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imagem: The Blind Boy and his Beast - Clive
Hicks-Jenkins
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SINOPSE |
Steve Drake sempre se
esforçara por ser o melhor e quase
sempre com êxito. Até agora. Ficara
cego - sem defesas - devido a um
desastre de automóvel, e a
independência feroz que
anteriormente o ajudara a vencer
isolava-o agora na derrota.
Mas ainda há esperança.
Nos amigos, velhos e novos, que
o ajudam. No dia-a-dia da vida na
sua exploração agrícola na Escócia.
E no próprio Steve, se for capaz de
abrir os braços e aprender a ver
com o coração.
CAPÍTULO I
STEVE Drake subia o monte a assobiar.
Sentia-se muito feliz e não trocaria de lugar com ninguém. Lig,
o seu border collie, voltou a cabeça para ver se os seus serviços
eram necessários, mas Steve estava de folga, a descansar da sua vida
activa. Lig continuou a correr, uma figura preta e branca veloz, uma
silhueta escura de encontro ao fundo de pedras cinzentas e erva
escassa, seguindo entusiasticamente um trilho de raposa que serpenteava monte
acima.
Steve sorriu, olhando para o cão. Lig era o melhor cão de pastor
que já tinha tido, um animal inteligente, calmo e sensato, já com
seis anos. Steve conhecia bem o cão, e o cão conhecia o dono.
Mesmo no meio da brincadeira, Lig mantinha-se vigilante, olhando
constantemente para Steve, para ter a certeza de não o perder de
vista.
Steve sentou-se numa pedra arredondada para almoçar. Era um
homem alto, bem constituído, de pele curtida pelo vento constante
dos montes. O cabelo abundante e encaracolado formava umas patilhas dos lados da
cara. Os seus olhos cinzentos eram mais expressivos do que a cara, traindo
muitas vezes os seus sentimentos, que
raramente revelava em palavras.
Olhou para baixo com satisfação. O maior campo da sua exploração estava cheio de
ovelhas com os seus borregos. Várias delas
tinham três crias e o número de gémeos atingira um recorde naquele
ano. Além disso, nenhuma das ovelhas tinha perdido crias.
Espraiou o olhar até mais longe, ao campo onde se erguia a sua casa, abrigada junto ao sopé da encosta. Pertencera em tempos à
exploração do pai, High Hollows, mas Andrew Drake tinha-a dado ao filho juntamente com metade das suas terras. Andrew agora tinha
de levar uma vida mais calma, se bem que não quisesse renunciar completamente à vida agrícola. Nascera e fora criado no campo e
havia de morrer na vacaria, dizia às vezes, com uma gargalhada alegre e sonora.
Era uma vida boa.
As silhuetas escuras das árvores subiam pela montanha e desciam até ao loch,
onde a areia prateada brilhava ao sol e as águas
azuis iam dar ao mar. Lá longe, na ilha, as ruínas de um velho castelo
recortavam-se no céu, sombreadas pelas nuvens. A ilha tinha
uma história sombria de homens que de lá vinham de noite, nos seus
barcos, para saquear as terras da Escócia, deixando atrás de si lendas de
desgraças e histórias de fantasmas que choravam e gemiam
na noite.
As nuvens corriam varridas por um vento forte. E agora não
havia quaisquer vestígios de histórias sombrias no brilho das pedras. Steve
desejou saber pintar, registar as cores variáveis da terra,
para as recordar quando viessem as compridas e escuras noites de
Inverno e ele ficasse preso dentro de quatro paredes, ansiando pelos
espaços livres.
Olhou novamente para baixo, para os seus campos. Os borregos
brincavam, com os seus corpinhos pequenos e musculosos, rijos e
cheios de saúde. Corriam e pulavam, jogando à apanhada, mas depois lembravam-se
de repente de que eram pequeninos e não viam a
mãe. Corriam em círculo, balindo, e os seus mé-més agudos eram
ecoados pelas notas mais profundas da voz das ovelhas. Steve nunca
se cansava de contemplar aqueles encontros, de ver como as mães
reconheciam as suas crias. Os borregos puxavam pelas tetas cheias,
com os rabinhos a dar, a dar.
A Primavera era para Steve a felicidade total. Seria incapaz de
desempenhar as tarefas de um burocrata, de trabalhar num escritório ou em
qualquer outra ocupação em que não pudesse realizar-se
ajudando a criar novos seres.
Lig estava cansado. Voltou para junto de Steve, deitando-se a
seus pés. O cão levantou a cabeça, com as orelhas deitadas para trás,
em sinal de submissão, pedindo uma festa. Steve acariciou-o. O
collie estava em plena forma: a pelagem era nova, nascida depois da
muda, de um preto-brilhante e de um branco tão puro como a lã de
um borrego recém-nascido; espetava as orelhas, vigilante, e os
olhos brilhavam, cheios de vida.
Lig já era um campeão. Steve tinha-o levado aos concursos nacionais e
internacionais e ganhara o Troféu dos Agricultores. Tivera
recentemente o grande prazer de ser convidado pela BBC para participar no
programa televisivo Um Homem e o Seu Cão. E Steve estava convencido de que ele e Lig tinham muitas hipóteses de
ganhar o Troféu da Televisão, disputado pelos participantes no programa.
Estava a ter um ano memorável. No Outono, Mara Hastings, a
sua noiva, voltaria da América. Os preparativos para o casamento já
iam adiantados. Já tinham marcado a data na igreja, estabelecido a
lista dos convidados e a mãe de Steve, Nettie, estava a fazer a Mara
um vestido de noiva digno de uma princesa. Só havia um pequeno
senão. A mãe dele não andava a passar bem, ainda que não se soubesse porquê. Mas
os preparativos para o casamento ajudavam-na a
esquecer a sua falta de saúde.
Mara era pequena, esbelta e elegante, com um cabelo escuro que
formava uma nuvem sombria em volta da sua cara e uns olhos escuros sempre
risonhos. Era filha de agricultor, mas trabalhava como
professora primária, e este ano tinham-lhe proposto estagiar
durante um ano numa escola do Texas, num programa de intercâmbio de professores.
Faziam tenção de casar na Primavera, mas era uma oportunidade a não perder. Steve insistira com ela para
aceitar o convite e o casamento fora adiado por uns meses para lhe
permitir tirar partido dessa oportunidade única.
Ele tinha na algibeira naquele momento a última carta que ela
lhe escrevera do Texas. Estava recheada de pormenores interessantes sobre a sua
vida e as crianças da sua aula, a quem chamava o
Pelotão Amotinado. Visitara um rancho espantoso, com milhares de
cabeças de gado e uma extensão de terra interminável. Comia ao
pequeno-almoço "pãezinhos ingleses", que ninguém em Inglaterra
reconheceria.
A carta de Mara evocou uma recordação muito viva da sua autora. A casa de Steve,
baptizada com o nome incongruente de Convento, porque fora construída num local
onde houvera antigamente um convento, estava quase pronta para a receber. Steve e o pai andavam a
trabalhar na casa há um ano, com a ajuda dos trabalhadores
da quinta que tinham algum tempo livre. Haviam acrescentado duas
divisões - uma casa de banho nova e um quarto de dormir - às
quatro divisões iniciais, duas em cada andar, da casa de pedra. Tinham aberto um
arco para a antiga vacaria, que fora transformada
numa cozinha moderna. O antigo celeiro dera lugar a uma sala de
estar comprida, de tecto baixo, cujas janelas abriam para os montes.
Mara e ele poderiam sentar-se aí à tarde para gozarem o espectáculo
do pôr do Sol, das nuvens tingidas de bronze que coroavam as montanhas quando o
Sol se extinguia todas as noites, em raios de cores
brilhantes, sobre as ilhas Western. Ao crepúsculo, veriam o nevoeiro
fantasmagórico que escondia o castelo e ouviriam o piar dos
mochos.
O presente de casamento de Steve para Mara seria um jardim.
Ela gostava muito de flores. Ele tinha murado uma parte do campo
onde ficava a casa, erigindo uma parede de tijolo para conservar o
calor do sol. Plantara um renque de coníferas multicores para abrigar o jardim
do vento, misturando a folhagem dourada, verde-azulada, verde-viva e
verde-acinzentada das diferentes espécies num
conjunto decorativo, que chamava a atenção, apesar de as árvores
ainda serem pequenas. Mais tarde, o efeito seria esplêndido.
Steve sempre tinha tido muito gosto por cores, formas, pelas
belas paisagens. Para ele, era um prazer ver o jardim começar a definir-se.
Quando Mara voltasse, estaria pronto para recebê-la. Ele
tinha pavimentado uma faixa de terreno junto à casa e plantado clematites.
Dispusera também roseiras, que formariam arbustos esplêndidos, carregados de
flores de cor viva, que perfumariam o jardim.
Pintara a casa de branco e descobrira um batente antigo num
ferro-velho - uma cabeça de cavalo dentro de uma ferradura. Polira-a até ficar
bem brilhante e, mesmo dali, conseguia ver o brilho
do metal quando os raios de sol incidiam nele.
Lig levantou-se, impacientando-se de repente, com a cauda a
abanar, pois sabia que eram horas de voltar para casa. Steve levantou-se também,
relutantemente. Assobiou ao cão para o animal o
acompanhar e desceu a encosta.
Quando chegou a casa, o telefone estava a tocar. Levantou o
auscultador e ouviu a voz da mãe.
- Steve? Desculpa, meu amor. Mas não me sinto muito bem. O
pai foi à feira de gado e prometi-lhe que ia buscar a carne congelada
ao talho. Mas acho que era melhor não guiar. Tens tempo para ir
buscá-la?
Steve não tinha tempo, mas arranjava-o. Podia tratar dos borregos mais tarde.
Havia sempre crias que tentavam meter-se pela sebe
ou saltar por cima dela e ficavam com ramos de espinheiro e silvas
presos na lã. Até parecia que ele andava a criar Houdinis em miniatura.
Precisava de ter olhos na nuca, mas felizmente que Lig supria
essa falta.
Quando saiu de casa, parou junto do portão para dar uma palavra
a Jack Farthing, o mecânico da garagem da vila. Jack andava a passear o seu novo
cachorro golden retriei?er, uma cadelinha brincalhona que tentou morder a cauda
de Lig. Lig, muito digno, afastou-se para fora do alcance da cadela.
- Que é que te parece? - perguntou Jack, ansioso por ouvir
elogios, apesar de já saber o que Steve ia dizer.
Steve acariciou a cadela e riu-se.
- Devias arranjar um cão como deve ser - comentou. - Já me
conheces. Só gosto de collies. Não há nada que lhes chegue aos
calcanhares. Não queria outros cães nem dados.
- Cada um é como é - disse Jack. - Não vale a pena tentar que
mudes de ideias. Sempre foste casmurro. Mas é verdade que te dava o que tu quisesses pelo Lig.
- Não o vendia nem por todo o dinheiro do Mundo - respondeu Steve.
Fez sinal ao cão, e Lig, percebendo que devia ficar a guardar o
pátio, foi-se deitar no degrau da porta.
Jack afastou-se, com o cachorro aos pulos à sua frente. Steve
ficou a olhar para ele, abanando a cabeça. Jack não sabia ensinar um
cão. Os cães dele eram sempre muito desobedientes.
Steve entrou para a velha carrinha pesada, de modelo muito antigo, que usava
para andar no campo. Começou a descer a encosta,
sentindo os olhos de Lig fixos nele enquanto se afastava. O cão detestava que
ele se fosse embora sem o levar.
Steve guiava bem, atento aos perigos, sempre pronto a prever as
manobras dos outros condutores. Dedicava toda a atenção ao que estava a fazer.
Só parou uma vez para ver os borregos que estavam no
campo situado atrás da garagem de Jack.
Quando chagou, a carne congelada estava pronta para ele a levar, e o homem do
talho ajudou Steve a arrumar as caixas na parte
de trás da carrinha. Ficou a olhar para Steve enquanto este entrava
no carro.
- O carro tem feito bom serviço, não tem? É um veterano.
- Pois é - respondeu Steve. - Mas está na altura de o trocar.
No outro dia tive um problema com os travões, mas Jack Fanhing
esteve a vê-los e disse que não era nada importante. É só uma impressão. Até à
vista.
Engrenou a primeira. As crianças estavam a sair da escola, correndo alegremente
pela rua da aldeia. Steve meteu outra mudança
para fazer a curva fechada e descer a encosta íngreme que passavam
em frente da escola. Saiu um carro do pátio da escola e ele carregou
no travão.
Mas o carro não reagiu.
Puxou o travão de mão e tentou parar o carro com ele, mas a
encosta era íngreme demais para que isso servisse de alguma coisa.
Viu as caras das crianças por detrás das janelas do pequeno automóvel que estava
à sua frente. Viu a expressão aterrorizada da condutora, que tentou acelerar,
mas percebeu que ela não ia conseguir
sair do caminho a tempo.
Voltou bruscamente o volante.
A carrinha derrapou descontroladamente, sem travões, e bateu
numa parede com um estrondo que ecoou por toda a rua. A jovem
mãe tapou a cara com as mãos, a tremer, sem coragem para sair do
carro e ir ver o que tinha acontecido.
O último som que Steve ouviu foi um grito de criança.
Depois disso, ficou tudo escuro.
CAPÍTULO 2
A VIDA estava sempre a mudar.
Anna Leigh estava à porta da sua casa de quinta, nos arredores de
Manchester, olhando para o campo. Engordara com a idade, e o
cabelo, outrora de um negro-azulado, estava a ficar grisalho.
O Inverno já tinha acabado. As aveleiras estavam em flor, e o sol
brilhava nos pedúnculos compridos que baloiçavam ao vento. A
pata mais valiosa, chamada Monstro, estava no choco; era um dos
patos-marrecos de Dan.
Anna relembrou o passado. Já lá iam quinze anos desde que a
quinta original dos Leighs tinha sido destruída pelas escavadoras
que abriram caminho para a estrada. Compton Hall era só uma recordação, apesar
de muitas gerações da família do marido terem aí
passado as suas vidas. Olhou para a casa confortável, aninhada à
sombra das árvores, construída a partir de duas velhas casinhas degradadas.
Chamava-se Setter's Dene.
De princípio, tinha detestado morar ali, detestara a vida sem
animais. Mas depois haviam conseguido comprar mais terra e as
primeiras cabeças de gado. Sentia a falta dos filhos, que já tinham
saído de casa. Philip casara e montara um consultório de veterinário num bairro
dos arredores de Londres. Lisetta era investigadora
num hospital londrino.
Setter's Dene. Um nome que era famoso pelos seus cães. Não só
por causa dos belos pastores alemães que Anna criava, mas também
pelos cachorros que ajudava a educar para o Centro dos Cães-Guias,
que ficava a cerca de oito quilómetros, na cidade vizinha. Dave
Masterson era o chefe dos treinadores do Centro. Como ninguém
tinha tempo lá para tratar das ninhadas, quando Anna se ofereceu
para ajudar, Dave entregou-lhe a primeira cadela prenhe.
Anna dedicava todo o seu tempo à manutenção de Setter's Dene.
Há seis meses, o marido, Dan, voltara para casa depois de ter estado
a trabalhar com uma égua nova, dizendo que estava estafado e que
ia deitar-se. Anna foi fazer-lhe um chá, sem grandes preocupações.
Dan queixava-se muitas vezes de cansaço; tinha quase sessenta anos
e o trabalho do campo era muito duro.
Quando entrou no quarto, Dan estava mono.
De um momento para o outro tudo acabara. Sem mais nem menos. Conseguiu
sobreviver nas semanas que se seguiram, vivendo o
dia-a-dia como podia. Philip veio passar a primeira semana com ela
e disse-lhe que ia ser avó dentro de pouco tempo. Dan teria gostado
muito de ter um neto.
Nunca se sabe como é o dia de amanhã, como Dan costumava
sempre dizer. Mas Anna não pensava assim, gostava de fazer projectos, e os
projectos dela eram sempre para os dois. Mas desde
então tivera de aprender a sobreviver sozinha.
Sam, o seu golden retriever, veio até junto dela e esfregou-se nas
suas pernas. Detestava que o esquecessem. Trouxe-lhe as luvas,
pedindo-lhe pura o levar a dar um passeio a qualquer lado, para
variar.
Uma voz chamou-a do outro lado da vedação.
Susan, a rapariga cega que morava mais adiante, estava de férias
do seu emprego no Centro dos Cães-Guias. Abriu o portão, precedida pela sua
cadela, Zanta, que puxava pelo arreio, ansiosa por
cumprimentar Anna, que a criara no seu canil. Uma das primeiras
ninhadas de Dave Masterson. Sue largou Zanta, que correu para
Sam, na brincadeira.
- Vim tomar chá consigo - disse Susan. - Há bolo de cerejas?
- Não há bolo de cerejas.
Anna falou em voz terna. Conhecia Susan há quinze anos e
custava-lhe a crer que ela já tivesse feito vinte e sete. Apesar dos
seus olhos muito azuis serem cegos de nascença, Sue era uma das raparigas mais
bonitas que Anna já tinha visto. O facto de ser cega
nunca afectara Sue. Tirava prazer de muitas pequenas coisas. Adorava visitar
Anna, brincar com os cachorros e os gatinhos, passear
pelo campo, acariciar as crias, cheirar uma flor, tocar nas pétalas
frágeis.
- Vem ver a nova ninhada do Dave - disse Anna.
Levou-a até ao estábulo onde, na última baia, Mellie, uma bonita
cadela labrador do Centro de Cães-Guias, estava a criar uma ninhada procriada
por Sam, o cão de Anna. Dave tinha a certeza de
que as crias produzidas por esse cruzamento seriam inteligentes e
fortes.
Os cachorros tinham três semanas - uma idade em que já eram
suficientemente sociáveis para poderem aprender a confiar nos seres humanos
desde o início da sua vida. Dentro de pouco tempo,
seriam confiados a "passeadores de cachorros" - famílias que os
ensinariam de modo a não os estragarem para os seus futuros donos.
Todos menos um cachorro, dissera Dave a Anna, que ficaria em casa
dela para ser "passeado". Destinava-se a um homem que ficara cego
há pouco tempo, um lavrador escocês.
- Uma destas crias é linda - disse Anna, inclinando-se para
acariciar a cabecinha macia do animal. - É a que vai ficar em
minha casa. Chamei-lhe Gemma. É muito mais precoce do que o
resto da ninhada e já consegue andar. O pior é que me vai custar muito separar-me dela quando chegar a altura de se ir embora para
ser ensinada.
Pegou na cadelinha e pô-la nos braços de Susan. A cara desta tornava-se muito mais expressiva quando mexia em animais pequenos.
- Querida Anna - disse Susan em voz ansiosa. - Nunca se vá
embora daqui, está bem? Nem quero pensar que podia vir outra
pessoa morar nesta casa e seria incapaz de perder o contacto com os
cachorros. As pessoas que não gostam de animais nem sabem o que
perdem.
- Duvido que possamos mudá-las - disse Anna. - Foi-me
sempre muito difícil explicar às pessoas porque é que sentia tanto a
falta de Compton Hall quando viemos para aqui. "Vai habituar-se a
viver sem animais", diziam-me, "e vai poder descansar." Riu-se.
- Quem é que quer descansar? Eu quero morrer de pé.
- Não pode morrer já. Não consigo habituar-me à morte do
Dan.
A Mellie ganiu, chamando pelo filhote. Susan agachou-se e procurou pelo tacto os
outros cachorros, deitando cuidadosamente o
animalzinho ao lado dos irmãos. Mellie, satisfeita, começou a amamentá-los.
- Também não consigo habituar-me a viver sem o Dan - disse
Anna. - Só demasiado tarde é que percebemos tudo o que o outro
parceiro fazia.
Não acrescentou que os serões que passava sozinha eram muito
tristes. Susan já tinha muito com que se preocupar, com o seu trabalho e uma mãe
possessiva, que se refugiara na doença crónica,
usando um sopro no coração como uma arma para manter Susan em
casa.
Zanta, novamente presa pelo arreio e sabendo que Anna ia dar-lhe um bocado de
queijo, estava a puxar na direcção da casa.
- Já sabe o que a espera - disse Susan. - Não devia deixá-la
puxar por mim, mas é a única altura em que faz isto.
Uma vez em casa, Anna foi buscar o queijo para Zanta e começou a fazer café.
Susan sentou-se pacientemente no banco da janela,
ali perto, gozando o calor do sol que lhe batia na cara.
- Consegue manter Setter,s Dene a funcionar sem o Dan? -- perguntou.
Nunca ninguém falava de Dan, a não ser Sue. A maioria dos amigos de Anna
pareciam ter apagado Dan da memória, e quando ela falava nele, mudavam
ansiosamente de assunto, não compreendendo
a necessidade que ela tinha de falar do passado. Susan parecia compreender, mas
os cegos de nascença muitas vezes tinham uma intuição especial.
- Ainda não resolvi todos os problemas - disse Anna. - Tenho de arranjar uma
maneira de aumentar as minhas receitas. Recebi alguns animais doentes cujos
donos não podiam tratar deles,
mas nestes últimos meses tenho andado um bocado aérea. Parece
que não me dou bem conta do que se passou. Estou sempre à espera
de que o Dan entre pela porta, como se ele estivesse fora, numa
longa viagem.
Susan pegou na chávena de café, tacteando a mesa a seu lado e
verificando que a chávena estava suficientemente afastada da borda
para não cair.
- Podemos trazer os cachorros .para aqui? - perguntou.
Os cachorros distrairiam Anna, fazendo-a rir. A tristeza era uma
companheira demasiado constante.
Anna saiu com o grande cesto dos cães e voltou com os cachorros a ganirem lá
dentro. Mellie seguia-a ansiosamente e examinou
com atenção todas as cabeças quando Anna pôs o cesto no chão.
Susan ajoelhou no chão para acariciar os cachorros. O seu desejo
de lhes tocar não era totalmente egoísta. A ideia era de que a maior
parte deles fossem cães-guias e, como tal, precisavam de muito
mais contacto humano desde o princípio das suas vidas para serem
animais felizes e sociáveis que pudessem ir para toda a parte e estivessem
habituados a todos os seres humanos. Anna brincava todos
os dias com os seus cachorros durante várias horas, pelo que era uma
criadora ideal, do ponto de vista de Dan.
- Há borreguinhos no campo que fica ao lado da nossa casa. -- disse Susan. -
Adoro ouvi-los.
- Este ano têm o focinho e os joelhos pretos; o teu vizinho
comprou outro carneiro - disse Anna. - Um deles ficou ó áo.
Está ali fora no barracão, daqui a pouco tenho de ir dar-lhe um biberão.
- Eu dou - disse Susan. - Zanta precisa de arejar.
Tirou o arreio ao cão e Anna abriu a porta para o animal sair.
Entretanto, Susan pegara no cachorro mais bonito da ninhada e
apertava-o nos braços.
- Esta deve ser Gemma. Scott também me falou nela. Diz que é
uma das crias mais inteligentes que ele já viu.
Scott Lewis era o veterinário da terra.
- Tem razão - retorquiu Anna. - É um animalzinho engraçado, com uma cara de
velha solteirona, muito séria, e duas rugas na
testa. Olha para mim como se estivesse a querer adivinhar o que eu
estou a pensar. E é sempre a primeira a mamar.
Anna recostou-se na grande cadeira de braços. Susan era uma
companhia agradável, que não tinha exigências, só queria uma oportunidade para
brincar com os cachorros. Anna espreitou pela janela.
O sol brilhava na outra ponta do campo.
Gemma saíra do colo de Sue e estava sentada aos pés de Anna, de
cabeça levantada, a olhar para ela com uma expressão inquiridora.
Mellie aproximou-se, abocanhou Gemma e foi lá para fora, regressando para ir
buscar os outros cachorros, um por um.
- Mellie acha que eles já estiveram aqui tempo suficiente. -- disse Anna. - Está
a levá-los outra vez para o canil. Está sempre a
tirar-mos. Daqui a pouco, os cachorros precisam de estar muito
comigo e dava-me jeito ter uma ajuda. Quantos dias de férias é que
ainda tens, Sue?
- O resto da semana - respondeu Susan. - Onde está o biberão
do Barulhento? Ele chama-se Barulhento, não é`.' O Scott conta-me
tudo.
O veterinário, que morava ao fundo do caminho, numa casa onde
tinha também o consultório, costumava entrar muitas vezes em casa
de Susan e da mãe para ver se Zanta estava bem. A mãe de Susan
andava sempre tão preocupada com os seus próprios males que nem
queria saber da cadela.
Susan pegou no biberão que Anna lhe estendia e saiu. Não precisava que Zanta lhe
ensinasse o caminho. Abriu a porta do barracão, sendo recebida com uma marrada e
um balido ruidoso. Depois,
só se ouvia o som do borrego a chupar o biberão e o corpinho rijo do
animal encostava-se a ela, ansioso por contacto, sentindo a falta da
mãe.
Anna olhou pela janela. Tinham-se acumulado entretanto nuvens que anunciavam
chuva. Estava na hora de levar os cães para
dentro de casa. Guardar a égua na cavalariça. Meter as galinhas e os
patos no galinheiro. Estava quase na hora de fechar a porta de casa
e de se encerrar lá dentro na solidão, só com Sam a seu lado e o gato
cinzento ao colo, para ajudá-la a aguentar as horas de escuridão.
Susan trouxe o biberão para dentro e foi até ao lava-loiça para o
lavar.
- O Dave quer que eu vá morar para o Centro - disse. - Mas a
minha mãe não quer ouvir falar nisso. Não é independente como a
Anna.
"Eu tive de aprender a ser independente", pensou Anna. Olhou
para os cães, lá fora, para as flores que começavam a nascer no jardim - coisas
que Susan nunca veria - e tentou animar-se. Zanta
veio buscar o arreio, percebendo que Susan estava para se ir embora. A cadela
esperou pacientemente, com os olhos fixos na cara
de Susan. A dona era para Zanta a única pessoa que existia no
Mundo.
- Amanhã volto - disse Susan, encostando a cara à de Anna.
- Querida Anna. Não esteja triste.
Foi-se embora e Anna desejou ser capaz de esconder melhor os
seus sentimentos. Era capaz de escondê-los do resto do mundo, mas
não de Sue. A rapariga adivinhava o seu estado de espírito com a
segurança de um animal, como Sam o adivinhava também. O cão
levava o serão a trazer-lhe presentes - os seus brinquedos e ossos,
a carteira e o estojo dos óculos, uma almofada, a escova do cabelo -, até que
ela não resistia e começava a rir, e um Sam encantado
começava a fazer palhaçadas no meio da sala, correndo atrás da
própria cauda como se fosse um cachorrinho.
O cão acabava de entrar, com a cabeça de lado, e ladrou.
Estava na hora de lhe dar de comer.
Anna executou todas as suas tarefas e a sua última visita do dia
foi ao canil da ninhada para dar de comer a Mellie. Encontrou-a a
dar de mamar aos cachorros, com uma expressão extasiada. Anna
contou as cabeças. Devia haver oito, mas só viu sete. Gemma, a pérola da ninhada, desaparecera.
Anna pousou a tigela. Mellie levantou-se, sacudindo os cachorros. A fome
tornava-a impaciente e estava esfaimada. Anna espreitou para trás do caixote.
Viu Gemma, deitada no canto, a respirar com dificuldade e a tossir, com a
boquinha aberta para aspirar o ar.
O melhor cachorro da ninhada. Porque é que tinha de ser sempre
o melhor? Anna pegou na cadela, aconchegando-a de encontro à camisola, e correu para dentro de casa para telefonar a Scott, pedindo-lhe que
viesse depressa, pois tinha a certeza de que o animal estava a morrer.
Mais uma vez, tivera confiança demais no futuro. Não tinha
emenda. Scott Lewis estava a começar a jantar quando Anna telefonou.
- Problemas - disse, enfiando o casaco, e Roz, a mulher dele,
habituada a estas emergências, levou-lhe o prato para dentro para o
manter quente.
Scott sabia que quando Anna dizia que era urgente é porque era
mesmo urgente. Ele e Dan Leigh tinham sido amigos e continuava a
ter saudades de Dan. Custava-lhe sempre ver a cadeira vazia ao pé
da lareira e também que Dan não viesse recebê-lo ao portão com o
seu sorriso amável.
Agora só havia Anna, e depois da morte de Dan estava tudo a
correr para o torto. Scott correu até ao portão de Anna, subindo
depois o caminho até à porta de casa. Anna tinha a porta aberta e
segurava a cria nos braços, enrolada num cobertor.
Ele pegou no animal. Esta cadelinha, se sobrevivesse, sairia ao
pai, e não à mãe. O pêlo macio era quase branco. A pelagem das orelhas era
castanho-dourada, o que indicava a cor da pelagem do animal adulto. Porém, esta
cria provavelmente não chegaria à idade
adulta. Respirava cada vez com mais dificuldade, com grande esforço.
Scott olhou para a cadela.
- Não vejo nada - disse instantes depois. - Podia ser uma
torção do intestino, mas tem a barriga mole. A garganta ... Espere aí.
Sou parvo de todo.
Levou o animal para cima da mesa da cozinha, por debaixo da
luz, e abriu-lhe a boca. Depois tirou um pequeno fórceps da algibeira. O animal
estava cada vez mais fraco; não se debateu. Olhava
para ele com uma expressão de grande sofrimento, ofegando.
Scott meteu o fórceps na garganta da cadela e apertou-o suavemente.
Puxou-o novamente para fora.
- Era um elástico. Deve tê-lo encontrado no chão, começou a
roê-lo e engasgou-se. Já está melhor.
A cadelinha já não ofegava. Espetou as orelhas. Anna pegou-lhe e colocou-a no tapete. Ouviu-se um ganido e uma pata a arranhar na
porta das traseiras. Anna abriu a porta para Mellie entrar na cozinha. A cadela
abocanhou a cria e lambeu-a, e Gemma começou a
mamar.
- Que esquisito - disse Anna. - Mellie não tinha dado pela
falta dela. A cadelinha estava fora do caixote, ao frio, e Mellie não
ligava.
- Pode ter achado que ela estava a morrer e afastou-a do resto
da ninhada - disse Scott.
- Como é que ela soube que a cadelinha estava melhor`.'perguntou Anna.
- Eles percebem. Têm instintos mais apurados do que os nossos. De qualquer
maneira, agora a Gemma está óptima.
- É um excelente animal - disse Anna. - Teria muita pena se
ela morresse. Quer um chá, Scott?
Scott ia recusar. Tinha o jantar à espera em casa. Mas depois
lembrou-se de que o serão era comprido e Anna estava sozinha.
Acenou afirmativamente e instalou-se confortavelmente na cadeira
de Dan, olhando para a cadelinha, aninhada ao lado da mãe, a dar ao
rabo.
- Anna, queria pedir-lhe um favor - disse Scott, pegando na
chávena de chá. Estava ansioso que Anna dissesse que sim, pois sabia que ela
tinha muito pouco dinheiro. Não queria que ela percebesse que os seus motivos
eram totalmente altruístas. Precisava
realmente de ajuda, mas a mulher, Roz, teria podido encarregar-se
desse trabalho tão bem como Anna.
- Se eu puder...
Anna pegou na cadelinha e encostou-a a si. O corpinho do animal, que já
respirava normalmente, espreguiçando-se, tranquilizava-a, dava-lhe esperança.
Talvez o sofrimento acabasse um dia e ela ainda tivesse futuro.
- Tenho uma cliente que está no hospital. É criadora de cavalos
de corrida. Tem uma égua cheia que precisa de cuidados especiais.
Pode tomar conta dela?
- E se as coisas correrem mal? - perguntou Anna, olhando para Gemma.
- Se tiver de correr mal, tanto faz que a égua esteja em sua casa
como na minha ou na de um estranho. Não podemos adivinhar o
futuro, Anna. Temos de fazer o nosso melhor e mais nada. Fica com
a égua?
- Fico - respondeu Anna.
Gostava de poldros.
- Só que ando com pouca sorte. Primeiro foi o Dan, depois uma
raposa comeu as minhas galinhas e um idiota qualquer deu um tiro
no meu pato de criação e matou-o por engano.
- Salvámos a Gemma - disse Scott com firmeza. - É o princípio de uma nova fase.
Ouviu-se um carro a parar ao portão.
- Tem outra visita - disse ele, levantando-se. - Tenho de ir.
Trago-lhe a égua na quarta-feira.
Lá fora, Scott sorriu ao homem moreno e entroncado que se dirigia para a porta
de casa.
- Olá, Dave. Veio ver os cachorros?
- Vim, mas preciso também de pedir um favor à Anna - respondeu Dave Masterson.
Tinha uma cara de querubim que o fazia parecer mais novo do
que os seus quarenta e dois anos.
- Hoje estou a ser muito solicitada - disse Anna, acenando a
Scott e acompanhando Dave até dentro de casa.
O chefe dos treinadores do Centro dos Cães-Guias era já um
velho amigo. Interessava-se tanto como ela pela criação de bons
cães.
- Tive uma ideia - disse Dave, depois de se ter instalado
comodamente ao pé da lareira, examinando os cachorros, que Anna
trouxera para lhe mostrar.
Os animais, de barriga cheia e ensonados, estavam muito encostados uns aos
outros, formando uma massa de pequenos corpos,
de cabeças juntas. Mellie estava deitada a seu lado, vigilante. Sam
deitou a cabeça nos joelhos de Dave. Anna colocou em cima da
mesa um tabuleiro com café e bolos e olhou para Dave.
- Como sabe, tivemos de reduzir o número de pessoas que trabalham no Centro por
causa do incêndio no ano passado - explicou
ele.
Anna acenou afirmativamente, deitando o café nas chávenas. O
incêndio destruíra uma ala do velho edifício.
- Importava-se de alojar um cego aqui em casa, Anna? Pagávamos-lhe o mesmo que
teríamos de gastar com ele se ficasse no
Centro. Cegou há pouco tempo e precisa de aprender a viver de uma
maneira completamente diferente, tem de recuperar a confiança em
si mesmo. Além disso, também precisa de conviver com animais;
você é a pessoa ideal para recebê-lo. Sei que passou muito pouco
tempo depois da morte do Dan, mas a Anna podia proporcionar a
este homem uma oportunidade que ele de outra maneira só teria
daqui a muito tempo. Se corresse tudo bem, poderíamos arranjar-lhe outro hóspede
quando este se fosse embora. Susan vem muito a
sua casa; você não tem dificuldade em lidar com cegos, como acontece com algumas
pessoas. E não está constantemente a mostrar que
tem pena deles, o que os irrita.
- Isso é por eu estar tão habituada à Sue - disse Anna. - Ela não
parece sentir-se incomodada pelo facto de ser cega.
- A Sue é muito especial - respondeu Dave com ardor. - Quem me dera que ela
deixasse aquela megera da mãe e vivesse a
vida dela.
- Se ela fizesse isso, não era a Sue - retorquiu Anna. - Não
sei se seria capaz de receber aqui uma pessoa, Dave. Tenho de pensar no assunto.
Para já, uma pessoa cega há pouco tempo poderia
andar por aí a tropeçar nos meus animais.
- Então teria de aprender a evitar isso - disse Dave. - O nosso
objectivo é ensinar as pessoas a viverem uma vida normal, e não
fechá-las numa redoma.
- Acho que preciso de algum tempo para pensar - disse Anna.
- Não há pressas. O homem de quem estou a falar é o tal escocês a quem tenciono
entregar Gemma, depois de a ensinar. Ainda
tem de curar os ossos partidos antes de podermos ajudá-lo. A Sue
pode ensinar-lhe braille aqui em casa, no princípio. Nem sei como é
que nos arranjávamos sem a Sue. Anda por aí com tanta facilidade
que mete vergonha às outras pessoas, incitando-as a tentar fazer o
mesmo. Não há nada como o exemplo para despertar o entusiasmo.
Depois de Dave se ter ido embora, Anna recostou-se na cadeira,
mantendo Mellie e a ninhada ao pé de si para ajudar a passar o
tempo. Se recebesse um hóspede, já teria companhia ao serão. Mas
como é que seria essa companhia? A de um homem azedo, revoltado com as cartas
que recebera do destino?
Ao fim de algum tempo, levou Mellie e os cachorros de volta
para o canil de criação, sentindo-se mais intensamente só do que
nunca. Podia gritar, mas só as vacas a ouviriam no barracão ao lado.
Pensou em Dan, que morrera entre uma pulsação e a outra, e o medo acompanhou-a
de regresso a casa. E se ela também morresse assim, abandonando os animais que
dependiam dela?
Uma ave nocturna piou ao longe. Reinava o silêncio no canil e
no estábulo e os campos que se estendiam mais além estavam também silenciosos.
Brilhavam luzes na cidade distante.
Sam seguiu-a até dentro de casa. O vazio que aí reinava abalou-a. Se ao menos
estivesse alguém sentado na cadeira de Dan. Qualquer pessoa.
Anna preparou o seu jantar e comeu, olhando para a televisão
que Dan e ela raramente acendiam. Faziam tantos projectos, tinham
tantas coisas para dizer um ao outro. Agora não tinha ninguém com
quem pudesse falar.
O programa acabou e Anna subiu as escadas atrás de Sam. O cão
foi-se deitar no seu canto, de onde podia vigiar Anna e a porta. Os
seus olhos castanhos foram a última coisa que Anna viu antes de
apagar a luz.
Ficou deitada a ouvir o tiquetaque do relógio, o ruído do motor
da arca congeladora, a ausência de som lá fora. la aceitar o hóspede
de Dave. Qualquer coisa era melhor do que isto.
Adormeceu rapidamente, sem se dar conta sequer de que tinha
virado uma página, que começara a pensar no futuro.
CAPÍTULO 3
Steve estava num mundo escuro de dor lancinante. Além das outras
lesões, sofrera um traumatismo grave. Não sabia que o pai estivera
sentado ao lado da cama dele durante quase duas semanas. Não
sabia que um telefonema feito a Mara a tinha trazido de volta, lá do
outro lado do Mundo. Não sabia que a mãe, quando lhe haviam
contado do desastre, sofrera um enfarte e estava no mesmo hospital.
Andrew passava o tempo de um quarto para o outro. Nettie estava a recuperar, mas quando voltasse para casa precisaria de descanso.
Andrew Drake estava desesperado. Sem Nettie e sem Steve, a vida
seria impossível.
Steve também não sabia que era um herói. A fotografia dele,
com Lig a seu lado, fora publicada em todos os jornais, acompanhando a notícia
que relatava a avaria nos travões e a maneira como
ele tinha ido propositadamente de encontro à parede para não matar
as crianças. A sua velha carrinha não tinha cintos de segurança. Fora
projectado através do pára-brisas de encontro à parede de tijolo. Era
uma sorte ainda estar vivo.
Havia flores junto à cama. Flores mandadas pelas crianças e
pelos pais, por pessoas que tinham visto Steve apresentando Lig nos
concursos nacionais e internacionais, pelos produtores de L?m
Homem e o Seu Cão. que lamentavam o facto de Steve já não poder
concorrer.
Steve flutuava num mundo assustador em que os ruídos lhe
martelavam o cérebro, sentia facas trespassando-lhe a cabeça e as
dores eram uma companhia constante. Tinha dores nos braços, nas
costelas e nas pernas. Doía-lhe a cabeça - uma dor profunda e
aguda que só se atenuava quando lhe davam sedativos. Nem sequer
sabia quem era. Ouvia a voz de Andrew, mas era uma voz irreal.
Mara veio sentar-se a seu lado, mas ele não a reconheceu.
Steve só acordou para a realidade no terceiro dia da terceira
semana que passou no hospital. Tinha uma perna engessada, suspensa por uma
roldana; um dos braços também tinha gesso. As costelas estavam ligadas. Apalpou
com a mão as ligaduras enroladas à
volta da cabeça e dos olhos.
O pai chamou-o em voz baixa:
- Steve?
Recuperou a memória. Lembrou-se do pequeno automóvel, da
parede avançando para ele.
- As crianças! Estão bem?
A resposta era muito importante, tinha de ter a certeza de que
não tivera o desastre para nada, a certeza de que não morrera nenhuma criança
por causa dele.
- Estão óptimas - disse Andrew. - Mandaram flores. Rosas
encarnadas.
Pôs uma flor na mão de Steve. O pé tinha espinhos. Evolava-se
das pétalas um perfume ténue. Steve levou-as aos lábios.
- É dia ou noite? - perguntou.
- Dia - respondeu Andrew.
Estava cheio de medo da pergunta seguinte.
- Quando é que me tiram as ligaduras dos olhos?
- Falta pouco - disse uma voz alegre de mulher, ali ao lado.
Uma enfermeira. Ajeitou-lhe a almofada.
- Basta de conversas por agora. Tome, isto vai tirar-lhe as dores. Dói-lhe muito
a cabeça?
- Dói - respondeu Steve, cansado. A dor na vista era o pior de
tudo, uma sensação de ter areia nos olhos, lá muito no fundo, com
uma dor aguda por trás. Começou a sentir um vago receio, mas não
se atreveu a exprimi-lo.
O sono apoderou-se dele.
- Já está fora de perigo - disse o médico em voz baixa, uns
minutos depois. - Vá para casa descansar, Mr. Drake. O senhor
está estafado.
- Quando é que vai dizer-lhe?
- Só quando considerar que está na altura - respondeu o
médico.
Andrew Drake olhou para a figura envolta em ligaduras que estava deitada na
cama. Não se via nada da cara de Steve, a não ser o
queixo. Um azar súbito, um pequeno elo do motor que falhava no
momento crítico e a vida ficava de pernas para o ar. Steve, que três
semanas antes tinha tudo, era agora um dos desgraçados deste
mundo.
Quando Andrew chegou a casa, Mara tinha uma refeição pronta.
Estava instalada em High Hollows, ajudando nos trabalhos do
campo.
- O Steve já sabe? - perguntou em voz desolada.
- Ainda não. Não sei como é que ele vai reagir. Não é nada
paciente e nunca esteve doente.
Depois do jantar, Andrew subiu para descansar. Mara ficou a
cozinhar, a fazer as limpezas e a ordenha da tarde. Obrigou o seu
espírito a concentrar-se no trabalho em curso para não pensar em
Steve, lá no hospital, sem poder ver. Lig andava atrás dela tristemente.
Quando Steve acordou novamente, a dor atenuara-se.
Continuava presente, mas já era suportável, desde que não tentasse mexer-se.
Estava deitado, com a cabeça amparada em almofadas, sentindo o calor na cara e
ouvindo sons: as portas do elevador
a bater ao longe, as rodas de um carrinho no corredor, passando em
frente da porta do quarto. Estava desorientado. encurralado dentro
do seu próprio cérebro.
Ouviu um melro a cantar lá fora. Isso queria dizer que era dia. O
calor que sentia nas faces devia ser do sol a bater-lhe na cara. Começou a
escutar os passos e a diferenciá-los: passos leves e rápidos;
passos masculinos pesados: e depois umas passadas de elefante, que
pararam à sua porta e se aproximaram da cama.
Uma voz profunda perguntou: - Está acordado?
- Estou - disse Steve.
- Óptimo. Já é tempo de voltar para junto de nós.
Uma mão firme agarrou-lhe no pulso. Steve ouvia o tiquetaque
rápido de um relógio. Estavam a contar-lhe as pulsações.
A escuridão era irritante.
- Quando é que me tiram as ligaduras? - perguntou. - É horrível não ver nada.
Fez-se um longo silêncio. Se não fosse a mão que lhe agarrava o
pulso, pensaria que o médico se fora embora. Tinha vontade de se agarrar a essa mão para ter a certeza de que havia outras pessoas no
Mundo além dele. Doíam-lhe os olhos, ardiam-lhe como se estivessem cheios de
areia. Tinha vontade de os esfregar. Levantou a mão
para puxar pelas ligaduras, mas alguém a agarrou e reteve imediatamente.
- Não.
Era uma voz paciente, sonora, talvez de um homem mais velho.
Uma voz bondosa. Uma boa voz.
- Lamento, mas não vai ver, mesmo quando lhe tirarem as ligaduras. Tinha os
olhos cheios de vidros. Operámo-lo, mas não pudemos fazer mais nada. Vai
precisar de tratamento durante um tempo,
talvez um ano ou dois, por causa da inflamação. Estamos a fazer
tudo o que é humanamente possível.
Steve não tinha palavras para responder. Não percebia o que lhe
tinham dito. Não queria perceber. Era pior do que uma sentença de
morte. Nunca mais ver as ovelhas ou Lig a correr pelo monte acima.
Nunca mais entrar nos concursos onde tanto gostava de ir, com o
melhor cão que tivera em toda a sua vida. Não casar com Mara! Não
podia condená-la a viver com um cego.
O médico estava à espera com um ar ansioso. Mark Lathom era
muito mais novo do que Steve imaginava, mas já fora afectado pela
sensação de derrota provocada pela incapacidade de curar as pessoas que vão
morrer ou de dar vista aos cegos. Deveria ter esperado
mais tempo para dizer a verdade a Steve? Teria avaliado mal a capacidade de
resistência ao choque deste homem". Mas não queria
que Steve arrancasse as ligaduras e descobrisse assim a verdade.
Apertou com mais força a mão de Steve, encorajando-o a vencer
o terror, a aceitar a sua sorte.
- Steve, todos nós lamentamos muito.
A voz dele exprimia esse sentimento.
Steve não se mexeu. Não era capaz de se voltar, não era capaz de
fechar os olhos ao desespero. Estava cego. Nunca mais ia ver. Queria gritar de
revolta contra o acidente que lhe roubara tudo aquilo
que tinha na vida, insurgir-se contra o homem que lhe tinha dado a
notícia, mas engoliu a sua raiva.
O médico sabia que só ao fim de muito tempo Steve absorveria
todo o significado do que ele lhe tinha dito. E ninguém podia fazer
nada para ajudá-lo a aguentar o choque.
Steve queria dormir. O sono afugentava os pensamentos.
- Estou cansado - disse.
O Dr. Lathom chamou a enfermeira. A picada súbita de uma
agulha sobressaltou Steve, mas trouxe um alívio temporário. O
ruído dos passos que se afastavam soou-lhe aos ouvidos como um
dobre de finados.
Steve acordou, sentindo que estava alguém sentado ao lado da
sua cama.
- Pai?
- O seu pai já cá veio e já se foi embora. E a sua noiva também.
- Mara esteve aqui?
Não queria que ela viesse ali por pena, uma pena que se substituiria ao amor.
Sabia que ela casaria com ele, que lhe daria apoio,
mas não ia consentir nisso.
- Não quero que ela venha cá, está a ouvir?
- Está bem, meu filho. Eu trato disso.
A enfermeira Hancock exercia a sua profissão há trinta anos. Já
tinha visto de tudo, muito sofrimento e muita desgraça, e compreendia as razões
de Steve. Era preciso mantê-lo calmo a todo o custo.
Ia ter de dizer à rapariga que a presença dela não ajudava nada.
"Meu Deus, não é justo", disse ela de si para consigo, mas quando
falou com Steve, fê-lo numa voz alegre.
- Eu sou a enfermeira Hancock. Estou aqui sentada a fazer tricô,
porque estou de folga e a sua poltrona é mais cómoda do que a do
meu gabinete. Por isso, achei que vinha até aqui dar dois dedos de
conversa. Quer uma chávena de chá?
"Oferecem chá aos moribundos", pensou Steve histericamente.
De repente, teve uma enorme vontade de rir, de soltar um mar de
gargalhadas e de inundar tudo; mas depois teve vontade de uivar
como um cão. Era melhor tomar uma chávena de chá. Estava a descontrolar-se
completamente.
- Trago-lho numa chávena das que não entornam. Assim, é
mais fácil.
Ouviu os passos dela a atravessar o quarto e a sair pela porta. Uns
ruídos misteriosos foram interpretados como o som de uma máquina
automática de fazer chá.
- Agora sente-se na cama e tome isto - disse a enfermeira
Hancock quando voltou.
- Não sou capaz de me sentar sozinho - retorquiu Steve com
azedume.
- É, pois. Puxe-se para cima na cama. Não está paralisado.
- Antes estivesse - disse Steve com uma fúria repentina, satisfeito por poder
descarregar o seu mau-humor em alguém.
- Está na altura de deixar de ter pena de si mesmo - declarou
com firmeza a enfermeira Hancock. - Claro que é capaz de se
sentar, se fizer o possível. Julguei que não era desses que desistem à
primeira. A vida não acabou. Vai continuar numa direcção diferente.
- Que vida? - perguntou Steve.
- Tome o seu chá e pense nas coisas boas - disse a enfermeira
Hancock com rispidez.
Não devia manifestar a sua compaixão, pois de outra maneira ele
ia ter ainda mais pena de si mesmo.
- Pode servir-se da mão esquerda. Vá, pegue na asa da chávena.
Eu ajudo-o a levá-la à boca. Vai ter de aprender a fazer isso sozinho.
Steve descobriu que era capaz de mudar de posição na cama.
Sentia-se menos impotente assim, recostado nas almofadas. O chá
estava quente, tinha muito açúcar e soube-lhe bem.
Não lhe apetecia falar. Estava satisfeito por ter companhia, por
ouvir o tinido das agulhas, que lhe assegurava que ela não se tinha
ido embora. Tinha muito tempo para pensar e chegara a altura de o
fazer.
Era lavrador, sempre fora lavrador. Sabia que a vida era imprevisível. A morte
vinha à socapa, de tantas maneiras diferentes: cólicas nos cavalos, acidentes
súbitos. Pensou em nascimentos: os borregos no campo, os cachorros no canil.
- Nunca mais vou poder trabalhar no campo - disse.
- Cinco crianças vivas e sem uma beliscadura. Preferia ter conservado a vista à
custa delas? A Polícia disse que de outra maneira
teriam morrido todas: o seu carro era grande e pesado e elas iam
dentro de uma lata de sardinhas. Agora pode parecer-lhe que mais
valia ter morrido, mas o tempo sara todas as feridas.
- Que é que sabe disso? - perguntou Steve amargamente.
- Perdi o meu marido na guerra. Não chegou a conhecer o filho.
Parece uma história de telenovela, mas é verdade. Tive o meu filho
durante vinte e três anos. Morreu porque rebentou uma bomba num
bar quando ele estava de férias. Uma coisa estúpida, malvada, incompreensível.
Pelo menos o senhor fez com que algumas mulheres
não perdessem os filhos. Aquela mãe tinha ido buscar crianças de
cinco famílias, contando com a dela.
Steve não podia dizer nada. Teve um assomo de vergonha, que
depois passou. O tinido das agulhas de tricô continuou.
- A minha mãe ainda não veio visitar-me - disse.
- Teve um pequeno enfarte quando soube do seu desastre. Está
muito melhor, mas o médico acha que não é prudente deixá-la vir
aqui. Manda-lhe muitas saudades e flores. Cravos. De qualquer
maneira, mais tarde ou mais cedo, ia ter um enfarte. Devia andar a
trabalhar demais há anos. O trabalho do campo é muito mais duro do
que as pessoas julgam.
Steve pensou na mãe, que também estava a sofrer por causa dele.
Carregava com fardos de feno, ajudava na ordenha, pintava os celeiros por dentro
e, além disso, fazia as limpezas, cozinhava e lavava a
roupa.
Não podia condenar Mara a uma vida dessas. Ele ia ser um fardo
constante, daria muito mais trabalho do que um marido normal. De
repente, viu-a perfeitamente na sua mente: pequena e esbelta, de
feições miúdas e olhos grandes e expressivos, que se riam para ele.
A dor súbita que o trespassou era mais do que ele podia aguentar,
mas não havia alívio. Não podia fazer mais nada senão ficar ali
deitado, soçobrando num desespero que era como um poço sem
fundo.
Deu um gemido e uma mão pegou na dele, apertando-a com
força. O aperto de mão da enfermeira Hancock dizia: "Estou aqui.
Estou a fazer tudo o que posso. Não me vou embora enquanto precisar de mim."
Steve apertou a mão dela como se só ela o pudesse salvar do
desespero total. Adormeceu. Sonhou que estava no monte, com Lig,
que corria à vontade, e que via lá em baixo os borregos brancos a
balir, chamando pelas mães. Mas de repente, sem aviso, Lig afastou-se das
ovelhas a correr, para muito longe de Steve, desobedecendo às suas ordens.
Acordou, ouvindo passos que se aproximavam da cama.
- Steve?
Era a voz do pai. A grande mão apertou a sua com força e Steve
retribuiu, precisando mais do pai agora do que quando era pequeno,
mas sabendo que o pai era velho e precisava dele e que ele lhe ia
fazer muita falta. Andrew não seria capaz de fazer tudo sozinho.
- Onde é que está o Lig? - perguntou Steve, pensando no cão,
com que nunca mais poderia trabalhar.
- Está lá em casa. Com a Mara. Ela quer vir ver-te.
- Não! - disse Steve quase "um grito. - Não quero vê-la. Ela
não pode casar com um cego. Não seria justo. A minha vida está acabada. Não vou
estragar a dela.
- Acho que ela é que tem de resolver isso, filho - respondeu Andrew docemente,
pois conhecia bem Mara, melhor que Steve, ao
que parece.
- Não vou casar com ela. Nem pensar - disse Steve.
Doía-lhe o corpo todo. E doíam-lhe os olhos de tanto se esforçar
por ver, mesmo através das ligaduras. Tinha a sensação de que seria
capaz de ver.
- Ela está à espera para te vir visitar, Steve - disse Andrew
pacientemente.
- Não quero vê-la - repetiu Steve.
Sentia a raiva a revolver-lhe a alma - raiva contra o destino
imprevisível que lhe avariara os travões, raiva contra a condutora
do pequeno automóvel, que se tinha metido à frente dele, raiva porque os outros
viam e ele não.
A enfermeira Hancock olhou para Andrew, que suspirou e se
sentou pesadamente. Custava-lhe muito aparentar uma confiança
que não sentia. Steve ajudava-o tanto; só agora é que percebia que
era Steve que fazia quase tudo nas duas quintas.
Mara viera tomar o lugar de Nettie em High Hollows, fazendo o
mais que podia, e o pai dela mandara-lhe o velho Hennessey, um dos
seus empregados, para trabalhar como pastor no Convento. Mara
achava que tinha obrigações para com Andrew e Nettie, mesmo
antes de casar. Ia todos os dias ao Convento para pôr o aquecimento
a trabalhar e para controlar Hennessey, apesar de ele perceber muito
mais de ovelhas do que ela.
- O Lig está bom? - perguntou Steve a Andrew. Também fazia falta ao seu cão.
- O Lig está óptimo.
A verdade é que Lig estava deitado junto ao portão do pátio, voltando
ansiosamente a cabeça sempre que ouvia um carro na estrada.
- Quando é que posso ir para casa? - perguntou Steve.
- Ainda falta muito para isso - respondeu a enfermeira Hancock. As agulhas de
tricô começaram novamente a tinir.
Os pensamentos atropelavam-se na cabeça de Steve e ele teve a
sensação de que as pessoas o ouviam gritar, mas não saiu nenhum
som dos seus lábios. A escuridão pesava-lhe sobre a cabeça, palpável,
aterradora. Escuridão e mais escuridão para todo o sempre, até
ao fim da vida, ámen.
Começou a rir.
Mas a enfermeira Hancock estava a postos. O sedativo trouxe-lhe rapidamente o
sono. Andrew ficou sentado ao lado da cama do
filho, sofrendo por ambos. Para ele, não havia alívio.
CAPÍTULO 4
A MAIORIA das pessoas subestimava Mara quando a via pela primeira vez. Era
pequena, mas a sua aparência de fragilidade era
completamente ilusória. Não só era capaz de dirigir a casa e a
quinta, como também estava à altura da maioria das crises, de lidar
com um cavalo assustado que se recusava a entrar na sua baia ou
com um touro tresmalhado, que era capaz de desviar habilmente
com um forcado.
Agora, na sala de estar de High Hollows, ouvia em silêncio o
relato de Andrew. Já estava à espera de que houvesse problemas
com Steve, que era muito independente. Casar este ano estava fora
de questão. Quando chegasse a data marcada para o casamento, ele
ainda estaria no hospital.
- Vou tentar convencê-lo, só uma vez - disse Mara. - Não
vou insistir. Ele precisa de tempo ... Todos nós precisamos de
tempo.
- Porque é que não voltas para a América até ao fim do ano? -- perguntou Andrew.
- Steve queria que aproveitasses esta oportunidade.
- Já lá estive sete meses. Agora faço falta aqui. Vou tomar
conta do Convento até ao regresso de Steve. Depois, logo se vê do
casamento. Nunca gostei de mais ninguém nem nunca vou gostar.
Posso esperar.
Andrew assentiu com um aceno de cabeça. Ele e Nettie costumavam achar graça à
rapariguinha de tranças que andava sempre atrás
do filho. Quando Steve fizera vinte anos, Mara já não precisava de
andar atrás dele; estavam mesmo bem um para o outro e o futuro
estava garantido. Mas ambos queriam fazer coisas primeiro. Mara
queria ser professora e fora para a universidade, e Steve dedicara-se
a desenvolver a exploração agrícola, a bem dos dois. Nenhum deles
tinha pressa.
Mara tinha gostado muito da América, adorara a agitação frenética de Nova
Iorque. Também tinha gostado dos grandes espaços
que se estendiam para além da cidade; a Natureza era tão mais vasta e variada do que na sua terra; e as crianças eram vivas, espertas,
achavam graça ao sotaque dela.
Tinham sido todos muito bons para ela quando chegara a notícia
do acidente de Steve. Trazia as malas cheias de presentes dos alunos, que
arrumara cheia de saudades: o frasquinho de perfume de
Wistar, o ursinho de peluche de A1, a bonequinha preta, para se
lembrar de Cara. Há poucas semanas, quando o futuro lhe sorria,
todos eles faziam ainda parte da sua vida.
Olhou em volta, para a sala de estar. Conhecia-a tão bem como a
sua própria casa e não tencionava renunciar a ela.
- Steve tem de fazer as coisas à maneira dele - disse. - Sempre foi assim, mas
no fim eu conseguia levá-lo. Tem de ser com jeito. Nunca gostou que mandassem
nele, pois não?
- Nunca - respondeu Andrew, lembrando-se de quando Steve
era criança, dos ataques de mau génio que tinha porque queria fazer
tudo sozinho, queria ser sempre melhor do que os outros. Era ainda
muito pequeno e já teimava em carregar sozinho os leitões na carroça para os
levar ao mercado ou em escovar um cavalo maior do
que ele. Aos sete anos, já ensinava os cães de pastor.
Lig estava deitado ao pé da janela. Nunca despegava os olhos do
portão. Nunca perdia a esperança. Durante as duas primeiras semanas, o cão quase
não comia. Mara, tão teimosa como Lig, alimentava-o à mão, tentando
conquistá-lo, mas o cão não queria nada com
ela. Sempre que ouvia o motor de um automóvel, levantava-se cheio
de esperança, agitando ligeiramente a cauda. Mas depois aparecia
um estranho e Lig deitava-se outra vez, desiludido.
- Não é preciso dizer ao Steve que eu estou a olhar pelas coisas
aqui no Convento - disse Mara. - Pode dizer-lhe que está arrendado, e é verdade.
- Mas tu não pagas renda, rapariga - disse Andrew. - Valha-me Deus, eu é que
devia pagar-te a ti.
Mara pôs-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o.
- Vai ser meu sogro, quer o Steve queira, quer não - disse. -- Hoje à tarde vou
visitá-lo. Vou fazer o possível para o convencer a
mudar de ideias. Se casássemos no hospital, era uma esperança para
o futuro dele.
- Eu levo-te - disse Andrew. - Podemos ordenhar as vacas
antes de sairmos e depois guardamos os animais.
Na ordenha, os pensamentos de Mara eram sombrios. Sabia que
Steve ia ser quixotesco e teimoso e que não ia querer nada com ela.
Pensou com uma lucidez lancinante que ela teria feito o mesmo, que
se teria recusado a que ele casasse com ela por piedade. Mas de
qualquer maneira ia tentar.
Quando saíram de casa, daí a pouco, abraçou Lig. O cão não lhe
ligou, deitando-se outra vez na almofada, com o focinho entre as
patas. Tinha ficado apático com a ausência de Steve.
Mara não falou no caminho até ao hospital. Quando chegaram,
Andrew deixou-a na ponta do corredor e seguiu para a enfermaria
das doenças cardíacas pára visitar Nettie. O quarto de Steve ficava
no andar de cima, depois da enfermaria das crianças, onde se viam
vários corpinhos estranhamente silenciosos, vítimas de desastres de
automóvel. Se não fosse Steve, estariam lá mais cinco. Se tivessem
tido sorte ...
Pensou nos seus alunos da escola americana. O Pelotão Amotinado. Eram uns
marotos, mas com ela portavam-se bem. Sempre
tivera jeito para crianças, cavalos e cães. A única pessoa no Mundo
que não conseguia domar era Steve.
Não lhe tinha trazido nada. Havia flores na mesa do quarto, que
era pintado de cores vivas. Steve estava imóvel. A única coisa que
se via dele era a boca. Mara tentou dominar-se e falar calmamente.
- Olá, Steve.
- Disse-te para não vires cá - respondeu Steve em voz inexpressiva ao fim de um
silêncio que parecia interminável. Fechou a
mão saudável com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
- Por favor, Mara, vai-te embora.
- Podíamos casar aqui no hospital, Steve - disse ela.
Steve ouviu as palavras dela e pensou no seu estado, reduzido à
incapacidade e à dependência. Mara precisava de um homem que
lhe desse uma vida decente. Estava a tentar fazer o maior sacrifício
da sua vida, renunciar a Mara, e ela estava a resistir-lhe. Não tinha
forças para discutir.
O futuro dele estava arruinado. Perdera Mara e perdera Lig.
Ambos se agarrariam a ele, se ele deixasse; sabia-o. Mas Lig precisava de correr
nos montes, de guardar as ovelhas. Não podia condenar um cão de pastor a ficar
deitado à lareira, dependente das necessidades de um dono cego. E não podia
condenar Mara a tratar toda a
vida de um homem que precisava que ela lhe emprestasse os seus
olhos, a sua coragem e a sua protecção num mundo que era incapaz
de enfrentar.
- Steve. Nada tem importância, só nós. Não vês?
Foi a palavra errada.
Steve não era capaz de falar. Queria acima de tudo ficar sozinho
com o seu sofrimento e a sua dor. Se ao menos tivesse exigido uma
revisão completa aos travões. Se se tivessem casado na Primavera
passada.
Mara inclinou-se sobre ele, cheia de vontade de o abraçar, de lhe
fazer festas na cara. Tentou pegar-lhe na mão.
Steve tinha vontade de gritar há dias. Tinha-se dominado, escondendo o seu
terror, mas isto era demais. De repente, foi invadido por um sofrimento insuportável. Tentou empurrar Mara, mas estava
preso às roldanas e o gesso era rígido como um caixão.
- Vai-te embora! - gritou Steve, empurrando a mesinha-de-cabeceira com toda a
força. Mara desequilibrou-se e caiu de encontro
à cadeira que estava ao lado da cama dele, ofegando com a dor repentina. A mesa
deslizou e foi bater no armário com um estrondo;
tudo o que estava em cima do tampo caiu ao chão.
Mara foi invadida pela cólera. As semanas de espera, a dor na
perna, a irracionalidade estúpida da rejeição de Steve, foram mais
fortes do que ela.
- Deixa de pensar só em ti - gritou. - Pensa também em mim.
Sabes muito bem que quero casar contigo. Não me interessa que
sejas cego, surdo ou aleijado ... Não me importo ... Não me importo!
Foi sacudida pelos soluços. Nunca chorava e ainda ficou mais
irritada com essas lágrimas.
Steve não disse nada. Ficou tenso, desejando que Mara se fosse
embora antes de ele lhe pedir para ficar, de a ligar a ele para sempre
pelos laços da piedade.
Mas a enfermeira Hancock e o Dr. Lathom tinham ouvido o barulho e já ali
estavam, a enfermeira Hancock a ajustar as roldanas e
as ligaduras e o Dr. Lathom a pegar no braço de Mara, levando-a
com firmeza para longe do quarto, para o seu gabinete, onde a ajudou a sentar-se
numa cadeira.
- Ele é um homem orgulhoso - disse o médico. - Além disso,
agora está fora de si e vai ficar assim durante muito tempo. Está
muito doente. As pessoas mudam quando estão doentes.
- A minha vida é ao lado dele, quer ele queira, quer não - disse
ela.
O Dr. Lathom assentiu com um aceno de cabeça.
- Tem de dar-lhe tempo.
Era tudo o que podia dizer.
O TRABALHO fazia esquecer as preocupações. Andrew estava no
campo a consertar uma vedação. O som do manelo era um ruído de
fundo que acompanhava os outros sons da quinta. Lá longe, um
borrego balia, chamando pela mãe; respondia-lhe um balido mais
profundo; uma galinha cacarejava com um ruído insistente e estúpido.
Mara não tinha tido tempo para pensar em todo o dia. A porca,
Magnólia, não tinha leite, apesar de comer quatro vezes mais do que
qualquer outra porca parida, por isso era preciso alimentar os leitões
a biberão. Mara foi até à pocilga, levando os biberões, e os animaizinhos
correram para ela, ignorando a mãe, que não desempenhava
qualquer função nas suas vidas. Mara e Andrew eram as únicas fontes de alimento
para eles. Magnólia grunhiu, irritada, porque também queria o seu jantar, mas
teria de esperar.
Andrew regressou, cansado, atrumando o manelo e juntando-se a Mara na pocilga para alimentar metade dos leitões. Era um trabalho irritante e
estavam ambos tão cansados que não tinham vontade
de falar. Os leitões mamavam nos biberões, todos satisfeitos, esgotando o leite
todo. Mara e Andrew seguravam um biberão em cada
mão. Tinham de alimentar catorze leitões.
Finalmente, acabaram. Os animais estavam todos acomodados
para a noite e agora chegara a sua vez de jantar. Havia sopa, salada,
queijo e pão fresco. Os gatos procuravam as migalhas por debaixo
da mesa.
- Amanhã vou instalar-me no Convento - disse Mara. - Steve
não volta para casa antes de um ano. Talvez entretanto ganhe mais
juízo.
- E se não ganhar? - perguntou Andrew, pensando como seria
bom se pudesse fazer um gesto com a mão e apagar do calendário as
últimas semanas.
- Nessa altura, fico para tia - disse Mara. - Steve é o homem da
minha vida e nunca vou querer outro. Fico aqui para ele me ter
quando voltar. O meu pai disse c?ue eu podia ficar com o Hennessey
para me ajudar, se eu quisesse. E muito fone, apesar de não ter aspecto disso.
- Ele só é seis anos mais velho do que eu, rapariga - disse
Andrew impacientemente. - Mas fico muito satisfeito por tu ires
para lá. A casa estraga-se com a humidade, se ficar fechada.
Mara tinha-se aproximado da janela, até ao pé de Lig, que vigiava o que se
passava lá fora, e acariciava a pelagem macia do
pescoço do cão.
- Levo o Lig comigo para me ajudar a tomar conta do rebanho.
Talvez se habitue a viver sem Steve, se voltar para casa.
Ouviu-se um carro no caminho. Mara abriu a porta e Lig correu
para o portão e levantou-se, apoiando as patas no segundo varão,
com o corpo tenso de excitação. Mas quando o pai de Mara, Tom
Hastings, saiu do automóvel, o cão voltou para casa de orelha murcha e rabo
caído, como se lhe tivessem batido.
- Uma carta da América para ti - disse Tom, beijando-a.
Mara leu a carta enquanto Andrew servia dois n?hiskies. Era do
director da escola do Texas. Mara tinha-lhe escrito a participar que
já não voltava. O director dizia:
As crianças estão a fazer um peditório para comprar um cão-guia para o seu
noivo. Os criadores de cães-guias de Inglaterra
disseram-nos que um cão custa setecentas e cinquenta libras. Perguntei se
podíamos dar esse dinheiro e escolher um cão especialmente para Steve. As
crianças estão a organizar um concerto para
a semana que vem. Tiveram todas ideias para arranjar dinheiro e
alguns pais ajudaram também. Temos todos muita pena. Steve parece ser um homem
formidável.
Mara estendeu a carta ao pai, incapaz de falar. Pensou nas crianças nos serões
passados com os outros professores, nas casas que
tinha visitado. Toda a gente ficava encantada com as histórias que
ela contava do Convento, de Steve e de Lig e dos borregos nos
montes.
Andrew leu também a carta.
- São formidáveis - disse.
Mara assentiu com um aceno de cabeça. Foi-se embora para
cima, incapaz de encarar os dois homens, sem vontade de conversar,
de reconhecer a sua derrota.
Deitada na cama com a luz acesa, Mara foi avassalada pela escuridão, pensando em
Steve, imaginando a noite eterna. Ao fim de
um tempo, ouviu arranhar na porta. Era Lig, que vinha em busca de
consolo. Deixou-o entrar e o cão deitou-se ao lado da cama. Mara
abriu as cortinas e olhou lá para fora, para o pátio iluminado pelo
luar. A Lua afastou a escuridão.
Lig gemeu e Mara teve vontade de fazer o mesmo. Mas nunca
fora mulher para lamentações.
Agora só havia um analgésico, que era o trabalho. Tinha de fazer
planos para o futuro. Compraria um carneiro reprodutor ao pai para
criar os melhores borregos e ganhar prémios. Ia lutar pelo seu próprio futuro,
fazer pela vida, como Steve, e vencer. As ovelhas de
Mara Hastings seriam as melhores do país. E um dia talvez Mara
Drake continuasse esse trabalho; voltou-se para o outro lado, animada por essa
esperança ténue, e adormeceu.
CAPÍTULO 5
OS ossos partidos de Steve curaram-se. O tratamento doloroso que
tinha de fazer todos os dias aos olhos também acabou, se bem que
fosse necessário continuar a ir uma vez por mês ao hospital durante
muito tempo ainda. Todos os dias, quando lhe mudavam as ligaduras, tinha
esperança que os médicos estivessem enganados. E sofria
todos os dias uma amarga desilusão.
Sem sequer se dar conta, ia tomando consciência daquilo que o
rodeava. Identificava os ruídos e relacionava-os com os acontecimentos
quotidianos: o chá da manhã, o barulho das bacias e das
arrastadeiras, as visitas matinais dos médicos, o carrinho dos livros
a passar pela sua porta.
Andrew vinha vê-lo todos os dias, dando-lhe notícias da mãe,
que já estava em casa, de High Hollows e do Convento, que fora
arrendado. Steve ouvia tudo impassivelmente e não fazia comentários. Nunca
perguntava por Mara nem por Lig. Não tinha coragem.
Era muito doloroso pensar neles. Precisava tanto de ambos. Sentia -se perdido na
escuridão.
Mudaram-no para uma enfermaria onde havia barulho e agitação e o homem da cama
do lado conversava com ele. Steve respondia-lhe desinteressadamente, pois não
queria ser incomodado, preferia ficar sozinho com o seu sofrimento. Sentia-se
atabafado com o calor da enfermaria, com a presença de tanta gente. O desejo de estar nas
colinas com as suas ovelhas e com Lig sobrepunha-se a tudo
o resto.
A noite sem dia fazia com que o tempo parecesse infinito. Raramente comia uma
refeição decente. A enfermeira Hancock adoptou-o, pois era o doente que
precisava de mais atenção. Também
fora criada no campo e sabia que Steve nunca teria ficado em casa,
nem sequer quando fazia mau tempo. A claustrofobia era agora para
ele um pesadelo constante.
Steve estava a começar a andar sozinho, apoiado em duas bengalas quando puseram
outro homem na cama ao lado da dele. Paul
Duke estava a morrer e sabia-o. Tinha um certo sentido de humor
negro e dizia piadas sobre a vida depois da morte que agradavam a
Steve.
- Tenho lá uma cadeira reservada na plateia para poder ouvir o
coro celestial - disse um dia o velho Paul, depois de ele e Steve
terem estado a ouvir um concerto na rádio. - Espero que toquem
música clássica. Acha que eles já se converteram ao rock ou ao jazz
e a todas essas modernices?
Steve riu-se, imaginando um anjo a rufar freneticamente numa
bateria.
Percebia que o velho muitas vezes tinha dores. Ouvia-o e começava a falar com
ele, mesmo quando não lhe apetecia conversar. Depois, uma noite, ouviu Paul
gemer. Steve tocou a campainha, mas a
enfermeira de serviço tinha muito que fazer e não ouviu.
Steve saiu da cama e foi a tactear até à cadeira colocada ao lado
da cama do velhote. Sentou-se junto dele, pegando-lhe na mão. Foi
uma noite muito longa. Quando a enfermeira apareceu, trouxe remédios para Paul e
ajudou Steve a meter-se outra vez na cama, mas
ele não conseguiu adormecer. Ficou à escuta e tocou a campainha
quando deixou de ouvir a respiração ao lado dele.
- Era um velho espantoso - disse no dia seguinte a enfermeira
Hancock. - Fazia cem anos na semana que vem. Pensávamos que
talvez se aguentasse até lá. Dizia-nos sempre uma graça quando
íamos ao pé dele.
Steve não tinha percebido que Paul era assim tão idoso, que
nascera há cem anos, num mundo tão diferente que lhe era impossível imaginá-lo.
Por qualquer razão, esse facto deu outro sentido à
sua vida; pela primeira vez, sentiu-se satisfeito por não ter morrido
no desastre.
Nessa noite, perguntou a Andrew como é que iam as coisas no
Convento; perguntou por Lig. Não falou em Mara - a recordação
dela era muito dolorosa e não tencionava mudar de ideias. Agora,
ela podia ficar sentida, mas havia de lhe agradecer mais tarde.
Tinha de descobrir uma nova maneira de viver. Idealizava vagamente uma vida
dedicada à caridade. Os voluntários do hospital
irritavam-no, nunca sabiam como é que haviam de falar com ele,
usavam a palavra "ver" e depois calavam-se de repente. Ele não
evitava a palavra. Quando Andrew se ia embora, Steve despedia-se
dele todos os dias dizendo "Até à vista", como sempre fizera.
Começou a empregar o termo com naturalidade.
A enfermeira Hancock passava grande parte do seu tempo livre
ao pé dele. Sugeria-lhe maneiras de comer, de dobrar a roupa numa
cadeira, ao pé da cama, de modo a ficar na ordem correcta. Ensinou-lhe também a
contar os passos até ao fim da enfermaria, a decorar
a maneira como as portas abriam e a tactear com a bengala, para ver
se já estavam abertas. Já conseguia tomar duche e vestir-se sem
ajuda.
Mas muitas vezes tinha azares. Uma vez, houve alguém que
deixou uma cadeira de rodas à porta da enfermaria e ele chocou com
ela e caiu. Magoou-se, mas sem gravidade. Ao fim de algum tempo,
já era capaz de ir sozinho até à sala da fisioterapia, percorrendo um
corredor e subindo um pequeno lanço de escadas.
Não podia parar-se a vida. Steve lutou para recuperar a saúde,
fazendo ginástica, criando novos hábitos, acostumando-se a descobrir pelo tacto
muitas coisas que precisava de saber.
Uma manhã, aventurou-se até lá fora, utilizando uma bengala
para se orientar no caminho de cascalho e ir até ao relvado. Chegou
junto de uma vedação com um portão.
Sentiu um bafo amigável junto da cara, soprou também e foi
recompensado pela carícia do focinho de um cavalo encostado à sua
cara. Estendeu a mão para afagar a crina do animal. O cavalo era
muito manso, estava habituado aos afagos e aos carinhos das pessoas. Steve ficou
ali muito tempo, com a mão apoiada na pele
quente do animal, saboreando o cheiro do cavalo, ansiando por voltar para junto
dos animais.
DEßAM-LHE alta para ir passar uns dias a High Hollows antes de
seguir para o centro de reabilitação, onde lhe ensinariam a levar
uma vida nova. Não queria uma vida nova, mas a vida com animais
tornara-se impossível. Precisava de olhos para ver.
- Está cá o Lig? - perguntou, ao atravessar o pátio em direcção à casa, guiado
por Andrew. Um cão cheirou-lhe as pernas, mas
quando ele lhe tocou com a mão, percebeu que não era Lig.
- Não te disse nada, mas ele tem andado muito triste, filho. -- disse Andrew. -
Agora está melhor e ficou no Convento, o Hennessey trabalha com ele. Posso ir
buscá-lo, se tu quiseres, mas vais-te embora daqui a nada.
- Deixe-o lá ficar - respondeu Steve.
Era uma desilusão terrível, mas não aguentava pensar que se ia
embora outra vez e que o cão recomeçaria a procurá-lo desesperadamente.
Estar em casa era difícil. Tropeçava nas coisas e batia com a
cabeça em portas que antigamente se baixava para passar. Era como
nascer outra vez num corpo diferente, pensava, andando pela casa aos tropeções e gritando com o pai, furioso, quando ele tentava ajudá-lo - e
arrependendo-se imediatamente das suas fúrias. Detestava sentir-se tão
desajeitado.
Adivinhava a preocupação na voz da mãe e tentou ser paciente
com ela, mas Nettie irritava-o imenso, cortando-lhe a comida aos
bocadinhos, correndo a abrir as portas quando devia estar a descansar e
preparando-lhe pratos especiais, como se ele fosse uma
criança.
Além disso, queria que ele casasse logo com Mara. Andrew tentara convencê-la a
não falar no assunto, mas ela abordava-o indirectamente, falando de um novo
sobrinho, das alegrias de ter um novo
bebé, irritando tanto Steve que ele só tinha vontade de lhe dar um
grito. Essas alegrias não eram para ele.
A casa era uma prisão, agravando o inferno da escuridão. Steve
começou a sentir-se permanentemente irritado com os mais pequenos ruídos: o
tiquetaque apressado, frenético, do relógio da mesinha-de-cabeceira, o assobio
dos bicos do fogão de gás, o ronronar
ritmado dos gatinhos no cesto colocado junto à janela. Dava sempre
um pulo quando um deles lhe saltava para o colo.
Pelo menos, podia tratar dos cavalos e trabalhar na ordenha. Não
precisava dos olhos para ordenhar manualmente as vacas, e era
muito terapêutico estar encostado à pele quente da vaca, ouvindo o
leite a esguichar ritmicamente no balde.
Sempre que podia, saía para o campo, tacteando o caminho com
a bengala e metendo pela vereda que ia dar ao loch. Lá fora, ao
vento, que por vezes soprava com força nos montes, podia imaginar
os amontoados de nuvens no céu, que cornam tapando o Sol, pelo
ritmo dos raios solares que lhe aqueciam intermitentemente a cara,
sabendo que, por detrás dele, os altos picos se recortavam em espiral de
encontro ao céu, com os flancos cobertos de ovelhas brancas
e lanudas que se moviam lentamente sobre a verdura. E ouvia-se em
toda a parte o barulho das aves.
Andrew começou a ir todas as tardes ao Convento, enquanto
Nettie descansava e Steve ia passear até junto da água. Mara estava
mais magra e parecia mais velha, mais segura de si, mas raramente
se ria. Não queria pensar em Steve. O noivo tinha de aprender a
aceitar o seu destino e até lá ninguém podia fazer nada.
O Convento nunca estivera mais bonito, as ovelhas mais bem
tratadas. Ela estava decidida a fazer dinheiro com a quinta, a organizar a vida
de ambos, para quando Steve ganhasse juízo. Recusava-se a crer que ele nunca
mais a quisesse.
Hennessey estava a dar-lhe um curso intensivo de ovinicultura.
Não se podia dar um certo número de coisas às ovelhas: a ração
tinha de ser feita com erva dos prados da montanha, pois aquelas
ovelhas eram de uma raça de montanha. Os borregos tinham de ser
castrados; era preciso contratar os tosquiadores; era preciso comprar o produto
contra as carraças.
O melhor momento da semana era aquele em que recebia da América a carta do Pelotão Amotinado, que lhe contava como é que
estava a correr o seu trabalho de angariação de fundos. Mara sabia
que Steve talvez nunca quisesse um cão-guia. Não gostava de cães
fáceis ou sensíveis. Lig era um cachorro terrível - teimoso, independente,
dominador. Fora por isso mesmo que Steve o escolhera:
quando se consegue dominar um cão difícil, o animal é fiel ao dono
para sempre e melhor do que qualquer outro cão. Se todo aquele
trabalho que as crianças estavam a ter fosse inútil, ia ser difícil dar-lhes a
notícia.
DEPOIS, chegou uma carta para Steve. Andrew teve de lha ler e
Steve ficou irritado. Nunca mais poderia ter privacidade.
- Querem que te apresentes no Centro na próxima segunda-feira
- disse Andrew, esperando não denunciar na voz o alívio que sentia.
- Ainda não há lugar para ficares lá instalado. Vais ficar com uma
tal Mrs. Anna Leigh, num lugar chamado Setter's Dene.
"Valha-me Deus", pensou Steve. Estava mesmo a ver como é
que aquilo era. Uma vivenda nos arrabaldes e uma senhora exuberante tentando
animá-lo. E iam ensiná-lo a fazer cestos de vime, ler
braille e outros disparates do género.
Saiu para a rua sem a bengala. Andrew tinha deixado um balde
com ração para as galinhas no meio do pátio. Steve esbarrou com o
balde e deu-lhe um pontapé com toda a força, atirando-o para o meio
do pátio e espalhando o milho todo.
Andrew estava a vê-lo da porta. Mas não podia fazer nada. Foi
buscar uma pá e uma vassoura, varreu o milho e levou-o para o galinheiro. Quando
atravessou o pátio, Steve tocou-lhe no braço.
- Desculpe - disse em voz áspera, e subiu para o quarto, sentando-se ao lado da
janela, entregue aos seus tristes pensamentos.
A porta abriu-se.
- Trouxe-te uma bebida - disse o pai. - E umas sanduíches.
Como se lhe apetecesse alguma coisa ... Mas agradeceu. Andrew
olhou para o filho, hesitou e depois saiu, fechando a porta com força
atrás de si.
Steve ficou surpreendido quando deu com um copo em vez de
uma chávena. Engasgou-se com o whiskey. Bebeu-o em pequenos
goles, saboreando-o bem. Era o Glen iddich especial do pai, que só
aparecia em raras ocasiões. E as sanduíches eram deliciosas.
Steve sentiu-se mal, arrependido da sua impaciência, mas ansioso por se ir
embora, por aprender a ser outra vez um homem, em
vez de uma criança que tinha de ser mimada e tratada com todos os
cuidados. Setter's Dene não podia ser pior que isto.
Steve resolvera ir sozinho de comboio. Não queria que Andrew andasse de volta dele, e além disso Nettie não podia ficar sozinha.
Se o pai fosse levá-lo, teria de passar uma noite fora de casa.
Em breve, chegou o dia da sua partida, e o táxi já estava à espera
à porta. Steve sentou-se lá dentro, tenso, a caminho da estação.
- Quer ajuda no cais, Mr. Drake? - perguntou o motorista
quando chegaram.
A oferta, feita com naturalidade, ajudou Steve a aceitá-la com a
mesma naturalidade dando o braço ao homem e entregando-lhe a
mala.
- Venha atrás de mim - disse o motorista. - Há uns degraus.
Desceram os degraus e atravessaram o túnel. As vozes e os passos faziam eco e
era difícil avaliar as distâncias. Havia muito barulho: um palavreado
incompreensível anunciando as chegadas e as
partidas, o barulho das rodas dos carrinhos da bagagem, o guincho
de um carrinho eléctrico abrindo caminho por entre a multidão.
Havia pessoas de todos os lados chocando com ele. Algumas
pediam-lhe desculpa, outras não. Ninguém percebia que ele era
cego. Quase ficou contente por ser tratado com tanta brutalidade, o
que significava que o seu defeito físico não era aparente.
- Mr. Drake?
A Companhia dos Caminhos de Ferro sabia que ele ia fazer a
viagem e havia um carregador à sua espera. O homem pegou na
mala e o motorista foi-se embora, sem dar tempo a Steve de lhe
agradecer. Steve foi conduzido para um banco na ponta do cais.
- Aqui isto está mais calmo - disse o carregador. - Eu volto
quando o comboio chegar. Vai ouvir quando for anunciado.
Steve ficou sentado, sem se dar conta dos olhares curiosos de
duas raparigas que estavam de pé ali peno. Eram as duas muito
bonitas e não estavam habituadas a que os homens as ignorassem.
Steve era um belo homem. Não tinham percebido que era cego.
O carregador voltou.
- O comboio está a chegar.
Tinha uma voz alegre.
- Tenha cuidado ao entrar. O degrau é muito alto.
Steve não se lembrara de que a viagem ia ser muito aborrecida.Não tinha outra maneira de passar o tempo senão ouvir o barulho das
rodas do comboio, sentindo a carruagem oscilar e desequilibrando-se com as
sacudidelas.
Na primeira estação, entrou um homem que se sentou ao pé dele.
Steve sentiu um cheiro fone a suor e tabaco. O homem bateu-lhe
com o cotovelo quando se sentou.
- Desculpe - disse uma voz jovial. - Foi sem querer.
- Não tem importância - respondeu Steve em voz áspera.
Ouviu o barulho das páginas de um jornal, uma ruidosa respiração masculina e
tentou imaginar o homem, adivinhar se era velho
ou novo. Lá mais adiante, na carruagem, estava um bebé a chorar.
O revisor passou pelo corredor.
- Quer ir almoçar, Mr. Drake?
Os outros passageiros olharam para ele, espantados, perguntando a si mesmos
porque é que Steve merecia um tratamento especial. Steve tentou levantar-se, mas
desequilibrou-se e ia caindo.
- Cuidado, homem - disse jovialmente o indivíduo sentado a seu lado. - Bebeu uns copos a mais, não?
- Este senhor é cego - explicou o revisor. - Cuidado com os
pés, meus senhores.
Steve foi tropeçando em pernas que pareciam incapazes de se
desviarem do seu caminho, sentindo-se ridículo e impotente, pois
tinha consciência de que, mesmo que estivessem a levá-lo na direcção de uma
porta aberta, para o atirarem para a linha do comboio,
não poderia fazer nada.
Ficou muito aliviado quando se sentou numa mesa.
- Acho que o mais simples era comer umas sanduíches - disse
o revisor. - É difícil comer uma refeição sem ver num comboio em
movimento. -
A observação foi feita com tanta naturalidade que não o magoou.
- Sim, é mais simples comer umas sanduíches - respondeu
Steve com gratidão.
- Como é que consegue? - perguntou uma voz feminina do
outro lado da mesa.
Uma outra voz isenta de compaixão, manifestando apenas interesse. Uma mulher
mais velha, pensou, talvez da idade da mãe dele.
- Estou a aprender - disse Steve.
- Foi um acidente?
- Um desastre de automóvel. Há seis meses. É a primeira vez
que me deixam sair. - Sorriu, pensando porque seria tão fácil falar
assim com uma estranha. - Isto é uma mesa de duas pessoas?
- É. Eu não os deixo encherem-lhe muito a chávena. Não é
muito agradável apanhar um banho de café.
Steve riu-se.
- Obrigado - disse. - Onde é que estamos?
- No Lake District. As árvores no Outono são muito bonitas. Há
grandes massas de folhagem vermelho-dourada e amarela em toda a
parte. Está um lindo dia, um céu azul e nuvens pequeninas, o sol a
brilhar na água. Não sei bem que lago é este.
- Quase que não me tinha apercebido de que estamos outra vez
no Outono - disse Steve.
Parecia não ter havido Primavera.
- Já ouvi a sua voz e a sua cara não me é estranha. Donde será
que o conheço?
A recordação foi dolorosa.
- Naturalmente, viu-me nalgum concurso de cães de pastor.
Costuma lá ir?
- Claro! Você é Steve Drake. E Lig. Já estou a lembrar-me. Os
travões falharam numa descida, não foi? Vinha no jornal. As crianças fizeram-lhe
muitos elogios quando foram entrevistadas.
Steve não se tinha dado conta de que era um herói.
- O orgulho precede a queda, como costumam dizer - observou. - Estava convencido
de que ia ganhar o Troféu da Televisão.
- Ninguém merece uma queda como essa - respondeu a mulher
em voz ríspida. - E Lig é fora de série. Também sou criadora de
cães de pastor, por isso sei do que estou a falar. Lig continua a trabalhar?
- Continua - respondeu Steve. - Mas não o vejo desde que ...
- Calou-se uns instantes. - É difícil, mas tem de ser. É cruel ser apenas meio
dono de um cão que era só nosso.
Chegaram as sanduíches, e a sua companheira mandou vir meia garrafa de vinho, convidando-o a bebê-la com ela.
- Nunca pensei vir a conhecer o dono de Lig - disse a mulher.
- É um acontecimento digno de ser comemorado. Não quer ficar
aqui a conversar comigo? Não é todos os dias que tenho ocasião de
falar com um adepto de collies.
O resto da viagem passou-se depressa. A sua companheira de
mesa sabia os nomes e o pedigree de todos os grandes cães, e os cães
dela eram muito procurados. Reconheceu o nome do canìl quando
ela lho disse.
Quando ela saiu do comboio, Steve ficou sozinho com os seus
pensamentos e o chocalhar das rodas. A escuridão voltou com a
ausência dela. Ela tinha quebrado o seu isolamento, tinha-o feito rir
e ele sentia a sua falta.
- Chegámos - disse o revisor, tocando no braço de Steve.
Já tinha ido buscar a mala dele. Steve levantou-se, saindo do seu
lugar com dificuldade. Estavam no terminal de Manchester. O revisor conduziu
Steve até ao cais, desceram uns degraus e saíram para
a rua, para o sol.
- Mr. Drake? - perguntou uma voz a seu lado.
- Sim - respondeu Steve.
Era uma voz simpática, calorosa. Steve começara a estudar as
vozes das pessoas. Eram muito reveladoras.
- Sou Anna Leigh. E esta é a Susan. Trabalha no Centro. Vai
conduzi-lo até ao automóvel.
- A Anna já tem a sua mala. Dê-me o braço.
Era uma voz jovem e despreocupada, risonha. Steve sentiu uma
inveja súbita e intensa quando pegou no braço da rapariga e ela
começou a andar decididamente.
- Espere - disse ela. - A Zanta deu sinal para nós pararmos.
- A Zanta?
Steve não percebera que estavam ali outras pessoas.
- O meu cão-guia. Também sou cega.
Steve ficou ali parado ao lado dela, tão espantado que perdeu a
fala.
- Pronto. O caminho está livre. Ouviu aquele carro que passou?
Tem de aprender a tirar o maior partido possível dos seus ouvidos.
Eu tenho muita prática, porque nunca tive vista. Deve ser terrível
para si ter deixado de ver depois de tantos anos de visão normal.
Steve não foi capaz de responder. Baixou-se quando Susan lhe
indicou que estavam junto do carro e entrou. Zanta sentou-se no
chão ao pé dele encostando-se ao seu joelho. Sentiu a sua pelagem
macia e as orelhas caídas. Pelagem lisa e cauda direita. Uma labrador. Pensou em
Susan e na sua compaixão e teve vergonha.
CAPÍTULO 6
Quando o automóvel parou em Setter's Dene, Steve ficou à espera
de ouvir o ruído do trânsito. Mas, em vez disso, só se ouvia um cão a ladrar freneticamente, um gato a miar e um borrego impaciente a
balir.
- É o parvo do meu carneirinho! - disse Anna a rir, ao mesmo
tempo que abria a porta para Steve entrar. - Já não tem idade para
tomar biberão, mas não consigo desabituá-lo. Está quase na hora de
lhe dar de comer.
- Mas isto é uma quinta? - perguntou Steve, intrigado. Não
estava nada à espera de uma coisa daquelas.
- É uma pequena propriedade rural - disse Anna. - Tenho
alguns animais bastante estranhos! Uma égua que gosta de gelados;
um borrego que já devia ter sido desmamado e não foi; um pastor
alemão que serve de mãe a uma ninhada de gatinhos. E há ainda
mais quatro pastores alemães, um retriever, uma labrador e a cria
dela, que se chama Gemma.
- Por aqui.
Sue pôs a mão no braço de Steve.
- Há um caminho e depois sobem-se quatro degraus. Baixe a
cabeça para não bater na porta.
Steve ficou imóvel, aspirando o ar do campo.
- Também tem vacas?
- Estão do lado de lá - disse Sue. - Não são da Anna. Aqui ao
lado há uma propriedade grande.
Anna fez chá. Tinha preparado pãezinhos para chá e um bolo
recheado de natas e doce. A cadeira era cómoda, tinha uma almofada macia nas
costas, e Steve, depois de ter acabado de tomar chá,
foi vencido pelo sono. Sue foi para casa e Anna fez tudo o que tinha
a fazer e depois sentou-se ao pé da lareira, pegando numa caixa que
estava no chão, perto do lume. Lá dentro havia quatro gatinhos siameses. A mãe
tinha morrido durante o parto, e como a dona dos
gatos era muito idosa e não podia criar a ninhada, Scott Lewis recorrera aos
serviços de Anna.
Sam, o golden retriever de Anna, contemplava muito interessado a operação da
amamentação dos gatinhos. Começara por ladrar
a Steve, mas depois aceitara-o quando se tornou evidente que ele ia
ficar. Quando Steve acordou, o cão espreguiçou-se e depois foi procurar um
presente para lhe oferecer. Não havia ali nada à mão a não
ser a vassoura da lareira, que o cão depositou com firmeza no colo
de Steve.
- Que é isto?
Steve começou a pensar se não estaria num manicómio e se algum maluco lhe tinha
atirado com a vassoura para cima.
- Desculpe - disse Anna. - Sam é um cão de trazer à mão e
portanto traz à mão, contra ventos e marés. Mas teve sorte. Podia ter
sido uma coisa molhada ou enlameada. Ele é terrível.
Steve, aliviado, procurou com a mão as orelhas macias do cão.
Sam levantou imediatamente a pata e pô-la na palma da mão de
Steve, encostando-se a ele.
Ouviu-se um miado ténue e suave do gatinho que Anna estava a alimentar.
- Que é isso? - perguntou Steve.
- E um gatinho com três dias. A mãe morreu e eu estou a alimentá-los a biberão
aos quatro. Começo a ficar arrependida de me
ter encarregado deles. Dar-lhes o biberão de duas em duas horas não
é brincadeira.
- Não tem um biberão a mais? - perguntou Steve. - Eu podia
ajudá-la.
Anna pegou num dos gatinhos e pô-lo na mão de Steve. Ele
nunca tinha mexido num animal tão pequeno. As gatas da quinta
pariam sempre no celeiro e traziam para casa gatinhos já crescidos.
Este gatinho mexia-se na palma da sua mão e Steve seguiu os
contornos do animal com um dedo, apalpando as orelhas delicadas,
a cabeça frágil, as patas. Anna deu-lhe o biberão e o animal abocanhou-o
imediatamente, começando a sugá-lo. Steve concentrou-se
no gatinho. Não era fácil saber se estava a segurá-lo bem. Quando
ouviu o som característico do ar a ser sugado do biberão vazio, Anna
tirou-lhe o animalzinho da mão.
- Gostei do bichano - disse Steve. - De que cor é?
- Ainda é todo branco - disse Anna. - É um siamês de raça
pura. O pai e a mãe eram campeões.
A porta abriu-se, empurrada por Mellie. Steve ouviu um ruído
rápido de passos e depois sentiu um corpo rijo a fazer força de encontro ao
dele, cheirando interessadamente, para saber notícias dos
cães do pai dele. Teve uma visão repentina de Lig, que o vinha
também cheirar para descobrir onde é que ele tinha estado e em que
cães tinha tocado.
Foi abalado pelas recordações.
Mellie, sempre sensível ao estado de espírito das pessoas, pôs as
duas patas nos joelhos de Steve e tentou olhá-lo nos olhos. Como ele
não mexesse a cabeça, deu-lhe uma marradinha com o focinho e
encostou-se a ele, lambendo-lhe as mãos, sentindo que ele estava
triste. Sam, também ansioso, arranhou-lhe o joelho com a pata.
Steve pensava que tinha vencido a amargura, mas a amargura
regressou e os cães em volta dos seus joelhos recordavam-lhe dolorosamente tudo
o que ele perdera.
Anna pôs os gatinhos no tapete, em frente da lareira. Mellie
aproximou-se deles e inclinou a cabeça para os cheirar. Depois,
deitou-se ao lado da ninhada e lambeu cuidadosamente os gatinhos,
um por um. Os animaizinhos aninharam-se de encontro à sua pelagem.
Ouviu-se um balido furioso lá fora e o som de cascos a bater no
chão.
- É o Barulhento - disse Anna. - O carneiro. Quer o biberão.
- Eu posso dar-lho - disse Steve.
Era bom arranjar coisas para fazer.
- Que idade é que ele tem?
- Cerca de seis meses. É um órfão e pertence ao lavrador daqui do lado. Dantes também tínhamos uma bela propriedade, mas
quando construíram a ligação à auto-estrada, estávamos mesmo no
meio do caminho. De princípio, detestei isto aqui. Tinha muitas
saudades das montanhas.
- Nós também moramos nas colinas - disse Steve. - Adoro
aquilo. Vê-se o mar, azul e verde e branco, e as montanhas, escondidas pela
neblina.
Anna pegou-lhe no braço para o levar lá fora. No barracão, o
Barulhento estava a martelar com os seus pequenos cascos rijos de
encontro à madeira.
- Cá estamos - disse Anna. - Tem de baixar a cabeça. O
barracão é muito baixo.
Steve baixou-se. Uma cabeça lanuda marrou contra as suas pernas e quase o atirou
ao chão. Ajoelhou, agarrando com força no
borrego, e Anna meteu-lhe o biberão na mão. A boca esfomeada
pegou na tetina com tanta força que quase lhe arrancou o biberão
das mãos.
Depois, o borrego começou a mamar e acalmou-se. Steve estendeu a mão e apalpou a
cabeça do animal, as orelhas voltadas para a
frente, avaliando as formas dos ossos. Era um animal bem conformado e pensou se
não seria possível avaliar o gado bovino e as ovelhas sem ver os animais. Mas
nunca poderia ver as imperfeições da
cor e se o animal era vivo e se movimentava como deve ser. Suspirou, saboreando
o cheiro das ovelhas, o cheiro a campo.
Quando o borrego ficou satisfeito, Anna empurrou-o outra vez
para dentro do casebre e conduziu novamente Steve para fora do
barracão. Trancou a porta e foi guardar a égua na cavalariça.
Steve, esperando por ela no jardim, percebeu que já era noite
pela temperatura do ar e pelo silêncio reinante. Ouviam-se as vacas
a respirar em uníssono no campo adjacente.
Sentiu um focinho a empurrar a sua perna. Steve estendeu a mão
e apalpou Sam. Mas doíam-lhe os ossos e precisava de descansar.
Instintivamente, meteu a mão na coleira de Sam e ficou à espera. O
cão, habituado a Susan, conduziu-o imediatamente para dentro de
casa. Steve esqueceu-se de baixar a cabeça, bateu na porta e praguejou.
- Deixe lá - comentou Anna por detrás dele. - Dan, o meu
marido, via bem e estava sempre a fazer o mesmo.
- Quando é que o seu marido morreu? - perguntou Steve.
- Há quase um ano. De repente. Foi um choque terrível. Nunca
pensei que fosse capaz de continuar sem o Dan. Mas foi o que aconteceu; e
tenho-me desembaraçado menos mal. Quando me sinto
mais em baixo, penso na Susan, que é uma das pessoas mais felizes
que eu conheço.
- Se calhar, as pessoas não sentem a falta de coisas que nunca
tiveram - comentou Steve.
- Não sei. Será possível imaginar a visão quando nunca se soube
o que isso era? Penso muitas vezes em como é que ela imaginará o
mundo. Coisas como as árvores por cima da cabeça dela, a forma
dos ramos, a textura das folhas. Deve ser inimaginável.
Era doloroso pensar nessas coisas, mas o sofrimento significava
que Steve estava a voltar à vida. A pena que sentia de si mesmo
mergulhara-o na apatia até àquela noite em que Paul morrera no hospital. Agora já era capaz de pensar nos outros. Nunca se tinha
lembrado do sofrimento dos cegos de nascença.
Estava outra vez na altura de dar de comer aos gatinhos. Era só
um princípio, aliviar um pouco o fardo de Anna, mas afinal podia
fazer mais coisas do que aquilo que imaginara.
Steve estava sentado à janela da sala, sentindo o sol da manhã a
bater-lhe na cara, ouvindo o ruído de fundo quase constante dos cães
a ladrar no pátio. Já se tinham passado algumas semanas depois da
sua chegada.
- Está alguém em casa? - perguntou Susan, entrando na sala.
- A Anna foi às compras - respondeu Steve.
- Hoje vamos dar a nossa primeira lição de braille - disse Sue.
- Vou passar a vir cá três vezes por semana. Tem de aprender o alfabeto e
depois, quando souber ler, arranja uma espécie de agenda e
toma notas e pode lê-las sozinho. E pode escrever à máquina pelo
tacto. Quer que lhe leia um bocado antes de começarmos?
Era uma maneira de passar o tempo.
- Leia, se faz favor - disse ele, ficando sentado a ouvir a voz
suave de Sue, que lia a história de um criador de ovelhas e do seu
cão. Pensou que ela naturalmente queria dar-lhe prazer, mas era
doloroso ouvir aquela história, pois lembrava-lhe Lig a correr nos
montes e ele próprio a andar livre e descuidadamente por cima das
pedras.
- Você não está a ouvir - disse Susan, sempre sensível ao estado
de espírito das outras pessoas e percebendo que ele estava mergulhado nos seus
pensamentos.
- Desculpe - disse Steve. - Como é que você aguenta? Estava a lembrar-me de uns
versos que aprendi nos meus tempos de
escola. Sinto-me como alguém
que anda sozinho
Numa sala de banquete deserta,
As luzes apagaram-se
As grinaldas murcharam
E todos menos ele se foram embora.
- Não precisa de se sentir assim - disse Susan. - Está lá fora
um mundo à sua espera. Basta estender a mão para lhe tocar.
Steve ouviu passos e o som das unhas de um cão a rasparem no
oleado do chão da cozinha. A voz de Anna soou junto à porta.
- Apanhei umas rosas para a mãe de Sue. Estão aqui.
Dirigiu-se para eles.
- Não cheiram bem?
Rosas. Tinha plantado roseiras para Mara à volta da porta. O
cheiro das flores provocou-lhe uma dor tão profunda como nunca
sentira. Viu as roseiras cobertas de flores de cores vivas, o Convento e tudo o que perdera. E a cara de Mara.
Saiu abruptamente para o pátio.
- Já fiz asneira - disse Anna tristemente. - Pensei que ele ia
gostar de sentir o cheiro das rosas.
- Os cheiros evocam recordações - disse Susan. - E todos
nós nos enganamos às vezes. Palavras, lugares, cheiros ... Eu também escolhi o
livro errado hoje.
Pegou na mão de Anna.
- O braille fica para outro dia.
Sue saiu com Zanta, e Anna ficou a vê-la descer em passo rápido
o caminho que ia dar à entrada. Tinha-se esquecido de lhe dar as
rosas para a mãe. Anna levou as rosas até à ponta do campo e atirou-as para uma
vala.
DAÍ A bocado, Steve voltou para casa para dar de comer aos
gatinhos. Agora já o conheciam. E ele também conseguia detectar
as mudanças sofridas pelos animaizinhos: os minúsculos bigodes
hirtos, os dentinhos aguçados que já tinham rompido, enterrando-se
ocasionalmente na sua mão, quando não se despachava com o biberão. As orelhas
deles também estavam a crescer e fremiam quando
lhes tocava.
Um dos gatinhos, uma fêmea chamada Sukie, exigia mais atenção do que os outros.
Era a mais meiga, sempre a primeira a chegar
ao pé dele, estava sempre agarrada a ele e não queria voltar para o
caixote.
- Vamos ficar com essa para si - disse Anna a Steve certo dia.
- A Sukie adoptou-o completamente. O melhor é levá-la consigo
para casa quando se for embora. Prometeram-me um dos gatinhos
para me agradecerem.
Anna saía todos os dias com Gemma e muitas vezes ficava fora
durante três ou quatro horas. Steve ainda estava demasiado absorto
nos seus próprios problemas para perguntar onde é que ela ia. Só
quando Sue comentou um dia, durante uma das lições de braille, que
Anna andava a ensinar Gemma, é que ele perguntou:
- Ensiná-la para quê?
- Vai ser um cão-guia. Anna agora está a criar cães-guias para o
Centro. O resto da ninhada está a ser treinada por outras pessoas que
ensinam os cães a sentar-se, a parar e a andar calmamente, sempre
ligeiramente à frente do dono, e não ao lado dele. Levam-nos às lojas, andam com
eles em ruas com muito movimento, habituam-nos
aos animais do campo. Têm de aprender a usar o cérebro, pois os
donos dependem deles.
- Não estou a ver como é que isso é possível - disse Steve. -- Os meus cães
dependiam sempre de mim. Eu é que mandava.
- Eu também mando na Zanta - disse Sue. - Mas apesar disso
confio nela para ver quando é que lá vem um automóvel ou se há um
obstáculo no meu caminho. E mesmo assim ela obedece-me.
- Todos os cães são treinados para actuar num meio diferente?
- perguntou Steve.
- Tem de ser. Alguns vão ser cães de campo e vão ter de andar por caminhos de terra; outros vão viver em lugares cheios de gente.
Como é que o Lig reagiria se você o levasse a Londres?
- Perdia a cabeça com o barulho, naturalmente - disse Steve.
- E a Gemma, está a ser treinada para viver no campo, não?
- Sim - disse Sue. - É um cão excepcional. É tão esperta que
o Dave Masterson está ansioso por tê-la no Centro para a treinar.
Deve ir para lá esta semana. Dentro de uns quatro meses, está pronta
para o seu novo dono, e depois o dono tem de ser ensinado com ela. É tudo muito demorado.
Era tudo muito demorado. Steve detestava as lições de braille
que Sue lhe dava. Tinha uns dedos pouco sensíveis e estava sempre
a enganar-se nos pontos. Mas fazia progressos e ao fim de algum
tempo descobriu que já era novamente capaz de ler.
Steve já tinha mais facilidade em conversar com as pessoas que
vinham visitar Anna, muitas das quais não percebiam que ele era
cego. Também já era capaz de se orientar perfeitamente ali em
volta. Dave Masterson, que visitava Anna com frequência, estava
sempre a incitá-lo a fazer coisas novas sozinho, a trabalhar no
campo, carregar fardos de feno para Anna ou sacos de comida para
os cães.
Quando chegou do Centro uma nova ninhada de cachorros,
Steve começou a ajudar Susan a brincar com eles e a habituá-los ao
contacto humano. Anna e ele faziam barulho ao pé do canil da ninhada, tocavam
despertadores, batiam com tachos e panelas, para
que os cãezinhos que fossem morar em casas ruidosas não ficassem
muito traumatizados com a mudança.
Sukie era agora o seu animal de estimação, dormia na cama dele,
acordava-o de manhã, esfregando-se na cara dele, e aconchegava-se
na cama a seu lado à noite. Era muito reconfortante quando Steve
não conseguia dormir e era assaltado pelas recordações. Antigamente, nunca se
interessara por gatos e não se tinha dado conta da
personalidade forte que tinham - Sukie mais do que qualquer outro. Estava sempre
a querer alguma coisa - queria atenção, miava
a pedir comida e seguia-o para toda a parte como uma sombra.
- Está sempre mesmo atrás de si - disse Anna. - Nunca pode
voltar-se para trás de repente, senão pisa-a.
Steve habituou-se a chamar Sukie antes de se voltar e nessa altura ela
saltava-lhe sempre para o ombro. Encostava-se à cara dele,
ronronando alto e olhando com desprezo para os cães, lá do alto, da
sua posição de vantagem.
NA NOITE do aniversário de Anna, Steve ia jantar à estalagem da
terra com o veterinário, Scott Lewis, a mulher dele, Roz, Sue, Dave
Masterson e Anna. Estava a temer essa noite.
- É ali mesmo ao fundo da estrada - disse Anna. - Mellie e
Sam ficam de guarda à casa. Mas o caminho é mau. O melhor é dar-me o braço.
Steve detestava andar de braço dado, mas não disse nada. Tinha pedido a Scott para lhe comprar flores para Anna. Scott escolhera
um ramo de cravos e Anna ficara muito contente.
A estalagem, que se chamava Traveller's Rest, era muito antiga,
com tectos baixos suportados por vigas de madeira escura. A sala do
bar estava cheia de fumo de cachimbo e cheirava intensamente a
cerveja, e a música era uma autêntica agressão aos ouvidos. Steve
teve vontade de sair outra vez da sala, abrindo caminho aos encontrões, correr
até Setter's Dene e ficar a ouvir a noite. Pensou de si
para consigo que não percebia como é que dantes podia ter gostado
daqueles lugares.
Steve estava ali sentado a beber uma cerveja, um ser à parte num
mundo estranho, incapaz de visualizar o que o rodeava. Estava no
meio de um vácuo informe, apinhado de gente. Um homem deu-lhe
um encontrão num ombro; alguém entornou uns pingos de cerveja
na manga do seu casaco; passou uma mulher ensopada em perfume.
Tinha a sensação de ser invisível, um fantasma ignorado por todos.
A escuridão era mais tangível do que nunca. O barulho, um terror
insuportável. Cerrou os punhos em cima dos joelhos, e Dave, voltando a cabeça,
viu os nós dos dedos brancos e amaldiçoou a sua
estupidez.
- Está aqui um calor horrível - disse. - Preciso de apanhar
um bocado de ar antes do jantar. Quer ir até lá fora comigo, Steve?
Lá fora era um refúgio. Estava tudo muito sossegado e Dave
passeou com Steve pelo jardim, mergulhado na escuridão. A música
da estalagem mal se ouvia e um mocho piou ao longe. Cheirava a
flores. O pânico de Steve desapareceu a pouco e pouco. Dave ficou
ali sentado, sem falar, olhando para a noite, compreendendo os
sentimentos de Steve.
- São horas de ir jantar - disse Dave ao fim de uns minutos. -- A casa de jantar
fica na outra ponta do edifício, longe do barulho. É
uma sala bonita, com cortinas de veludo encarnado e cadeiras confortáveis. E há
quadros nas paredes.
Entraram pelas portas de sacada que davam para o jardim, e
Steve sentou-se ao lado de Sue.
- Os criados conhecem-nos, Steve - disse ela. - São muito
simpáticos. Cuidado com as pernas. A Zanta está debaixo da mesa.
Steve já tinha dado por isso. Fora acolhido por um focinho frio,
que mergulhara na sua mão. Zanta ficava ali quieta até precisarem
dela. Se tivesse um cão, talvez pudesse ir dar os longos passeios por
que tanto ansiava, subindo os montes. Mas um cão como Zanta não
servia de nada; precisava de um collie. Desejou esquecer Lig. Não
podia deixar de fazer comparações.
A refeição foi muito facilitada. Cortaram-lhe a comida em pedaços pequenos.
Escolheu queijo e bolachas para a sobremesa, com
medo de deixar cair da colher um doce peganhento. Ainda não era
fácil comer sem ver o garfo e a faca ou a colher.
Falou muito pouco e ansiava pelo fim do jantar, mas fazia um
esforço sempre que alguém falava com ele. Ficou muito aliviado
quando Anna disse que estava na altura de ir para casa e o levou de
volta para Setter's Dene. Mellie e Sam ganiram de alegria quando os
viram e Sam espalhou pelo chão as suas ofertas, uma das quais era a
carteira de Steve, que ele tinha deixado em casa.
Já no quarto, Steve ouviu fechar a porta do quarto de Anna e
depois fez-se finalmente silêncio. Sam e Mellie estavam no patamar. Sukie
aconchegava-se de encontro ao seu ombro. Não tinha
bebido cerveja em quantidade suficiente para ficar embriagado,
mas mesmo assim bebera mais do que o costume e deu-lhe para ver
coisas terríveis, como nunca tinha imaginado. Adormeceu e sonhou
que estava na escuridão, procurando desesperadamente uma luz, e
quando acordou para a realidade, sentiu-se encurralado entre as
quatro paredes do seu quarto, como se estivesse numa prisão.
CAPÍTULO 7
Mara tinha muito que fazer no Convento, trabalhava mais do que
nunca. O trabalho na quinta nunca acabava, por mais tempo que lhe
dedicasse, e sentia-se satisfeita por isso.
Chegou o dia em que devia ter-se casado e pôs-se à janela,
olhando para os montes, com um nó na garganta. O vestido de noiva por estrear,
estava pendurado no armário. Tirou-o para fora e
olhou para ele, para os pontos delicados, os bordados finos. Nettie
tinha-o feito com todo o amor.
Nunca mais. As palavras ecoavam na cabeça de Mara. Ia ficar
solteira, viver aqui o resto da vida, num lugar que se chamava apropriadamente o
Convento!
Arrumou outra vez o vestido no armário.
Lá em baixo, Lig estava à espera. Steve nunca tivera o cão dentro de casa, mas
Mara precisava de companhia. Pôs o casaco e assobiou chamando Lig. Não tinha
vontade de comer, nem sequer uma
torrada. Naquele dia, os sinos da aldeia deveriam estar a tocar e ela
a pôr aquele vestido, sabendo que Steve estaria na igreja às 11 horas,
à espera dela.
Lá fora as montanhas recortavam-se no céu, enormes, abruptas
e esplêndidas. O pico mais alto estava orlado de neve. Correu para
fora de casa, para esquecer as suas recordações, e foi até ao segundo
campo para ver as ovelhas, uma por uma, sabendo que a vida dela
agora era isso.
Tinha de telefonar aos tosquiadores. Precisava de mais ração
para as galinhas. Tinha de dar de comer aos porcos. E tinha de fazer
uma visita a High Hollows, pois Nettie ainda não havia recuperado
completamente as forças. Ia lá quase todos os dias, para tratar das
tarefas de que Nettie não podia dar conta, para tentar animar Andrew, ajudá-lo,
fazer as vezes de Steve.
De volta a casa, encontrou uma carta do Pelotão Amotinado:
Agora já temos todo o dinheiro que é preciso para comprar um cão-guia para
Steve. O Centro mandou-nos um retrato: chama-se
Gemma e dizem que a escolheram de propósito para ele, mas que
ele ainda não sabe. Pode ser que um dia lhe façamos uma visita e
nessa altura vemos Gemma. Temos muitas saudades suas.
Mara teve uma visão repentina da aula e das caras das crianças.
Foi buscar o cavalo é deu um passeio pelos montes, com Lig a correr
incansavelmente atrás dela, sem nunca a perder de vista.
Olhou para baixo.
O Convento parecia uma casa de bonecas, os canos nas estradas
eram carrinhos de brinquedo e as pessoas assemelhavam-se a fantoches - pequenas
criaturas com uma vida efémera, que passava depressa, deixando para trás todo o
sofrimento. Os montes ainda lá
haviam de estar quando ela não fosse mais do que umas palavras na
pedra cinzenta de uma campa no cemitério.
O melhor era esquecer o dia do casamento que não se fizera.
Desceu novamente os montes e foi dar de comer ao cavalo e
escová-lo. Depois, tirou o vestido de noiva do armário, dobrou-o
cuidadosamente, embrulhando-o em papel de seda, e arrumou-o
numa mala, que escondeu no fundo do sótão.
Tinha de recomeçar.
Telefonou aos tosquiadores, encomendou as rações e foi falar
com Hennessey sobre as coisas que eram importantes: os tratamentos e as vacinas
das ovelhas, a altura de juntar os carneiros reprodutores ao rebanho, o eterno
problema dos cães vadios que perseguiam
os animais.
Depois, telefonou a Andrew. Nettie encontrava-se ocupada e estava tudo bem.
Mara trabalhou até à meia-noite e depois foi para a cama e adormeceu
profundamente - escolhera definitivamente o seu novo estilo de vida.
Steve nunca pensara que a vida fosse tão perigosa. Era a primeira vez que
tentava passear sozinho no caminho, numa linda
manhã de sol, depois de uma chuvada forte. Mas o seu cabelo ficara
preso nos galhos das árvores e a água escorria-lhe pelo pescoço.
Descobriu que o caminho era uma sucessão de montes e vales cheios
de água gelada. Andava à toa de um lado para o outro e acabou por
prender a manga num caule grosso e cheio de espinhos, que lhe arranharam as mãos
quando tentou libertar-se.
Scott Lewis, no seu automóvel, viu que Steve estava atrapalhado
e veio salvá-lo.
- Foi apanhado nas silvas de estimação de Mrs. Halliwell. -- disse. - Rogo-lhe
pragas sempre que venho aqui a pé à noite.
- Tenho os pés encharcados - disse Steve.
- Vinha à sua procura. Vamos até Setter's Dene, que eu trato
esses arranhões.
Anna veio ter com eles ao caminho.
- Não quis desanimá-lo - observou, olhando para os pés encharcados de Steve e
para os arranhões das mãos -, mas este caminho é perigoso, mesmo para as pessoas
que vêem.
- Não percebo como é que a Sue se arranja - disse Steve.
- A Zanta é muito esperta - replicou Scott. - Gostava que a
visse a olhar para o chão, as árvores, as silvas e a evitá-las. Um cão
assim dava-lhe muito jeito, Steve.
Steve recusou-se a discutir o assunto. Sentou-se na cadeira,
completamente denotado. Tinha esperanças de conseguir ir até à
tabacaria comprar o jornal para Anna. Era uma coisa pequena, mas
fazia-a perder tempo todos os dias, e às vezes ela esquecia-se. Não
deu atenção à conversa entre Scott e Anna, que falavam da última
ninhada. Anna que estava sempre à procura do cachorro perfeito,
fazia muitos planos e Scott tentava trazê-la à realidade.
- Lembre-se do que Dan costumava dizer, nunca se sabe o que
é o dia de amanhã.
Anna suspirou.
- Pois é, Scott, mas não há futuro sem esperança.
Essas palavras ficaram a ressoar na cabeça de Steve. Sem esperança. Agarrou na
Sukie, mas a gatinha miou e fugiu do colo dele.
- Não posso agarrar-lhe com tanta força - disse, tentando dar
um tom ligeiro à voz, mas Scott apercebeu-se da nota de desespero.
- Steve, vim cá porque precisava de si um dia ou dois. Tenho
um doente, uma eguazinha assustadiça chamada Ginny. Foi um
empresário daqui e a mulher que a compraram para a filha. Não
percebem nada de cavalos; compraram-na num leilão, mas estava
cheia. O poldro vai nascer um dia destes. O pai não percebe nada de
animais. Sara, a miúda, só tem dez anos. E a mãe não é mulher para
ajudar; chora quando o cão precisa de ser vacinado. Acha que era
capaz de segurar na égua? O parto não vai ser fácil, porque estou
desconfiado de que o poldro está em má posição. Posso ter de o
voltar, e ela pode reagir mal. Mas você sabe o que deve fazer. Vou
agora até lá para vê-la. Venha comigo para a conhecer.
Mais valia isso do que ficar ali sentado a olhar para ontem, à
espera de que o tempo passasse, numa sequência interminável e
monótona de dias sempre iguais, sem poder ir passear nos montes e
olhar cá para baixo, para o mundo, sabendo que o homem é insignificante. Estava
fechado dentro de si mesmo.
Scott adivinhou o tumulto que ia dentro da cabeça de Steve. No
caminho, foi fazendo observações controversas sobre os métodos de
criação de ovelhas, sabendo que Steve ia morder o isco. Ficou satisfeito quando
a voz de Steve recuperou a vivacidade, mostrando que
continuava a interessar-se por essas coisas da sua antiga vida,
pronto para voltar para elas quando se resolvesse finalmente a dar-lhes uma
oportunidade e a reconhecer que a vida não acabara.
Mas isso ia levar muito tempo.
A égua era delicada, de ossos pequenos, e era impossível saber
qual era o cavalo que a tinha coberto. Mudara várias vezes de dono
a intervalos de poucos meses e não confiava em ninguém. Veio até
ao portão e Steve pegou na cenoura que Scott lhe tinha dado e estendeu-a ao
animal. Uns beiços macios roçaram pelos seus dedos.
Soprou devagarinho na direcção das narinas do animal e a égua
voltou a cabeça e resfolegou também, percebendo que podia confiar
naquele homem. A mão dele pousou suavemente no pescoço da
égua e ele falou-lhe com voz calma e tranquilizante.
Uma voz de mulher, mesmo a seu lado, sobressaltou-o.
- Dr. Lewis, acha que o poldro vai nascer bem? E se a pobre
Ginny morrer? Que é que eu vou dizer à Sara?
- Vai ter de lhe dizer a verdade - respondeu Scott, e Steve
percebeu que a sua voz traía impaciência.
A mulher tinha uma voz aguda e irritante, petulante e parva, e
Steve antipatizou com ela mesmo sem a ver.
- Não quer sair do meu caminho? - disse ela; Steve percebeu
que a mulher estava a falar com ele.
- Desculpe - respondeu, mas desviou-se para o lado errado e
sentiu que o seu sapato batia em qualquer coisa.
- Agora pisou-me. É cego ou quê?
As palavras dela foram como que uma bofetada na cara de Steve.
- Sou - disse ele, e a aspereza do seu tom de voz não passou despercebida a
Scott. - Sou cego. Não sabia que estava tão perto.
- Coitado! Porque é que não me avisou, Dr. Lewis?
- Geralmente não é preciso - disse Steve. - A maior parte das
pessoas são delicadas.
Fez-se um silêncio.
- Vai correr tudo bem com a Ginny? - perguntou depois a
mulher.
- Vou fazer tudo o que puder - respondeu Scott. - O poldro
vai ser enorme para ela. Venho cá vê-la todos os dias e Mr. Drake
ajuda-me.
- Ajuda-o?
- Seguro-lhe na cabeça e acalmo-a - disse Steve. - Estou
acostumado a tratar de cavalos. E ela vai precisar aqui de alguém
que tenha calma.
Estava irritadíssimo com aquela mulher idiota, que não percebia
nada do animal que tinha comprado. Mas dominou-se. Era uma
cliente de Scott e não podia ser tão mal-educado como lhe apetecia.
Acariciou novamente a égua e depois deu meia volta e dirigiu-se
para o automóvel, detestando a mulher e tudo o que ela simbolizava.
Teve saudades de Mara, da sua simplicidade e sensatez.
No dia seguinte, Steve estava sozinho em Setter's Dene quando
ouviu um carro a entrar a toda a velocidade no pátio. Sentiu uns
passos rápidos e depois soou a voz de Scott.
- Steve, a Ginny está atrapalhada. O poldro começou a nascer.
Pode vir já?
Steve estava pronto para partir. Scott pegou-lhe no braço sem
cerimónia e arrastou-o para o carro. Dispararam a toda a velocidade
pelo caminho, dirigindo-se para o local onde a égua estava em trabalho de parto
só com a ajuda da mulher aterrada que era a sua dona.
Scott mandou a mulher para dentro de casa. Steve pegou no arreio da égua e
começou a falar com ela, acalmando-a, cantarolando,
passando-lhe a mão pelo pescoço, enquanto Scott tentava fugir aos
coices do animal para o examinar.
- Precisa de ajuda?
Uma voz de velho, pensou Steve.
- Gunter! Graças a Deus! Preciso - disse Scott. - As notícias
correm depressa, hã?
Gunter morava ali perto.
- Não foi nada disso. Tenho andado de olho na égua. É uma
chatice quando uma pessoa vai viver com a filha depois de ter sido
independente e de ter tido os cavalos que eu tive. Percebi logo que
esta não estava em boas mãos.
Voltou-se para Steve.
- Você trate das coisas desse lado. Vá-a entretendo.
- Se conseguíssemos atar as patas da frente - disse Scott, que
já sentia o poldro - e eu for capaz de puxar-lhe as patas de trás ...
Steve percebeu que estavam num barracão qualquer, mas havia
muitas correntes de ar, e, agora que se aproximavam as noites frias,
não era um lugar onde uma égua e um poldro pudessem ficar. A
palha do chão estava suja e encharcada. As mãos dele no pescoço da
égua pareciam reconfortar o animal. O processo do nascimento era-lhe tão
familiar que nem precisava de perguntar o que estava a
acontecer. Ouviu Scott resmungar quando as patas de trás foram ao
lugar e depois ele e Gunter tiveram uma conversa lacónica - era
quase sempre Gunter que falava - enquanto atavam as cordas.
Depois foi preciso puxar, ao mesmo tempo que a égua fazia força
para ajudar o poldro a sair. Em seguida, o animal relaxou quando o
poldro foi expulso para o exterior.
- Quem é que a cobriu, algum monstro? - perguntou Gunter. -- O poldro é quase
tão grande como ela. Mr. Drake, chegue o poldro
ao pé dela para mamar. Coitada. Isto mais parece um chiqueiro do
que um estábulo.
- Não podíamos levá-los para casa de Anna? - perguntou
Steve, empurrando a cabecinha do poldro de encontro à teta. A
cabeça da égua estava junto dele, lambendo o poldro.
- Vou tentar - disse Scott. - E estou com vontade de cobrar a
dobrar aos donos da égua. Felizmente que estava aqui você e Gunter para
ajudarem, porque senão tínhamos sarilho. Isto aqui está um
nojo. Não lhe deram uma ração de feno suplementar. E esta porcaria ... Cheire-me
isto.
Steve cheirou.
- É isso que lhe dão para comer? - perguntou, repentinamente
encolerizado. - Deviam ir presos por tratar assim do animal!
A voz que se ouviu à porta era inesperadamente mansa.
- A Ginny está bem?
- Não - respondeu Scott. - Precisa de muitos cuidados. Podia
pedir a Mrs. Leigh para tratar dela, mas ela tem muito que fazer e
tratar da égua e do poldro dá muito trabalho. Tinham de lhe pagar
bem.
- Eu pago tudo o que Mrs. Leigh quiser - disse a mulher. - Não
posso de maneira nenhuma tratar deles.
Quando ela se foi embora, Scott disse:
- Vou buscar o meu atrelado para levar a égua.
- Eu fico aqui com ela - disse Steve.
- Eu também a declarou Gunter. - A minha filha até fica
satisfeita de se ver livre de mim.
Encostou um caixote à perna de Steve.
- Sente-se aí e vá entretendo a égua, enquanto eu limpo e dou
uma arrumação a isto.
Gunter foi falando enquanto trabalhava, satisfeito
por ter público. Ninguém o escutava desde que ele vivia em
casa da filha, Mary. Os netos, não tinham paciência para ele;
Mary tinha sempre muito que
fazer, e o genro, Joe, escondia-se atrás do jornal quando
voltava para casa e depois adormecia em frente da televisão até serem horas de ir para
a cama.
- Tenho setenta e sete
anos - disse Gunter -, mas
ainda me sinto perfeitamente
capaz de trabalhar com um forcado.
Estava muito atarefado a
levantar com o forcado grandes montes de palha suja.
- O mal é parar. É da maneira que as pessoas ficam
moles e morrem mais depressa.
Você também era lavrador. Vi-o apresentar o seu cão num concurso. É um animal
absolutamente fora de série.
- Dava tudo para poder trabalhar com ele outra vez - disse
Steve, exprimindo um pensamento de que não tinha ainda falado a
ninguém.
Por qualquer razão, era fácil falar com Gunter.
- E porque não? Para isso não precisa de ver. Ele pode trazer -lhe as ovelhas.
Você desembaraçava-se muito bem e se fosse preciso também tinha sido capaz de se
desembaraçar sozinho com o
poldro. Ajudei muitas vezes as vacas a parir numa noite escura
como breu, só com uma lanterna fraca. Não é preciso ver para se ser
lavrador.
- Tenho a certeza de que não era capaz - disse Steve.
- Se fosse a si, pensava nisso. Leva tempo a aprender, mas há
muita gente tão cega como o senhor a dar muito boa conta de si.
Pode arranjar um cão-guia para o levar para a montanha. Tem nariz,
ouvidos, braços e pernas e sabe muitas coisas que aprendeu à sua
custa. Não leve a mal - acrescentou Gunter. - Não quero de modo
nenhum ofendê-lo.
- Eu sei - respondeu Steve.
Gunter aceitava-o como ele era. Não se apiedava dele, mas tinha
uma mensagem a transmitir-lhe: "Anda para a frente, rapaz, não percas tempo a queixar-te.
- Acho que o melhor é voltar para casa da minha filha - disse
Gunter.
- Venha conversar comigo quando tiver tempo. Gosto de falar
das coisas do campo e a Anna nunca tem tempo.
- Pois tempo é o que não me falta - declarou o velhote. De
repente, pareceu ficar ansioso. - Quer mesmo que eu o vá visitar?
- Claro! É um favor que me faz.
- Até me parece mentira - comentou Gunter, sorrindo abertamente.
Steve ouviu o motor de um cano e saiu para a rua. Sentiu o calor
do Sol na cara. Teve uma breve sensação de alegria, cheirou as
flores e, pela primeira vez desde o desastre, sentiu-se relaxar.
- Lá vem o Dr. Lewis com o atrelado - disse Gunter a seu lado.
Steve ouviu o passo dançante da égua a subir a rampa. Voltou-se
para procurar o poldro e levou-o até ao atrelado. Sentia-se satisfeito
por ter conseguido ser útil e essa satisfação durou até à noite, à hora
a que Gunter bateu timidamente à porta e entrou para conversar.
Anna tinha saído para ir ver a mãe de Susan, que estava doente com
bronquite. Steve, tomando o café que Anna deixara para eles, entrou
num mundo que lhe parecia agora muito remoto, falando das ovelhas e do preço da
lã.
Nessa noite, dormiu profundamente e acordou pensando na próxima visita de
Gunter. O velhote tinha prometido vir todos os dias.
Iam explorar juntos o mundo real que Steve deixara para trás, lá na
montanha.
Steve tinha vontade de escrever a Mara e pedir-lhe para vir vê-lo e passar a
vida consigo. Não podia viver sem ela, mas pensou que
ela tinha de se habituar a viver sem ele, que havia de arranjar outro
homem, um homem completo, um homem com vista, que lhe pudesse oferecer as coisas
que ele sonhara antigamente dar-lhe. Enviava-lhe mensagens curtas, pois tinha a
certeza de que Mara só lhe
escrevia para o animar e não porque quisesse passar a vida ao lado
de um homem cego e inútil.
Foi Anna quem escreveu a Mara, dizendo-lhe que Steve andava
a aprender braille e que já a ajudava em casa. Steve só lhe ditava
palavras destituídas de emoção, palavras sem esperança. "Passa
bem." "Diverte-te." Palavras que magoavam Mara, pois parecia
que ele tinha mudado, que já não precisava dela.
uma manhã, Sue veio ler para ele e escolheu o poema de John
Keats La Belle Dame sans Merci. Era difícil arranjar livros para ler
a Steve, e Sue tinha tendência para escolher as suas próprias leituras
preferidas.
Steve ouvia-a distraidamente, até que a terceira estrofe lhe chamou a atenção:
Encontrei uma dama nos prados.
Tão formosa - filha de fada,
Cabelo longo, pé ligeiro
E olhos selvagens.
A memória, essa câmara implacável da mente, passou um filme
diante dos seus olhos.
A voz era a de Mara. Sue tornou-se mal. O perfume que flutuava no ar também era
o de Mara e ela estava ali a seu lado, lendo-lhe em voz alta. Mas afinal não era
ela, não estava ali. Teve uma
saudade intensa do passado, de Mara a seu lado, olhando para ele,
rindo-se para ele. Costumavam rir tanto juntos.
Teve vontade de gritar a Sue que se calasse, mas a voz dela continuou a ler, sem
dar pelo sofrimento que estava a causar:
E por isso aqui permaneço
Só, lii?idamente vagueando,
Embora no lago os juncos estejam murchos
E as aves não cantem.
Estava perdido, perdido como o cavaleiro enfeitiçado pela fada.
Expulsara Mara da sua vida e tornara-se inimigo de si mesmo.
A sua determinação estava a vacilar. O telefone da entrada podia
pô-lo em contacto com ela num ápice. Podia telefonar-lhe e dizer:
"Vem, vem e ajuda-me." Mas prometera a si mesmo que a sua deficiência seria da
sua responsabilidade exclusiva; não seria um fardo
para ela; tinha de enfrentar a vida sozinho.
- Mas que maneira tão pouco indicada para animar uma pessoa
- disse a voz de Gunter lá da porta. - Está um lindo dia de Primavera, um tempo
maravilhoso, bom para um homem sair para a rua, e
não para ficar sentado dentro de casa a sonhar com poesia. Desculpe, Sue. Sei
que a sua intenção é boa.
- Está bem, Gunter. Então anime-nos o senhor - disse Sue. -- Este livro está
cheio de poemas como este e a única coisa que eu
queria era ler um ao Steve e depois dar-lhe o livro para a lição.
- Só pontos e traços, parece morse - observou Gunter, examinando o livro.
- São só pontos - declarou Sue.
- Mais valia arranjar um cão para guiá-lo e voltar para as suas
ovelhas - disse Gunter.
- Quem é que disse que eu vou arranjar um cão e que vou voltar? - perguntou
Steve, saindo bruscamente da sua apatia.
Gunter sentou-se.
- Sou eu que digo. Porque é que há-de desperdiçar tudo o que
sabe? Lá na sua quinta pode ensinar um pastor ou uma dúzia de
pastores. Pode levar para lá rapazes que andem a estudar para veterinários para
o ajudar, e ia-os ensinando ao mesmo tempo. Nunca
tive paciência para pessoas que não são capazes de reagir e é o que
você está a fazer. Case com essa rapariga que lá deixou; a única
coisa que lhe falta são os olhos.
- É muito fácil falar - disse Steve, ficando subitamente irritado,
porque as outras pessoas estavam sempre a querer planear o futuro
dele.
- É fácil falar, pois - disse Gunter. - E ainda é mais fácil ficar
aí sentado a pensar que é muito infeliz. Olhe, meu amigo, vou dizer-lhe uma
coisa que nunca disse a ninguém. Aqui a Sue sabe calar a
boca, nunca fala dos outros. Por isso, confio nela como confio em si.
O meu pai não prestava. Embebedava-se todas as noites, e quando
estava sóbrio era mau como as cobras. Foi para a cadeia porque
matou um homem quando eu tinha nove anos, e o meu tio levou-nos
para casa dele, para os montes do Yorkshire.
Sue estava a fazer café para os três sem dizer nada. Gunter contemplava
admirativamente os movimentos hábeis dela. Nem se percebia que era cega.
- O meu tio pôs-me a trabalhar como ajudante de pastor. Foi o
velho Joe quem me ensinou tudo o que eu sei. Eu sonhava com ovelhas, só pensava
em ovelhas e ensinei um cão. Casei-me e fui pastor
numa grande herdade. Foram bons tempos. Tivemos dois filhos.
Depois nasceu outra, que não tinha o juízo todo. Viveu dezassete
anos como se fosse um bebé, a nossa Stella. Era a rapariga mais
bonita que eu já vi em toda a minha vida. Não andava nem falava. E
quando morreu, a minha mulher foi-se abaixo. Apanhou uma gripe,
depois teve uma pneumonia e pronto. A seguir veio a guerra e o
nosso filho Jack foi combater e não voltou.
Começou a beber o café, entregue às suas recordações. Steve, ao
ouvi-lo, começou a achar que os seus problemas afinal não eram tão
importantes como isso.
- Poupei dinheiro durante todos esses anos, para ter a minha
própria lavoura, e consegui arrendar uma propriedade. Comecei a
criar ovelhas. E eram boas, ganharam muitos prémios. Mas um dia
expropriaram a terra para construir um bairro camarário. Nunca
construíram nada, mas puseram-me fora da minha terra. Passo todos
os dias pela propriedade, a casa está a cair. É um mundo de loucos,
mas temos de fazer tudo o que podemos e lutar até ao fim. Combater! Escrevo
cartas à Câmara. Nunca me respondem, mas digo-lhes
tudo o que penso. Você do que precisa é de uma mulher e de um cão-guia e das
suas terras, Steve. Foi para isso que nasceu, amigo. O que
eu não dava para me apanhar outra vez nas minhas terras! Mas é
melhor não pensar nisso. Posso ir passear e olhar para as ovelhas.
Posso ir tomar uma cerveja ao serão. E ainda posso cantar e jogar
aos dardos e olhar para umas pernas bonitas. Só olhar, claro.
Steve e Sue riram ambos e de repente Steve ficou mais bem-disposto. A história
de Gunter tinha-o impressionado. A vida era uma
anedota sem graça, mas o melhor ainda era rir.
Quando Anna voltou, encontrou Gunter e Sue a cantarem em
coro velhas canções e juntou-se a eles. Steve, ouvindo-os na brincadeira,
descontraiu-se, sorrindo de si para consigo. Tinha Sukie
empoleirada no ombro, encostada ao pescoço, amassando alegremente com as
patinhas o casaco dele, toda contente com a música.
Juntou-se também ao coro.
Dave Masterson, que vinha a subir o caminho, ouviu-os cantar.
- Tem uma bela voz - disse a Steve quando entrou. - Temos
um lugar para si. Vai haver um concerto no Centro e com essa voz a
casa vem abaixo. Venho cá buscá-lo para os ensaios. Já cantou nalgum coro a
sério?
- Nunca tive tempo - disse Steve. - Mas cantava no coro da
minha escola. Depois disso, só cantei no banho ou nos montes. O
Lig costumava ladrar ao eco.
Era a primeira vez que falava de Lig sem sofrimento.
Nessa noite, Steve pediu a Anna que escrevesse a Mara, pedindo-lhe para ir até
ao Convento ver se o novo rendeiro estava a
tratar bem da propriedade, e escreveu ao pai pedindo-lhe informações sobre o
arrendamento, para o caso de ele querer voltar. Anna,
escrevendo aquilo que ele ditava, estava encantada e pensou que a
mudança talvez se devesse também em parte à influência dela, para
além da de Gunter.
- Posso pedir-lhe para me ajudar a descarregar os fardos de
feno da carrinha? - perguntou. - Basta levá-los até ao canto do
celeiro do fundo. Gostava de poder semear o campo grande, mas
sem o Dan é impossível.
Steve dedicou pela primeira vez a sua atenção aos problemas de
Anna. Pensou na vida solitária que a esperava e na boa disposição
constante com que ela o tratava. Depois pensou em Mara. Escrevia-lhe todos os
dias, falando do Pelotão Amotinado, mas nunca da
vida dela. Que vida seria a dela? Só agora, que estava a acordar para
os outros, com a sensação de ter estado doente durante muito tempo
e de ter entrado há pouco tempo em convalescença, é que percebia
como tinha sido cruel para ela. As palavras de Gunter eram muito
sensatas e perguntou a si mesmo se ela estaria à espera de que ele
regressasse a uma vida o mais normal possível. Percebeu que ainda
podia passear nos montes, talvez com Mara a seu lado, cheirar o ar
salgado trazido pelo vento e ouvir as ondas e os maçaricos a piar.
Tinha-se condenado a si mesmo à morte em vida, mas ainda tinha
futuro se estivesse disposto a lutar por ele.
- Gostava de arranjar um cão-guia - disse de repente a Anna.
- Acha que me arranjam um rapidamente?
Anna olhou para ele e respondeu numa voz muito alegre:
- Estou tão contente, Steve! Estávamos só à espera de que você
se resolvesse. Já tínhamos decidido há muito tempo que a Gemma
era para si, assim que ouvimos falar de si no Centro e que soubemos
que era lavrador. Os alunos de Mara, do Texas, juntaram o dinheiro
para o cão e Mara tem estado à espera da sua decisão para lhes escrever a dizer
que você vai ficar com a Gemma. Já a adoptaram, a ela e
a si.
Era uma sensação agradável: o Pelotão Amotinado, lá nos Estados Unidos, a juntar
dinheiro para o ajudar.
- Tenho de lhes escrever - declarou Steve. - Vai ser já amanhã.
Estava outra vez a começar a fazer planos. Era o princípio da
recuperação.
CAPÍTULO 8
MARA OLHAVA para Hennessey, que atravessava o pátio, dirigindo-se para ela, numa
linda manhã de Primavera, com um borrego debaixo do braço e o cajado na mão
esquerda. Os seus olhos azuis fitaram-na por debaixo do velho chapéu de feltro
que nunca tirava, nem
de Inverno nem de Verão, dentro ou fora de casa.
- Algum problema? - perguntou ela, pois conhecia bem aquela
expressão.
- Os malditos cães mataram a ovelha. Se eu tivesse uma espingarda ..
- O melhor é pô-lo ao pé dos outros - disse Mara.
Já havia três borregos no celeiro, alimentados a biberão e
mansos demais para o gosto dela.
- Está na altura de tirar um dia de descanso - disse Hennessey.
- Não vale a pena dar cabo de si, rapariga.
- Não tenho mais nada que fazer - respondeu Mara desanimadamente. - Ontem fui
falar com o médico de Steve. Tinha esperanças de que eles o pudessem operar para
lhe restituir a vista, mas
ao fim de um ano ainda tem um olho inflamado, lá muito no fundo,
e não se atrevem a mexer-lhe. É por isso que ele tem de continuar a
fazer tratamentos. Se a inflamação passar, talvez possam fazer qualquer coisa.
Mas o especialista receia que não passe e que vá de mal
a pior. Nessa altura, nunca mais podem fazer nada. Steve ficou cego
para o resto da vida e pronto.
- Não é o primeiro lavrador que é cego. A menina, Steve e eu
formamos uma equipa. Ele devia saber que a menina nunca vai
mudar de ideias.
- Não sei se ele me conhece assim tão bem - disse Mara.
Ficou a olhar para Hennessey, que foi pôr o borrego no celeiro.
O velho assobiou a Lig, que estava à espera das suas ordens, e saíram os dois do
pátio. Mara voltou para casa.
- Uma carta para si - gritou o caneiro, espreitando por cima
do muro. - Como é que está Steve? - perguntou depois.
- Está óptimo - disse Mara. - Daqui a pouco, volta para casa.
Fez figas. Não era mentira.
O caneiro acenou-lhe e montou-se na bicicleta, e Mara foi para
a cozinha com a carta. Tinha sido enviada para sua casa primeiro e
reexpedida depois para ali. Sentou-se e abriu-a relutantemente,
sabendo que não traria novidades.
Era uma carta muito mais comprida do que de costume, ditada
pelo próprio Steve. Leu-a devagar. Depois releu-a e correu para a
rua para dar a novidade a Hennessey, com um grande sorriso. Era a
primeira vez que ele a via sorrir alegremente de há um ano para cá.
Ficou à espera, encantado, franzindo a cara toda num sorriso que lhe
acentuava as rugas.
- Boas notícias, menina?
- Steve quer que eu lhe diga quem é que arrendou o Convento e
em que condições, porque vai arranjar um cão-guia e acha que vai
voltar e trabalhar aqui. Pode meter cá estagiários para lhes ensinar
ovinicultura, tem estado a ajudar a Anna com os animais e conheceu um criador de
ovelhas chamado Gunter ... Vamos comemorar
isto, Hennessey. Vou tomar um xerez e você também!
De repente, mudara completamente, era um furacão, ria ao
mesmo tempo que deitava o xerez nos copos, passeava pela cozinha
para a examinar, estudando as coisas que Steve tinha começado a
fazer e que ela podia acabar, espreitava Lig, pacientemente deitado
lá fora, à espera de ser necessário.
Escreveu a Steve, respondendo à sua carta.
Querido Steve
Não te disse nada, mas sou eu que estou a morar no Convento e
a tomar conta de tudo até tu voltares para casa. O Hennessey veio
ajudar-me e só queria que visses o rebanho. Acho que as coisas estão todas como
tu as costumavas ter. O meu jardinzinho está lindo
e plantei alfazema e alecrim.
Também estou a criar gatos. Tenho dois camelos. Agora vivem
dentro de casa, mas podemos construir-lhes uma casota lá fora,
mais tarde. Sei que não gostas de gatos dentro de casa.
Estou a dormir na tua cama. Era mais fácil do que comprar outra
para o quarto de hóspedes e de qualquer maneira espero que vás
casar comigo! O meu vestido de noiva está à espera.
O Lig está óptimo e eu também.
O Pelotão Amotinado já escolheu o teu cão há que tempos.
Mandaram-me um retrato da Gemma. É linda ...
STEVE ouvia Anna a ler-lhe a carta de Mara. Então era ela que
estava a morar no Convento, a dirigir a exploração, à espera dele. E
ele que pensava que Mara estava ocupada com outras coisas, que o
esquecera, que lhe escrevia por obrigação. Pelo contrário, estava a
continuar a obra dele.
Os pensamentos atropelavam-se na cabeça de Steve. Mara não
queria o sacrifício dele; estava ela própria a sacrificar-se. Tinha
obrigação de conhecê-la melhor! De repente, sentiu-se invadido por
uma alegria esfuziante, achou que afinal a vida dele sempre tinha
um futuro, começou outra vez a fazer projectos, visualizando o
Convento e o seu lugar aí, com Mara a seu lado, completando as suas
capacidades. Porque ele ainda tinha capacidades. Tinha um cérebro
e podia usá-lo, e não era aleijado nem viria a sê-lo.
- Pode fazer um telefonema para o Convento? - pediu a Anna.
Anna nem se atreveu a fazer comentários. Marcou o número e
entregou o auscultador a Steve, que ficou ansiosamente à espera,
quase sem se dar conta de que Anna saíra e fechara a porta.
- Mara?
Fez-se um silêncio. Depois ouviu um "Steve!" incrédulo.
- Dentro de seis meses vou para casa - disse Steve.
Não era capaz de dizer nem metade das coisas que queria, principalmente ao
telefone. Nunca fora um homem de palavras doces e
declarações de amor.
- Olha, cara linda, podes começar a tratar de tudo. Casamo-nos
assim que eu voltar.
- Queres que eu vá aí ver-te? - perguntou Mara. Tinha muitíssimo que fazer, mas
arranjava tempo. - Passar um fim-de-semana,
por exemplo?
- Não. Prefiro que fiques aí. Mas estou pronto para o cão e
quanto mais depressa mo derem, mais depressa vou para casa. Tenho de aprender
n?uitas coisas. Mas vou aprender depressa. Mas
telefona-me, Mara. Sempre que puderes.
A voz de Steve era jubilosa.
Anna, que estava lá fora a tratar dos cães, também ficou jubilosa. Steve estava
finalmente a fazer progressos. Mas quando ele se
mudasse para o Centro com Gemma, ia ficar outra vez sozinha. De
repente, foi invadida pela tristeza. Não podia entrar em casa agora.
Steve tornara-se tão sensível ao estado de espírito das pessoas que
percebia imediatamente como ela se sentia, mesmo sem lhe dizer
nada, e o mesmo acontecia em relação a Sue. Graças a Steve, Anna
percebera que Sue não estava sempre tão bem-disposta como aparentava. Nos dias
em que os caprichos da mãe eram mais difíceis de
aturar, vinha falar com Steve.
Já tinha pensado se Sue e Steve não estariam bem um para o
outro, mas tinha uma impressão muito nítida de que Sue só estava
interessada em Dave Masterson. E não pareciam ter futuro enquanto
a mãe de Sue fosse viva. Sue não tinha tempo para mais ninguém e
estava muito presa.
Nesse instante, Dave entrou pelo portão.
- Steve está outra vez noivo - disse Anna, e depois as lágrimas começaram a
correr-lhe pelas faces.
Dave pôs-lhe o braço por cima dos ombros.
- Que foi, Anna?
- Nada. Steve vai-se embora e eu sinto-me inútil.
Estava furiosa consigo mesma por ter revelado os seus sentimentos a Dave, que já
tinha problemas de sobra.
- Está a fazer um óptimo trabalho, Anna - disse Dave. - Mais
ninguém o podia fazer. Precisamos da sua experiência. Ajudou
muito mais Steve do que qualquer de nós. Não pode pensar isso de
si. Vai haver outras pessoas para ajudar.
Anna sorriu-lhe e voltou para o seu trabalho, mais animada.
Dave entrou em casa.
- Então, já sei que finalmente ganhou juízo - disse a Steve. -- Gemma está à sua
espera, já a conhece.
- Nem por isso - respondeu Steve.
Gemma fora-se embora para ser ensinada quando ele ainda mal
tinha consciência do que se passava à sua volta. Mas, apesar disso,
não ia ser difícil de trabalhar com ela - tinha a certeza. Não havia
nenhum cão que pudesse levar a melhor a Steve.
Gemma era tão boa aluna como Dave esperava. Saía com ela
todos os dias, passeando muitas vezes pelo meio das ovelhas e dos
cavalos. Anna havia-a ensinado a atravessar a rua - ficar à espera
até não vir nenhum carro -, mas agora tinha de aprender outras manobras mais
complexas. Levaram-na para uma rua sossegada, onde
puseram uma carnnha a andar para cima e para baixo, parando à
frente de Gemma quando a cadela estava a preparar-se para atravessar a rua,
entrando para um portão quando ela se dirigia para lá e
fazendo inversão de marcha quando parecia que ia andar para a
frente. A cadela aprendeu a dar atenção até às bicicletas mais silenciosas e a
avaliar a velocidade dos veículos e a distância a que se
encontravam.
Andou de autocarro e de comboio, levando Dave até à estação ou
à paragem de autocarro. Levaram-na para a beira-mar e passeou
num cais num dia de muito vento, com as ondas a rebentarem com
força no paredão. Habituou-se a entrar sem receio em lojas grandes
e pequenas. E, devido à profissão de Steve, levaram-na também a
feiras de gado e ensinaram-na a andar pelo meio dos cercados e a
ficar quieta enquanto os animais eram leiloados.
- É um animal fora de série - dissera Dave a Sue, que era quem
costumava experimentar os cães-guias nos seus primeiros contactos
com os invisuais. Gemma passou todos os exames com a nota máxima.
Estava na altura de Gemma conhecer Steve.
E TAMBÉM estava na altura de Steve se ir embora de casa de
Anna. Tinha de tirar um curso a tempo inteiro, mais difícil do que
ele pensava. Agora tinha de ir para um lugar estranho e coabitar com
mais sete cegos, vivendo num contacto mais íntimo com eles do que
o que tivera com qualquer outro grupo de pessoas desde que saíra da
escola. E tinha de aprender a lidar com Gemma.
Anna foi levá-lo ao Centro.
- Vou ter saudades suas - disse. - Felicidades, Steve.
- Obrigado por me ter aturado - respondeu Steve, segurando-lhe na mão, desejando
poder ver a cara dela. Tinha sido uma mãe
para ele, sem andar muito em cima dele, aturando-lhe os humores e
ajudando-o a reconquistar a sua independência. Sentiu-se muito
sozinho quando ouviu o carro afastar-se.
Mas depois Dave veio recebê-lo, uma pessoa conhecida para o guiar até ao quarto. Havia mais dois homens e cinco mulheres a frequentarem o
mesmo curso de Steve.
- Três são velhos e cegaram devido a doenças várias relacionadas com a idade -
disse Dave. - Há um rapaz que é cego de nascença; só agora é que foi possível
arranjar-lhe um cão. Há uma
mulher que está à espera há dois anos. Tem um metro e meio de altura, por isso
precisávamos de um cão pequeno, e só agora é que
conseguimos ensinar um que prestasse. Depois, é você e um jovem
corredor de automóveis que cegou num desastre. A última é a directora de uma
escola. Acho que vai criar problemas. Parece-me que é
uma daquelas pessoas que sabem sempre tudo melhor do que os
outros.
Steve ficou admirado quando descobriu que, se Gemma fosse
mais pequena, seria entregue a outra pessoa. Ele era alto e precisava de um cão
grande. Mas Gemma tinha saído a Sam, e não a
Mellie, sob esse ponto de vista.
- Como é que ela é? Parece-se mais com um labrador ou com
um retriever? - perguntou Steve.
- Tem pêlo, cabeça e cauda de retriever. Aliás, acho que toda a
gente, menos os especialistas, pensa que ela é um retriever puro. -- disse Dave.
- É tão bonita que as pessoas param na rua para lhe
fazerem festas. Mas isso não é permitido quando ela está a trabalhar.
A primeira refeição no Centro foi difícil. Steve sentia-se mal no
meio dessas pessoas que não conhecia e que nunca poderia ver. A
conversa foi dominada pela directora da escola, que falava muito
alto, num tom de voz afectado que irritava extraordinariamente
Steve.
- É claro que, quando tiver o meu cão, posso voltar para a escola e viver no
meio das pequenas, sem qualquer problema - declarou a certa altura.
Uma voz doce disse baixinho ao ouvido de Steve:
- Não vai ser óptimo?
Ele riu-se:
- Chamo-me Steve Drake - disse. - Sou lavrador. Era, pelo
menos - acrescentou num tom de voz mais grave.
- Eu chamo-me Lynn Ferguson. Era bailarina - disse a rapariga
sentada ao lado dele. - Estava a ver uma exposição quando uns terroristas
puseram uma bomba.
Falou com naturalidade. Vivia com a sua cegueira há dois longos
anos, mas apesar disso tinha uma voz risonha. Rira da mulher que
irritava Steve e agora estava outra vez a rir.
- Para que é que nos deram ervilhas? - perguntou. - Tenho o
colo cheio de ervilhas. O melhor era darem-nos uns pratos de cão e
nós púnhamo-nos de gatas e comíamos no chão. Cá por mim, desembaraçava-me muito
melhor.
A gargalhada de Steve ecoou na sala, e Dave voltou a cabeça,
surpreendido, para olhar para ele. Nunca tinha ouvido Steve rir tão
gostosamente.
- Conte-nos lá qual é a graça - pediu.
- Lynn está a entornar ervilhas para todos os lados. Diz que o
melhor era comermos no chão, como os cães.
Toda a gente se riu, menos a dona da voz forte.
- Que ideia nojenta - declarou ela.
Mas tinham quebrado o gelo e não lhe deram importância.
Mais tarde, ao serão, conversando com Lynn, Steve viu que ela
estava sempre a brincar com a sua cegueira.
- A minha mãe ficou destroçada - disse Lynn. - Por isso, tive
eu de ser corajosa. Ela tinha feito tantos projectos para a minha
vida. Se tiver filhos, não faço projectos para a vida deles. É uma
grande responsabilidade para eles.
- Vai casar? - perguntou Steve.
- Sim. Estou noiva. Larry estava comigo na exposição. Ficou
sem uma perna. Mas agora tem uma perna artificial e está a aprender a andar. Não
sabemos se é o coxo que vai guiar o cego ou vice-versa.
Nessa noite, deitado num quarto estranho, sentindo-se de repente como se tivesse
sido apanhado numa armadilha, Steve esforçou-se por pensar em Lynn. Tinha vinte
e dois anos e cegara de uma
maneira ainda mais estúpida do que ele. Ao menos, ele ainda sabia
que tinha salvo da morte cinco crianças e uma mulher.
- Tive sorte - ouvira-a Steve dizer a outra pessoa. - Algumas
das vítimas da bomba morreram e outras ficaram muito pior do que
eu. Posso ouvir música e passear ao sol; posso casar e ter filhos. E
sempre quis ter um cão, mas dantes nunca estava em casa e não
podia tomar conta dele.
As primeiras lições, no dia seguinte, não foram novidade para
Steve: como tratar do cão e alimentá-lo, os cuidados a ter com o
animal, o exercício, como falar com ele para o elogiar ou repreender.
- Nunca ralhem com um cão que volta para junto de vocês,
mesmo que esteja todo coberto de lama - disse Dave. - O cão
esqueceu-se de tudo o que fez. Só sabe que correu ao vosso encontro e que lhe
ralharam por causa disso. E da próxima vez é possível
que não venha.
No terceiro dia, mandaram toda a gente para os respectivos quartos à espera dos
cães. Steve ficou sentado, sabendo que Gemma só
ao fim de muito tempo seria realmente o seu cão. Anna fora o seu
primeiro pormenor e Dave o seu treinador no Centro, que conquistara o
seu respeito. Um cão que tinha um passado não entregava assim a
sua confiança de um dia para o outro, e alguns nunca o faziam. Podia
ser que isso acontecesse com Gemma e, nesse caso, Steve voltava à
estaca zero. Pensou se Gemma se lembraria dele e sentiu-se tão
excitado como um adolescente que sai pela primeira vez com uma
rapariga.
Nessa altura, ouviu o ruído das patas do animal por detrás da
porta. Esta abriu-se e Dave disse:
- Aqui está ela. Faça-lhe uma recepção entusiástica, Steve.
A porta fechou-se novamente e Steve ficou sozinho com o seu
novo cão.
- Gemma - chamou.
A cadela aproximou-se cautelosamente. Farejou com o seu focinho frio o fato de
Steve e depois a sua mão. Era Anna quem tratava
do fato dele; e Sam e Mellie costumavam encostar-se a Steve. Gemma reconheceu-o: abanou o rabo, correu para ele e pôs-lhe as patas
nos ombros. Depois, encostou-se a Steve e deixou-se acariciar.
Steve recostou-se na cadeira, com o seu novo cão ao lado. Nesse
momento, sentia-se livre, tranquilo e em paz. Pensou outra vez em
Lynn, brincando com a sua cegueira, fazendo projectos para o futuro.
- Temos muito que aprender, pequena - disse, e Gemma bateu
com o rabo no chão com força.
CAPÍTULO 9
ERA muito fácil entender-se com Gemma quando estavam a brincar.
Mas no trabalho a coisa era muito diferente, como Steve teve ocasião de
verificar. Gemma estava muito bem-disposta da primeira
vez que ele a escovou, brincando com a escova e irritando-o de tal
maneira que ele lhe falou em voz ríspida - a voz com que punha Lig
na ordem.
A cadela fugiu-lhe imediatamente.
Começou a tactear no cubículo onde estava a escovar o cão, e
Dave, ouvindo-o chamar "Aqui, Gemma, aqui", acorreu imediatamente.
- Ela está a fugir de si - disse. - Que é que lhe fez?
- Estava a fazer-se de parva e ralhei com ela - respondeu Steve.
- Fugiu.
- É uma cadela muito sensível - disse Dave. - Basta modificar ligeiramente o tom
de voz quando quer ralhar com ela. Ouça.
Anda, Gemma. Minha linda, vem cá.
- Não estou habituado a cães sensíveis - disse Steve, irritado,
prevendo dificuldades. - Sempre mandei nos meus cães.
- Não se esqueça de que a Gemma não é o Lig e de que não é um
collie. Está ansiosa por lhe agradar, é muito submissa sob certos
aspectos, mas também é capaz de tomar uma iniciativa quando surgir qualquer
coisa que a obrigue a usar a cabeça. Vai ter de aprender
tudo outra vez, Steve. Agora você não é o treinador. Ela é que o vai
ensinar. Achei que não ia ter dificuldades com a sua prática. Mas,
pensando bem no que me disse do Lig, se calhar a Gemma não é o
cão que lhe convém; não pode ser tratada com dureza. Precisa de
uma pessoa muito carinhosa.
- Surgem sempre estes problemas? - perguntou Steve, desanimado.
- Constantemente. É um desafio, para si e para mim. Tenho de
lhe ensinar tudo de novo e você tem de aprender que as raças são
diferentes. Ainda se vai orgulhar da Gemma, se a deixar fazer o que ela sabe. E agora tenha cuidado com o tom de voz e não seja ríspido
com ela. Ela não suporta isso.
Ao fim do dia, Steve começou a pensar no que se tinha passado
durante a manhã. As coisas não tinham corrido lá muito bem. Não
estava habituado a que o cão andasse à frente dele; apetecia-lhe
fazer estalar os dedos para obrigá-la a vir para trás dele, como Lig
costumava andar. Além disso. não via Gemma e o arreio parecia
afastá-la ainda mais dele. Estava agarrado ao arreio como uma
criança ao de um cavalo de baloiço. Várias vezes, quando Gemma
parou, falou-lhe numa voz mais ríspida do que tinha intenção de o
fazer. Nunca se tinha dado conta de que precisara de usar uma voz
muito severa para disciplinar Lig.
- Isso assim não pode ser - dissera Dave, desesperado, quando
Steve se recusara a avançar na altura em que Gemma tentava andar
para a frente. - O seu tom de voz é muito severo. E está a atrapalhá-la. Confie
nela, por amor de Deus, ela sabe quando é que o caminho
está desimpedido. Podia perfeitamente ter atravessado ali.
Estavam num dédalo de ruelas intrincadas, próximas do Centro,
no meio de veículos de treino, que andavam lentamente para cá e
para lá. Steve tinha a certeza de que vinha lá um carro, que afinal
estava a passar na outra rua. Tinha parado de repente, dizendo
"Não, Gemma!", certo de que a cadela o estava a conduzir para a
morte.
Foi muito cansativo e, quando voltaram para o quarto, Gemma
não foi para perto dele. Deitou-se encostada à parede, olhando-o
ansiosamente, receosa de que ele a repreendesse novamente. Steve
ficou sentado, sem saber o que fazer, não querendo chamá-la, pois
tinha medo de a assustar ainda mais, e certo de que nunca seria
capaz de se entender com a cadela. Iam ter de lhe arranjar outro
animal, um cão menos susceptível, e teria de recomeçar tudo de
novo.
Dave entrou no quarto e encontrou Steve recostado na cadeira
com uma expressão sombria e de punhos cerrados, lutando contra a
sensação de desespero total que o tinha invadido. Olhou para
Gemma, que agitou a cauda, mas sem deixar de olhar ansiosamente
para Steve. Tinha de arranjar maneira de conseguir que os dois se
entendessem.
O JANTAR foi uma refeição triste. Toda a gente estava com dificuldades. Todos
haviam tido pelo menos uma experiência decepcionante.
Dave, que já acolhera muitos grupos como aquele, sabia que as
coisas se passavam sempre da mesma maneira. Mas andava preocupado com Lynn, que
estava muito nervosa e cujo cão sentira isso
mesmo. Também estava preocupado com Steve e não tinha paciência para a directora
da escola, que fora desagradável para ele e para
o cão; não tinha a certeza de lhe poder confiar um cão.
Até Lynn estava desanimada.
- Estava certa de ter razão - disse, contando a Steve que tinha
caído por uns degraus. - A minha Meggie parou, mas eu não sentia
nada à minha frente. Sou sempre capaz de pressentir os obstáculos,
e não havia ali nada. Por isso avancei e dei um trambolhão pelos
degraus. Estou cheia de nódoas negras em sítios impossíveis!
- Teve sorte de não partir nada - disse Dave. - Tem de confiar na Meggie. Ela é
muito bem capaz de tomar conta de si. E nenhum de vocês está a elogiar como deve
ser os vossos cães. Não vale
a pena trabalhar para uma pessoa que nunca nos diz que fizemos um
bom trabalho, e os cães desistem se vocês não os elogiarem.
- Já somos suficientemente ridículos assim - disse a directora
da escola - sem nos pormos a falar com os nossos cães ainda por
cima.
- Eu gosto de falar com o meu cão - replicou Lynn. - Só que
não sou capaz de lhe falar com a voz que deve ser. Precisava de ter a
sua voz, Steve, e você se calhar precisava de ter a minha. Esta
manhã ia a correr atrás da Meggie a noventa à hora e não era capaz
de a fazer parar. Ela não me liga nenhuma. Fartei-me de lhe dizer
"Não, Meggie. Devagar, Meggie. Por amor de Deus, Meggie". Mas
esqueci-me de tudo o que Dave nos ensinou e tive de correr atrás
daquele cão maluco, até ao rio, ou não sei onde. A Meggie deve ter
visto um gato e esqueceu-se de tudo o que aprendeu.
- Não. Você é que se esqueceu de tudo - disse Dave. - Tenho
aqui um gravador e vou gravar as vossas vozes a falarem com os
cães. Depois, podem ouvir outra vez e esforçarem-se por fazer melhor.
Steve, ouvindo a sua gravação, à noite, percebeu de repente
porque é que Gemma tinha medo dele. A sua voz não era só autoritária; tinha uma
rispidez que nunca tivera a falar com Lig, exprimia
a sua frustração consigo mesmo e o seu ressentimento perante a
dependência em que estava em relação ao cão.
- Não me pode emprestar o gravador? - perguntou a Dave. -- Gostava de treinar.
- Pode ensinar Lynn e ela ensina-o a si - disse Dave. - Vai ter
de trabalhar muito mais com a Gemma para ela recuperar a confiança em si.
Entendia-se muito bem consigo antes de começarem a
treinar.
Steve habituou-se a fazer equipa com Lynn todos os dias, ouvindo as ordens dela
e ela as dele.
- Está a falar com ela como se estivesse zangado, Steve - dizia
Lynn. - Tem de ser mais meigo.
- Não é assim - dizia-lhe Steve, por seu turno. - A Meggie
tem de a guiar, mas também de lhe obedecer.
- Vocês não podem trocar de cão - dizia Dave -, por isso o
melhor é habituarem-se aos vossos.
Gemma continuava hesitante. Dave veio ao quarto de Steve com
uns bocadinhos de fígado bem cozido.
- Brinque com ela. Chame-a e dê-lhe de comer sempre que ela
vier - disse. - E veja se se divertem os dois, não esteja sempre tão
sério. Não leve tudo tanto a peito.
- Isso é fácil de dizer - retorquiu Steve, furioso.
- Isso é que não é, amigo - disse Dave, repentinamente irritado.
- Sofro imenso com cada novo grupo, e tenho muitos problemas
com eles. Todos vocês estão fechados dentro de vocês mesmos; é
claro que sofrem mais do que eu posso imaginar, mas isso às vezes
vê-se, e custa-me muito. Lynn ri-se, mas você não vê que ela tem os
olhos vermelhos todas as manhãs, porque passa metade da noite a
chorar. E um homem que aqui esteve no ano passado bebia como
uma esponja todas as noites. Não lhe pudemos dar o cão. E saltou do
comboio quando foi para casa. Como é que acha que eu me sinto
quando essas coisas acontecem? Às vezes, custa tanto que a minha
vontade é desistir. Você tem mais sorte do que muitos dos outros;
tem uma casa, um emprego, uma mulher à espera para casar consigo. Por isso, faça
o possível por se entender com o cão!
Dave saiu, atirando com a porta. Steve ficou a pensar. Dave tinha razão - ele
não estava a esforçar-se muito. Tinha de esquecer
Lig. Estava convencido de que sabia tudo e agora via-se atrapalhado; aquele
animal tão meigo confundia-o.
- Ora, Gemma - disse. - Que é que eu vou fazer contigo,
rapariga?
A cadela levantou-se, abanando o rabo, e Steve baixou-se para a
acariciar.
- Anda - disse, batendo na perna.
Gemma pôs as patas nas suas coxas e ele sentiu o corpo da cadela
encostado às suas pernas. Pegou-lhe ao colo.
Quando Dave voltou, daí a bocado, para pedir desculpa pelo seu
ataque de mau génio, não teve resposta quando bateu à porta. Abriu-a. Steve
estava a dormir, recostado na poltrona, com Gemma deitada no seu colo, com a
cabeça encostada ao ombro dele. A cadela
olhou para Dave e abanou ligeiramente a cauda, mas Steve não
acordou.
ESSA NOITE assinalou uma viragem.
Steve, concentrando-se nas sensações que lhe eram transmitidas
através do contacto com a pega do arreio, tentava falar em voz mais
suave, mais doce, sem se esquecer de elogiar constantemente a sua
cadela. Gemma começou a reagir favoravelmente a esse tratamento, a trabalhar
outra vez com prazer. Dave, que ia atrás deles,
percebeu pelo modo como a cadela agitava alegre?riente a cauda que
estava outra vez ansiosa por dar o seu melhor.
As sessões eram cada vez mais complicadas: atravessar as ruas
nos locais onde o trânsito era mais intenso, tentar identificar os ruídos do
trânsito, parar quando Gemma parava e perceber que o sinal
muito ligeiro que ela dava era para recomeçar a andar. Habituar-se
a confiar nela.
Steve nunca se tinha dado conta de todos os perigos que o espreitavam numa rua:
os carrinhos de bebé, as cabinas telefónicas, as escadas, as crianças a andar de bicicleta nos passeios, os parquímetros, os
candeeiros.
Havia passeios altos e passeios rentes à rua e algumas ruas tinham uma
inclinação enervante que dava a Steve a sensação de que
ia perder o equilíbrio. Havia degraus para descer ou subir para as
lojas e nunca faltava o elemento da surpresa total, da descoberta,
pelo que a vida se transformou numa exploração interminável.
Todos tinham progressos para anunciar ao serão, informações
para trocar, comentários a fazer sobre os seus cães. Steve descobriu
que Gemma gostava muito de se rebolar na lama; Meggie tinha tendência para
correr atrás dos gatos. Havia uma cadela chamada Tara
que não era capaz de resistir a um gelado e que ia sempre lamber os
gelados das crianças. A directora da escola, para grande alívio de
toda a gente, desistiu de ter um cão, e Dave ficou muito satisfeito
por a decisão ter partido dela.
Agora estavam a ficar todos muito entusiasmados com os respectivos cães. Lynn
tinha a certeza de que o seu cão era o melhor de
todos, e Steve apercebia-se gradualmente de que Gemma tinha
qualidades que Lig não possuía.
- Você recuperou o seu jeito com os cães - disse Dave certo
dia, após uma das suas sessões de trabalho. Dave estava encantado
com a mudança que via em Steve: andava com confiança, parava
quando a cadela parava, elogiava o animal quando atravessavam
num cruzamento difícil, levando-o a agitar a cauda de satisfação.
Iam ser bons parceiros. Ainda seria necessário algum tempo, mas
tudo apontava nesse sentido e a vida de Dave era aquilo.
Aquilo e Sue. Mas Sue era prisioneira da mãe.
Steve começou a gostar de se aventurar, de andar outra vez em
passo rápido. Também era um alívio ter-se visto livre daquela dor
constante nos olhos e da tirania das sessões de tratamento no hospital. A
inflamação estava a desaparecer, mas o tecido ocular fora
gravemente lesado.
Descobriu que, usando uma régua, era capaz de escrever cartas
legíveis. As palavras ficavam distribuídas pela página um bocado
ao acaso, mas podia escrever a Mara à contar os seus progressos, e
sentia-se estimulado pelas cartas que ela lhe escrevia, falando dos
problemas que tinha com as ovelhas, dos preços por que vendera os
borregos nascidos na Primavera e das plantas que dispusera no jardim. Pensou
como seria a reacção de Lig quando visse Gemma e se
Sukie, que ele ia levar também para sua casa, se lembraria da cadela.
Anna veio visitá-lo. Tinha uma nova ninhada de cachorros e uma
nova hóspede, uma rapariga cega. Anna também andava a fazer
projectos.
- Tenho saudades suas - disse a Steve -, mas arranjei outro
ajudante. O Gunter começou a aparecer lá em casa todos os dias.
Apesar de ser velho, é forte como um touro, conserta-me as coisas e
carrega com pesos. Dou-lhe de comer, mas não quer que eu lhe
pague. Diz que é uma alegria alguém precisar dele. E vou começar
a criar ovelhas; fiquei com o Barulhento. Felizmente que já largou
o biberão! Antes assim, porque para o ano que vem já vai ser pai.
- Como é que está a Sukie? - perguntou Steve.
- Tem saudades suas. Vai ficar contentíssima quando você a for
buscar.
Todos os alunos do curso estavam também a fazer projectos. Só
já faltavam dois dias para o concerto de encerramento. Andavam
todos a ensaiar e Steve tinha prazer em cantar a plenos pulmões,
tirando partido da sua voz. E depois do concerto ir-se-iam todos
embora, para viverem a vida à sua maneira, com os seus cães.
CAPÍTULO 10
MARA queria fazer uma surpresa a Steve e ir buscá-lo ao Centro,
por isso disseram que era Andrew que o iria buscar. Steve podia ter
voltado para casa de comboio, mas Sukie ainda complicava mais as
coisas, e por isso toda a gente achou que era mais simples regressar
de automóvel.
Mara achara muita graça quando soubera que Sukie também
vinha com Steve, que ela o tinha adoptado e havia desempenhado
um papel na sua vida durante todo o tempo em que ele estivera em
casa de Anna. Steve devia ter mudado muito.
Mara chegou na véspera do concerto. Ia ficar nessa noite em casa
de Anna. Tinha a sensação de conhecer bem Anna, mas ao mesmo
tempo não podia deixar de se sentir inquieta na viagem de automóvel para sul. Já
lá ia muito tempo. E Steve tinha passado por experiências que ela não partilhara
e que só podia imaginar.
Anna mandara as suas instruções, e quando Mara entrou no
caminho que ia dar a casa dela, reconheceu Setter's Dene pela descrição. Ouviu
cães a ladrar e viu um cavalo a espreitar por cima da
sebe. Depois apareceu Anna, que era tal e qual como ela imaginara;
deu-lhe um beijo e levou-a para dentro, apresentando-a à sua nova
hóspede cega, Sadie.
Mara só queria que Steve soubesse que ela viera depois de o concerto ter
terminado. Tinham dito a Steve que o pai ia chegar muito
tarde. No dia seguinte, Mara sentou-se no meio do público, com as
mãos a tremer. Assistiu a todos os números do espectáculo: um
sketch representado por duas mulheres cegas, que se mexiam como
se tivessem vista; as canções, com o público a entoar o refrão; e depois Steve, entrando em cena guiado por Gemma. Mara foi invadida por uma onda
de júbilo quando viu como Steve se desembaraçava bem e como a cadela voltava a
cabeça para olhar para ele
quando se sentava.
Steve cantava bem. Não havia dúvida. Entoou em voz forte e
afinada uma canção de taberna que Gunter lhe ensinara. Gunter, que
estava sentado ao lado de Anna, batia o compasso com a mão.
Olhando para Steve, ouvindo-o cantar, Mara percebeu que nada
tinha mudado. Steve era o seu homem, para toda a vida, e as lágrimas
correram-lhe pela cara.
Toda a gente bateu palmas quando Steve acabou, e Gemma,
assustada, pôs-se em pé de um pulo e ladrou. Steve riu-se e pôs-lhe
a mão em cima da cabeça, e a cadela abanou a cauda, convencida de
que os aplausos eram para ela.
Toda a gente começou a conversar e a rir, dando os parabéns aos
artistas e fazendo as suas despedidas, e depois chegou a altura de
subir para o quarto com os amigos e parentes para começar uma
nova etapa da vida.
Mara ficou a olhar para Steve, que subiu as escadas a correr, com
Gemma a seu lado. Foi atrás dele, deixando Anna cá em baixo. De
repente, teve medo. Steve não sabia que ela tinha vindo. Talvez não
devesse ter feito aquilo, mas queria ser a primeira pessoa de casa a
dar-lhe os parabéns.
Bateu à porta.
- Pai?
Mara abriu a porta e Gemma ladrou.
- Sou eu - disse.
Fez-se um silêncio que pareceu eterno e de repente Steve estava
ao pé dela, abraçando-a como se nunca mais a quisesse largar.
E Mara percebeu que tinha agido bem.
- Estás mais magra - disse finalmente Steve em tom de repreensão. - Pareces um
gatinho, só ossos, sem carne nenhuma.
Que é que andaste a fazer?
- A trabalhar - respondeu Mara. - E o Convento está quase
como nós tínhamos planeado. Mas preciso de ti. A mão-de-obra está
muito cara!
- Isso quer dizer que vamos viver em pecado no Convento,
não?' - disse Steve em voz de riso.
- Vou para casa e tu vais para casa dos teus pais até sábado. O
Hennessey fica a tomar conta das ovelhas. A sala já está alugada, já
fiz os convites, já recebemos os presentes e está tudo pronto para o
casamento.
- Um casamento forçado - disse Steve, mas com uma voz divertida. - E se eu
disser que não?
- Podes dizer que não - declarou Mara. - Tanto faz, porque a
primeira coisa que eu vou fazer quando chegar é ensinar à Gemma o
caminho para a igreja.
Tentou falar em voz calma, procurando detectar a rejeição na
cara de Steve, mas só viu o sorriso divertido dele.
- Um cego? Já pensaste bem, Mara? - perguntou Steve ao fim
de alguns minutos.
- Se o Larry pode casar com a Lynn, eu também posso casar
contigo - disse ela.
- Porque é que dizes isso?
Steve nunca tinha pensado na aparência de Lynn.
- A bomba rebentou na cara dela, Steve. Fizeram tudo o que foi
possível, mas tem cicatrizes terríveis. Felizmente que ela nunca as
vai ver.
Steve pensou em Lynn, que os fazia rir a todos. Tinha conhecido
Larry nessa noite e simpatizara muito com ele; percebia-se que se
orgulhava muito da sua Lynn. Também iam casar nesse sábado.
Steve sentou-se na sua poltrona e puxou Mara para junto dele;
Gemma deitou-se no chão a seu lado, vigilante.
- Fala-me do Convento - disse Steve, aspirando o perfume do
cabelo dela enquanto a ouvia, e teve a certeza de que afinal havia no
mundo lugar para ele.
A VIAGEM do dia seguinte pareceu-lhe muito diferente da outra
que fizera sozinho, há tantos meses. Sukie, numa gaiola de arame,
miava sempre que o carro dava uma curva. Gemma ia deitada aos
pés de Steve, e Mara guiava habilmente o carro, levando-os para
casa.
Para casa. Steve era capaz de ver perfeitamente a sua casa em
pensamento.
Perguntou a si mesmo como é que Lig receberia Gemma. E se o
cão se lembraria dele.
Chegaram a High Hollows. A mãe, completamente recuperada,
recebeu-o a chorar e Andrew abraçou-o, acolhendo-o com voz calorosa; também lá
estavam os trabalhadores da quinta, que vieram
apertar-lhe a mão, para ele ter a certeza de que nada tinha mudado.
Mais tarde, Steve e Gemma saíram para o pátio e foram dar um
passeio pelos montes; Steve descobriu que era capaz de andar tão
depressa como sempre e que Gemma o levava para onde ele queria.
Voltou para casa muito satisfeito, sabendo que tinha reconquistado
a sua liberdade, que era outra vez um homem independente.
Esse contentamento permaneceu com ele durante a noite e até ao
dia seguinte, mantendo-se durante a cerimónia do casamento - Gemma subiu com ele
ao altar - e o almoço; depois, foram ver a corheille, e Mara conduziu-o à volta
das mesas, dizendo-lhe de quem
eram os presentes, dando-lhe o seu ramo de noiva a cheirar. As rosas tinham
vindo do Convento.
- Isto é o presente das crianças que iam no outro carro - disse
Mara.
Era um cajado de pastor, com o punho entalhado em forma de
cabeça de cão.
- É o Lig. Mandaram-no fazer de propósito.
Steve pegou no cajado, sem saber o que dizer. A madeira era muito lisa e agradável ao toque; o cajado era muito equilibrado.
Podia usá-lo como bengala, para tactear o caminho quando fosse
passear para os montes.
Depois, Mara levou-o de automóvel até ao Convento. Quando
chegaram, Steve ouviu os passos de Hennessey na cozinha e o ruído
de patas. Gemma ficou a olhar para a porta. Lig entrou e levantou a
cabeça, farejando Steve. Ficou parado uns instantes, incrédulo. Mas
depois atravessou a sala numa corrida louca e atirou-se para os
braços de Steve, agitando furiosamente a cauda, ganindo de excitação, lambendo a
cara de Steve e aninhando-se de encontro ao
dono, enquanto Gemma ficava a olhar.
Finalmente, o cão acalmou, sentando-se o mais perto possível de
Steve.
- Gemma - disse Steve, sabendo que ela estava à espera, receando que tivesse
ciúmes. A cadela aproximou-se. Lig levantou-se
e farejou-a cautelosamente, de uma ponta à outra. Mas Steve tinha
o cheiro da cadela e ?a cadela o de Steve. Além disso, era uma fêmea.
Um macho teria criado problemas, mas assim ia correr tudo bem.
Hennessey fez-lhes uma saúde e depois foi lá para fora acabar o
seu trabalho. Steve, exausto com aquele dia tão movimentado, foi
sentar-se à lareira. Mara sentou-se no chão, em cima do tapete, e
encostou-se aos joelhos dele, com a cabeça de Lig no colo e o corpo
firme de Gemma por trás das costas.
Era bom voltar a casa.
CAPÍTULO 11
VOLTAR a casa. Steve estava convencido de que conhecia de cor e
salteado o interior da sua casa, mas constatava agora que não. Tinha-se
esquecido dos dois degraus que desciam para a cozinha e dos
quatro da porta da frente. E Mara modificara a disposição do jardim:
abrira outro caminho para chegar mais facilmente à corda da roupa.
Gemma ensinava-lhe o caminho, mas Steve achava que ele é que sabia e tentou duas vezes dar a volta num canto bem conhecido; a
cadela recusou-se a avançar. Da segunda vez obedeceu às suas ordens e continuou
a andar, mas lentamente, dando-lhe tempo para
estender a mão e descobrir que havia uma divisória de madeira em
frente. Estivera tão certo de ter razão!
- Vamos entrar - disse Steve a Gemma. Lá dentro, pelo menos, não devia haver
obstáculos; lembrou-se de que aquilo devia ser
o novo estábulo de que Mara lhe tinha falado, construído para guardar os
cavalos. Mas logo a seguir sentiu qualquer coisa a empurrá-lo. Apalpou uma
cabeça maciça. Era uma vitela, que estava ali por
qualquer razão que ele desconhecia. Soube depois que estava
doente e em quarentena; os cavalos estavam lá fora a pastar.
Irritado, pensou irracionalmente que já não havia lugar para ele
naquela casa. Mara tinha-o substituído e mudara as coisas sem o
consultar. Era um inútil e os seus projectos estavam a desfazer-se.
Além disso, tinha de ter sempre muito cuidado com Gemma.
Nunca tivera um cão tão sensível. Reagia a todos os seus estados de
espírito e não suportava que ele falasse com dureza, mesmo que não
fosse com ela. Tinha de se habituar a dominar a sua irritação.
Em casa era pior do que no Centro. Lá, toda a gente estava habituada aos cegos;
aqui, era um estranho num mundo com vista, dependendo dos outros para não lhe
mudarem a cadeira do lugar, para
o avisarem dos perigos. Sentia-se novamente encurralado dentro de
si mesmo. Começou a desconfiar de que as pessoas lhe escondiam as
coisas, e Mara precisava de toda a sua paciência para o convencer a
ir com ela à aldeia ou ao bar.
A adaptação foi lenta, tão lenta que nem ele nem Mara se deram
conta de que ele se estava a adaptar. Gemma agora era como se estivesse ligada
fisicamente a Steve. Ele confiava totalmente na cadela
e era infinitamente meigo com ela. No fim do ano, o animal já o
levava sozinho à aldeia, sem a ajuda de Mara. Sabia o caminho para
o bar, o ferreiro, a farmácia, o banco. Toda a gente os conhecia e os
cumprimentava. Steve recomeçou a falar de ovelhas com autoridade. Lembrava-se
dos pedigrees e discutia as diferentes raças e os
seus preços, ouvia programas de agricultura na rádio e mantinha-se
a par das novidades.
Na Primavera seguinte, Steve começou a ir para a montanha com
as ovelhas, guiado por Gemma e com Lig a seu lado. Lig trazia-lhe
as ovelhas e ladrava quando algum borrego estava em dificuldades.
Gemma guiava Steve, que não precisava de olhos para soltar um
borrego de uma sebe espinhosa ou para perceber pelo tacto que um
animal tinha magoado uma pata, mandando Lig chamar Hennessey.
Agora também já era capaz de apreciar as belezas do mundo de
Sue. No Verão, o ar era mais leve, na Primavera sentia-se a vida a
irromper. E o Outono estava cheio de odores - das folhas que estalavam por
debaixo dos pés, da vegetação em decomposição, das
queimadas. Lá da praia vinha o cheiro do mar. Gostava muito de se
sentar e de ficar a ouvir a rebentação num dia de tempestade, os pios
de aves invisíveis e velozes, que descreviam círculos no ar e mergulhavam. E
principalmente gostava dos dias de vento, quando tinha de abrir caminho contra
essa força selvagem que abalava as
árvores, quando a Natureza se tornava mais viva e ele tinha outra
vez uma percepção mais intensa desse mundo perdido, quando os
sons o envolviam por todos os lados. Tornava-se tudo mais real.
- Parece o Senhor do Vento - disse um dia Hennessey a Mara,
que estava a olhar para Steve, subindo o monte com o cabelo a
esvoaçar com a ventania, de cara voltada para o céu. Gemma detestava o vento,
mas habituara-se a trabalhar nesses dias, e Lig, que os
adorava, corria à frente deles, mas de vez em quando voltava atrás e
enfiava o nariz na mão de Steve. Percebera que o seu dono deixara
de ver. Os seus encontros eram sempre alegres.
- É duro - disse Hennessey.
Mais duro do que Mara imaginara. Tinha de ter sempre muito
cuidado e agora vinha um bebé a caminho. Steve nunca soube ao
certo o que é que Mara tinha de fazer por si própria ou aquilo que
tinha de pedir que Andrew viesse fazer para a ajudar, e Nettie continuava a
precisar de alguma ajuda. As duas quintas, o marido cego
e a criança que estava para nascer complicavam a vida de Mara.
Mas a pouco e pouco começaram a organizar-se melhor. Steve
podia ajudar no banho de desinfecção das ovelhas, ordenhar e tratar
dos animais. Tinha de ir fazer os exames ao oftalmologista. Encarregava-se da
contabilidade da exploração com uma máquina de
escrever braille. A pouco e pouco, foi-se encarregando de uma parte
do trabalho de Mara. O rebanho estava a aumentar e vieram estagiários para a
quinta para aprender. Steve era um bom professor.
O tempo voava. Steve adquiria novas capacidades todos os meses. Já era capaz de
arrancar as ervas daninhas do jardim; apanhava
as peras e as maçãs, carregava com as coisas pesadas, orientava-se
perfeitamente dentro de casa e no pátio sem Gemma, se bem que ela
andasse sempre por perto. As pessoas que viviam com ele esqueciam-se muitas
vezes de que era cego.
Passou o Natal e chegou a época da parição das ovelhas - e o
filho de Mara nasceu no mesmo dia do primeiro borrego. O jovem
David foi baptizado e Dave Masterson foi o padrinho; Sue foi
madrinha por procuração, pois a sua mãe estava a morrer.
Quando o bebé começou a dar os primeiros passos, Steve foi
fazer um exame ao hospital.
- Steve - disse o especialista -, os seus olhos estão bem e
podíamos operá-lo. Pode ser que não resulte, mas quer experimentar?
Ver outra vez.
E se não resultasse? Seria capaz de encarar o futuro? Sabia que,
se não recuperasse a visão, ficava tudo na mesma. Tinha uma boa
vida e continuaria a tê-la. Mas tinha obrigação de tentar por Mara.
ERA UMA sensação estranha estar outra vez no hospital, cheio de
dores, com os olhos tapados. Recordava-lhe coisas que teria preferido esquecer.
Tinham operado só um olho. O outro ficava para
depois, numa segunda operação.
Desta vez, estava tão longe que Mara não podia visitá-lo, mas ela
telefonava-lhe todos os dias. Dave escreveu a anunciar que Lynn
tinha tido um bebé, uma rapariga, e que ela, Meggie e Larry pareciam ser muito
felizes.
Passaram-se os dias. Steve não tinha vontade que lhe tirassem as
ligaduras. Mais valia ter esperança do que descobrir uma verdade
triste.
Estava deitado num quarto às escuras, a tremer, quando lhe destaparam finalmente
os olhos.
- Abra-os - disse o médico.
Não se atrevia.
Mas depois obrigou-se a encarar a verdade. Com o olho operado,
distinguiu um raio de luz na janela, o reflexo da luz num copo que
estava em cima da mesa-de-cabeceira, a forma de uma cara por
cima dele.
- Consigo ver - murmurou.
Puseram-lhe outra vez as ligaduras. Steve ficou na cama, com o
coração a bater com força. E se fosse só temporário? Se durasse só
algumas horas?
Mas o destino sorriu-lhe, e todos os dias revelavam-se-lhe novas
coisas do mundo que perdera. No entanto, tinha de ter cuidado. As
luzes fortes faziam-lhe doer os olhos e usar a vista durante mais de
dez minutos era um grande esforço. Porém, nesses poucos minutos,
absorvia todas as impressões que lhe chegavam: as caras das pessoas que o
rodeavam e as cores, tanta cor por todo o lado! As cortinas do quarto eram
amarelas e azuis. E havia rosas numa jarra ao pé
da cama.
Tiravam-lhe as ligaduras à noite, e Steve ficava deitado, como
uma criança, olhando para a forma da sua mão, para o motivo do
tecido do pijama.
Não podia dizer nada a Mara por enquanto, pois aquilo podia ser
passageiro. Tinha-se tornado muito ansioso e supersticioso. Se não
contasse o segredo a ninguém, tornava-se realidade. Percebia que
estava a ser irracional, mas isso não o ajudava.
Finalmente, chegou o dia em que se levantou da cama e foi até
junto da janela, com as cortinas abertas, olhando para o turbilhão de cores lá fora, que o atordoavam: as cores vivas das flores e das árvores, dos
vestidos das mulheres, o amarelo contrastando com o verde
e o azul. Não aguentou e teve de fechar as cortinas para atenuar a
luz. Sentou-se numa cadeira, a tremer, fitando as cortinas corridas,
incapaz de acreditar na sua sorte.
Trouxeram-lhe uns óculos escuros e com eles enfrentou o
mundo. Constatou que tinha perdido o sentido das distâncias; estava
tudo fora do seu lugar, as distâncias pregavam-lhe partidas. Os passos eram mais
compridos ou mais curtos do que ele pensava, as
mesas estavam mais longe. Perdera a noção da perspectiva. Sentia-se aterrado com
a velocidade a que as pessoas se aproximavam,
certo de que iam chocar com ele.
À noite, quando o quarto estava às escuras, punha-se à janela e
olhava para as árvores dobradas pelo vento, para as nuvens orladas
de luz. Luz. A luz das estrelas. Estava demasiado fascinado para ser
capaz de dormir, contemplava esses pontos luminosos que eram sóis
distantes, a Lua fina.
Os milagres continuaram. Começou a passear no jardim, contemplando os pássaros
que saltitavam na relva, um gato que saía
furtivamente dos arbustos, vendo-o como se fosse pela primeira
vez, uma criatura espantosa. A luz do Sol dava um tom de bronze à
sua pelagem amarelada. Apetecia-lhe ficar ali sentado o resto da
vida, a olhar.
Descobriu novamente as sombras. Antigamente, estava tão habituado a elas que nem
as notava, mas agora contemplava a sua própria sombra, que ora se alongava à sua
frente, ora se encolhia de
repente.
Como é que as pessoas podiam viver no meio de coisas tão espantosas e não dar
por elas?
Dave escreveu-lhe. A mãe de Sue morrera, e Sue agora morava
no Centro. Estavam noivos. Um final feliz - já não era sem tempo.
Steve e Mara podiam ir ao casamento. Veria Sue e Anna, aqueles
lugares que conhecia tão bem, mas que agora lhe pareceriam estranhos, veria
Scott Lewis e Gunter. Veria Sukie, veria o seu filho.
Veria Gemma e tornaria a ver Lig. Agora, Gemma tomara-se tão
importante para ele como Lig. A ligação que tinha com a cadela era
total.
Mas de repente lembrou-se de uma coisa. Já não precisava de
Gemma. Era tão difícil treinar um cão de cego que certamente a cadela teria de
ser entregue a um novo dono, teria de aprender a obedecer a um estranho. Era
pior do que perder Lig - desta vez seria para
sempre.
Mara também ia sentir a falta de Gemma; a cadela já fazia parte
da família. E o bebé adorava-a. Lig não gostava de crianças e não ligava ao bebé, mas Gemma servia-lhe de almofada e deixava que a
criança gatinhasse por cima dela, tratando-a com uma ternura maternal.
E desta vez Steve voltou para casa de comboio e sozinho, mas só
os óculos escuros lhe escondiam a luz; veria o caminho para subir os
degraus e entrar na carruagem.
E viu Mara no cais, à espera dele. Tinha deixado o bebé com
Andrew e Nettie e viera sozinha. Procurava-o com um expressão
ansiosa e ele estava ali paralisado, a olhar para ela, para as mudanças operadas
por esses quatro anos. Estava menos magra e tinha
alguns cabelos grisalhos, muito poucos, e um olhar cansado; mas
sorria-lhe, incapaz de acreditar no que tinha acontecido.
Voltaram para casa de carro - vendo os lugares que ele conhecia, parando ao pé
do lago para olhar para as montanhas, para as
nuvens brancas, pairando lá muito alto - e ele deu-se conta de que
se tinha esquecido de muitas coisas. E depois chegaram a High
Hollows e viu o filho, que não percebia que o pai tinha mudado. O
jovem David agarrou-se imediatamente à perna de Steve, pondo-se
de pé abraçado ao seu joelho. Tinha cabelo escuro como o da mãe,
os olhos muito azuis de Andrew e ria, debatendo-se no colo do pai,
pois queria voltar para o chão, para junto dos gatos.
Steve não foi capaz de comer: todo o tempo era pouco para olhar.
Podia ser que aquilo só durasse alguns dias e não teria tempo para
ver tudo o que esquecera. Fitava um pãozinho com manteiga, hipnotizado.
De regresso ao Convento, havia também muita coisa para ver: o
jardim, o muro e as árvores de fruto, os montes elevando-se de encontro ao céu e
as suas ovelhas, andando lá em cima.
Depois, Lig e Gemma atiraram-se para cima dele - Gemma, que
tinha tornado suportável a sua vida e que ele nunca mais veria. A
cadela abocanhou-lhe o punho e depois largou-o e foi-se embora a
correr, voltando com o arreio.
Steve ajoelhou-se para vê-la melhor, para contemplar a pelagem
dourada, que encaracolava ligeiramente nas espáduas do animal.
Tinha uma linda cabeça e uma expressão inteligente. Era muito
mais bonita do que ele imaginara. Lig deu-lhe um encontrão, cheio
de ciúmes, e Steve afagou-o.
- Já não precisamos disto - disse a Gemma, guardando o arreio e indo buscar uma
trela. Assobiou a Lig e foram todos até ao
loch. Libertou Gemma e ela e Lig jogaram um jogo solene na praia.
Lig também ia ter saudades dela, pensou Steve. Costumava ir cumprimentá-la logo
de manhã, antes de ir ter com Steve. Andavam
sempre juntos. Será que a deixariam ficar uns tempos em casa dele?
Dave sabia que Steve tinha recuperado a vista. Escrevera uma
carta entusiástica, mas não falara de Gemma. Steve e Mara tinham
de escrever ao Pelotão Amotinado do Texas para dar a notícia, se
bem que agora eles estivessem provavelmente em aulas diferentes.
Mara tinha mantido o contacto com alguns deles e queria escrever-lhes a
convidá-los para os visitarem.
Depois, chegou a outra carta de Dave. Ele e Sue vinham ao
Norte. Podiam ficar uns dias em casa deles? E tinha muita pena, mas
ia levar Gemma. Tinha a certeza de que Steve já o calculava.
Steve olhava para a cadela, que se aproximava dele aos pulos,
trazendo-lhe um presente, como Sam costumava fazer. Tinha um
dos chinelos do bebé na boca. Steve tirou-lho e foi sentar-se à lareira,
contemplando as chamas saltitantes.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou Mara, olhando-o.
Ele entregou-lhe a carta de Dave.
- Que pena, Steve! Já sabias?
Steve acenou afirmativamente.
- Nunca me tinha lembrado disso. Têm mesmo de a levar?
- Tem de ser. Investiram muito dinheiro nela.
Dave e Sue chegaram e partiram, levando Gemma com eles, e
Steve teve uma surpresa. Nunca se tinham lembrado de que o bebé
iria sentir a falta da cadela. Brincava com ele e tomava conta dele há
um ano; e a primeira palavra de David fora "Gemma". Chorou com
saudades do animal. Lig também sentia a falta de Gemma, procurando-a pela casa e
sentando-se depois ao lado de Steve, com a
cabeça no seu joelho. Steve acariciou a cabeça de Lig, desejando
que fosse possível explicar as coisas aos cães - mas o mundo de um
cão era um mistério insondável.
- Também tenho saudades dela, rapaz - disse.
A SEGUNDA operação de Steve também foi bem-sucedida. Continuava a recear que a
luz se extinguisse um dia, mas tinha-se modificado. Tornara-se paciente,
aprendera a esperar e agora estava a
aprender a ver.
Mara e Hennessey sabiam que ele nunca se apressava no trabalho. Estava sempre a
distrair-se, parando para olhar para os malmequeres na erva ou para um borrego
que pulava ao sol; ficava parado a olhar, esquecendo tudo o resto.
Estranhamente, participavam
nesse renascimento, vendo também o mundo com novos olhos.
Quando Dave e Sue se casaram, Steve e Mara foram ao casamento; David ficou com a
mãe de Mara.
Anna foi esperá-los à estação. Era mais alta do que Steve pensara e o cabelo era
mais grisalho. Mas os olhos eram tão bondosos
como ele os imaginara. De vez em quando, punha-se a olhar para
ele, abraçava-o e beijava-o, exclamando "Steve!" numa voz que
dizia tudo.
Steve recordou a sua primeira viagem até Setter's Dene, quando
o automóvel saíra de Manchester, atravessando os bairros cinzentos
da periferia, e entrara no campo, descendo o caminho tortuoso até à
casinha onde Anna morava.
Tinha ali vivido meio ano e sabia muito pouco sobre aquele lugar. pitou as
paredes de tijolo vermelho da casa, achou que a sala de
estar era mais pequena do que ele pensava. E lá estava a mesa com
que ele tinha chocado tantas vezes e o lume na chaminé.
Foi até ao pátio ver os animais, e Mara e Anna ficaram a vê-lo
nessas explorações, parando junto ao canil das ninhadas para olhar
para os corpinhos pretos e dourados dos cachorros, que brincavam
no chão.
- Deve ser como nascer de novo - disse Anna.
- Às vezes, acorda de noite aos gritos, a dizer que está escuro e
que não vê nada. Agora, deixamos sempre uma luz acesa durante a
noite - disse Mara.
- A vista para nós é um dado adquirido e nem sequer nos lembramos de olhar para
as coisas. Steve e Sue ensinaram-me a olhar
para as coisas. E agora sei que tenho muita sorte.
Steve explorou as vizinhanças durante a manhã toda, descobrindo coisas cuja
existência não suspeitava. À hora do almoço,
apareceu Gunter para comer. Steve ficou de boca aberta quando viu
o velhote e depois riu-se.
- Qual é a graça? - perguntou Gunter.
- Pensei que tinha metro e meio de altura e que era magro!
- Era assim que me imaginava?
Gunter deu uma gargalhada, com o som sibilante que Steve inicialmente tivera
dificuldade em identificar. Era alto, um metro e
oitenta, e gordo é tinha uma cara muito encarnada, de olhos vivos.
Depois do almoço, Steve desceu o caminho até casa de Scott,
chegando à hora a que a consulta estava a acabar. Scott era mais
velho do que Steve imaginara: era alto, de cabelo grisalho e constituição
robusta. Roz era baixinha e frágil, com movimentos muito
rápidos.
Depois, foram com Sue e Dave até ao Centro, que estava agora
vazio, à excepção dos cães nos seus canis - alguns estavam a ser
treinados, outros à espera de irem para casa das pessoas que os iam
ensinar. Steve olhou-os a custo, recordando Gemma. Já devia ter ido
para casa do seu novo dono.
- Lembra-se do seu primeiro contacto com o seu cão-guia? - perguntou Dave.
Estava no canil um outro cão que lembrava muito Gemma - era
mesmo muito parecido com ela. Ficou a olhar para o animal adormecido, que não os
tinha ouvido aproximarem-se.
- Lembro - disse Steve, desejando esquecer.
De repente, o cão parecia eléctrico. Deu um pulo e correu para a
porta. Dave abriu-a e o animal atirou-se para cima de Steve, gemendo e ganindo,
lambendo-lhe a mão, tentando chegar-lhe à cara.
- É a Gemma! - exclamou Steve, ajoelhando-se para abraçar a
cadela. - Não devia ter feito isto - disse pouco depois. - Custa-nos
muito aos dois.
- Tenho um problema - disse Dave. - Não sei o que é que lhe fez, mas não nos serve de nada. Ninguém é capaz de lidar com ela.
Não se lhe podem dar ordens e tem medo dos automóveis. Como é
que se entendia com ela? Mudou as ordens?
Steve olhou para Gemma e a cadela levantou os olhos para ele,
aguardando as suas ordens. Mexeu um dedo e ela veio imediatamente até junto
dele, sentando-se à espera do arreio, com uma expressão de expectativa. Mexeu a
mão direita e ela deitou-se em cima
do pé dele, para Steve perceber que lhe tinha obedecido. Mexeu a
mão esquerda e a cadela sentou-se, encostada à perna dele, pronta
para o que desse e viesse.
- Não conseguia falar-lhe no tom de voz apropriado - disse
Steve -, por isso o Hennessey ajudou-me a ensinar-lhe estes sinais
feitos com a mão.
- Aqui não tem futuro. Quer levá-la? - perguntou Dave.
Gemma fora o seu alter ego, os seus olhos, a sua saúde mental.
Nunca tinha tido uma relação tão íntima com outro cão, nem sequer
com Lig. Lig continuava a ser o seu cão - mas de uma maneira totalmente
diferente.
- Ou ainda é um á dos collies?
Steve pôs a mão na cabeça dourada da cadela, que o fitou com os
seus olhos castanhos.
- Não - disse. - Aprendi muito. E continuo a aprender. Já não
preciso de dominar um cão. Quatro anos na escuridão mudam muito
um homem.
Foi até ao carro, onde Mara o esperava. Dave ficou a vê-lo afastar-se, com Gemma
ao lado. Steve voltou-se para trás.
- Tenho uma dívida a pagar. Agora já sei cantar; vou cantar até
ganhar dinheiro para comprar outro cão para substituir a Gemma.
ALGUMAS semanas depois, Steve, Lig e Gemma subiam a montanha. Devia chegar nesse
dia um dos membros do Pelotão Amotinado e Mara fora buscá-lo ao aeroporto.
Tinha-os convidado a todos
para a virem visitar, um por um. A mãe de Steve viera tomar conta
do bebé.
Soprava um vento ruidoso. Steve olhou lá para baixo, para o
campo onde estavam os borregos recém-nascidos; depois, olhou
para o céu, para as nuvens que corriam sobre os picos, e para Lig, de
focinho já cinzento, que corria a seu lado, agitando alegremente a
cauda. Mais além, com os olhos fitos em Lig, estava Gemma, abanando o penacho da
cauda. Veio farejar Lig e os dois cães desceram
a encosta aos pulos.
Steve sentou-se para almoçar. Sentia-se muito feliz e não trocaria o seu lugar
com ninguém no Mundo.
Assobiou aos cães e os animais aproximaram-se, aguardando a
seu lado que ele acabasse de olhar para tudo à sua vontade. Depois,
desceu a encosta e entrou em casa, acolhido pelo filho, que correu
ao seu encontro. Levantou David muito alto, com uma gargalhada,
e baixou-se para dar um beijo a Nettie.
Parou para olhar para a mesa do chá, para a comida de festa, para o prato azul do bebé. Para ele, as coisas nunca mais seriam iguais.
Por instantes, mergulhou novamente na escuridão. Estendeu a
mão e Gemma veio farejá-la, trazendo-o de volta para a realidade.
- Steve?
A voz da mãe era ansiosa.
- Estava a recordar - disse Steve.
Mas depois o sossego acabou, quando ouviram o carro de Mara
a aproximar-se e o passo rápido e a voz excitada de Wistar, a primeira visitante
do Pelotão Amotinado. Já não havia tempo para
pensar. A sala encheu-se de barulho e de risadas e, como se isso
ainda não bastasse, os cães começaram a ladrar, entrando a correr
para ver a visitante.
- Esta é que é a Gemma? É muito bonita!
Mara olhou para a outra ponta da sala e retribuiu com os olhos o
sorriso de Steve.
FIM
 ACERCA DA AUTORA
Joyce Stranger sempre se sentiu fascinada pelos animais, desde os animais de
estimação da sua infância,
passada no Sul de Inglaterra, até aos
animais domésticos que abundam na
região do País de Gales onde vive
agora. O seu interesse pelo comportamento animal levou-a a tomar-se
uma excelente treinadora de cães de guarda, cães-polícias e cães-guias. - As raças grandes, como os
pastores-alemães e os doberman,
têm de saber que quem manda somos
nós. Mas às vezes - acrescenta com um humor tranquilo - é preciso ensinar também
o dono".
Encarregou-se também da missão de levar cães aos hospitais e aos lares
para a terceira idade. Os cães são uma companhia para as pessoas doentes ou solitárias. Às vezes, pessoas que tiveram tromboses falam pela primeira vez, ao fim
de muitos anos, com um cão. Ficam ainda mais contentes quando lhes levamos
cachorros.
A outra paixão de Joyce Stranger, a escrita, nasceu também na infância, quando o
pai - que também era escritor - lhe deu papel e lápis para
ela ficar sossegada. Actualmente, é autora de mais de cinquenta livros e
numerosos artigos de jornal, entre eles uma secção em que responde a
cartas de leitores pedindo conselhos sobre os problemas dos seus cães.
Tem três filhos - o mais velho chama-se Andrew, e os outros dois, Anne
e Nicholas, são gémeos -, já todos casados, e ela e o marido partilham
agora a sua casa, que tem trezentos anos, com uma população animal muito numerosa. Têm actualmente em casa uma gata siamesa chamada Chia e
dois cães: Josse e Chita, um pastor-alemão muito sensível que serviu de
modelo à Gemma.
- Quero mostrar nos meus livros que a relação entre um homem e um
animal pode ser muito fecunda para os dois - diz Joyce Stranger.
À sua maneira discreta, esta avó de sete netos manifesta o seu respeito
apaixonado por tudo o que é vivo criando um mundo rico e harmonioso,
que nos ensina e diverte simultaneamente.
ϟ
Um Mergulho na Escuridão
Joyce Stranger
Lisboa: Selecções do Reader's Diges, 1990
-texto integral-
12.Ago.2017
Publicado por
MJA
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