela satisfeita. Não havia a menor dúvida quanto a
isto. Ninguém jamais iria referir-se a Bay Cameron como sendo um homem
convencionalmente bonito, mas era inegável que possuía um rosto marcante,
com toda a certeza, todo mundo olhava para ele quando chegava a algum lugar.
- E qual é o veredicto? - perguntou Bay.
- O veredicto é o seguinte - respondeu ela com uma falsa entonação -, eu
simplesmente gosto de seu rosto.
Ele tocou-lhe na parte inferior do queixo e fez seu rosto retomar a posição
inicial, frente a frente com o seu.
- Eu.também gosto de seu rosto, Melina - murmurou ele suavemente.
A face de Bay acariciou o rosto de Melina, antes que os lábios tocassem os dela.
A surpresa inicial fez com que Melina se sentisse tensa com o beijo, mas a suave
e firme pressão daquela boca máscula acabou transmitindo um calor que aos poucos
tomou conta de todo o seu corpo.
Ela sentiu que seu coração estava começando a bater desordenadamente. Bay
começou então a roçar levemente seus lábios contra os dela, até conseguir a
reação que pretendia. Depois lentamente, quase a contragosto, ele se afastou
dela.
Melina sentia ainda aquela sensação de prazer e forçou-se a impedir o impulso de
levar a mão aos lábios. Um maravilhoso e agradável calor invadira seu corpo,
deixando-a um pouco intrigada até, sem compreender direito o que causara esta
transformação.
- Por que este semblante tão pensativo, Melina? - indagou gentilmente.
- Eu... eu nunca fui beijada - murmurou ela.
- Mentirosa - disse ele suavemente. - Não foi uma mulher totalmente inexperiente
que retribuiu meu beijo agora mesmo.
- Eu... quero dizer... - murmurou ela, sentindo que suas faces estavam ficando
cada vez mais vermelhas - ... não fui beijada desde que fiquei cega.
- Nesta versão, eu acredito. - Bay tomou-lhe a mão num gesto natural, sem muita
intimidade. - Vamos ver se encontramos uma xícara de café bem quente por aí em
algum restaurante qualquer.
Melina concordou de bom grado em deixar o barco. Por algum motivo, o chão
debaixo de seus pés não lhe parecia mais ser muito seguro. Estava ansiosa por
sentir terra firme outra vez.
Passavam alguns minutos das dez horas da noite quando Bay estacionou
o carro diante da casa dela e a acompanhou até o portão de ferro. Não a
acompanhou até a pequena entrada e Melina
voltou-se, hesitante, para ele.
- Foi uma noite maravilhosa. Muito obrigada - mas achou suas palavras muito
convencionais.
- Eu também acho que a noite foi maravilhosa, por isso os agradecimentos são
perfeitamente dispensáveis - respondeu Bay sorridente. - vou passar a próxima
semana em Los Angeles, mas prometo telefonar assim que voltar de lá.
- Boa noite, Bay - concordou ela.
Ele fechou o portão de ferro e Melina trancou-o com a chave.
Ela sentiu que o olhar dele a acompanhou até a porta. Bay tinha um rosto
másculo!
CAPITULO V
Melina desligou bruscamente a vitrola, pois a música não conseguia acalmá-la.
Não tinha vontade de fazer nada. Cansara-se de ficar lendo. Além disso, seus
dedos ainda não estavam bem adestrados para leitura em Braile, exigindo dela uma
concentração
total. E neste estado de inquietude, sabia que os seus pensamentos começariam a
divagar.
Uma voz interior culpava injustamente Bay Cameron disso.
No entanto Melina não conseguia imaginar por que motivo sua viagem a Los Angeles
a afetava desta maneira. Esses ataques de inquietação não eram novidade para
ela, pois já os sentira antes do acidente. Mas naquele tempo sempre canalizava
essa energia para seus quadros. Agora não conseguia descobrir uma válvula de
escape. "Você alguma vez já modelou... eu quero dizer em barro?"
Ela ouviu as palavras de Bay claramente dentro de sua cabeça, como se estivesse
ali, parado ao seu lado. A semente que tinha sido lançada alguns dias antes
começou a germinar.
Caminhando até o telefone, Melina tirou o aparelho do gancho, depois hesitou
durante alguns momentos. Antes que pudesse mudar de idéia discou um número que
sabia de cor.
- Loja das artes - respondeu uma voz.
- Gostaria de falar com Sam Carlysle, por favor - pediu Melina. Alguns minutos
depois uma voz masculina e familiar entrou na linha: - Alo, Sam. Aqui é Melina.
- Melina! Como vai você? - exclamou ele, obviamente contente com a surpresa.
- Tudo bem, estou lhe telefonando para lhe pedir um favor.
- Eu estou inteiramente às suas ordens, Melina.
- Será que você poderia mandar ainda hoje um pouco de argila para modelar e um jogo barato de ferramentas? Você resolveu começar a modelar? -
perguntou ele assombra- Decidi fazer uma tentativa - respondeu ela. - E como é
apenas uma tentativa, uma experiência, quero apenas o material estritamente
necessário, para ver se vou gostar da coisa.
- Iria pessoalmente se fosse possível, mas o menino de entregas vai sair daqui
dentro de, no máximo, dez minutos. E o primeiro endereço da lista será o seu, eu
lhe prometo.
Menos de meia hora depois, o entregador chegou com o material encomendado. Ela
já tinha preparado uma pequena área no ateliê, onde poderia trabalhar.
Depois que ele partiu, ela retornou ao ateliê e sentiu um arrepio de excitação
percorrer-lhe a espinha. Seu velho avental de trabalho estava pendurado atrás da
porta, cheirando ainda a tintas e a aguarrás. Dentro de pouco tempo, o cheiro da
argila vai substituir completamente estas lembranças, pensou ela com alegria
enquanto vestia o avental e tateava o caminho até a mesa que decidira usar como
local de trabalho.
Sua noção de tempo desaparecera completamente.
Ela começou modelando algumas formas simples, utilizando frutas como modelos
para suas mãos inexperientes neste novo campo. Seu nome foi chanlado pela
terceira vez, quando finalmente conseguiu romper sua concentração. E necessitou
de mais alguns segundos até reconhecer a voz de seu pai.
- Eu estou aqui em cima, no ateliê - respondeu ela.
Havia uma expressão de excitação misturada com um pouco de apreensão no rosto
dela, quando se virou para a porta aberta.
- Eu já estava começando a ficar preocupado - disse Grant com um suspiro de
alívio. E o que é que você está fazendo aqui em cima?
- Eu estou trabalhando - respondeu Melina suavemente, com uma ponta de orgulho
na voz; mas pelo silêncio tenso que se fez no estúdio, ela percebeu que sua
explicação não seria necessária.
- Eu... eu estou boquiaberto - disse Grant. - Como. . . quando...? - Depois ele
começou a rir diante de sua própria inabilidade de formular direito suas
perguntas e atravessou o ateliê até onde ela estava, para envolvê-la num forte e
afetuoso abraço. - Você é uma garota fantástica, Melina. Estou muito orgulhoso
de você.
- Por favor, me diga o que você acha disto? - repetiu ela, cheia de ansiedade.
- Se você está querendo saber se eu consigo ver a diferença entre a maçã e a
pêra, a minha resposta é obviamente sim. Posso até perceber que você está
trabalhando neste momento num cacho de uvas
- respondeu seu pai com um sorriso. - E tem mais, meu anjo: eu nem precisaria
ver aquelas frutas lambuzadas de argila para identificar as peças.
- Na semana passada, Bay perguntou se alguma vez já tinha modelado em argila.
Acho que foi a partir daquele momento que comecei a pensar na possibilidade,
pelo menos subconscientemente. Esta manhã decidi fazer uma experiência e
telefonei para o Sam, que mandou entregar o material - explicou Melina.
Fez-se um longo momento de silêncio entre os dois. Depois Grant respirou fundo e
declarou: - Mesmo assim, acharia melhor você encerrar suas atividades por hoje.
Não faz sentido você exagerar. Enquanto você dá uma arrumada em suas coisas, vou
lá embaixo cuidar do jantar, que você esqueceu completamente - brincou ele.
- Está bem - concordou ela.
Durante o resto da semana, Melina passou todos os minutos disponíveis no ateliê.
Os resultados finais de seus esforços, na maior parte das vezes, deixavam a
desejar, podendo ser considerados mais fracassos do que sucessos. E não
adiantava muito seu pai insistir que ela não podia esperar ser perfeita, pois
era apenas uma principiante. Melina exigia perfeição de si mesma e não se
satisfazia com qualquer coisa que não fosse perfeita.
Na manhã de domingo, Grant Lane expulsou-a do ateliê meio a força. - Pelo amor
de Deus, Melina! - disse. - Até mesmo Deus resolveu descansar no sétimo dia, e
olhe que ele não era cego!
Seu aspecto rebelde cedeu quando teve de submeter à lógica de seu pai. Ela
sentia uma comichão em seus dedos, uma vontade quase irresistível de sentir a
argila ganhando forma, mas ao mesmo tempo reconhecia que seu pai tinha toda a
razão.
- Preciso fazer algumas coisas no barco esta manhã. Você não gostaria de vir
comigo até lá? - sugeriu ele. - Deborah vai estar ocupada o tempo todo na
cozinha. Se eu deixar, você voltará para o atelier.
- Oh, nunca faria uma coisa dessa! - assegurou Melina, rindo de sua óbvia
hipocrisia.
-
Ah, não faria, é? Compreendo - zombou ele. - Você vai me
acompanhar até o barco e ponto final.
Pois eu acho que é extremamente desagradável saber que você
não confia em mim! Mas se esta é a sua opinião, não me resta outra alternativa a
não ser acompanhá-lo até o barco.
- Está ventando bastante, por isso se agasalhe. Escolha alguma roupa que você
possa sujar à vontade - acrescentou seu pai. - Estou pensando seriamente em pôr
você para limpar direitinho a cabine do barco.
- Ah, compreendo! Então é por causa disto que você está insistindo tanto para
que eu vá com você até lá - respondeu Melina, fazendo de conta que estava
irritada.
- Ora, você não achou que eu ia convidá-la apenas pelo prazer da sua companhia -
retrucou ele, no mesmo tom de voz, quando já estavam caminhando em direção à
escada.
Melina arregaçou as mangas do seu pulôver azul-marinho e começou a esfregar a
cozinha do barco. A transpiração estava fazendo com que a gola de lã do seu
pulôver lhe causasse uma sensação desagradável, mas, como estava com as mãos
cheias de sabão, nada podia fazer para eliminá-la. Assim que terminasse o que
estava fazendo, Melina decidiu que chamaria seu pai para tomar uma xícara de
café com ela. Pelo som de vozes lá em cima, ele estava mais batendo papo com os
amigos do que se empenhando no trabalho propriamente dito.
Talvez ela devesse subir até o convés e oferecer um café quente a todos, mas
depois riu de sua própria idéia. Se fizesse isto seria como se estivesse
assinando um documento isentando a todos de qualquer trabalho nos barcos naquela
manhã de domingo.
Os passos quase silenciosos de sapatos com sola de borracha aproximaram-se da
escada que levava até a cabine. Melina estava justamente lavando a pia e parou,
virando-se de maneira a ficar mais ou menos na linha de visão daqueles passos.
- Eu estava pensando em lhe levar um pouco de café lá em cima, assim que
terminasse aqui, papai. Se você achar que seus amigos também vão gostar, posso
levar mais algumas xícaras.
- Isto parece ser uma ótima idéia.
- Bay! Você voltou! - A demonstração de prazer escapuliu pela sua boca, sem ter
dado tempo à censura de exercer seu bloqueio costumeiro.
- Cheguei a São Francisco ontem no final da tarde - explicou ele - e pensei que
provavelmente encontraria você aqui hoje com o seu pai; mas nunca imaginei que
ele fosse transformá-la numa escrava a bordo.
Melina sorriu de sua zombaria e perguntou: - Você fez boa viagem?
- Fiz. Precisava verificar a posição de alguns investimentos e também queria ir
conhecer pessoalmente alguns terrenos que estou interessado em adquirir.
Encontrei, por mero acaso, um velho amigo, que estudou comigo. Ele está lá em
cima, conversando com seu pai. Por que é que você não sobe, para que eu possa
apresentá-la?
Ela pensara, por uma fração de segundo, que o tal amigo de escola fosse uma
outra mulher e ficou um pouco preocupada, pensando que talvez o alívio que
estava sentindo interiormente estivesse se refletindo em sua expressão.
Esperava que ele não percebesse isto.
- Eu estarei pronta dentro de um minuto - disse ela. - Se você quiser, já pode
ir levando o bule lá para cima.
- Está bem - concordou Bay.
Alguns minutos mais tarde, Melina foi reunir-se com os outros no convés.
- Deixe que eu pego isto, Melina - disse seu pai, enquanto tomava o açucareiro e
a lata de leite das mãos dela.
- Esta é a filha de Grant, Melina Lane - disse Bay.
- E este é um velho amigo dos tempos da universidade, o doutor Joe Browning.
Logo em seguida, Melina sentiu que sua mão estava sendo apertada pelo visitante,
que lhe disse: - Quase todo mundo sempre me chama de Joe; a não ser os meus
pacientes, para eles eu sou o doutor Joe.
Melina sentiu um arrepio gelado descendo pela sua espinha. Muito prazer. Como
vai? - respondeu ela, rigidamente, de maneira quase automática. Desde que
sofrera o acidente e tivera de se submeter ao exame de inúmeros médicos, Melina
começara a sentir uma profunda aversão por todos os que exerciam esta profissão.
- Então, não se esqueça: todos sempre me chamam de Joe repetiu ele. - Seu pai
estava me dizendo que você ficou cega há menos de um ano. Meus parabéns, você
parece que está conseguindo se adaptar bastante bem.
- Não existe qualquer outra alternativa, existe? - replicou ela de maneira algo
ríspida.
É lógico que existe outra alternativa, você poderia não estar
se adaptando bem.
Sua resposta maluca provocou um sorriso involuntário que lhe aflorou nos lábios.
Melina sempre imaginara que os médicos, mesmo quando não estão trabalhando,
sempre conservassem uma certa rigidez e só abrissem a boca para pronunciar
generalidades objetivas e pouco emocionais, além de viverem procurando
oportunidades para praticarem boas acões. Mas parecia que pelo menos este médico
era uma exceção.
- Pode estar certo que no começo dei muitas trombadas em móveis e em prédios por
aí – admitiu ela.
- Você usa uma bengala ou um cachorro ensinado para andar pelas ruas? - Antes
que ela pudesse responder a pergunta dele, continuou: - Ouvi dizer que, além dos
pastores alemães, estão começando a ser treinados poodles e cães de outras raças
para ajudar aos cegos. Você já imaginou? Um poodle, com seu corte de pêlos
sofisticado e exagerado, ajudando uma pessoa cega a atravessar uma rua? Eu não
consigo pensar em alguma coisa que pudesse ser mais absurda ou ridícula.
Melina começou a rir com a imagem que ele projetara em sua mente. Estava
começando a gostar da sua atitude irreverente; em consequência disto, sua
prevenção começou a desaparecer e o grupo passou a conversar.
Numa determinada altura, Melina não soube dizer quando, a conversa começou a
girar em torno de sua cegueira, do acidente e dos danos sofridos pelo seu nervo
óptico, em consequência dos ferimentos que recebera na cabeça. De repente,
percebeu que as perguntas tinham deixado de ser casuais, contendo agora uma
certa conotação profissional.
- Espere um instante - ela interrompeu o médico em meio a uma frase. - Você
poderia me explicar que tipo de médico você é?
- Eu sou um médico muito bom - respondeu ele. - Para ser mais específico, um
cirurgião.
- E qual é sua especialidade? - Mas logo em seguida, ela ergueu a mão, pedindo
que ele não respondesse e o atacou irritada. - Não, vamos ver se eu consigo
adivinhar. Sua especialidade são as cirurgias de olhos.
- Meus parabéns, você acertou na mosca e logo na primeira tentativa. Isto
demonstra que você é uma mulher que realmente sabe prestar atenção às coisas -
respondeu Joe Browning, sem demonstrar o menor embaraço.
- E pode me dizer agora a finalidade de todas estas perguntas? Foi uma espécie
de consulta disfarçada?
- Foi - admitiu ele com simplicidade.
Fervendo de indignação, Melina virou-se na direção em que sabia que Bay estava
sentado. - Foi você quem o trouxe para cá, não foi, Bay Cameron? E você
certamente estava por dentro desta conspiração toda, papai.
- Realmente, fui eu quem teve a idéia de que você não deveria saber o verdadeiro
motivo pelo qual o dr. Joe está examinando você
- replicou seu pai, num tom de voz contrito. - Bay foi quem esta beleceu o
primeiro contato, mas o restante foi idéia minha, para evitar que você passasse
novamente por todas aquelas situações desagradáveis, desnecessariamente.
- Então foi por causa disto - exclamou Melina, ainda muito irritada - que você
fez de conta que ele era um velho colega de escola, não é, Bay?
- Não, isto é verdade - replicou o médico -, da mesma maneira como também é
verdade que nos encontramos por acaso em Los Angeles. Ele não tinha a menor
idéia de que eu poderia estar lá, porque afinal me estabeleci na costa leste
durante os últimos anos. Ele mencionou seu caso numa conversa e isto acabou
despertando minha curiosidade profissional.
- Sinto muito mais, Melina - disse Bay calmamente. - Eu sabia que você iria
ficar irritada e desgostosa quando descobrisse tudo.
- Então por que é que vocês tentaram me enganar?
- Achei que deveria respeitar os desejos de seu pai. E havia também a chance de
que você não viesse a descobrir a manobra toda; não se Joe chegasse à conclusão
de que não existe mesmo qualquer esperança de sua visão ser recuperada -
respondeu ele.
- E qual é sua conclusão? - perguntou ela, virando-se em direção ao médico.
- Gostaria de poder realizar mais alguns testes com você num hospital, antes de
lhe dar uma resposta definitiva, Melina – disse ele honestamente. - Eu diria que
você tem uns dez por cento de chance.
- Quatro especialistas diferentes disseram a mim e a meu pai que eu nunca mais
poderia voltar a ver. O que é que faz você achar que é capaz de me ajudar? -
perguntou
Melina, num tom quase desafiante.
- Não sei se posso ajudar você - respondeu Joe -, da mesma forma como também não
sei se não posso! Às vezes, os processos naturais de recuperação do corpo se
encarregam de curar uma parte dos danos, transformando uma situação que não era
possível de cirurgia logo após o ferimento. Isto já aconteceu e não é novidade.
- Eu compreendo - respondeu ela, ainda irritada. - E é isto o que você acha que
pode ter acontecido em meu caso?
- Não sei se aconteceu ou não; mas acho que não deveríamos excluir totalmente
esta possibilidade - respondeu ele. - E para chegar a uma conclusão mais
definida, preciso internar você num hospital para efetuar alguns testes. Não
tenho a mínima intenção de despertar qualquer tipo de falsas esperanças em você,
Melina. As chances para você conseguir recuperar a visão são mínimas,
praticamente inexistentes. A decisão depende única e exclusivamente do seu
organismo.
Nem mesmo o perfume das rosas que seu pai lhe trouxera era capaz de vencer o
forte cheiro de medicamentos e de anti-sépticos característico de todo hospital.
Do corredor vinha o som das vozes de duas enfermeiras que passavam apressadas.
Melina ouvia a respiração regular e pausada da mulher que estava internada
naquele mesmo quarto com ela.
O horário das visitas já tinha passado. As luzes estavam apagadas. Ela sabia
disto, porque ouvira o barulho do interruptor de luz sendo movimentado quando a
enfermeira saíra, alguns minutos antes.
O mundo sombrio lhe parecia ser ainda mais negro esta noite. Ela estava se
sentindo tremendamente só e vulnerável. Tinha medo de sentir esperanças de que
os testes que seriam realizados na manhã seguinte mostrassem resultados
encorajadores. No entanto, era impossível ficar indiferente aos motivos pelos
quais estava deitada ali.
Fechou uma das mãos, num gesto agressivo. Maldito Bay, ele também não precisava
ter encontrado seu velho amigo que por mero acaso era médico, pensou Melina,
furiosa com tudo. Ela tinha conseguido aceitar sua cegueira, tinha parado de
lutar contra a injustiça daquilo tudo e estava começando a viver com aquela
situação.
Uma vez que Bay era parcialmente responsável pelo fato de ela estar ali
internada no hospital, pelo menos ele poderia ter vindo lhe fazer uma visita.
Mas não, ele se contentara em lhe desejar boa sorte, pelo dr. Joe, que lhe
transmitiu o recado assim que foi internada.
Um tremor começou a se apossar do seu corpo e ela não conseguia detê-lo. Melina
não tinha percebido que estava tão apavorada assim. Seu queixo tremia
visivelmente.
A máscara de coragem que tinha usado até então começou a desmoronar e ela não se
importava com isto.
Sentiu que um vento lhe passou sobre a cabeça; Melina já conseguira reconhecer
este vento como sendo o sinal de que alguém abria a porta de seu quarto no
hospital.
Essa pessoa aproximava-se agora de sua cama e ela teve a impressão de que não
era a enfermeira.
- Você está acordada? - perguntou Bay, num tom muito suave.
- Estou - sussurrou Melina, procurando se colocar numa posição melhor para
receber sua visita, ao mesmo tempo que segurava a camisola fechada no peito. - O
horário
das visitas já acabou. Você não pode estar aqui.
- Se descobrirem que estou aqui, a única coisa que podem fazer é me mandarem
embora, certo? - Havia um sorriso na voz dele.
- Como é que você está se sentindo?
- Ótima - mentiu ela. A borda da cama cedeu um pouco com o peso dele. - Eu
pensei que o dr. Joe tivesse mencionado qualquer coisa a respeito de você ter
ido a uma
festa ou coisa semelhante hoje à noite.
- Eu fui a tal festa - reconheceu Bay -, mas escapei de lá para poder vir vê-la,
você concorda com isto?
- Concordo plenamente, desde que a mulher que estava com você também tenha
concordado com esta sua escapada - replicou Melina.
- Por que é que você acha que eu fui acompanhado a essa festa?
- Suponho que você tenha ido acompanhado; afinal esta ainda é a melhor
explicação para meu nariz; eu realmente não conseguiria encontrar outra
explicação para você
estar usando um perfume francês muito adocicado, feminino e tremendamente caro!
- Seus dedos crisparam-se levemente sobre os cobertores. Era importante que ela
conseguisse
manter uma atitude de leve gozação em relação a Bay, para que ele não percebesse
os temores que governavam seu íntimo. - Ah, a detetive cega ataca outra vez -
zombou ele.
Elementar, meu caro - declarou ela, erguendo os ombros. -
Afinal de contas, você esteve numa festa e é lógico que você tenha
dirigido todo seu enorme charme para alguma mulher atraente que estivesse lá
também.
- Pois é justamente neste ponto que você está enganada.
- Por quê? - indagou Meliná, virando a cabeça num ângulo de
desafio.
- Porque eu estou dirigindo todo este meu enorme charme para
uma certa mulher cega que conheço, uma mulher muito atraente, por sinal -
respondeu Bay com toda a naturalidade do mundo.
Meliná sentiu um nó se formando na garganta. - Pois eu acho muito difícil
acreditar nisto.
A mão dele pousou gentilmente sobre as dela. com muito cuidado, ele as tomou
entre as suas e disse: - Suas mãos estão frias como gelo, Meliná. O que
aconteceu?
Sua constatação preocupada deflagrou-lhe um tremor incontrolável. Suspirando,
ela admitiu: - Oh, Bay... estou morrendo de medo... por causa dos exames de
amanhã.
Ele ficou em silêncio durante um minuto. Ela percebeu quando ele mudou de
posição sobre a beira da cama. Depois seu braço envolveu os ombros dela e
puxou-a de encontro
ao seu peito forte.
- Vamos procurar examinar a situação com toda a calma murmurou ele, procurando
tranquilizá-la. - Você não está sentindo medo dos testes que Joe irá fazer com
você amanhã. Isto nos deixa apenas duas outras alternativas. Uma delas é que
você tem medo de não conseguir recuperar a visão e a outra é o medo de conseguir
recuperar a visão, estou certo?
Meliná concordou com um leve gesto de cabeça. O pulsar rítmico do coração dele
ali ao lado de sua cabeça e o círculo protetor dos braços fortes dele em torno
de seus ombros eram um grande conforto para ela.
- Eu sei que você não pode estar com medo de conseguir recuperar a visão -
continuou ele. - Este resultado faria qualquer pessoa começar a dar pulos de
alegria. Isto nos deixa a outra alternativa.
- Eu... - começou ela hesitante. - Eu aceitei o fato de que sou uma mulher cega.
Já lhe contei que comecei a fazer modelos em argila? Sou uma pessoa extremamente
covarde - suspirou ela. -
Gostaria de nunca ter concordado em fazer estes testes. Gostaria de nunca ter
encontrado seu amigo, o dr. Joe Browning. Não quero
passar de novo por todo aquele sofrimento de ter de aceitar outra vez que estou
definitivamente cega.
- E onde é que ficou aquela mulher corajosa que está sempre tentando mostrar a
língua para as convenções? - zombou ele, ternamente. - Você não é uma mulher
covarde,
Melina. Uma mulher covarde não estaria aqui neste hospital, tentando agarrar as
chances quase inexistentes que Joe lhe ofereceu. Se os testes tiverem resultados
negativos, você não vai cair em prantos e começar a esmurrar o próprio peito. A
mulher corajosa que eu conheço com toda a certeza vai levantar os ombros e
dizer: "Bem, pelo menos eu fiz uma tentativa". - Ela sentiu que ele estava
sorrindo com os lábios encostados nos cabelos dela. - Para usar uma velha frase
feita, Melina, você tem tudo para ganhar e nada para perder.
- É isto que eu fico tentando dizer a mim mesma o tempo todo
- suspirou ela.
- O segredo está em parar de dizer isto e em começar a admitir que realmente é
verdade. - Ele não exigiu uma resposta, mas ficou segurando-a daquela maneira
durante mais alguns minutos. Parecia que a força fluía dos músculos de seus
braços diretamente para o corpo dela, expulsando todos os temores infundados. -
Você está se sentindo melhor agora? - perguntou ele finalmente.
- Estou sim - respondeu ela, encostando a cabeça no queixo dele e sorrindo
levemente.
- Então é melhor eu ir embora antes que a enfermeira apareça e comece a pensar
que estamos fazendo coisas que não estamos fazendo - brincou ele. Com muita delicadeza, ele a colocou sobre o travesseiro e a cobriu melhor com os
cobertores. Quando começou a se erguer, Melina estendeu a mão para segurá-lo
pelo braço.
- Eu lhe fico muito agradecida por ter vindo, Bay - murmurou ela em voz baixa.
- Não me agradeça por uma coisa que eu mesmo queria fazer.
- Em seguida, ele se inclinou sobre ela e beijou-lhe de leve a boca, num gesto
de doce ternura. - Boa noite, Melina. Eu volto para ver você.
- Está bem. Boa noite, Bay.
Ela ainda ouviu seus passos leves, depois sentiu a movimentação
do ar, quando a porta se abriu e se fechou novamente.
Melina tinha a impressão de estar deitada numa daquelas camas de faquir, cheias
de pregos e não numa simples cama de hospital; ela sabia, que isto era apenas
uma impressão causada pela expectativa. Os dois dias de testes tinham terminado
e o dr. Joe iria lhe anunciar os resultados a qualquer instante. O mau humor que
estivera presente na sua voz durante todo o último dia dos testes tinha
convencido Melina de que os resultados até o momento não tinham sido muito
encorajadores.
Seu pai caminhou outra vez até a janela do quarto.
Ela sabia que ele não tinha interesse algum pelas coisas que poderiam estar
acontecendo lá embaixo, no estacionamento do hospital; sabia que ele estava
simplesmente tentando disfarçar sua impaciência, andando de um lado para o
outro. Quando já estava quase chegando à janela, ele moveu-se de maneira brusca.
Um segundo mais tarde, uma lufada de ar vinda do corredor atingiu o rosto dela e
ela se virou em
direção à porta.
- bom dia - cumprimentou-os o dr. Joe. Sua voz estava repleta daquela alegria
profissional, que já não conseguia mais enganar Melina. - Quer dizer, na verdade
está
fazendo um dia horrível lá fora, mas eu imagino que vocês aqui em São Francisco
já tenham conseguido se acostumar a esta eterna neblina.
- Bom dia, dr. Joe - respondeu Melina.
Mas seu pai resolveu abreviar a situação, saltando sobre os cumprimentos de
praxe. - Já chegaram os resultados de todos os exames?
- Já.
Melina sentiu um arrepio na nuca. Sem se dar conta disto, ela perguntou
hesitante: - Bay?
- Alo, Melina - respondeu ele calmamente.
- Não me diga que minha paciente desenvolveu dons telepáticos
- riu o médico, apanhando de surpresa.
- Acredito que se trate mais de um caso de olfato muito bem desenvolvido -
explicou Bay com um sorriso na voz. - Ela provavelmente reconheceu a loção
após-barba que eu costumo usar.
- Bem, mas voltemos ao assunto que nos reuniu aqui hoje - declarou o dr. Joe,
respirando fundo. - Analisei os resultados duas vezes. Ele fez uma pausa,
durante a qual Grant Lane perguntou: E...?
- Quando nós jogamos os dados, sr. Lane, todos nós estávamos sabendo que as
probabilidades seriam mínimas, menores mesmo do que as de acertar numa loteria.
- O tom da voz dele foi suficiente para servir como um aviso para Melina, que
reuniu todas as suas forças para ouvir o resto.
- Pois é, os dados não nos foram favoráveis. Não existe qualquer coisa que se
possa fazer. Eu sinto muitíssimo por ter feito vocês se submeterem a toda esta
tortura.
O silêncio de seu pai revelou a Melina o quanto ele estivera contando com a
possibilidade de um milagre. Ela também contara com esta probabilidade, mas não
se sentia tão desolada como das outras vezes.
Ela se esforçou para esboçar um leve sorriso no rosto. - Tínhamos que arriscar
nesta chance, doutor. - Seu sorriso tornou-se ainda mais sincero quando ela se
lembrou das palavras que Bay pronunciara na noite do primeiro dia de internação
no hospital.
O médico caminhou até a cama dela e segurou fortemente uma de suas mãos entre as
suas. - Muito obrigado, Melina, você é uma mulher de fibra.
Enquanto o médico estava se despedindo do pai, pedindo desculpas outra vez, ela
percebeu que Bay estava se aproximando da cama.
- Você está mesmo bem? - perguntou ele, com voz grave e calma.
- Estou sim - sussurrou ela e, repentinamente, percebeu que estava dizendo mesmo
a verdade e que não eram apenas palavras corajosas e vazias de sua parte.
- Eu tinha certeza de que aquela rainha cega e corajosa acabaria ressurgindo
outra vez - disse-lhe ele.
- Graças à força que você me deu, ela ressurgiu mesmo - respondeu Melina.
- Sinto muito, mas eu não posso ser responsabilizado por características que
você já possuía antes de me conhecer - disse ele, num tom exagerado de defesa -,
mas concordo discutir este assunto numa outra ocasião. Que tal sábado à noite?
- Sábado à noite? - repetiu ela.
- É, sábado à noite. Nós poderíamos ir jantar juntos. Eu vou apanhá-la por volta
das sete horas.
Melina sentiu um estranho nó na garganta. - Isto é uma ordem Ou um convite? -
perguntou ela, tentando recompor-se.
Ambos, dependendo da resposta que você me der.
- Pois saiba que fico muito feliz, contente, alegre e orgulhosa pela
oportunidade de jantar em sua companhia, sr. Cameron - respondeu Melina.
CAPITULO VI
Melina desceu lentamente os degraus em direção ao primeiro pavimento, tocando
com dedos inseguros a parte superior de sua roupa de malha. Pequenas rugas de
indecisão
marcavam sua testa. Vindas do living, ela ouvia a voz de seu pai e a de Deborah.
Foi até a porta e parou um momento.
- Deborah, você poderia vir até aqui um instante? - pediu Melina, com certa
ansiedade na voz.
- É claro, meu bem. - Passos rápidos, abafados pelo carpete, se aproximaram da
porta onde ela continuava esperando. - O que foi, Melina?
- Você não acha que este conjunto é um pouco exagerado demais?
- Claro que não - respondeu Deborah, meio confusa. - Bay vai levá-la para
jantar, não é?
- Não é propriamente para jantar - explicou Melina. - Nós vamos comprar alguma
coisa para comer lá no Wharf, como fizemos da última vez, e depois vamos fazer
um
piquenique em algum lugar. Você não acha que seria melhor eu vestir uma roupa
mais simples?
- Não - respondeu Deborah, após considerar a questão por alguns segundos. - Você
pode não estar indo jantar num restaurante sofisticado, mas isto não é motivo
para que você deixe de se vestir bem. Na minha opinião, este seu conjunto é
suficientemente versátil para poder ser usado em praticamente todas as
situações.
- Ótimo - suspirou Melina aliviada. Às vezes ela encontrava grande dificuldade
em tentar julgar pela memória as roupas que usava. A campainha da porta da
frente começou a tocar. - Deve ser Bay.
- Sua bolsa está sobre a mesa - avisou Deborah. - vou dizer a ele que
você está descendo.
Após pegar a bolsa, Melina apanhou a bengala de marfim, pendurou-a
no braço e abriu a porta que dava a escada, despedindo-se rapidamente de seu
pai.
A mão de Bay pousou em seu braço, enquanto caminhavam em direção ao carro. -
Esperava que você resolvesse usar seu vestido novo hoje à noite.
Melina riu. - Acho que ficaria meio ridícula usando aquele vestido maravilhoso
num piquenique!
- Num piquenique? - repetiu ele. - Nós não estamos indo para um piquenique. Eu
convidei vocé para irmos jantar, você se lembra?
- Mas. . - ela parou onde estava.
- Mas o quê? - perguntou ele, parando pacientemente ao lado dela.
- Vocé sabe perfeitamente que eu não vou comer em lugares públicos, Bay -
declarou ela, sublinhando a frase com uma batida enfática da bengala no chão.
- Sim, eu me lembro de tudo o que você disse. - Seu braço envolveu-a por trás e
empurrou-a, meio à força, em direção ao carro. A porta foi aberta e Melina foi
colocada no assento mais ou menos a contragosto. Ela tateou até encontrar a
maçaneta, mas quando foi abrir a porta percebeu que ele a tinha trancado. Antes
que ela tivesse tempo para destravar a porta, Bay já estava dentro do carro
também, colocando com força sua mão sobre o pulso dela.
- Você não está me levando em consideração - acusou Melina.
- Eu não posso ficar levando você em consideração e dirigir ao mesmo tempo -
defendeu-se Bay, com muita lógica, dando partida no carro. - Nós vamos a uma
simpática e pequena cantina italiana. Vista de fora, ela realmente não parece
ser grande coisa, mas a comida lá é realmente excelente.
- Eu não vou - declarou ela com firmeza.
- Melina, você não pode continuar a evitar todas as coisas! O tom firme de sua
voz era uma indicação de que ele estava começando a perder a paciência.
- Vocé vai dar um espetáculo bastante ridículo se me forçar a entrar nesta tal
cantina - comentou ela.
- Espero que vocé não esteja contando com a possibilidade de que eu faça isto
mesmo, porque, se esta for a única maneira de fazer
você entrar no restaurante, pode ficar certa que será exatamente isto o que eu
vou fazer - declarou ele.
Naquele momento, Melina percebeu que ele estava mesmo falando sério. Nenhuma
demonstração de raiva ou de teimosia por parte dela seria capaz de modificar as
intenções dele. Ele realmente tinha resolvido levá-la ao tal restaurante,
custasse o que custasse.
- Você é um sujeito prepotente e mal-educado - comentou ela, irritada. - Não
consigo imaginar por que foi que concordei em sair com você esta noite. Deveria
imaginar que você seria capaz de fazer uma coisa dessa.
- Acho melhor você tomar mais cuidado com o que diz - avisou ele, novamente com
seu velho tom de zombaria. - Lembre-se de que eu sempre posso mudar de idéia e
resolver levar você para jantar num restaurante chinês e o desastre que você
aprontaria com aqueles pauzinhos na sua mão seria muito pior. - Ela cobriu a
boca com a mão para impedir que ele percebesse o sorriso que ela não estava
conseguindo reprimir. Realmente, ela nunca conseguira dominar perfeitamente a
arte de comer com aqueles pauzinhos, enquanto ainda era capaz de ver. Qualquer
tentativa neste sentido, agora que estava cega, traria resultados no mínimo
desastrosos e, com toda a certeza, absurdos.
- Pode tirar a mão daí que eu já vi este sorriso - gozou ele. Olhando bem, acho
que esta sua cara é muito melhor do que a da rebelde cega e teimosa que estava
sentada aí a meu lado um minuto atrás. Pode continuar usando este sorriso. E não
fique embaraçada se derrubar alguma coisa ou se derramar alguma coisa, algum
copo. Pessoas que vêem perfeitamente bem também fazem isto o tempo todo.
- Por que será que eu não ganho uma só discussão com você?
- suspirou Melina, mas com humor.
- É fácil, minha querida rainha das trevas. - explicou ele -, é porque você
sempre sabe que eu tenho razão.
Surpreendentemente, no que dizia respeito a Melina, o jantar correu sem qualquer
incidente desagradável. Em todas as outras vezes em que ela tinha comido fora,
pouco depois do acidente, invariavelmente acabava derramando um copo, ou
deixando coisas caírem na mesa ou no chão, mas nada disso aconteceu desta vez.
Bay ameaçara pedir espaguete, caso ela não se comportasse direitinho, mas acabou
pedindo ao garçom que trouxesse uma lasanha.
Ela se reclinou na cadeira, uma mão tocando ainda na xícara de café, para
continuar sabendo onde ela estava. Um pequeno suspiro de contentamento aflorou
em seus lábios.
- Posso saber o motivo deste seu suspiro? - indagou Bay suavêmente.
- Eu lhe fico muito grata por me ter persuadido a vir a esta cantina - corrigiu
ela com um sorriso nos lábios.
- Você não está deprimida por causa dos resultados negativos de todos aqueles
testes? - Apesar do tom meio zombeteiro, havia uma nuance indicando que sua
pergunta estava sendo feita com toda a seriedade.
- É claro que eu gostaria que os resultados tivessem sido outros
- respondeu Melina, erguendo os ombros -, mas não fiquei tão abalada quanto
pensei que fosse ficar. Em parte por causa dos conselhos que você me deu e em
parte porque já comecei a trabalhar novamente. Quero dizer, trabalhar de uma
maneira criativa. Quando entrei no hospital desta vez, minha vida como cega já
tinha um rumo, uma finalidade. Das outras vezes, quando os médicos me davam o
veredito negativo, não me sobrava qualquer perspectiva de vida, o futuro para
mim era apenas um enorme
buraco vazio e escuro. Agora, não. Agora tenho uma meta.
- Você está se referindo aos modelos que tem trabalhado em argila. Quando é que
você vai me mostrar o que tem feito?
- Quando estiver em condições de receber algumas críticas respondeu Melina com
um sorriso.
- E você acha que a minha opinião vai ser muito crítica? - quis
saber ele.
- Não acredito que você seria capaz de dizer que uma coisa medíocre é boa só
porque sou uma mulher cega - declarou ela muito séria.
- E eu não acredito que você seria capaz de se apoiar neste tipo de muleta para
diminuir o padrão de qualidade das coisas que você
fizer - retrucou ele.
- Eu não poderia fazer isto - admitiu Melina com um gesto positivo de cabeça. -
Quero ser mais do que apenas uma boa artista. Quero ser uma grande artista. É a
única maneira pela qual eu poderia cuidar do meu próprio sustento.
- E isto é uma coisa muito importante para você, não é mesmo?
- disse ele.
- Sim, é muito importante. E não é por um orgulho idiota ou simplesmente pelo
desejo de ser independente - continuou ela com muita seriedade. - É porque não
quero continuar sendo um fardo para meu pai. Sei que ele não me vê assim, mas
também sei que ele só não se casou ainda com Deborah por minha causa. E só se eu
conseguir ter uma renda independente é que poderei provar a ele que sou capaz de
viver sozinha.
- Você também poderia se casar. Este sempre foi um bom motivo para sair da casa
dos pais - sugeriu Bay.
- Acontece que existem pelo menos dois pequenos obstáculos a esta sua sugestão -
respondeu Melina rindo, sem levá-lo a sério.
- E quais são estes pequenos obstáculos?
- Em primeiro lugar, não estou apaixonada por nenhum homem e acho que seria uma
grande falta de caráter se casar com alguém simplesmente para poder sair de
casa. O segundo é um obstáculo muito importante. De importância crucial até.
Seria imprescindível que aparecesse alguém disposto a se casar comigo.
- Você acha que isto é tão improvável assim? - perguntou Bay, num tom estranho,
diferente do tom zombeteiro que ela já conhecia muito bem.
- Desde que se trata de um homem num bom equilíbrio acho improvável sim -
respondeu ela, rindo outra vez.
- Sempre achei que tenho um bom equilíbrio. Você acha que isto me coloca fora da
lista dos prováveis?
- Você, com toda a certeza, está fora desta lista - respondeu ela com firmeza.
- Imagino que isto encerre este assunto - declarou Bay. A despreocupação
evidente na voz dele não combinava com a sensação de Melina, de que ele tinha
muito interesse em ouvir sua resposta. Talvez ele tivesse imaginado que ela
estava interessada em se aproveitar de sua fortuna. - Você gostaria de tomar
mais café, Melina, ou já está pronta para ir?
- Não quero mais, obrigada. Eu estou pronta, desde que você também esteja. - Sua
mão encontrou a bengala de marfim pendurada no braço de sua cadeira.
Depois deste primeiro e bem-sucedido jantar a dois, Bay convidou Melina para
sair com ele diversas vezes durante as semanas seguintes. Os restaurantes que
ele escolhia raramente eram muito frequentados, mas todos tinham coisa em comum:
serviam pratos excelentes.
Os únicos momentos constrangedores para ela ocorriam quando amigos dele vinham
até a mesa, para cumprimentá-lo. Ela sempre sentia uma certa surpresa por parte
deles quando descobriam que ela era cega e imaginou que eles certamente deviam
ficar se perguntando por que motivo Bay estava sempre saindo com ela.
As vezes, ela mesma se perguntava isto também, mas a resposta tinha deixado de
ser importante. Ela se dava por satisfeita em gozar o prazer da companhia dele,
sem ficar constantemente questionando os motivos que o levavam a querer ficar ao
lado dela. De certa forma, nem queria descobrir esses motivos. No fundo, temia
que ele fizesse tudo o que fazia movido única e exclusivamente por caridade.
Apesar de já ter modificado bastante sua opinião em relação a muitas coisas,
continuava sentindo uma enorme aversão em relação a qualquer demonstração de
pena ou piedade, principalmente por parte de Bay Cameron.
Cuidadosamente, ela alisou o braço da pequena figura de argila, permitindo que
seus dedos transmitissem a imagem para seu cérebro. Um arrepio de satisfação
percorreu sua espinha diante do prazer que sentia em relação à figura de uma
bailarina surpreendida em meio a uma pirueta. A cada semana que passava, seus
dedos iam se tornando mais seguros e mais hábeis. Os sucessos começaram a ser
mais frequentes do que os fracassos.
Do atelié, Melina ouviu o ruído de passos subindo os degraus da escada. Muito
excitada ainda, ela afastou-se de sua mesa de trabalho, um sorriso de triunfo
erguendo-lhes os cantos dos lábios. Limpando as mãos numa toalha velha, ela
virou-se levemente em direção à porta quando os passos se aproximaram mais. Seu
entusiasmo com o trabalho feito já não podia ser contido.
- Entre, papai - disse ela, quando os passos pararam diante da porta. - Eu
consegui terminar a terceira peça. Venha vê-la.
No momento exato em que a porta se abriu, ela virou a cabeça para o lado, numa
atitude de quem está prestando muita atenção aos ruídos. A pessoa que estava
entrando no atelié não era seu pai, mas sim Bay. Ela soube disto
instintivamente.
- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou, sem disfarçar sua surpresa. -
Você disse que não viria antes das sete da noite. Não é possível que já seja tão
tarde assim.
- Realmente não são sete horas ainda. Estamos no meio da tarde
- respondeu Bay, levemente divertido com a sua situação. - Como você nunca me
convidou para ver seu trabalho, consegui convencer seu pai a me deixar subir até
aqui, em vez de chamá-la para descer.
Num movimento protetor instintivo, Melina deu alguns passos, numa tentativa de
bloquear a linha de visão dele. Somente seu pai e Deborah tinham visto até então
o resultado de suas inúmeras horas de trabalho. Ela ainda não estava intimamente
preparada para deixar que alguma outra pessoa que não pertencesse à família
visse as coisas que tinha feito.
- Isto não explica o que é que você está fazendo aqui no meio da tarde -
murmurou ela, numa atitude defensiva.
- Não explica? Pensei que explicasse. - Ela pôde sentir o sorriso na voz dele. -
Mas você tem toda a razão. Vim até aqui com uma finalidade, além da de me
esgueirar às escondidas em seu ateliê. Infelizmente, vou ter de cancelar nosso
compromisso para jantar hoje à noite, Melina. . . Sinto muito.
- Está bem - respondeu ela, erguendo os ombros.
- Você aceitou esta notícia de uma maneira tão calma, que eu não sei se devo
ficar contente ou se devo me sentir insultado. Você poderia pelo menos fazer de
conta que não gostou da minha notícia.
- É claro que eu teria tido muito prazer se pudéssemos sair juntos à noite. - O
orgulho fez com que ela adotasse um tom indiferente.
- Obviamente o que forçou você a cancelar nosso jantar deve ser importante, caso
contrário acredito que você não o teria feito. Esforçando-se para conseguir um
tom mais leve em suas palavras, Melina acrescentou com um sorriso malicioso: -
Eu só espero que você já tenha avisado a sua ciumenta namoradinha de que não
existe necessidade alguma de ela tentar furar meus olhos. Já sou bastante cega e
não estou querendo ficar desfigurada também.
- Como foi que você chegou à conclusão de que os nossos planos estão sendo
alterados por causa de uma namoradinha ciumenta? O tom de sua voz continuava
fixo no rosto dela.
- Eu realmente não sei se o motivo é este ou não - respondeu ela -, mas espero
que você não ache que acredito que seja um celibatário convicto.
- E posso saber por que você pensa assim? - perguntou ele. Instantaneamente
apareceu na memória dela o rosto másculo e viril que ela tentara moldar com os
seus dedos semanas antes.
- Uma mulher sempre tem suas maneiras para descobrir como funcionam essas coisas
- respondeu Melina com um sorriso complacente. - Imagine que seja uma espécie de
intuição feminina.
- Se você acredita nisto em relação a mim, então qual é a conclusão a que você
chegou para explicar por que não forcei nosso relacionamento a chegar a um
nível...
digamos, de maior intimidade? perguntou ele, lentamente.
- Ora, Bay! - respondeu ela rindo, como se a pergunta fosse ridícula nas
circunstâncias em que eles se encontravam. - Nós somos amigos, nada mais do que
isto.
- Um relacionamento estritamente platónico, é isto o que você quer dizer?
- É claro. - Uma pequena ruga apareceu na sua testa, diante da intensidade
daquela observação.
- Neste caso, quando é que você vai dar um passo para o lado, para permitir que
um amigo veja seu trabalho? Minha visão está um pouco bloqueada com você
plantada aí na frente - disse ele.
Melina decidiu que tinha apenas imaginado uma maior intensidade em suas
perguntas anteriores. Ela apenas dissera o que já estava óbvio entre eles e Bay
concordara, de uma maneira indireta, mas concordara.
Hesitando durante um instante, ela permaneceu onde estava, querendo por um lado
conhecer a reação dele diante dos seus trabalhos, mas ainda um tanto insegura de
suas habilidades; com uma certa relutância, ela se afastou.
O silêncio que se seguiu parecia interminável. Melina pensou que acabaria
explodindo, tamanho era o suspense da espera. Inconscientemente suas mãos tinham
se juntado numa atitude de prece.
- Você mostrou seu trabalho para algum dos seus outros amigos?
- perguntou Bay, meio distante.
- Somente papai e Deborah viram o que eu fiz.
- Não sou nenhum crítico de arte, Melina - murmurou ele. Apenas sei expressar o
meu gosto e estou muito impressionado pelo que vejo. Você nunca trabalhou com
este material antes do acidente que a deixou cega?
- Nunca - respondeu ela num fio de voz. - Você acha realmente que o trabalho é
bom? Você não está dizendo isto só para me agradar, está?
- Você sabe perfeitamente bem que o que você fez é muito bom.
Agora, acho que um profissional é a única pessoa que pode lhe dizer melhor sobre
a qualidade das peças. Se aceita minha sugestão, acho que deveria procurar
alguém que possa lhe dar este tipo de resposta.
- Não... ainda não - recusou Melina. A confiança em suas próprias habilidades
ainda não tinha chegado a um ponto em que pudesse suportar o exame minucioso do
seu trabalho por um crítico de arte. - Ainda não estou preparada para isto.
Preciso de mais tempo.
- Ninguém jamais se sente preparado para apresentar alguma coisa no julgamento
de outras pessoas, mas você não pode ficar adiando este momento indefinidamente.
- Ainda não - repetiu ela, esfregando as mãos nervosamente em seu avental sujo.
Bay acendeu um cigarro e colocou diretamente nos lábios dela e seus dedos
tocaram-nos levemente, provocando um arrepio que lhe percorreu a espinha toda.
Invariavelmente, todas as vezes em que ela tinha um contato físico como este com
ele ficava consciente de sua masculinidade, e a lembrança daquele primeiro
beijo, único e nunca mais repetido, assaltava a sua mente, ateando-lhe fogo e
despertando uma enorme ternura.
- Sinto muito, mas realmente não posso me demorar mais - disse Bay. - Eu também
não poderei ver você durante toda a próxima semana. Mas tenho duas entradas para
a ópera no próximo sábado, você quer ir?
- Tenho certeza de que vou gostar muito - respondeu Melina com um sorriso.
- Ah, a propósito, trouxe-lhe uma coisa que eu gostaria que você aceitasse!
- Uma coisa para mim? Um presente? - perguntou ela, franzindo a testa. Ele
colocou uma caixa pequena e embrulhada na mão dela.
- Abra - ordenou ele, rindo perante a indecisão dela. - Não é uma coisa muito
cara, se é isto que a está preocupando tanto.
Curiosa e um pouco apreensiva, Melina começou a desembrulhar o pacote. Após
abrir a caixa, seus dedos tocaram num par de pedaços compridos de madeira. Ela
virou-se com uma expressão de espanto para Bay.
- Dois pauzinhos? - perguntou ela, incrédula.
- É para você praticar durante algumas semanas antes de irmos a um restaurante
excelente que eu conheço no bairro chinês.
Ela começou a rir e foi preciso morder o lábio inferior para contêlo. Num tom de
falsa seriedade, ela replicou: - Imagino que você espere que eu me mostre muito
grata pelo fato de estar me avisando de suas intenções com alguma antecedência?
- Exatamente, você deveria me ser muito grata - concordou ele.
Depois da aprovação que Bay demonstrara em relação a seu trabalho, Melina
começou a se esforçar ainda mais para atingir a perfeição que exigia de si
mesma. Este vigor renovado fez com que a semana passasse rapidamente. O
espetáculo na ópera no sábado próximo começou a ser considerado, mais ou menos,
como uma espécie de recompensa por todos os seus redobrados esforços.
O leve nervosismo inicial que ela sentiu em relação à perspectiva de ir a um
lugar público desapareceu completamente com os elogios que Bay fez a respeito de
sua aparência. Afinal de contas, ela se esforçara ao máximo, tendo pedido
inclusive a ajuda de Deborah para resolver o problema do penteado e da
maquilagem. Aliás, as duas estavam tendo um relacionamento muito melhor, desde
que Melina voltara a trabalhar novamente no seu atelié.
Melina não tinha a intenção de levar consigo a bengala de marfim; era vaidosa
demais, não querendo ser identificada imediatamente como uma cega. Entretanto,
Bay entregou-lhe a bengala, no momento em que ambos saíram de casa. Ela sabia
que ele teria começado a discutir se lhe dissesse a razão pela qual não queria
levá-la, de maneira que preferiu ficar calada.
Agora, trazia a bengala pendurada no braço ali no saguão do teatro. Era um
intervalo entre os atos. Se Melina estivesse acompanhada por qualquer outra
pessoa, provavelmente teria permanecido em sua poltrona durante o intervalo
todo, mas Bay fizera questão absoluta de que ambos fossem dar uma volta pelo
saguão.
Bay não era um homem que pudesse deixar de ser notado pelas pessoas que o
circundavam. Por isso Melina sabia que estava sendo objeto de interesse e de
curiosidade para muitas pessoas, principalmente para as que percebiam a bengala
pendurada em seu braço. Todas deviam estar se perguntando por que motivo um
homem como aquele estava saindo com uma mulher como ela.
Diversas pessoas que conheciam Bay pararam, incluindo-a educadamente
em seus cumprimentos. Bay não encorajou conversas com nenhuma destas pessoas e
elas, gradualmente, foram se afastando após o primeiro contato. Melina não tinha
certeza se ele estava agindo desta maneira porque tinha percebido a sua
insegurança em relação a pessoas estranhas.
- Bay Cameron! - exclamou efusivamente uma mulher. - Não vejo você há séculos! -
continuou exclamando a mulher. - Onde é que você tem se escondido? Será que esta
é a jovem responsável pelo seu total desaparecimento?
Ele colocou a mão nos ombros de Melina, puxando-a um pouco para junto de si, ao
mesmo tempo em que a apresentava. - Pamela, gostaria que você conhecesse Melina
Lane. Melina, esta é uma excelente amiga, Pamela Thyssen. Ela tem uma certa
tendência a ser mandona e abelhuda, mas tem um coração do tamanho do mundo.
- Não se atreva a acreditar em tudo o que este homem diz! declarou Pamela num
tom irónico. - Minhas mordidas são tão dolorosas quanto os meus latidos; por
isto, é melhor você se precaver, senhorita Lane. É senhorita Lane, ou eu me
enganei?
- Você está vendo só como eu tenho razão, Melina? - riu Bay.
- Esta mulher já está começando a se meter na sua vida.
- Sim, é senhorita Lane - confirmou Melina, com um leve sorriso.
- Acho que nós, mulheres solteiras, temos o dever de nos ajudar mutuamente -
declarou Pamela. - Não que eu pretenda continuar solteira o resto de minha vida.
Já
consegui sobreviver a dois maridos e todos me disseram que o terceiro é sempre
melhor. E você, minha querida, está disposta a espalhar uma porção de armadilhas
por
aí para conquistar o nosso amigo Bay?
Melina enrubesceu. - De maneira nenhuma, senhora Thyssen negou vigorosamente.
- Finalmente alguém que coloca você em seu devido lugar, Bay
- Pamela deixou escapar uma expressão de alegria.
- Ela é uma jovem muito independente - concordou ele vagamente divertido com a
situação; Melina, no entanto, sentiu que havia uma contrariedade interior na voz
dele.
- Eu preciso conhecer Melina melhor. Traga-a para minha festa depois do
espetáculo. - Isto foi uma ordem, não um convite, e Pamela se despediu deles
logo em seguida, antes que Melina pudesse convencer Bay a recusar o programa de
alguma maneira.
- Você não está realmente com a intenção de ir, está? - perguntou ela, quase
implorando quando eles ficaram sozinhos.
- E por que não? - replicou ele calmamente. - As festas de Pamela sempre são
muito agradáveis e bem organizadas.
- Eu não me sinto bem quando estou rodeada por uma porção de pessoas
desconhecidas - respondeu Melina, de maneira defensiva.
- Pois acho que chegou o momento ideal para resolver mais este probleminha seu -
respondeu Bay e pressionou a mão que estava apoiada nos ombros dela, obrigando-a
a se movimentar. - Vamos, porque temos apenas alguns minutos sobrando antes de
recomeçar o espetáculo.
CAPÍTULO VII
Melina enfiou os dedos na macia pele de coelho que enfeitava sua jaqueta preta
de noite e puxou a gola para envolver melhor seu pescoço. A janela fechada do
carro não conseguia abafar completamente os ruídos feitos pelos demais
automóveis manobrando no pátio de estacionamento do teatro.
Perturbada pela maneira como Bay conseguira novamente manobrá-la para uma
situação em que não tinha qualquer alternativa, Melina não podia se concentrar
na direção para onde estavam seguindo. Ela não prestou atenção em algumas curvas
feitas e acabou desistindo em adivinhar quais eram as ruas por que estavam
passando. A ausência de um trânsito mais intenso parecia indicar que eles
estavam se locomovendo por uma área residencial, mas ela não tinha a menor idéia
de qual era o bairro em que estavam.
O carro diminuiu sua velocidade e encostou no meio-fio. - Chegamos - anunciou
Bay, desligando o motor e abrindo a porta.
Melina não respondeu. Em sua mente, ela acompanhou os passos dele contornando o
carro até chegar à porta de seu próprio lado, acertando por frações de segundo o
momento em que ele abriu a porta. Teimosa como uma criança contrafeita, ela não
se mexeu.
- Você quer entrar comigo ou prefere ficar sentada aqui fora no carro? - zombou
ele, num tom suave.
- Caso isto signifique que você, excepcionalmente, está querendo dizer que eu
posso escolher, prefiro ficar aqui no carro - declarou ela friamente.
- Melina - disse ele com muita paciência na voz -, você vai realmente permitir
que um punhado de pessoas desconhecidas a intimidem a ponto de ficar sentada no
carro dufante não sei quanto tempo?
- Você não está pensando seriamente em me deixar aqui fora sozinha, está? -
perguntou Melina, franzindo as sobrancelhas e inclinando a cabeça para trás, não
sabendo mais dizer se ele estava falando sério ou não.
- Foi você mesma quem disse que preferia ficar aqui fora no carro
- lembrou Bay num tom complacente. - Eu vou ter de entrar na casa e explicar a
Pamela os motivos pelos quais você não pôde ir comigo.
- Você não ousaria dizer a Pamela que eu estou sentada aqui fora no carro, não
é? - perguntou ela, num fio de voz. Mas sua pergunta foi respondida pelo
silêncio, que implicava numa resposta afirmativa. - Você é um homem totalmente
sem escrúpulos - resmungou ela, virando-se de lado para sair do carro.
Uma criada os recebeu na porta de entrada. O ruído de vozes bemhumoradas ecoava
pelo ar. As vozes pareciam vir de todas as direções, indicando que a festa era
bem maior e mais concorrida do que a pequena reunião informal que ela imaginara.
- Sorria. - A ordem de Bay Cameron lhe foi sussurrada bem baixinho no ouvido.
- Não - sussurrou ela de volta. Mas, mesmo sem querer, a severidade do seu rosto
começou a desaparecer, uma vez que não podia deixar de perceber o ridículo
daquela situação.
Extremamente teimosa, Melina preferiu não dar atenção a nenhuma das pessoas que
se aproximaram para cumprimentar Bay.
- Bay. Melina. Eu estou tão contente por vocês terem vindo. Disse Pamela,
aproximando-se.
Melina cumprimentou a mulher, quando ela chegou ao lado deles, apenas com um
"alo". Ela não tinha a menor intenção de mentir dizendo que estava feliz em
poder estar naquele lugar horrível.
- Bay, meu querido - disse Pamela. - Vá até o bar e traga um drinque para Melina
e para mim.
- Realmente, sra. Thyssen - começou a protestar Melina, mas Bay já tinha se
afastado do seu lado. - Eu não faço questão de beber coisa alguma.
- Eu também não. Meu drinque de sempre é apenas um copo cheio de chá gelado -
murmurou Pamela num tom confidencial.
- Mas isto tem de ficar em segredo entre você e eu. Todos sempre esperam que a
dona da casa beba em suas próprias festas, caso contrário os convidados não se
sentem à vontade. Portanto, você pode relaxar, minha querida: eu não tenho a
menor intenção de torná-la mais falante usando bebidas alcoólicas para isto.
- Duvido que a senhora conseguisse fazer isto de qualquer maneira - respondeu
Melina.
- Você é espirituosa e eu gosto disto - declarou Pamela. - Eu sou madrinha de
Bay; ele já lhe contou isto?
- Não. - Melina perguntou a si mesma se não seria talvez este o motivo pelo qual
a mulher estava se mostrando tão curiosa em relação a ela.
- Os pais dele estão viajando pela Europa numa espécie de segunda lua-de-mel.
Louise, a mãe de Bay, e eu crescemos praticamente juntas e sempre fomos amigas
muito intimas.
- Bay me contou que seus pais estavam na Europa - confirmou Melina, uma vez que
não havia qualquer outro comentário que pudesse fazer.
- Eu estava admirando a sua bengala. Ela é de marfim, não é?
- Sem fazer uma pausa para que Melina pudesse responder, ela continuou: - É uma
peça artesanal muito bonita e muito elegante também. Onde foi que você conseguiu
esta jóia?
- Foi presente... de um amigo - acrescentou Melina, após hesitar durante um
segundo.
- Há quanto tempo você é cega, Melina?
- Há quase um ano. - Seu queixo ergueu-se ligeiramente, como se quisesse
comunicar àquela mulher que não desejava ouvir mais perguntas a respeito de seu
passado.
- E há quanto tempo você conhece meu afilhado?
- Há aproximadamente uns dois meses, sra. Thyssen... - começou a responder
Melina, respirando fundo, na esperança de conseguir levar a conversa para outros
tópicos menos pessoais.
- Falando no diabo... - murmurou Pamela, cortando a frase de Melina pela metade.
- Você não levou muito tempo para providenciar isto, Bay. Muito obrigada.
No instante seguinte, a voz de Bay declarou: - E este é para você, Melina. - Um
copo gelado foi colocado na mão que ela estendeu.
- E como é que vocês duas estão se entendendo? Pelo narizinho arrebitado de
Melina, chego à conclusão de que você já estava começando a se intrometer em
assuntos que não lhe dizem respeito, Pamela.
- Não, não estava me intrometendo, meu querido - corrigiu Pamela com uma risada.
- Eu estava simplesmente tentando descobrir mais alguns detalhes a respeito
dela. Ela realmente tem o porte de uma verdadeira rainha, você
não acha?
- Por favor, eu.. - Melina começou com um novo protesto, mas não teve
oportunidade de chegar ao fim da sua frase.
- ... não gosto de ser discutida como se nem estivesse presente - disse Pamela,
completando a frase para ela. - Eu sei perfeitamente o que você está querendo
dizer
e também detesto quando fazem isto comigo. Mas tinha a intenção de lhe fazer um
elogio, minha querida. Sabe de uma coisa, Bay? Acho que Melina e eu não
precisamos de você para impedir que comecemos a brigar. Por que é que você não
vai circular um pouquinho? Ou, então, vá fazer outra coisa qualquer. Deixe-me
ficar com ela durante algum tempo. Prometo que cuidarei muito bem dela.
Melina virou-se em direção a Bay, seus lábios entreabertos, num silencioso
pedido, quase suplicante, de que ele não a abandonasse. Durante uma fração de
segundos, ela pensou que ele iria pelo menos debater o pedido que lhe fora feito
pela outra mulher.
- Você se encontra em boas mãos, Melina - respondeu ele, calmamente. - Pamela
não vai deixar que você caia por aí.
Primeiro ele a obrigava a vir a esta festa onde só havia pessoas desconhecidas
para ela e depois ele ainda a deixava sozinha. Uma irritação cada vez maior
começou a ferver debaixo da superfície diante da sua impossibilidade de escapar
daquela situação desagradável através dos seus próprios recursos.
- Venha comigo, minha querida - disse Pamela enganchando seu braço no de Melina.
- Eu gostaria de apresentar você a meus convidados. Sabe, eu sempre procuro
escolher todas as minhas amizades com muito cuidado, de maneira que com um
pouquinho de sorte nós
não tropeçaremos em ninguém que seja especialmente desagradável.
O principal assunto em todas as conversas durante as apresentações era sempre o
espetáculo a que todos tinham assistido naquela noite. Diversas das pessoas às
quais
ela foi apresentada a tinham visto antes no teatro e perguntaram qual a opinião
dela a respeito da apresentação. Ela teve a impressão de que o interesse que
todos demonstravam por ela era movido por simpatia e não por algum sentimento de
piedade. Aos poucos, a atitude defensiva de Melina foi relaxando.
O copo de chá, agora já vazio, foi tomado de sua mão quando a ponta exploratória
de sua bengala encontrou a borda do pequeno sofá e alguém cedeu-lhe o lugar. A
enorme confusão provocada pela grande quantidade de vozes e nomes desconhecidos
estava começando a deixá-la cansada e ela imaginou que a astuta Pamela devia ter
percebido isto. Ela concordou, mas apenas para si mesma, que Bay tinha razão
quando dissera que a estava deixando em boas mãos.
- Senhorita Lane, este seu vestido é absolutamente encantador
- declarou uma mulher sentada a seu lado. - Eu já reparara nele quando estava no
teatro.
O elogio foi seguido por uma demorada dissertação da tal mulher
- que se apresentou como sra. Phillips - a respeito das dificuldades que ela
tinha em encontrar roupas que lhe servissem bem e de queixas a respeito dos
novos estilos de moda que não se adaptavam muito bem ás suas características
físicas.
Seu corpo começou a ficar arrepiado e Melina soube, instantaneamente, qual seria
a causa disso: Bay estava em algum lugar perto dela. Essa sensibilidade
dificilmente deixava de funcionar no que dizia respeito a ele. Fazendo de conta
que estava profundamente concentrada no que a mulher lhe estava dizendo, ela
aguçou os ouvidos, numa tentativa de captar algum som que lhe indicasse a
localização dele.
Foi então que ouviu o som de uma acaríciante voz feminina, vagamente familiar,
apesar de Melina não conseguir identificá-la com nitidez. - Bay, meu querido. Eu
não imaginei que fosse encontrar você por aqui.
- Eu também estou surpreso por ver você aqui - ouviu Bay dizendo calmamente. -
Sempre achei que você não desse muita importância às festas de Pamela; que elas
eram comportadas demais para você.
- Acho que uma mulher tem todo o direito de mudar de opinião, você não acha, meu
querido? - perguntou ela.
- E um homem sempre tem o direito de ficar intrigado com os motivos desta
mudança, não é? - retrucou Bay.
- Na verdade, o que aconteceu foi que um passarinho viu você no teatro hoje à
noite e foi correndo me contar as novidades. E tive um palpite de que você
talvez resolvesse trazer o seu passarinho para cá, na festa de Pamela.
- Ah, um palpite? - comentou ele.
- Não acredito que serei algum dia capaz de compreender este seu lado de bom
samaritano, Bay - continuou ela. - Eu quero dizer
o seguinte: por que é que você tem de assumir um interesse tão pessoal assim em
relação àquela pobre moça? Por que é que você não entrega simplesmente uma
porção de dinheiro para ela e coloca um ponto
final nesta história? Afinal de contas, dinheiro não lhe falta para fazer isto.
Melina ficou rígida. Ela não pôde evitar que isto acontecesse. A única vantagem
que ela conseguiu sentir naquela situação toda era o fato de duvidar que alguma
outra pessoa ali presente possuísse o mesmo ouvido aguçado como o que a cegueira
lhe tinha dado.
- Esta seria sua solução, Roni? - murmurou ele, num tom bem grave. - Às vezes eu
penso que, quando estavam distribuindo uma qualidade chamada compaixão, você deu
um jeitinho e ficou duas vezes na fila onde distribuíam paixão.
Roni! Este era o nome da mulher que estava acompanhando Bay aquele dia no
ancoradouro dos barcos. Melina lembrou-se também de que Bay tinha dito que eles
estavam querendo assistir a um pôrdo-sol no meio do mar, o que sem dúvida alguma
era uma proposta romântica.
- Você acha que é tão ruim assim - perguntou a mulher chamada Roni - quando
alguém tem muita paixão dentro de si, Bay? sua voz era uma carícia vocal, que
Melina mal conseguia escutar direito.
- Não em determinadas situações. - Ele parecia estar se divertindo com a
lembrança de momentos em que não sentira a necessidade de criticar a paixão de
Roni. Melina sentiu que seu sangue começara a ferver nas veias; seus nervos à
flor da pele estavam prestes a explodir.
- Diga-me uma coisa, meu querido - Melina teve a impressão de que a mulher se
aproximara ainda mais de Bay, numa atitude mais íntima -, você não está-tentando
usar esta moça cega para me deixar com ciúmes, está? Isto será um bocado
ridículo, não acha?
- Não vejo por quê. Ela é uma mulher muito atraente - declarou Bay, sem negar a
acusação.
- Mas ela é cega - lembrou-lhe Roni. - Compreendo que você sinta pena dela.
Todos nós sempre sentimos pena das pessoas que tiveram menos sorte do que nós na
vida,
mas eu acho que será muito cruel para a moça quando ela eventualmente descobrir
que todas as atenções que você lhe tem dado foram causadas apenas por um
sentimento de pena. Eu não acredito que ela ficará muito contente com você
quando descobrir isto.
- Conhecendo Melina como eu a conheço, ela provavelmente me daria um tapa no
rosto, caso...
Mas Melina não ouviu o restante de sua frase. Ela já tinha ouvido demais. Uma
sensação de tontura tomou conta de sua cabeça, quando ela se ergueu, sem dar
atenção à voz da sra. Phillips, que continuava falando sem parar a respeito de
roupas ou de qualquer outra coisa.
- com licença - interrompeu ela bruscamente. - Sra. Thyssen?
- Sua pergunta fora feita numa tentativa de localizar a dona da casa.
- Sim, Melina. - Pamela Thyssen apareceu imediatamente a seu lado, havia uma
inflexão de curiosidade na voz dela quando atendeu ao chamado.
Melina engoliu em seco, tentando acalmar seus nervos, extremamente tensos.
- Você está se sentindo bem, Melina? - perguntou Pamela, com voz cheia de
preocupação. - Você me parece um pouco pálida. Você tem mesmo certeza de que não
está sentindo alguma coisa?
- Estou muito bem, obrigada - respondeu Melina, forçando um sorriso.
Saindo do salão onde estava sendo realizada a festa, elas se dirigiram para um
lugar que Melina julgou ser um corredor. Seus nervos estavam cada vez mais
tensos. As vozes no salão ao lado pareciam ter ficado mais altas e dissonantes.
Apesar de tentar desesperadamente, não havia maneira de bloquear sua audição.
Pamela hesitou durante alguns instantes, mas depois deu algumas instruções para
Melina, de maneira que ela pudesse voltar ao salão da festa mais tarde, depois
de ir ao banheiro. Após ter agradecido e garantido mais uma vez que estava se
sentindo bem e que não havia motivo para preocupações, Melina entrou pela porta
que lhe fora indicada, consciente de estar sendo observada por Pamela.
Felizmente, não havia qualquer outra pessoa ali e pôde dispor do local só para
si mesma. A porta fechada reduziu as vozes a um murmúrio distante.
Ela sempre se sentira intrigada e muitas vezes chegara até a perguntar a si
mesma que motivos Bay teria para vê-la constantemente.
No íntimo, ela deixara de achar que ele o fizesse movido por um sentimento de
piedade. Bay utilizara a palavra compaixão, mas nem mesmo esta palavra, bem
menos ofensiva,
diminuía as dores que lhe tinham sido causadas pela conversa que ouvira
involuntariamente, ele estava permitindo que a piedade que sentia em relação a
ela desempenhasse uma função dupla. Ao mesmo tempo que, caridosamente, passava
uma ou duas noites por semana em companhia de Melina, ele estava tentando fazer
com que essa tal Roni sentisse ciúmes.
Ela cerrou os punhos, irritada. Maldito ouvido aguçado!, lamentou-se em
silêncio. Não, disse-lhe uma voz interior, ela deveria estar contente por ter
conseguido descobrir o verdadeiro motivo para o comportamento dele. Ela tinha a
sorte de tê-lo considerado apenas como um amigo e também por ter descoberto a
verdade, antes de começar a dar outra interpretação às suas atitudes atenciosas.
Teria sido pavoroso se ela tivesse começado a se interessar por ele como homem e
não simplesmente como amigo!
O que fazer em seguida? Será que ela deveria confrontá-lo com o que tinha
descoberto? Isto era o que ela tinha vontade de fazer? Ela gostaria de jogar no
rosto dele todas aquelas palavras e atitudes caridosas. Mas que vantagem lhe
traria uma atitude destas? Ele simplesmente iria negar tudo, exatamente como
fizera todas as outras vezes.
Bay era um homem extremamente astuto e inteligente - este era um fato que Melina
precisava levar em consideração. Bastava lembrar a maneira como ele a forçara a
aceitar a bengala de marfim que estava usando naquele momento, depois a ir a um
restaurante e, finalmente, a vir a esta festa de pessoas totalmente
desconhecidas. Mas desta vez o tiro saíra pela culatra. Agora Melina sabia quais
eram as verdadeiras intenções dele.
A porta se abriu e uma mulher entrou. Sua voz, quando cumprimentou Melina, era
familiar, mas ela não conseguia lembrar do nome dela. Um pouco constrangida,
Melina alisou os cabelos na parte posterior de sua cabeça, fazendo de conta que
viera até ali para cuidar de sua aparência. com dedos cruzados, Melina ficou
torcendo para que a mulher não ficasse ali durante muito tempo. Infelizmente,
suas preces não foram ouvidas e cada segundo que passava aumentava ainda mais a
turbulência dentro de sua cabeça.
Finalmente, ela chegou à conclusão de que não poderia ficar mais tempo ali sem
que despertasse suspeitas. Se pelo menos conseguisse encontrar uma maneira de
escapulir daquela casa sem ser notada, pensou ela, enquanto se movimentava. Ela
não queria voltar ao ambiente festivo do salão. A situação toda estava começando
a se transformar numa espécie de pesadelo.
Mas para onde poderia ir?, perguntou ela a si mesma, enquanto abria a porta para
o corredor. Mesmo se conseguisse escapulir sem ser notada, as probabilidades de
encontrar um táxi vazio, rodando por um bairro residencial naquele horário, eram
praticamente mínimas. Por outro lado, ela duvidava de que seria capaz de calar a
boca durante o longo caminho de volta ao lado de Bay.
Não tendo se concentrado quanto ao caminho que haviam seguido, ela esbarrou numa
pequena mesa encostada numa das paredes do corredor. Instintivamente, ela
estendeu a mão para evitar que qualquer coisa que estivesse sobre esta mesa
caísse no chão. Quando começou a retirar a mão, seus dedos tocaram num objeto de
formato familiar - um telefone.
Esta era a solução! Pouco se importando com quem pudesse estar observando suas
acões, Melina pegou o fone com uma mão, enquanto os dedos da outra mão
rapidamente discaram o número do departamento de informações: quando atenderam
ela pediu o número de uma frota de táxis. Sem se permitir o luxo de refletir
melhor sobre o que estava fazendo, ela discou o número que lhe havia sido
fornecido pela telefonista.
Quando atenderam do outro lado da linha, Melina pediu calmamente: - Você poderia
me fazer o favor de mandar um carro para... - Ela parou no meio da frase: não
sabia onde se encontrava. Neste instante, ouviu passos que se aproximavam. - Um
momento, por favor - pediu ela ao homem que atendera ao telefone do outro lado
da linha. Respirando fundo, virou-se para a pessoa que se aproximava. Ela tinha
de se arriscar: - Desculpe, mas, por favor, você poderia me dar o endereço desta
casa?
- Pois não, senhora - respondeu uma voz feminina cortês, dando-lhe o endereço em
seguida.
O tratamento que lhe foi dispensado por aquela mulher fez com que Melina lhe
perguntasse: - Você... você é a criada?
- Sou sim - respondeu a mulher, num tom de voz que indicava que ela percebera o
significado da bengala branca de marfim.
- Você poderia ir apanhar a minha jaqueta? É uma jaqueta preta de pele de coelho
- pediu Melina.
- Num instante, senhora.
Quando os passos se afastaram, Melina retirou a mão do bocal do telefone e deu o
endereço ao homem que, pacientemente, esperava do outro lado da linha. Ele
prometeu que enviaria o carro dentro de alguns minutos. Depois de recolocar o
fone direitinho no gancho, afastou-se da mesa.
Passos aproximaram-se novamente de onde a criada tinha desaparecido. Melina ifão
podia saber se era a criada que voltava ou não e prendeu a respiração, temendo
ser descoberta a qualquer segundo por Bay ou Pamela.
- Aqui está sua jaqueta - disse a mulher. - Quer que eu lhe ajude a vesti-la?
- Sim, por favor - concordou, nervosa.
A criada ajudou-a e depois perguntou: - Quer que eu avise a patroa de que a
senhora já esta indo embora?
- Não, não é necessário, obrigada. Eu já me despedi - mentiu ela, apressada. - O
táxi que chamei deverá chegar a qualquer momento, de maneira que é melhor eu
esperar lá fora. A porta de saída, se não me engano, fica no fim deste corredor,
não é mesmo?
- Exatamente, senhora - respondeu a criada, confirmando o que Melina suspeitava.
- Mas o nevoeiro está bastante forte hoje. Seria melhor esperar pelo táxi dentro
de casa.
- Eu prefiro ficar um pouco no ar fresco. Sabe, a fumaça sempre me ataca um
pouco a garganta. - Ela não estava disposta a correr o risco de ser descoberta,
muito menos agora que já estava tão perto de uma solução.
- Pois não, senhora - concordou a mulher, afastando-se em silêncio.
Tão rapidamente quanto sua bengala tateante lhe permitia, Melina caminhou pelo
corredor em direção à porta da frente. Suas mãos estavam transpirando de
excitação quando ela abriu a porta e saiu na noite.
Um leve sorriso apareceu nos cantos de sua boca quando imaginou a confusão de
Bay quando descobrisse que ela tinha ido embora. Movido pelo seu sentimento de
piedade, ele certamente ficaria muito preocupado com a segurança dela, mas ela
sabia que não demoraria muito tempo até que alguém tivesse a idéia de
interrogar, a mulher que a ajudara. E esta lhes contaria que Melina fora embora
num táxi. Ele certamente ficaria furioso, mas isto já não importava mais para
ela. Fossem quais fossem as dívidas que ela imaginava ter em relação a ele pela
sua assistência e sua suposta amizade, tudo tinha sido devidamente saldado nesta
noite.
O tempo foi passando lentamente, mas ela sempre tinha a impressão de que o tempo
corria muito mais devagar quando esperava ansiosamente por alguma coisa. Melina
permaneceu ali onde estava, onde supunha haver sombras, torcendo não ser visível
para alguém que decidisse abandonar a festa mais cedo. Finalmente o ronco do
motor de um automóvel se aproximou pela rua. Ela esperou para verificar se o
carro pararia diante da casa ou se passaria sem lhe dar qualquer atenção. O
carro estacionou no meio-fio e ela ouviu uma porta se abrir e fechar novamente.
Assim que avançou de onde estava, uma voz masculina lhe perguntou, polidamente:
- Foi a senhora que chamou um táxi, madame?
- Sim, fui eu. - Ela caminhou o mais rapidamente possível em direção a ele; a
sensação de vitória a deixava mais leve. Uma porta do carro foi aberta. Ela usou
o som para calcular a distância. A mão do homem a pegou pelo cotovelo para
ajudá-la a se acomodar no banco traseiro. - Eu gostaria que o senhor me levasse
para...
Melina não chegou sequer a mencionar o endereço de sua casa. A porta da casa se
abriu e ela sentiu um arrepio na nuca, ao mesmo tempo que seus músculos se
imobilizaram e ela mesma foi tomada por uma enorme sensação de frio. Ela quase
conseguira fazer o que pretendia.
Mas talvez ainda fosse possível. Não lhe sobrava muito tempo. Os passos longos
de Bay já estavam percorrendo a distância que o separava do táxi.
Quando ela tentou se acomodar no banco traseiro, um braço de ferro circundou sua
cintura, a mão encostada diretamente contra seu estômago e ela foi violentamente
puxada de volta para a calçada.
- Solte-me! - Ela se debateu com força contra o homem que a segurava
impiedosamente.
- Fique quieta, Melina, ordenou Bay, apertando-a com mais força ainda. Ela ouviu
o ruído de dinheiro que estava sendo retirado do bolso dele. - Sinto muito que o
senhor tenha sido chamado desnecessariamente - disse ele ao motorista do táxi. -
Eu mesmo vou levar sua passageira para casa.
- Mas eu não quero ir com você - protestou ela vigorosamente. O motorista não se
mexera do lugar, e havia a possibilidade dele poder se transformar num aliado. -
Por favor, diga a este homem para ele deixar de me importunar.
- Você quer parar de ficar envolvendo outras pessoas em nossas desavenças
pessoais? - exigiu Bay, calmamente. A implicação desta frase era que eles
estavam tendo uma pequena briguinha, um estratagema que Bay utilizou para
assegurar ao motorista que a ajuda dele já não era mais necessária.
Depois de algumas notas de dinheiro mudarem de dono, o homem desejou boa sorte
para eles. Durante mais um momento, ela ainda tentou se livrar do braço de Bay,
debatendo-se, enquanto o motorista fechava a porta de trás do carro e circundava
o veículo para o outro lado.
- Você poderia me explicar o que é que está acontecendo? - perguntou ele com voz
grave.
- Eu imagino que a situação seja óbvia. Eu estava indo para casa
- respondeu Melina.
- Se você queria ir embora, por que não me disse? Eu não falei que nós teríamos
de ficar até o fim da festa. - Seus dedos estavam pressionando com mais força a
cintura dela.
- Eu simplesmente não queria que você me levasse para casa, é isto.
- E posso saber por que motivo, depois de nós nos conhecermos há tanto tempo,
você, de repente, não quer que eu a leve até sua casa? - perguntou Bay.
- Eu não preciso ter um motivo para explicar o que faço - respondeu ela, com
insolência.
- Aí é que você esta enganada. Você precisa ter um motivo, sim; e, antes que
esta noite chegue ao fim, quero saber qual é este motivo - informou-lhe com toda a sua arrogância.
- Talvez esteja cansada de aguentar sua piedade e estas suas atitudes de
compaixão! - desafiou ela, diretamente, inclinando a cabeça para o lado para ter
certeza de que ele estava vendo sua expressão irritada. - Eu não preciso que
você, ou que qualquer outra pessoa sinta pena de mim!
- O quê? - Ela percebeu que ele tinha erguido as sobrancelhas. - Por que é que
você não vai se inscrever em algum grupo de caridade? - Sua voz estava chegando
ao limite máximo. - Eu estou cansada de ser o objeto de suas boas acões diárias!
- Piedade! Então é isto o que você acha que eu sinto por você?
- A acusação dele explodiu em volta dela.
Melina abriu a boca para lhe responder à altura, e no momento seguinte foi
jogada contra ele. A violência da ação dele fez com que a bengala caísse
ruidosamente no chão. Um braço se curvou sobre ela. A mão dele agarrou-a pela
nuca, forçando a cabeça dela para trás, ao mesmo tempo que ela a puxava para
cima, fazendo com que ficasse na-ponta dos pés.
O grito surpreso de Melina foi abafado pela boca forte e rígida de Bay. De
maneira brutal, quase selvagem, ele a beijou, impedindo até que ela respirasse
direito, pois selou totalmente sua boca com seus lábios.
Havia uma tensão elementar no ar quando ele voltou a erguer sua cabeça. Suas
mãos se movimentaram, passeando sobre os ossos delicados dos ombros dela,
mantendo Melina parada diante dele.
- Você não passa de um sujeito brutal e grosseiro, Bay Cameron!
- A acusação foi emitida entre tentativas de recuperar o fôlego.
- Neste caso, tanto faz eu ser condenado por ser um pecador ou por ser um santo!
- Suas palavras brutais estavam carregadas de sarcasmo.
E novamente ele a puxou contra seu peito musculoso, envolvendo-a em seus braços.
Melina ainda não tinha conseguido se recuperar da pressão brutal do primeiro
beijo quando foi atingida por outro. Ela mal se debateu; suas forças estavam se
escoando rapidamente sob o impacto do abraço dele.
Quando a resistência dela sumiu completamente, uma paixão irritada foi
transmitida a ela pelos lábios exigentes dele.
Sem perceber, as mãos dela deixaram de empurrá-lo e seus dedos começaram a
acariciar a lapela do paletó dele. Em meio à explosão de seus sentidos, Melina
percebeu que estava sendo vítima da enorme virilidade dele, contra a qual tantas
vezes dissera a si mesma que precisava se precaver.
Tão repentinamente como tudo começara, tudo acabou, com Bay segurando-a
firmemente à distância de seus braços estendidos. Melina perdera completamente
seu equilíbrio interior.
CAPITULO VIII
Obedecendo às ordens dele, Melina não abrira a boca durante todo o tenso
percurso até sua casa. Ela estava apavorada demais para falar. Melina estava
apavorada por causa de si mesma. Durante alguns rápidos segundos nos braços
dele, ela esquecera todos os seus temores. Fora apenas uma mulher.
E, o que era pior ainda, ela não tinha vontade de remover, de apagar
coisa-alguma daquele contato tão íntimo na porta de Pamela. Era por este motivo
que ela continuava apavorada dias depois do incidente. Inúmeras vezes, em sua
mente, ela perguntou a si mesma por que motivo ele a teria beijado e acariciado
daquela maneira.
Será que aquele abraço brutalmente rápido tinha sido provocado pela raiva, que
ela mesma tinha considerado como sendo seu verdadeiro motivo? Ou será que ele a
teria usado meramente como uma espécie de válvula de escape para dar vazão à sua
frustração pelo seu plano de deixar Roni com ciúmes ter falhado? Considerando a
conversa que ela involuntariamente escutara, esta era a explicação mais
plausível. Mas, provavelmente, tudo acontecera por causa de uma somatória de
coisas.
Melina recusava-se a considerar a possibilidade de que Bay tivesse sido movido
por alguma espécie de desejo físico em relação a ela. Não que acreditasse que
nunca chegaria um momento em que ela encontraria um homem que a amasse e
desejasse sinceramente. Mas simplesmente não conseguia visualizar Bay como sendo
este homem. Ele tinha uma importante posição social, era um homem rico, charmoso
e de ótima aparência. E existiam tantas outras mulheres que ele poderia ter a
seu lado para este tipo de relacionamento mais íntimo.
O fato de ela ser cega tinha tocado os sentimentos dele. Não tinha muita
importância a palavra que se usasse para identificar a emoção que ele sentia -
piedade, compaixão, pena, dó, simpatia. O significado de todas elas era
exatamente o mesmo, neste caso.
Uma sensação dolorosa começou a roer seu coração. Seu orgulho lhe dizia que não
podia mais considerar Bay como sendo um amigo. Um verdadeiro amigo se mostraria
preocupado, teria simpatia pelo que acontecera a ela, mas nunca procuraria sua
companhia pelo simples fato de sentir pena dela. Mas o coração de Melina
reconhecia sinceramente o motivo principal pelo qual era imprescindível que ela
rejeitasse a companhia dele. Ela era quem tinha deixado de considerá-lo como
sendo apenas um amigo e que começara a pensar nele como sendo um homem. E, na
situação em que ela se encontrava, esta era uma tolice perigosa.
Antes que as primeiras lágrimas tivessem tempo para escorrer de seus olhos
castanhos, o telefone começou a tocar. Não!, exclamou Melina, entre soluços ,
negando o som da campainha, mas o telefone continuou tocando, insistentemente.
A vontade que ela sentia era a de ignorar o aparelho, deixando que ele tocasse
até que a pessoa do outro lado desistisse. Mas poderia ser o seu pai!
Relutantemente, ela se levantou de onde estava sentada e caminhou até o
telefone.
- Residência da família Lane - respondeu ela, esforçando-se em apresentar uma
voz calma.
- Melina.
O som da voz rouca e de timbre grave de Bay quase fez com que ela deixasse cair
o aparelho. Ela se sentia como se estivesse acabado de ser atingida por um raio.
- Você está me ouvindo, Melina? - perguntou a voz intrigada dele.
- Estou sim. Alo, Bay. - Sua resposta foi forçada e pouco natural, reconheceu
ela, pensando, logo em seguida, que isto não tinha a menor importância, que isto
já não era mais importante.
Bay preferiu ignorar a resposta bem-educada dela.
- Você sabe perfeitamente bem por que é que eu estou telefonando, não sabe?
- Como é que eu haveria de saber uma coisa destas? - replicou ela com um
desinteresse quase ofensivo.
- Você poderia sair para jantar comigo no próximo sábado à noite? - A maneira
dele formular suas palavras parecia estar transformando um convite numa espécie
de desafio.
Porém Melina já tinha imaginado que se Bay fosse fazer qualquer gesto de
conciliação, como realmente começara a fazer agora, este viria acoplado a um
convite para saírem na noite de sábado. Ela compreendeu agora que ele sempre
escolhia a noite de sábado, porque era nesta noite que seu pai se devotava
exclusivamente a Deborah, e Melina era forçada a ficar em casa sozinha. Prevendo
tudo isto, no dia anterior ela convidara uma velha amiga, Sally Goodwin, para
vir passar a noite de sábado com ela.
- Sinto muito, mas já fiz outros planos - respondeu ela, sem mentir e com uma
nuance de triunfo na voz.
- Já fez mesmo? - perguntou ele zombeteiramente, como se duvidasse do que ela
estava dizendo.
- É possível que você não saiba, Bay, mas você não é a única pessoa que eu
conheço no mundo - retrucou ela.
- Eu estarei muito errado se imaginar que você deu um jeito para estar ocupada
na noite de sábado?
- Você pode imaginar o que quiser - respondeu ela, levantando os ombros, sem
confirmar, mas também sem negar a implicação dele.
- Posso supor também que, devido à minha.. . minha indiscrição na última noite,
você resolveu não se encontrar mais comigo? - E sem dar tempo para que ela
respondesse, Bay continuou: - com toda a certeza, nem lhe passou pela cabeça a
possibilidade de que eu também possa ter o direito de perder a minha calma,
principalmente considerando-se que você resolveu simplesmente sumir da casa de
Pamela, sem ao menos mostrar a boa educação de deixar um recado, uma mensagem
qualquer, dizendo que estava indo embora; ou será que você chegou a pensar nesta
possibilidade?
Era inegável que existia algo de válido na argumentação dele, mas ela não estava
disposta a ser forçada a admitir qualquer tipo de erro de sua parte. - O que
está feito, está feito e ponto final. Não vejo sentido algum em ficarmos
discutindo isto agora.
- Então, esta é a decisão a que você chegou. Você está resolvida a não se
encontrar mais comigo - declarou Bay, com arrogância.
- Aqueles poucos instantes, durante os quais eu perdi a minha calma, serviram
para apagar completamente as lembranças das horas, dos momentos agradáveis,
pensava eu, que nós passamos juntos antes. É isto? Aquelas horas não têm
significado algum para você?
Seu desafio precisava ser respondido. - Pelo contrário, aquelas horas tinham um
significado - admitiu Melina da maneira mais fria possível -, até que foram
conspurcadas pela descoberta de que você sentia pena de mim. Eu já lhe disse
mais do que uma vez que eu não necessito de pena e da piedade de pessoa alguma.
- Pode me dizer quem, em pleno gozo de suas faculdades mentais, haveria de
sentir pena de uma garota malcriada e mimada como você? - retrucou ele, de
maneira incisiva. Ele respirou fundo, fazendo o possível para se acalmar
novamente. - Existem momentos, Melina, em que você exige demais
da paciência de um homem. Quantas vezes mais eu vou ter de lhe dizer que não
sinto pena, dó, piedade ou coisa semelhante por você, para que você finalmente
resolva acreditar em mim?
- Neste caso, explique-me direitinho quais são os motivos pelos quais você sai
comigo? - exigiu ela, numa atitude desafiadora.
- Ah, quer dizer que você acha que deve existir alguma outra intenção por trás
de tudo, alguma atitude capaz de explicar tudo muito bem, é isto? - respondeu
Bay, soturnamente. - Talvez seja porque eu... - ele fez uma pequena pausa,
procurando pelas palavras mais apropriadas - ... porque eu admiro você, sua
coragem, quando você não está mostrando uma teimosia irracional. Mas, agora,
gostaria de fazer uma pergunta. Por que é que você sai comigo? Eu represento uma
maneira conveniente e razoavelmente agradável para você conseguir sair de casa?
Ou simplesmente tolera a minha companhia porque a levo a lugares aos quais tem
vontade de ir? Quais são as suas verdadeiras intenções, Melina?
- Eu... eu não tenho outras intenções - respondeu ela, confusa diante do
contra-ataque desferido por ele.
- Ora, vamos, Melina. Não é possível que você não tenha outras intenções -
zombou ele, cruelmente. - Você devia ter algum motivo para aceitar sair comigo
tantas vezes.
- Não, eu não tinha qualquer outro motivo - insistiu Melina, em sua confusão
total. - Simplesmente me sentia bem saindo com você. Eu tinha...
Bay interrompeu o que ela ia dizer. - No entanto, é inconcebível que eu também
tenha simplesmente me sentido bem em sua companhia, não é? Não vou pedir para
que você coloque de lado seus planos já programados para sábado à noite, mas
venha velejar comigo no domingo.
- Velejar? - ela repetiu fracamente. De todos os convites que Bay poderia lhe
ter feito, o imenso amor que sentia por este esporte tornava esta proposta quase
irresistível.
- Passo por aí para apanhar você no domingo, lá pelas sete da manhã. Assim
poderemos ficar velejando durante o dia todo.
- Eu... eu estarei pronta às sete da manhã. - As palavras de aceitação saíram de
sua boca aos tropeções, antes que ela tivesse o tempo necessário para que o seu
bom senso a fizesse resistir a tentação.
- Domingo, às sete da manhã, então - confirmou Bay e desligou o telefone, como
se ele tivesse tido o mesmo pensamento.
À noite, quando ela contou ao pai sobre o convite de Bay, sua resposta foi: - Já
estou sabendo disto; Bay telefonou-me à tarde para saber se eu não tinha
objeção. Bem, eu não tenho objecão alguma e prometo a você que não vou ficar
aqui me preocupando o tempo todo.
E assim, no domingo pela manhã, Melina estava a bordo do Dome Fortune. A neblina
e a falta de ventos tinham causado um atraso de quase uma hora na partida deles.
Como sempre, Melina rebelou-se contra o fato de ser obrigada a usar um colete
salva-vidas, mesmo reconhecendo a necessidade de eles serem usados tanto por
pessoas capazes de ver, como pelos cegos.
O vento que enfunava as velas, as ondas batendo no casco da embarcação e os
ruídos do madeirame eram os únicos sons que se ouviam em torno dela. Melina não
trocara mais do que meia dúzia de palavras com Bay desde que tinham zarpado. A
conversa simplesmente era desnecessária e teria sido inteiramente supérflua,
nada acrescentando à beleza serena daquele momento. Cada um deles parecia
perceber o profundo prazer do outro, e não havia a necessidade de dizer coisa
alguma.
Após alguns momentos, virou-se para Bay e perguntou: - Onde estamos?
- Nas águas da baía de Monterey, perto de Santa Cruz - respondeu Bay, sem lhe
dedicar atenção.
- O que é que você está fazendo agora? - quis saber ela.
- Estou levando o barco para mais perto do litoral. Pensei que seria uma boa
idéia ancorarmos ao sul de Santa Cruz para o almoço. Conheço uma pequena e calma
enseada ali e só espero que ela ainda não tenha sido descoberta por mais alguém.
Depois de terem ancorado, com Melina ajudando em tudo o que lhe era possível
fazer, o único som audível era o suave bater das ondas quase inexistente contra
o casco. Ela virou-se, interrogativamente, em direção a Bay e ficou intensamente
consciente do fato de que estavam sozinhos, apenas os dois, um homem e uma
mulher. Melina fez o possível para bloquear este pensamento.
- vou descer e preparar o nosso almoço - declarou ela, afastando-se de maneira
abrupta. - O que é que vamos comer?
- Sanduíches, salada e coisas deste tipo. Está tudo preparado respondeu Bay. - O
que você acha de nadarmos um pouco antes de comermos? A água aqui é bem mais
quente do que perto de São Francisco e não existe nenhuma correnteza perigosa
nesta enseada.
- Sinto muito - recusou ela um pouco nervosa. - Você não me avisou que seria bom
eu trazer um maio e nem me lembrei disto.
- Isto não tem a menor importância - respondeu Bay, afastando a recusa dela com
a maior naturalidade do mundo. - Sempre tenho alguns maios a bordo, caso algum
de meus passageiros resolva dar um mergulho no meio do oceano. Deve haver algum
de seu tamanho.
- Mas... - Melina tentou ganhar tempo para não aceitar a proposta de Bay.
- Mas o quê? - perguntou ele. - Você aprendeu a nadar, não aprendeu?
- É lógico que aprendi - respondeu ela.
- Prometo que lhe darei todas as direções corretas. Vá lá para baixo e mude de
roupa.
Em seguida, ele lhe explicou em que armário ela encontraria os maios e Melina
desceu para a cabine. De qualquer maneira, sempre seria melhor nadar do que
ficar com ele naquele ambiente restrito do convés.
A maior parte dos maios era de duas peças; alguns não passavam de pequenos
triângulos de pano. Melina acabou optando por um modelo de peça única. Pelo
menos, dentro deste modelo ela não se sentiu tão nua quando subiu novamente ao
convés.
Bay não fez qualquer comentário a respeito de sua aparência. Coloquei uma
escadinha de corda aqui do lado do barco. - Ele a tomou pela mão e a levou até a
amurada.
Enquanto Bay segurava a escada para que ela não se mexesse demais, Melina
começou a descer lentamente, tateando cada degrau com os pés, até alcançar a
água.
Ele afastou-se da escada com algumas braçadas e depois disse:
- Nada em direção à minha voz.
Reunindo toda sua força a fim de criar a coragem necessária para soltar-se da
escadinha de cordas, Melina respirou fundo e começou a nadar em direção à voz
dele. A princípio, ela se sentiu atrapalhada pelo nervosismo e pela falta de
coordenação, mas tudo se resolveu assim que ela se acostumou de novo ao contato
com o mar. Podia ouvir as braçadas firmes de Bay, mantendo-se sempre a seu lado,
e começou a se sentir mais segura simplesmente pelo fato de saber que ele estava
perto.
Melina tinha a impressão de que eles já estavam nadando numa única direção há
muito tempo; ela começou a se sentir cansada. Seus braços em constante movimento
começaram a lhe pesar mais. Ela parou de nadar um pouco, ficando apenas
flutuando para recuperar o fôlego, e Bay fez a mesma coisa, perto dela. Nadaram
mais um pouco, até que Melina sentiu a areia sob os seus pés.
- Meus parabéns, você conseguiu - disse Bay, em algum lugar à esquerda dela. -
Como é que você está se sentindo agora?
Ela sorriu levemente. - Exausta, mas acho que é só isto.
Suas mãos estavam levemente pousadas sobre a superfície da água, que agora lhe
chegava mais ou menos à altura dos seios; pequenas ondas vinham se quebrar
contra o corpo dela. Se ela tivesse alguma dúvida, a direção das ondas teria
sido suficiente para lhe indicar o caminho para a terra firme; mesmo assim, Bay
preferia toma-la pela mão para ter certeza de que ela não iria perder o senso de
direção.
- Sabe, esta praia é ótima; ela tem um rochedo ideal para se tomar banho de sol
- disse ele, enquanto caminhavam pela água rasa, andando sobre o fundo firme de
areia. - A pressão da mão dele fez com que ela parasse depois deles terem
caminhado alguns metros.
- É aqui.
Antes que Melina tivesse tido tempo para protestar, as mãos dele envolveram a
cintura dela e a ergueram para a superfície dura e lisa do rochedo, aquecido
pelo sol. Para se equilibrar, os dedos dela se cravaram instintivamente na pele
molhada dos seus braços musculosos.
- Você se divertiu bastante ontem à noite? - perguntou ele, após ter adotado a
posição mais confortável dadas as circunstâncias. Ele estava sentado. Melina
pôde deduzir isto a partir da direção da voz dele.
- Ontem à noite? - indagou ela, franzindo a testa e virando-se melhor sobre a
pedra. Depois lembrou-se do que ele queria dizer.
- Sim, me diverti bastante, sim. - Na verdade tinha sido uma noite muito calma.
Ela e Sally tinham ficado em casa, batendo papo e ouvindo discos durante a maior
parte.
Melina não tinha certeza se ele estava rindo da noite calma que ela passara ou
se estava se divertindo com o fato dela ter preferido esta noite calma ao invés
de sair com ele. Pelo que conhecia de Bay, achou que a primeira alternativa
devia ser mais provável.
Fez-se em seguida um silêncio pesado e desagradável. Ela estava consciente
demais da presença dele; ou melhor, da presença física dele ali perto dela.
- É gostoso ficar assim ao sol - observou ela, entabulando uma conversa.
- Acho que vou me esticar também para aproveitá-lo melhor
- declarou ele.
Ao mesmo tempo que falava, estava executando os movimentos que suas palavras
tinham anunciado.
E o silêncio que Melina não desejara começou a reinar, sendo quebrado
apenas pelo ruído das ondas chegando à praia. Ela não tinha muitas alternativas,
a não ser imitar o exemplo dele.
Após alguns momentos de procura, suas mãos encontraram uma elevação na pedra,
uma espécie de encosto natural e Melina também se deitou de costas contra a
pedra. Durante um longo período de tempo, ficou escutando a respiração uniforme
de Bay. Ela mesma estava respirando de maneira um pouco ofegante; todos os seus
músculos do peito constrangidos pela tensão. Finalmente, depois de algum tempo,
o calor do sol acabou provocando um certo relaxamento nela.
Melina não chegou a adormecer, mas ficou vagando naquele estranho estado de
semi-sonolência. Estava consciente das coisas que a rodeavam e do homem que
estava a seu lado; porém, ao mesmo tempo, estava bastante distante daquilo tudo.
Depois, de repente, alguma coisa fez com que todos os seus sentidos se
colocassem em alerta. Ela virou a cabeça levemente em direção a Bay e
acidentalmente roçou com sua face na mão dele; simultaneamente, seus terminais
nervosos, extremamente sensíveis, lhe transmitiram a mensagem de que ele estava
segurando uma mecha dos seus longos e sedosos cabelos castanhos.
Melina sentiu que o sangue lhe pulsava com mais violência nas têmporas. Era
impossível rolar para longe dele; a borda da pedra devia estar bem próxima.
- Você não acha que nós deveríamos voltar até o barco? - Sua garganta estava
seca e talvez fosse uma explicação para o tom de sua voz também ter saído um
pouco seco demais.
- Mas o que foi que aconteceu? - zombou ele. - Você não gostou do carinho que eu
fazia em seu cabelo.
- Esta atitude não faz a menor diferença - respondeu Melina, balançando sua
cabeça de uma maneira resoluta, soltando os cabelos em torno dos seus ombros
nus.
Bay estendeu a mão e mexeu em seus cabelos com um gesto violento. - Neste caso,
você provavelmente não ficará contente em saber que na verdade dou preferência
quando você está de coque. A maneira como seus cabelos estão agora certamente
seria mais apropriada para a intimidade de um quarto de dormir.
A implicação sensual deste comentário fez com que Melina respirasse fundo. Sua
consciência cada vez mais aguçada da masculinidade dele tornava este tipo de
conversa entre eles algo simplesmente impossível. Ela começou a assumir uma
outra posição, desta vez sentada, para escapar da proximidade física dele, mas
Bay já estava se colocando de pé também.
- Vamos voltar para o barco agora - declarou ele, já completamente de pé.
Melina, muito grata, sentou-se na borda da pedra. Bay, que já estava na areia,
colocou suas mãos em torno de sua cintura para ajudála a descer, antes que ela
tivesse tempo para resolver este problema por conta própria. Irritada com sua
assistência indesejada e no esforço de evitar cair muito perto dele bateu o
calcanhar contra uma ponta da rocha. A dor inesperada fez com que ela caísse
contra seu peito musculoso. Suas mãos apertaram-na com mais força, fazendo o
possível para ajudá-la a recobrar seu equilíbrio.
- Você está bem?
A resposta dela, que não chegou a ser formulada, era negativa. E nem podia
deixar de sê-lo, considerando-se que a nudez do seu torso musculoso e de suas
coxas pressionadas contra o corpo dela estavam exercendo uma influência
enlouquecedora sobre o seu íntimo. Os pêlos macios e encaracolados do peito dele
faziam-lhe uma cócega suave na palma da mão. Sua cabeça estava inclinada em
direção a ela e sua respiração morna brincava com mechas espessas dos seus
cabelos.
Sentiu um forte desejo de jogar seus braços em torno dos ombros largos daquele
homem e aninhar sua cabeça no pescoço dele. Para resistir a este impulso quase
irresistível, umedeceu os lábios nervosamente e inclinou a cabeça para trás.
- Estou perfeitamente bem - assegurou-lhe ela com voz trémula. - Acho que só
bati com o calcanhar numa pedra ou coisa parecida.
Uma lufada repentina de vento soprou-lhe uma pequena mecha de cabelos no rosto.
Melina começou a fazer um movimento, com a intenção de jogá-los novamente para
trás, mas sua mão tinha chegado no meio do caminho quando os dedos de Bay,
suavemente, desprenderam os cabelos dali, juntando-os aos demais, que lhe caíam
sobre os ombros.
A mão dele permaneceu ali, ao lado de sua face; seu polegar acariciando-a
preguiçosamente. Melina prendeu a respiração; teve a nítida impressão de que o
tempo tinha parado sob o toque mágico dos dedos dele.
O calor dos lábios firmes de Bay mal chegou a tocar seus lábios quando Melina
bruscamente afastou a cabeça para o lado. Ela sabia que suas energias defensivas
não seriam suficientes, para resistir a um beijo casual.
- Por favor, Bay, não! - pediu ela, tensa.
- Eu não tinha a menor intenção de machucar você.
- É que eu simplesmente não quero que você me beije - declarou Melina,
desvencilhando-se de seus braços e dando alguns passos para longe dele.
Bay caminhou lentamente até chegar ao lado dela. Podia sentir que seus olhos
estavam fixos nela, se esforçando para compreender o que se passava em seu
íntimo. Melina fechou os olhos, temendo que talvez seus olhos cegos pudessem
expressar as sensações embriagadoras que lhe cruzavam a mente.
- Creio que o melhor realmente será voltarmos ao barco. - O tom que ele deu a
estas poucas palavras mostrava que ele devia estar irritado interiormente.
Melina não sabia dizer se era em relação a ela ou a ele mesmo.
Á mão que ele estendeu e que a conduzia em direção à água era fria e impessoal.
Melina ficou contente e aliviada quando a água se tornou profunda o suficiente
para poder nadar e ele foi obrigado a soltá-la.
Melina não conseguiu encontrar sabor algum na comida durante a viagem de volta.
Pelo contrário, encontrou dificuldades em engolir cada pedacinho, mas se forçou
a comer tudo o que conseguiu. A viagem transcorreu numa atmosfera fria, sem
qualquer vibração de amizade. Ambos permaneceram num silêncio carregado de
tensão.
Bay aceitou os agradecimentos formais dela no final do dia, de uma maneira tão
fria e distante quanto tinha sido a atitude dela ao fazê-los. Quando o portão de
ferro se fechou atrás dela, Melina compreendeu por que estava se sentindo tão
deprimida. Ela tivera bastante tempo para refletir sobre o assunto durante a
viagem de volta. Ela estava loucamente apaixonada por Bay Cameron. Ela estava
literalmente cega de paixão.
CAPITULO IX
As últimas palavras que Bay lhe dissera ao se despedir foram: Eu telefono para
você. Nas experiências anteriores de Melina estas palavras sempre tinham
indicado o fim de um relacionamento. Era sexta-feira à noite, e ele não tinha
telefonado.
Mais uma lágrima lhe escorreu pelo rosto. Ela a enxugou com a ponta dos dedos,
deixando uma marca de argila sujando sua face.
Ouviu-se uma batida na porta do ateliê. Durante a última semana, ela fizera
questão de deixar aquela porta sempre trancada, não querendo que qualquer pessoa
entrasse ali simplesmente, sem que ela fosse pelo menos alertada pelo barulho da
maçaneta da porta.
Melina pegou a barra do seu avental de trabalho e enxugou o rosto:
- Entre! - exclamou ela.
Uma nuvem de perfume penetrou no ateliê; era uma fragrância que ela mentalmente
identificava com a figura de Deborah.
- Eu só vim até aqui para lembrar a você de que vamos sair dentro de uma hora,
assim você ainda tem tempo de sobra para arrumar aqui em cima e trocar de roupa
- declarou alegremente sua futura madrasta.
- Acho que não vou sair com vocês - murmurou Melina.
- Você sabe como seu pai está ansioso por este nosso jantar a três, hoje à noite
- lembrou-lhe Deborah.
- Eu sei disto, mas realmente prefiro continuar trabalhando mais um pouco.-
mentiu ela.
- Eu... eu gostaria de ter a certeza de que você não está se recusando a ir a
este jantar por minha causa - explicou ela, meio constrangida.
- Não, Deborah. Pode ficar sossegada. Minha recusa não tem nada a ver com você.
- Melina soltou um pequeno suspiro de alívio.
- Nós podemos sair todos juntos numa outra noite qualquer. Eu provavelmente não
deveria ter começado a modelar esta peça tão tarde assim, mas agora que comecei,
simplesmente preciso continuar trabalhando por mais algum tempo.
- Compreendo. Sei a importância que você dá a seu trabalho. E não se preocupe,
Melina. - Havia a sombra de um sorriso cheio de calor humano na voz dela. - Eu
me encarrego de explicar tudo a seu pai.
- O que é que você vai explicar para mim? - disse Grant, entrando
inesperadamente no ateliê.
Melina respondeu no lugar de Deborah. - Decidi ficar em casa, hoje à noite,
trabalhando.
- Ora, Deborah, será que você não enxerga as coisas? Ela está trabalhando demais
nos últimos dias - declarou Grant com força.
- Veja só estas olheiras escuras debaixo dos olhos dela e repare como está
abatida. Não dorme, não se alimenta direito. A única coisa que faz é ficar aqui
em cima, trabalhando, de manhã até tarde da noite; geralmente ela não sai daqui
antes da meia-noite.
- Papai, agora você está começando a exagerar - reclamou Melina com um suspiro.
- Além do mais, meu trabalho é muito importante para mim. Prometo que, assim que
puder, vou descer e preparar alguma coisa para comer e depois vou direitinho
para -a cama. Você concorda com isto, papai?
- Eu... - Ele respirou fundo, irritado, mas ficar discutindo com as doas pessoas
mais importantes do mundo para ele não lhe agradava. - Está bem! Desta vez você
pode ficar em casa. Mas, na próxima semana, vamos sair todos juntos, e já estou
avisando que não aceito qualquer tipo de desculpas. E, agora, por que é que você
não me deixa dar uma espiada neste busto que é tão importante a ponto de você
não querer desfrutar da companhia de seu próprio pai?
Melina deu um passo para o lado assim que o percebeu se aproximando. - Por
enquanto é apenas um esboço. vou tentar fazer o busto de Gino Marchetti, o dono
do supermercado. Ainda me lembro dos traços físicos dele.
- Você disse Gino? - repetiu Grant com uma ponta de dúvida.
- Por enquanto é apenas um esboço; ainda não comecei a cuidar dos detalhes -
defendeu-se Melina.
Houve um momento de silêncio durante o qual ele ficou examinando a cabeça
inacabada. Depois, virou-se para Deborah e perguntou: - Deborah, esta cabeça lhe
lembra quem?
- Bem... - hesitou ela e demorou para responder. - Bem, acontece que eu não
conheço o Gino muito bem...
- Pois eu o conheço há muitos e muitos anos. Eu sinto muito ter de lhe dizer
isto, Melina, mas este busto não está ficando nem um pouco parecido com ele, nem
mesmo com a aparência que ele tinha quando era mais moço - declarou ele
enfaticamente.
- Quando eu terminar o trabalho, você vai ver que... - começou a dizer Melina.
- Eu vou ver que você fez um busto parecido com um homem chamado Bay Cameron -
disse seu pai, terminando a frase para ela.
- Você deve estar enganado, papai - respondeu ela no tom mais neutro possível,
embora apertasse as mãos com muita força.
- Acho que o Bay tem um rosto muito interessante. Se você pudesse vê-lo, Melina,
tenho certeza de que você sentiria uma grande vontade de retratá-lo numa tela.
No entanto, não estou disposto a ficar discutindo com você; afinal de contas,
você é que é a artista dentro desta casa. Se você diz que é a cabeça do Gino,
então é, e ponto final. Imagino que tanto um como o outro devem ter
características romanas, como você diz. - Ele colocou o braço em torno dos
ombros da filha e lhe deu um aperto, tentando transmitir-lhe maior confiança em
si mesma. - E agora, desde que vocês duas permitam, vou subir para tomar um
banho e para mudar de roupa.
Depois de beijar Melina levemente no rosto, ele saiu do ateliê. Como se pudesse
enxergar, ela "fitava" o amontoado de argila sobre seu pedestal de trabalho; seu
coração estava gritando de dor. Durante um instante, esqueceu-se completamente
de que Deborah ainda estava ali e só se lembrou dela quando ouviu o som de seus
passos.
- Melina, quanto ao Bay... - a voz suave de Deborah parou no meio da frase.
- Gosto muito dele, Deborah - declarou Melina. - Sabe, ele me ajudou numa porção
de coisas. Aliás, foi Bay quem me sugeriu que eu tentasse começar a trabalhar
com modelos de argila. - Silenciosamente, ela admitiu que não era justo entregar
seu coração por causa de uma carreira, mas desde quando alguma coisa relacionada
com o amor pode ser julgada em termos de justiça ou de injustiça?
- Mas não se preocupe, Deborah. Compreendi perfeitamente bem quais são os
motivos dele.
- Você sempre me dá a impressão, Melina, de ser uma pessoa ultra-racional,
sempre com os pés plantados bem firmes no chão - respondeu Deborah, com uma leve
pitada de inveja e caminhou em direção à porta.
Quando a porta do atelié se fechou, as mãos de Melina se estenderam, tateantes,
em direção ao busto, explorando suavemente os traços por enquanto apenas
esquematizados, confirmando para si mesma que realmente se tratava do rosto de
Bay. Uma raiva surda começou a tomar conta de todo seu ser.
Destruir aquilo! Derrubá-lo do pedestal! eram as ordens emitidas pelo seu
cérebro. Transformar tudo aquilo novamente num simples monte de argila.
Suas mãos, coladas no seu rosto, recusaram-se a obedecer a estas ordens. Uma
lágrima caiu, depois outra. Finalmente, soluços silenciosos começaram a sacudir
seu corpo magro, seus ombros, curvando-se para a frente devido à insuportável
dor que sentia no peito.
Mas suas mãos não permaneceram imóveis durante muito tempo. Tremendo, ela
começou a trabalhar, definindo, dolorosamente, cada um dos detalhes do rosto de
Bay Cameron na argila amoldável. Foi um trabalho de amor, e todos os pedaços de
seu coração que ela não pudera entregar a Bay foram colocados ali, naquela massa
de argila maleável.
Mais tarde, Melina não sabia dizer quanto tempo tinha decorrido, quando seu pai
bateu apenas uma vez na porta e a abriu em seguida. Não teve sequer tempo para
enxugar as lágrimas de seu rosto, por isso, virou-se de costas para a porta. -
Estamos indo agora - disselhe ele. - Não se esqueça do que você me prometeu. Vá
comer alguma coisa e depois.. . cama.
- Sim, papai - respondeu ela. - Divirtam-se bastante.
A interrupção servira para bloquear o fluxo de lágrimas. Ela repentinamente
percebeu o quanto estava esgotada, tanto emocional quanto fisicamente. Quando a
porta se fechou, indicando a partida de seu pai e Deborah, Melina caiu prostrada
em sua cadeira de trabalho. Exausta, colocou o rosto entre as mãos, não querendo
se movimentar nem gastar qualquer tipo de energia para respirar.
Então, começou a ouvir o som de alguma coisa batendo.
Depois, percebeu que estava vindo lá de baixo, da porta da frente, no pavimento
inferior. Ela fez uma careta e levantou-se, enquanto enxugou as lágrimas que
ainda lhe umedeciam o rosto.
Não conseguia andar mais depressa até o andar de baixo. As batidas continuavam,
mais insistentes do que antes.
- Já estou indo! - Sua voz estava carregada de irritação, e as batidas cessaram.
Os músculos de sua nuca de tão tensos pareciam ter formado nós, e ela os
massageou preocupada, enquanto destravava o trinco automático e abria a porta.
- O que foi que aconteceu? Você esqueceu alguma coisa? - perguntou ela,
esforçando-se para dar um tom leve à sua voz, zombando do pai, mas não foi uma
tentativa bem-sucedida. Suas perguntas foram respondidas pelo silêncio. Melina
inclinou a cabeça para o lado, numa atitude de escuta. - Papai?
- Você sabe que seu rosto está todo sujo de argila? Instintivamente, Melina deu
um passo para trás ao reconhecer o
timbre grave da voz de Bay. Sua mão moveu-se para fechar a porta, mas ele
bloqueou a manobra dela com sucesso e entrou na sala.
- Por que você veio? - perguntou ela, virando-se para o outro lado, incapaz de
continuar aguentando o olhar dele, uma mão tentando nervosamente limpar o rosto.
- Pára convidá-la a ir jantar comigo.
- Não. - Melina jogou a cabeça para trás, fechando os olhos ao mesmo tempo que,
silenciosamente, murmurava uma prece, torcendo para que ele fosse embora logo.
- Você sabe que eu não aceito uma resposta destas - declarou ele. - Você precisa
comer alguma coisa, e não acredito que o fato de eu estar junto a atrapalhe.
- Sinto muito, mas você vai ter de aceitar a minha recusa desta vez; estou
ocupada. Além do mais, comer sozinha nunca foi um problema para mim.
- Melina, deixe de ser tão teimosa - disse Bay, com muita suavidade na voz. -
Não existe necessidade alguma de trocar de roupa. Basta você tirar esse avental
de trabalho e podemos ir. A gente come alguma coisa e eu prometo que depois a
trago diretamente para casa, para que você possa terminar seu trabalho, desde
que seja imprescindível terminá-lo ainda hoje.
com um gesto rápido, Bay estendeu a mão e desamarrou o cinto do avental dela.
Melina se esforçou para amarrá-lo novamente, mas os dedos dele se fecharam em
torno de seu punho, impedindo-a.
- Desta vez, você não vai conseguir me forçar a fazer uma coisa que eu não
quero, Bay Cameron - exclamou Melina, esforçando-se para livrar o pulso da mão
dele.
Ele a manteve segura com muita facilidade. - Neste caso, temos uma noite longa
pela frente, pois não estou disposto a sair daqui enquanto você não concordar
comigo.
Melina sabia que não era uma ameaça vazia. Ele era suficientemente arrogante
para realmente fazer o que estava dizendo. Mas a sensação de calor que estava se
espalhando pelo seu braço era uma segunda ameaça, uma ameaça de que ela não
seria capaz de continuar escondendo seus sentimentos ou de controlar as
palavras, caso tentasse vencê-lo numa discussão.
Melina apertou os lábios fortemente durante um instante. - Se eu concordar com
esta sua atitude chantagista, você me dá sua palavra de honra de que irá aceitar
todas as decisões que eu tomar futuramente em relação a sairmos juntos, sem
qualquer tipo de contestação?
Sua exigência foi recebida por um silêncio defensivo durante alguns longos
segundos. - Eu lhe dou a minha palavra de honra desde que você concorde em
discutirmos os motivos da sua repentina animosidade em relação a mim.
- Não tenho a menor idéia do que você está falando - respondeu ela friamente.
- Quero a sua palavra de honra agora, Melina - insistiu Bay à tentativa que ela
fizera para escapar.
- Está bem, você tem a minha palavra de honra. E, agora, me solte. - Ele
largou-lhe o pulso e ela começou a esfregá-lo inconscientemente. - Mas continuo
não entendendo a respeito do que você está falando - mentiu ela.
- Veremos - murmurou Bay, calmamente.
Como ela odiava seu ar de superioridade! Melina jogou seu avental a esmo e
caminhou para pegar a sua bengala.
- Vamos, então. Quanto mais depressa resolvemos tudo isto, melhor será -
declarou ela.
- Você não está esquecendo sua bolsa? - zombou ele. - Acredito que você vá
precisar de suas chaves para entrar na casa, a não ser... que você esteja
planejando passar a noite toda comigo.
- Deus me livre! - exclamou Melina, com uma expressão de desprezo.
Mas esta possibilidade era uma tortura, cravando-se no coração dela enquanto
subiu rapidamente a escada em
direção a seu quarto. Era doloroso saber que Bay era capaz
de brincar com a possibilidade de ir para a cama com ela, principalmente
considerando-se que isto era o que ela mais desejava no mundo.
Seu silêncio no carro foi motivado apenas pelo desejo de se proteger, não pela
vontade de ser rude em relação a ele. Ela, entretanto, nem conseguia começar a
adivinhar os motivos que levavam Bay a ficar calado. Aquele homem era um enigma.
Não conseguia compreender por que ele fazia as coisas que fazia. Por exemplo,
por que queria sua companhia, quando ela já deixara bem claro que não estava
interessada na companhia dele?
Subitamente, Melina compreendeu que provavelmente seria a última vez que sairia
com Bay, desde que ele mantivesse a palavra dada. Era realmente impossível e
pouco prático continuar saindo com ele, já que isto lhe provocaria dores maiores
ainda.
Ela sabia que ele pretendia modificar sua opinião e persuadi-la a continuarem o
relacionamento. Ele conseguira farer isto da última vez, quando ela ainda não
tinha consciência de seu amor por ele. Naturalmente, estava certo de que
conseguiria convencê-la mais uma vez - mas por quê.. . isto ela não sabia dizer.
Sabia, porém, que teria de ficar muito atenta para não cair nas armadilhas de
seu charme.
Ela estava concentrada em Bay. Nenhuma outra coisa conseguia ocupar seus
pensamentos. Não ouvia os ruídos do trânsito e não se importava com o lugar para
onde ele a estava levando, mesmo sabendo que, num futuro próximo, ela
provavelmente pensaria neste restaurante com muita dor na alma.
- Chegamos? - perguntou ela, erguendo o queixo num ângulo quase insolente.
- Chegamos, sim - respondeu Bay.
Ela apoiou-se na bengala enquanto esperava que Bay desse a volta no carro para
vir abrir a porta de seu lado. As cabeças de dragão entalhadas no cabo de marfim
deixaram marcas em relevo em seus dedos. Como ela não tinha a menor idéia do
lugar para onde estavam indo, teve de aceitar a mão dele como guia, segurando-a
pelo cotovelo. Alguns passos mais adiante, ele abriu uma porta e introduziu-a
num edifício.
Passos aproximaram-se rapidamente deles e uma voz feminina os recebeu com um tom
de surpresa agradável. - Ah, o senhor já está de volta! Dê-me seu sobretudo.
- Pois é, eu acabei não necessitando de todo o tempo que pensei ser preciso,
senhora Gibbs. Melina, esta é Gibbs.
- Como vai, senhora Gibbs - Melina saudou a mulher desconhecida de uma maneira
algo preocupada, enquanto seus ouvidos se esforçavam para captar os sons do
ambiente, que, na opinião dela, deveria ser um restaurante, mas os ruídos não
combinavam com esta sua suposição.
- Estou muito contente em conhecê-la, senhorita Lane - respondeu a mulher. Logo
em seguida, ela se afastou outra vez.
- Que tipo de restaurante é este? - sussurrou Melina, não sabendo se alguém
poderia ou não estar ouvindo o que ela dizia.
- Não é um restaurante. - Ele segurou-a novamente pelo cotovelo, impelindo-a
para a frente.
- Mas... - começou a reclamar Melina, franzindo a testa.
- Estamos em minha casa, Melina - declarou Bay com a maior calma do mundo.
Ela parou abruptamente onde estava. - Você disse que ia me levar para comer
alguma coisa - acusou ela.
- Mas nunca disse que iríamos comer num restaurante. - Ele soltou o cotovelo
dela e enlaçou sua cintura com o braço. - E, além do mais, você também não
perguntou.
Melina libertou-se do braço indesejado. - Esta foi a última vez que você me
enganou, Bay Cameron. Você pode fazer meia-volta imediatamente e me levar de
novo para minha casa.
- Eu entreguei à senhora Gibbs uma lista de todos os seus pratos prediletos. E
ela se esforçou ao máximo para preparar uma refeição que realmente conseguisse
agradar a você. Acho que ela vai ficar tremendamente desapontada se você não
comer alguma coisa.
- Você nunca se preocupou muito com meus sentimentos - lembrou-lhe ela de
maneira incisiva. - Por que motivo eu haveria de me preocupar com a
possibilidade de magoar os sentimentos dela?
- Porque, bem no fundo, você é uma mulher muito gentil e muito sensível; e
também porque você me deu sua palavra de honra.
- E você imagina que eu vou cumprir, quando você não tem a mínima intenção de
cumprir a sua? - Melina engoliu em seco um soluço indefeso e frustrado.
- Eu nunca menti para você - disse Bay.
- Não, realmente você não mentiu. Você apenas usou truques sujos, manobras,
artimanhas e todos os tipos para me levar a fazer exatamente o que você sempre
quer, mas, afinal de contas, você é Bay Cameron. Você pode organizar seu próprio
código de princípios éticos, não é mesmo? - fustigou ela, sarcasticamente.
- Vamos para a sala de estar? - Havia um tom metálico em sua voz, e Melina
compreendeu que suas observações tinham conseguido atingir o alvo desejado.
Paradoxalmente, ela sentiu ao mesmo tempo remorso e satisfação por ter
conseguido magoá-lo. Ela o amava de uma maneira desesperada, mas, ao mesmo
tempo, ela o odiava também, porque ele a considerava apenas uma infeliz jovem
cega e não uma mulher com necessidades emocionais e físicas iguais às de
qualquer outra. Ela não ofereceu resistência ao braço que a conduziu com
firmeza.
- Por que é que você me trouxe para cá, Bay? - indagou Melina, da maneira mais
fria possível.
- Acho que não ficaria bem se passássemos a noite toda ali fora no saguão de
entrada - respondeu ele, deliberadamente, compreendendo de maneira errada a
pergunta dela.
- Você sabe perfeitamente bem que eu estou me referindo a esta casa - disse ela.
- Por que esta casa oferece uma maior privacidade para a conversa que estamos
precisando ter.
- Também teríamos dentro do seu carro, ou até mesmo em minha própria casa -
disse ela.
- Nenhum destes seria tão bom quanto aqui. No carro, você poderia ter um dos
seus acessos temperamentais e possivelmente pularia do carro antes que eu
pudesse impedir isto, e você acabaria atropelada por algum motorista inocente -
explicou Bay com muita lógica. - E sua casa também não seria um lugar ideal para
conversarmos. Você a conhece melhor do que a palma de sua mão e, considerando
sua teimosia, eu provavelmente acabaria tendo de ficar falando na frente da
porta de algum quarto em que você conseguiria se trancar. Aqui, em minha casa,
você não sabe em que direção se movimentar sem tropeçar em algum móvel ou sem
bater com o nariz em alguma porta.
- E você ainda não compreende por que evito a sua companhia!
- protestou Melina, girando nos calcanhares, mas incapaz de se movimentar com
muita rapidez.
Ele preparara a armadilha com muita astúcia. Ela tateava com a ponta da bengala
o local, à procura de algum obstáculo a sua frente, e acabou batendo num objeto
sólido.
Melina não sabia ao certo o que tinha esperado encontrar; uma maneira de sair
dali, possivelmente. Frustrada, afastou-se e retornou pelo caminho que já tinha
feito, parando quando chegou perto da área onde julgou que ele deveria estar.
- Bay, por favor, me leve de volta para casa - pediu ela, suavemente.
- Ainda não.
- Se você não quer me levar para casa, eu simplesmente vou pedir um táxi pelo
telefone - declarou ela, em atitude de desafio.
- E onde está o telefone, Melina? Você sabe onde? - zombou Bay. Virando o rosto
para escapar do olhar dele, ela soltou um suspiro que já era quase um soluço. -
O que é que você tem, Melina?
- Você está me mantendo praticamente presa dentro de sua casa e ainda tem o
descaramento de perguntar o que é que eu tenho! explodiu ela, extremamente
irritada.
- Existem mais coisas por trás de tudo isto, e eu estou disposto a descobrir
tudo.
- Talvez esteja simplesmente ficando cansada de ter de suportar você me tratando
o tempo todo como se eu fosse uma simples criança
- sugeriu ela com gelo na voz.
- Neste caso, eu lhe dou um bom conselho: deixe de agir como se fosse uma
simples criança! - disse ele.
Com um sobressalto, ela percebeu que ele estava muito mais perto do que ela
tinha imaginado. Ele tocou-lhe os ombros, mas, antes que seus dedos pudessem
segurá-la com firmeza, ela se afastou com um gesto violento.
- Pelo amor de Deus, Melina! Por que é que você está com tanto medo de mim? -
perguntou ele. - Cada vez que eu me aproximo você começa a tremer como se fosse
um coelhinho assustado. E ficou assim desde aquele dia que fomos à festa na casa
de Pamela. O que é que está preocupando você? Por que é que tem medo de ficar
perto de mim?
A respiração dela estava ofegante e desritmada.
- Não sinto segurança ou confiança quando você está perto defendeu-se Melina,
incapaz de lhe explicar o que a levara a descobrir que estava perdidamente
apaixonada por ele.
- Eu estava furioso naquele dia. Minha intenção não era a de aterrorizar você -
declarou Bay enfaticamente. Desta vez suas mãos se fecharam em torno dos ombros
dela, antes que ela tivesse tempo para escapar. Ele a segurou de maneira firme,
mas sem machucá-la.
- Você não acha que é um pouco tarde para se arrepender do que fez? - Ela
abaixou o queixo para que ele não pudesse ver a expressão de seu rosto, quando
continuou com uma entonação sarcástica. - Nós simplesmente não podemos mais ser
amigos, Bay, nunca mais.
- Neste caso, vou desfazer os danos - respondeu ele, com voz
tensa e grave.
Ele a puxou para junto de si. Ela, automaticamente, começou a empurrar o peito
dele. Esta foi a última resistência que Melina ofereceu quando a boca de Bay se
fechou sobre a dela. Ela necessitou de todas as suas energias e de sua força de
vontade para não reagir àquele beijo. A qualquer custo, era necessário evitar
que ele descobrisse os efeitos que era capaz de causar nela. Ele jamais poderia
descobrir as chamas de desejo que a consumiam, deixando-a praticamente inerte em
seus braços.
O beijo parecia não terminar nunca. Melina não sabia por quanto tempo mais seria
capaz de opor resistência ao ataque cerrado que Bay estava desferindo contra
ela. Antes que o gemido de entrega escapasse de seus lábios, Bay se afastou.
- Melina. - O timbre grave e rouco de sua voz sussurrante quase conseguiu
desferir o golpe final.
Ela sentiu o coração atravessado na garganta, mas, mesmo assim, conseguiu se
forçar as palavras de uma rejeição que não sentia. E agora, você vai permitir
que eu volte para minha casa? - perguntou ela, com voz tensa.
- O que é que está acontecendo, Melina? - perguntou ele, num tom defensivo. -
Meus beijos não a assustam. Você também não fica assustada quando eu toco em
você. Aliás, acho que não existe coisa no mundo capaz de aterrorizá-la de alguma
maneira. Mas alguma coisa está errada; gostaria que você me desse alguma
explicação, algum motivo para que eu possa compreender esta repulsa.
Ela ficou parada em silêncio durante um minuto, percebendo que ele não estava
disposto a libertá-la imediatamente. Melina respirou fundo e jogou a cabeça para
trás. Ela estava prestes a dizer a maior e a mais importante mentira de toda sua
vida.
- Você quer saber a verdade, Bay? - desafiou-o ela corajosamente. - Pois bem, a
verdade é que quando você me conheceu eu estava perdida e me sentindo muito só.
Eu era um zero à esquerda e minhas perspectivas de futuro eram totalmente
inexistentes. Você me forçou a sair de dentro do meu casulo e me ofereceu sua
companhia. E, mais importante ainda, você me devolveu uma chance profissional
num campo que eu adorava mais do que qualquer outra coisa no mundo. Eu prometo e
garanto que lhe serei eternamente grata por ter feito estas coisas por mim.
Ela fez uma pausa durante um momento, tentando avaliar o silêncio dele. -
Gostaria que você não me tivesse forçado a dizer isto, Bay. Não tenho a menor
intenção de ser grosseira com você, mas já não estou mais perdida e nem só.
Tenho minha carreira e minhas metas, e estas são as únicas coisas que eu sempre
quis ter na vida. Curti muito os momentos que passamos juntos, não resta a menor
dúvida a este respeito. Mas você tem uma grande tendência a ser o machão
dominador, e a única coisa que permito dominar minha vida é meu trabalho
profissional. Para resumir tudo isto numa única frase brutal: eu simplesmente
não preciso mais de você.
- Compreendo. - Ele soltou-lhe os ombros e deu um passo para trás. Sua voz
cortante declarou: - Realmente, duvido que você pudesse encontrar uma maneira
mais clara de se expressar.
- Nunca tive a intenção, consciente ou inconsciente, de usar você, e espero que
acredite nisto - explicou Melina. - Há umas duas semanas atrás, percebi que
gostaria de devotar todo meu tempo disponível a meu trabalho, mas não sabia como
dizer-lhe isto, sem dar a impressão de ser mal-agradecida por tudo o que você
fez por mim. A única coisa que você estava pedindo em troca era um simples
relacionamento de amizade, mas eu estava me sentindo tão egoísta a ponto de não
querer lhe dar nem mesmo isto. Então, resolvi armar uma briga, imaginando que,
bastante irritado comigo, você mesmo se encarregaria de desfazer esta amizade.
Sinto muito por tudo isto, Bay.
Uma lágrima rolou-lhe dos olhos diante da magnitude da mentira que acabara de
pronunciar. A verdade era totalmente diferente, mas o silêncio dele parecia lhe
dizer que ele acreditara em tudo.
- Você poderia me levar para casa agora, Bay? - pediu ela, com a voz
estrangulada de dor.
CAPITULO X
- Melina! Você poderia descer durante alguns minutos? - chamou Grant, parado ao
pé da escada.
- Será que não dá para esperar até mais tarde?
- Não. É uma coisa muito importante - respondeu o pai dela.
Relutantemente, Melina cobriu o pedaço de argila que estava começando
tomar forma com um pano úmido. Se tivesse insistido, provavelmente teria
conseguido persuadir seu pai de que a
"coisa" não era importante, fosse ela o que fosse,
mas ela estava simplesmente cansada demais para ficar discutindo. Durante as
últimas duas semanas, tinha trabalhado demais e dormido muito pouco.
- O que é que você quer, papai? - Quando já estava no meio da escada, ela sentiu
uma sensação de arrepio na nuca. Durante algum tempo ainda ela imaginou que o
arrepio estivesse sendo causado por seu estado de estafa e seus nervos abalados.
Ela parou abruptamente no último degrau, virando a cabeça em direção à porta que
conduzia às escadas da rua.
- Alo, Melina. Peço mil desculpas por ter vindo interromper o seu trabalho. - O
tom irónico existente na voz de Bay atingiu-a como se fosse um punhal.
Empalidecendo levemente, Melina abaixou o queixo, desceu o último degrau e
enfiou as mãos trémulas nos bolsos do seu avental de trabalho. - Mas que
surpresa, Bay.
- Sua voz também não dava a impressão de que se tratava de uma surpresa
agradável. - O que é que o traz até aqui?
- Você pode dizer que esta é minha última boa ação de escoteiro
- interrompeu Bay, sem fazer muitas cerimónias. - Gostaria que você conhecesse
Howell Fletcher, Melina.
- Esta é a jovem a respeito da qual você me tem falado tanto, Bay? - indagou uma
voz masculina. - Senhorita Lane, espero que isto seja um prazer para nós dois.
Desconcertada, Melina ofereceu-lhe a mão. Ela sentiu que dedos bem tratados a
apertaram e soltaram logo em seguida. - Sinto muito, mas acho que não estou
conseguindo compreender direito o que está acontecendo - desculpou-se ela.
- Howell veio até aqui para apreciar seu trabalho e para lhe dar uma opinião
abalizada sobre seu talento e seu potencial - explicou Bay.
- Eu não acredito que... - começou Melina a protestar, querendo dizer que seu
trabalho ainda não estava preparado para ser criticado por uma pessoa realmente
abalizada no assunto.
- Talvez fosse proveitoso você descobrir desde já se está ou não perdendo seu
tempo, tentando montar um futuro a partir de esperanças infundadas - declarou o
homem que lhe tinha sido apresentado como sendo Howell Fletcher.
Uma boa ação, assim é que Bay tinha caracterizado aquela sua iniciativa. Melina
começou a imaginar se ele não estaria desejando que ela se desiludisse
completámente, talvez como uma forma de se vingar dela.
- Minhas peças estão todas no ateliê, no pavimento superior. Empertigou-se toda,
num gesto de muito orgulho. - Você também vai subir, Bay?
- Não. Aliás, nem posso me demorar muito. - O resultado do exame das peças pelo
crítico, aparentemente, significava tão pouco para ele que começou a se despedir
do pai dela e de Howell Fletcher. Melina foi totalmente ignorada por ele nas
despedidas.
Caminhando como um autómato, Melina levou Howell Fletcher até o seu ateliê. O
homem não disse uma palavra sequer enquanto ficou estudando demoradamente cada
uma das peças, mas ela não se importou com isto. Por mais estranho que isto
pudesse ser, ela não se importava com a opinião daquele homem. Havia um único
homem importante em sua vida, e Bay tinha aparecido e tornado a desaparecer
outra vez, antes que seu coração despedaçado tivesse tido tempo suficiente para
voltar normalmente outra vez.
Seu trabalho tinha se transformado numa maneira de preencher as horas vazias e
solitárias, fornecendo-lhe um desafio e uma razão para se levantar todas as
manhãs. Algum dia, esperava que seus trabalhos lhe permitissem ser independente
de seu pai.
- Quantas destas peças você fez desde que ficou cega, Melina?
- perguntou o homem pensativo.
- Em argila, todas elas - respondeu ela, distante. - As pinturas foram todas
realizadas antes do acidente, é lógico.
- Pelo que entendi, você conheceu Bay apenas alguns meses atrás
- comentou ele.
- Exatamente - respondeu ela, passando a mão na nuca.
- Então, como foi que você conseguiu fazer este busto?
Um sorriso seco apareceu nos lábios dela. - Uma pessoa cega costuma enxergar
alguma coisa com as pontas dos dedos, senhor Fletcher.
Depois Howell Fletcher começou a falar, ou melhor, começou a criticar. Ele não
procurou amainar o impacto de suas palavras, enfiando-as como lâminas no
espírito dela, pouco se importando se estava ou não cortando pedaços do seu
futuro fora. Ele fez questão de dissecar cada uma das peças. Cada defeito, não
importando quão insignificante pudesse ser, foi observado e comentado por ele. E
cada uma das peças era colocada nas mãos dela, para que ela mesma pudesse
examinar os pontos para os quais ele estava chamando sua atenção.
Durante muito tempo, a voz culta e sofisticada daquele homem ficou discorrendo,
até que ela começou a sentir vontade de gritar para que ele parasse com aquilo.
O peso do fracasso começou a se fazer sentir sobre seus ombros, temerosos do
julgamento final. O rosto de Melina, que já estava triste e mortificado pela
tortura de um amor não correspondido, foi se tornando cada vez mais sombrio. O
orgulho fez com que ela mantivesse o queixo erguido, enquanto a última peça
estava sendo detalhadamente analisada e criticada. Um silêncio pesado se fez
após o último comentário.
- Bem - disse Melina e respirou fundo -, eu nunca pensei que fosse uma amadora
tão incompetente assim.
- Santo Deus, criança - riu o crítico -, você não é incompetente, nem uma
amadora. Algumas das
peças são toscas, necessitando de linhas mais concretas na concepção.
Mas as outras são impressionantes. O orgulho e a força que você conseguiu
colocar no rosto de Bay são inacreditáveis. O ar patético que você deu a esta
madona é extremamente tocante e comovente. Da mesma forma como em suas pinturas,
seu talento parece residir principalmente no tratamento que você dá às figuras
humanas. Você consegue lhes dar vida, aumentando ainda mais as qualidades que
elas tenham para atrair outras pessoas.
- Neste caso então o senhor acha que eu deveria continuar trabalhando?
- Se você conseguir manter este ritmo e este padrão de trabalho, posso lhe
prometer uma exposição dentro de seis meses - declarou Howell Fletcher.
- O senhor deve estar brincando - disse Melina.
- Minha querida, se existe uma coisa com a qual nunca brinco é dinheiro. E,
desculpe-me se o que eu disser soar rude a seus ouvidos, o fato de você ser cega
certamente servirá para atrair uma boa quantidade de publicidade gratuita. O que
faremos será organizar uma exposição com seus melhores quadros e com as melhores
peças de cerâmica; obviamente, faremos uma exposição para a qual convidaremos
apenas as pessoas mais "certas"...
- Você não está dizendo isto tudo só porque quer agradar ao Bay, está? -
interrompeu-o Melina, repentinamente sentindo medo de que Bay tivesse se
utilizado de suas influências para arranjar tudo aquilo.
- Você está insinuando que eu possa ter sido comprado para lhe dizer tudo isto?
- indagou ele, com uma voz cheia de indignação. Meio hesitante, ela confirmou
sua pergunta com um gesto de cabeça. - Reconheço que Bay me pressionou um pouco
para que eu viesse até aqui hoje, mas nunca seria capaz de arriscar minha
reputação profissional para agradar a alguém! Se você não tivesse talento, eu
lhe teria dito isto de maneira mais clara possível, pode estar certa.
Melina acreditou no que ele disse. A taça da vitória estava finalmente ao
alcance de suas mãos. Ela deixou então que o homem continuasse a expor seus
planos, sabendo que o néctar da taça não era tão doce assim, simplesmente pelo
fato de ela saber que não poderia compartilhá-lo com o homem que ela amava. O
triunfo era algo tão oco quanto ela mesma se sentia.
Uma exposição só para ela dentro de seis meses, prometera Howell Fletcher. Após
pensar melhor no assunto, ele transferiu a exposição para a primeira semana de
dezembro, levando em consideração a época de festas, em que as pessoas se
sentiriam mais propensas a gastar dinheiro. Melina já tinha percebido que o
dinheiro era tão importante para ele quanto a arte.
- Tenho a impressão de que você conseguiu vencer, Melina murmurou seu pai, de
maneira a não ser ouvido pelas pessoas que passavam por ali. - Eu só tenho
ouvido elogios e mais elogios.
Melina sorriu levemente, não por suas palavras de sucesso, mas pelo profundo
orgulho existente em sua voz. Ele imaginava perfeitamente o sorriso
resplandecente em seu rosto.
- Palavras elogiosas não custam, senhor - declarou Howell Fletcher, que se
encontrava do outro lado de Melina, mas havia um tom de triunfo na voz dele
também.
- E tudo graças a você, Howell - declarou ela suavemente.
- Você sempre se mostra tão diplomática - riu-se ele. - Foi necessário tanto o
seu como o meu talento, e você sabe perfeitamente disto. E agora, desculpe-me,
mas preciso circular pelo salão.
- Melina. - Uma voz feminina e quente chamou por ela, sendo acompanhada logo, em
seguida, por uma forte fragrância de violetas.
- Sou eu, Pamela Thyssen. Você esteve numa festa em minha casa, há alguns meses
atrás,
- Mas é claro, Pamela; lembro-me muito bem da senhora. - Melina estendeu-lhe a
mão.
- Acho que Bay deveria estar aqui, à noite, ajudando Você a comemorar este seu
estrondoso sucesso. Certamente ele poderia ter adiado sua viagem de barco até
Baja - declarou Pamela.
- Ah, então ele foi para Baja? - Melina fez o possível para transmitir uma
impressão despreocupada. - Não o tenho visto ultimamente. Tenho andado
tremendamente ocupada, preparando tudo para a exposição.
- O busto que você fez dele é o centro de atenções de toda a exposição. Todos
estão comentando a enorme semelhança que você conseguiu reproduzir - observou
Pamela. - Howell deve ter imaginado que esta seria a peça de maior sucesso; pelo
menos, é isto que se deduz pelo preço que está pedindo por ela.
- Sou apenas a artista - disse Melina, levantando os ombros para indicar que não
tinha coisa alguma a ver com a avaliação de cada uma das peças.
A princípio, ela nem quisera expor o busto, mas Howell se mostrara por demais
insistente em seus argumentos, insistindo em afirmar que ela não poderia
permitir que seus sentimentos interferissem na escolha das peças. Quando
finalmente resolveu concordar, isto foi feito apenas com a condição de que o
busto não seria posto à venda.
Foi nesta ocasião que ela ficara sabendo que a astúcia de Howell não se limitava
apenas ao campo das artes e do dinheiro. Ele perguntara se ela tinha a intenção
de provocar especulações a respeito dos motivos pelos quais a peça não estava à
venda. Seria melhor, tinha sugerido ele, colocar um preço realmente exorbitante
na peca, um preço elevado demais para que qualquer pessoa pensasse em comprá-la.
Melina, após alguma indecisão, acabou concordando com ele.
- Qual foi a reação de Bay quando ele viu o busto que você fez dele? - quis
saber Pamela.
Um dos outros convidados escolheu justamente este momento para vir lhe dar os
parabéns pela exposição, e assim Melina pôde se dar ao luxo de ignorar a
pergunta.
- Desculpe-me, senhora Pamela, mas preciso roubar Melina por um momento -
interrompeu Howell Fletcher.
Ela não teve sequer tempo suficiente para pedir desculpas à mulher; agradecida,
permitiu que Howell a guiasse para o outro lado. A bengala de marfim batendo no
chão ia ajudando-a a não esbarrar em coisa alguma. A prática lhe ensinara que
Howell estava constantemente esquecendo o fato de que ela era cega e a deixava
esbarrar e tropeçar nas coisas.
- Quem é que você quer me apresentar desta vez? - perguntou ela, enxugando a mão
que transpirava abundantemente.
- Não sei ao certo como fazer para lhe explicar isto, Melina. Ela percebeu que
havia um certo tom apreensivo na voz dele. Acontece que temos um comprador para
o busto, e ele insiste em falar com você.
- Um comprador? - Ela ficou rígida. - Você sabe muito bem que eu não estou
interessada em vender esta peça.
- Tentei explicar que você tinha muita relutância em se separar daquele busto,
que o valor da peça inclusive era bem abaixo do preço que colocamos. Também não
podia lhe dizer qual seria o preço verdadeiro, porque tive medo que a informação
se espalhasse por aí e todos os demais preços começassem a ser questionados –
replicou ele, em atitude de defesa.
- Não devia ter permitido que você me convencesse a exibir esta peça; este já
foi o primeiro erro. Você sabia muito bem que esta peça tem um grande valor
pessoal para mim - declarou ela em tom de acusação.
- Realmente, sabia disto - concordou ele, calmamente. - Talvez você possa apelar
para os sentimentos do comprador e convencêlo a adquirir outra peça qualquer.
Ele está esperando em meu escritório. Achei que lá seria o melhor lugar para
vocês conversarem, pois teriam um certo grau de privacidade, impossível aqui
fora, com todo este burburinho.
Howell preferiu não comentar suas palavras; ao invés disto, levou-a até ao outro
lado do saguão, onde abriu uma porta. Ela entrou na sala particular de Howell,
erguendo o queixo numa atitude de desafio. Howell murmurou alguma coisa que ela
não compreendeu direito, mas que julgou ser um "boa sorte" qualquer e fechou a
porta novamente. Ela virou-se espantada para a porta fechada, pois tinha
imaginado que poderia contar com a assistência dele naquela situação bastante
difícil.
Em seguida, ouviu alguém se levantando de algum lugar. Ela estivera diversas
vezes neste escritório durante os últimos dias. com um sorriso luminoso no
rosto, caminhou em direção ao ruído que ouvira.
- Como vai? - perguntou ela, estendendo a mão para cumprimentar o desconhecido.
- Eu sou Melina Lane. Howell me contou que o senhor está interessado em adquirir
uma das minhas peças prediletas.
- Exatamente, Melina.
A voz, penetrando pelos ouvidos dela, ressoou como um tiro de canhão dentro de
seu cérebro. Sua mão caiu, despencou para o lado, enquanto ela se esforçava para
não perder completamente a compostura. Ela teve a impressão de que o chão
balançava sob os seus pés, mas eram apenas os seus joelhos que começaram a
tremer.
- Bay... Bay Cameron - identificou ela, tentando forçar a voz e não perder a
alegria premeditada com a qual tinha a intenção de convencer o suposto
comprador. - Mas que coincidência! Pamela estava me contando, há alguns minutos
atrás, que você estava velejando em algum lugar perto de Baja, no sul da
Califórnia. Não consigo compreender como é que você é capaz de estar em dois
lugares ao mesmo tempo.
Howell, o maldito traidor, pensou Melina... por que será que ele não me avisou
que o suposto comprador que estava esperando por ela era justamente Bay? Agora
entendia por que tinha escapado o mais depressa possível do seu próprio
escritório, deixando-a sozinha!
- Pamela cometeu um engano bastante justificável. Eu tinha planos de não
regressar a São Francisco durante um bom período de tempo - replicou ele, num
tom impessoal que fez com que ela sentisse frio repentinamente. - Esta
noite você conseguiu conquistar todo o sucesso que você tanto queria. Como é que
você está se sentindo?
- Esplendidamente bem - mentiu Melina.
Ela sentiu vontade de lhe dizer que a grande tragédia de sua vida tinha sido
perdê-lo e não a visão; mas ficou em silêncio, tentando não dar ouvidos a seu
sarcasmo.
- Pensei que neste meio tempo você já tivesse substituído sua bengala de marfim.
- Isto fez com que ela se segurasse com mais força, como se temesse que ele
viesse tomar-lhe o presente.
- Por que haveria de fazer isso? Esta bengala cumpriu perfeitamente sua
finalidade - respondeu ela, erguendo os ombros num gesto nervoso.
- Pode ficar tranquila que eu não tinha a intenção de acusar você de estar
atribuindo qualquer conotação de importância sentimental a esta simples bengala
- respondeu Bay secamente. - Entretanto, quando vi o busto que você fez de mim,
reconheço que fiquei curioso em saber se você se recorda de nosso relacionamento
como alguma coisa positiva.
- Naturalmente. - Sua voz estava vibrando com intensidade dessa lembrança. -
Além disso, eu lhe disse certa vez que gostava muito de seu rosto. Seus traços
são muito fortes e demonstram orgulho.
- Howell lhe disse que eu vou adquirir esta peça, não disse?
- Bay, eu... - Melina virou-se levemente para o lado, sentindo os olhos dele
fixos em seu perfil; era um olhar frio que lhe causava arrepios. - Acontece que
houve um engano muito grande. Howell foi me buscar justamente por causa deste
engano. .. bem, acontece que este busto não está à venda.
- Por que não? - Ele não parecia ter ficado irritado com a negativa dela em lhe
vender a peça. Imaginei que a finalidade desta exposição fosse vender as peças
expostas.
- Realmente, a finalidade é esta, mas não no caso desta - protestou ela. - É por
causa disto que colocamos um preço tão elevado neste busto; para que ninguém
resolvesse comprá-lo.
- Resolvi comprá-lo - declarou Bay sem alterar a voz.
- Não! Eu não vou permitir que você fique com ele! - exclamou ela à beira do
desespero. - Você já levou tudo de mim; deixe pelo menos isto!
- Eu tomei tudo de você?! - riu ele, de maneira grosseira. Sua mão estendeu-se e
a agarrou pelo pulso. - O que foi que tomei de você? Será que não está se
esquecendo de que a pessoa usada em nosso relacionamento fui eu? Por que não
tomar também meu dinheiro agora? Você já tomou todas as demais coisas de valor
que eu tinha dentro de mim!
- Piedade? Simpatia? Caridade? - Ela ia batendo no chão a cada palavra com a
ponta de sua bengala, enfatizando ainda mais as palavras. - Desde quando estas
coisas humilhantes tiveram algum valor? E para quem? Certamente não para mim!
Você nunca se importou comigo! Pelo menos, nunca se importou realmente! Eu nunca
passei de um simples ato de caridade para você!
- Você não continua acreditando que eu sinto pena de você, continua? - Um
profundo suspiro escapou dos lábios dele.
- Eu só tenho certeza de que você não me ama - exclamou Melina.
- E se eu amasse você. - Segurou-a firmemente pela nuca, puxando-a suavemente em
sua direção. - Isto faria alguma diferença?
Se pelo menos ele não a tivesse tocado, pensou Melina, sentindo arrepio
descendo-lhe velozmente pela espinha, talvez ela tivesse sido capaz de resistir
à agonia que estava despedaçando seu coração. Mas agora, sentiu que estava
desmoronando interiormente, que seu orgulho já não era suficiente para lhe
servir de apoio... e jogou-se então contra o peito dele.
- Se você me amasse um pouquinho só, Bay - suspirou ela seriamente -, talvez não
me importasse tanto por amar você tão desesperadamente. Mas qual é a mulher que
quer ficar ao lado de um homem que apenas sente piedade por ela, pelo fato dela
ser cega?
- Você é cega, Melina! - disse ele. Um peso enorme parecia ter sumido da voz
dele. Ele soltou-lhe a nuca, indo segurá-la na parte posterior da cintura, ao
mesmo tempo que a outra mão lhe acariciava gentilmente o rosto. - Eu nunca tive
piedade de você. Estive o tempo todo ocupado com a minha paixão por você para
poder ficar desperdiçando tempo com uma outra emoção tão tola.
- Oh, Bay, não brinque comigo - exclamou ela angustiada, tentando se livrar do
seu abraço. - Você não acha que eu já me envergonhei o suficiente e que não há
necessidade que você ainda venha brincar comigo para piorar ainda mais meu
estado?
- Não estou brincando. Acredite em mim, o inferno por que passei durante estes
últimos meses não foi nem um pouco divertido declarou Bay.
- Você não está querendo me enganar outra vez, está? Este não é outro de seus
truques, é, Bay? Não faça uma coisa dessas se a única finalidade for conseguir o
busto que eu fiz de você. Terei o maior prazer em lhe dar o busto de presente,
se isto fizer você parar de mentir para mim.
Ele fechou as mãos atrás dos ombros dela e ela se sentiu puxada contra o peito
dele. Ele colocou as mãos dela sobre seu coração, que batia rapidamente. Melina
percebeu
que seu próprio coração começara a bater violentamente naquele mesmo ritmo.
Segurando o rosto dela com ambas as mãos, Bay começou a beijar-lhe
ternamente os olhos fechados.
- O fato de você ser cega, não faz com que você seja menos feminina em meus
braços, querida - sussurrou ele bem baixinho.
- Você nunca permitiu que eu desconfiasse disto, uma única vez
- murmurou Melina, encostando a cabeça, enfraquecida no peito dele.
- Eu quis fazê-lo centenas de vezes, de mil maneiras diferentes.
- Seus braços fortes a seguravam bem perto, como se ele tivesse medo de que ela
fosse tentar escapar novamente. - Eu me apaixonei por você logo no começo. Acho
que tudo começou naquela noite em que fomos nos esconder da chuva em meu barco.
Não sei, mas disse a mim mesmo que deveria dar tempo ao tempo. Você era muito
orgulhosa, teimosa, defensiva e muito insegura. Não tentei convencer você no
começo de que eu estava apaixonado, porque você não teria acreditado em mim. Foi
por causa disso que comecei a tentar ajudá-la a aumentar a confiança em si
mesma. Queria que você acreditasse que não existia coisa alguma que não
aprendesse, que não existia coisa alguma que não conseguisse fazer, desde que
quisesse fazer mesmo. Pensei que, depois de ter conseguido isso, faria você se
apaixonar por mim. Você pode imaginar qual foi a intensidade do golpe que senti
quando você me informou que simplesmente não precisava mais de mim.
Ele sorriu com os lábios encostados na têmpora de Melina e ela se aninhou ainda
mais em seus braços másculos. - Eu precisava de você. Queria você
desesperadamente - murmurou ela, fervorosamente. - Eu estava apavorada, morrendo
de medo que você descobrisse isto e ficasse sentindo ainda mais pena de mim.
- Eu nunca senti pena. Orgulho sim, mas nunca senti pena.
- Orgulho? - Ela virou-se para ele; seu rosto expressava assombro e um ponto de
interrogação.
- Sempre senti orgulho de você. Não importa que desafio eu lançasse, você sempre
acabava aceitando e resolvendo as coisas. - Ele a beijou levemente nos lábios.
- Aceitando, sim, mas depois de muitos e sonoros protestos lembrou ela com um
sorriso.
- Ninguém, jamais, pôde acusar você de ser uma moça fácil de ser tratada;
teimosa e independente, sim, mas nunca fácil de ser tratada. Você deixou isto
bem claro quando nos encontramos pela primeira vez e você me deu um tapa no
rosto - riu Bay, lembrando-se do incidente.
- E você me devolveu a bofetada - lembrou-se Melina, acariciando o rosto dele. -
Aquilo fez com que eu me sentisse furiosa. E, com o passar do tempo, fez com que
eu me apaixonasse por você.
Rapidamente, ele agarrou a mão dela e estacou o movimento acariciante,
pressionando um beijo apaixonado na palma da mão dela.
- E agora, você poderia me explicar por que fugiu de mim aquela noite na festa
da Pamela? - exigiu ele com voz rouca. - Mas, por favor, conte a verdade desta
vez.
- Ouvi você conversando com uma mulher chamada Roni. Ela disse que você tinha me
levado à festa porque sentia pena de mim e porque você teria a intenção de
deixá-la com ciúmes. E você não negou o que ela disse, Bay. Fiquei ali sentada,
torcendo que você dissesse, pelo menos que eu era uma amiga sua, mas você
simplesmente deixou que ela continuasse falando, dizendo que eu era digna de
toda a piedade. Pensei então que ela estava dizendo a verdade. Foi por isso que
fugi de lá naquela noite - admitiu ela.
- Uma das primeiras coisas que eu vou ter de me lembrar muito bem quando
estivermos casados é que você possui um ouvido muito aguçado - declarou Bay com
um sorriso largo. - Se você tivesse ouvido minha conversa durante mais um pouco
de tempo, você me teria ouvido dizer a Roni para ela ir plantar batatas e que eu
não estava apreciando, de maneira alguma, os comentários que ela estava fazendo
a respeito da mulher com quem pretendia me casar.
- Bay! - Engasgou-se durante um instante com o excesso de clamor que lhe
bloqueava a garganta. - Você quer se casar comigo?
- Se isto for uma proposta, eu aceito.
- Não brinque comigo - sussurrou ela.
Bay beijou-a longamente, numa promessa cheia de ternura. Instantaneamente Melina
reagiu, moldando seu corpo ao corpo másculo e excitado de Bay. Um desejo voraz e
faminto estava presente no beijo dele, cada vez mais intenso, quando ele parou
de beijá-la, esforçando-se para saborear cada instante daquele contato. O amor
dele acendeu uma lâmpada eterna que afugentou para sempre todas as sombras que
obscureciam o mundo sombrio em que ela vivia.
- Meu querido, eu te amo tanto - murmurou Melina com todas as forças de seu
coração. - Por favor, segure-me bem apertada, mais um pouquinho.
Melina com um sorriso que expressava o imenso prazer que estava sentindo disse:
- Esta porta tem um trinco do lado de dentro, Bay.
FIM

ϟ
-texto integral-
Uma Luz nas Trevas
Janet Dailey
título original:
“The Ivory Cane”
Livros Florzinha,
Sabrina n.º 43
Romances Editora Abril, 1977
18.Set.2016
Publicado por
MJA
|