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The Eye (Vision) - Odilon Redon, 1881 - Baltimore Museum of Art
resumo: A coragem de Gabriel Fairchild durante a Batalha de Trafalgar rendeu-lhe a reputação de herói, mas
custou-lhe a visão e a sua esperança para o futuro. Abandonado pela noiva que adorava, o homem, que uma vez andou como um príncipe entre a elite de Londres, isola-se
agora na mansão de família, amaldiçoando os seus dias escuros e as noites mais escuras ainda.
Uma recatada enfermeira, Samantha Wickersham, chega a Fairchild Park para
descobrir que o seu novo paciente se comporta mais como um animal do que como
um homem. Determinada a cumprir o seu dever, ela envolve o arrogante conde numa batalha de inteligência e vontades.
Capítulo 1
Inglaterra, 1806
Querida senhorita March,
Rogo-lhe que me perdoe por ter o atrevimento de me pôr em contato
consigo de um modo tão pouco convencional...
— Me diga, senhorita Wickersham, tem alguma
experiência?
Em algum lugar da extensa mansão jacobina soou um
golpe tremendo. Embora o corpulento mordomo que estava realizando a entrevista
se tenha encolhido e a governanta que permanecia atenta junto à mesinha de chá
soltou um chiado audível, Samantha nem sequer piscou.
O que fez foi tirar uns pedaços de papéis do
bolso lateral da desgastada mala de couro que tinha a seus pés com uma de suas
luvas brancas.
— Estou segura de que encontrará minhas cartas de
referência em ordem, senhor Beckwith.
Embora fosse meio-dia, no modesto salão havia uma
luz abismal. Os raios de sol que entravam pelas frestas das grosas cortinas de
veludo se refletiam no suntuoso tapete turco de cor rubi. As velas pulverizadas
pelas mesas enchiam as esquinas de sombras trementes. O quarto cheirava a mofo,
como se não o tivessem ventilado durante séculos. Não fosse pela ausência de
festões negros sobre as janelas e os espelhos, Samantha teria jurado que uma
pessoa muito querida tinha morrido recentemente.
O mordomo agarrou os papéis e os desdobrou.
Enquanto a governanta estirava seu comprido pescoço para olhar por cima de seu
ombro, Samantha rezou para que a débil luz jogasse a seu favor e lhes impedisse
de ver bem as assinaturas rabiscadas. A senhora Philpot era uma mulher atrativa
de idade indeterminável, tão elegante e magra como redondo era o mordomo. Embora
não tinha rugas no rosto, o coque negro que levava na nuca estava coberto de
cãs.
— Como pode ver, trabalhei durante dois anos como
governanta para lorde e lady Carstairs — lhe informou Samantha enquanto o senhor
Beckwith folheava rapidamente os papéis — Quando continuou a guerra, uni a
outras governantas como voluntária para atender aos marinheiros e quão soldados
voltavam feridos do mar ou do frente.
A governanta apertou um pouco os lábios. Samantha
sabia que ainda havia gente que acreditava que as mulheres que cuidavam dos
soldados eram pouco mais que donas de cantina.
Criaturas indecentes que nem sequer se
ruborizavam ao ver um desconhecido nu. Ao sentir que o calor lhe subia pelo
rosto, Samantha levantou um pouco mais o queixo.
O senhor Beckwith a examinou por cima de seus
óculos de arreios metálica.
—Devo confessar senhorita Wickersham, que é um
pouco mais jovem do que tínhamos pensado. Um trabalho tão árduo requer mais...
maturidade. Possivelmente uma das outras
aspirantes… — Se deteve o ver que Samantha arqueava as sobrancelhas.
— Eu não vejo nenhuma outra aspirante, senhor
Beckwith — assinalou ajustando-as óculos no nariz com um dedo — Com o generoso
salário que ofereciam no anúncio, esperava ver fora uma larga cauda.
Então se ouviu outro golpe, mais perto ainda que
o último, que soou como se uma espécie de besta fora para sua guarida.
A senhora Philpot rodeou rapidamente a cadeira
fazendo ranger suas anáguas engomadas.
— Um pouco mais de chá, querida?
Ao inclinar a bule de porcelana lhe tremia tanto
a mão que o chá se derramou no prato de Samantha e caiu sobre seu regaço.
— Obrigado — murmurou Samantha esfregando a
mancha com a luva sub-repticiamente.
O chão se estremeceu visivelmente sob seus pés,
ao igual que a senhora Philpot. O rugido amortecido que seguiu foi enfeitado com
uma enxurrada de juramentos incompreensíveis. Já não havia nenhuma dúvida.
Alguém — ou algo — estava se aproximando.
Lançando um olhar de pânico a dobro porta dourada
que conduzia à câmara contigua, o senhor Beckwith ficou em pé com sua frente
proeminente brilhando de suor.
— Pode que não seja o momento mais oportuno...
Enquanto devolvia a Samantha as cartas de
referência, a senhora Philpot lhe tirou a taça e o prato da outra mão e os
depositou no carrinho do chá com um ruidoso repico.
— Beckwith tem razão, querida. Terá que nos
perdoar. É possível que nos tenhamos precipitado… — A mulher obrigou a Samantha
a levantar-se e tentou afastar a da porta empurrando-a para as portas que
conduziam ao terraço, que estavam cobertas por umas grosas cortinas.
— Minha bolsa! — protestou Samantha lançando um
olhar de impotência à mala por cima do ombro.
—Não se preocupe — lhe assegurou a senhora
Philpot chiando os dentes em um amável sorriso — Um dos criados a levará a seu
carro.
Enquanto crescia o estrondo dos golpes e as
blasfêmias, a mulher cravou as unhas na resistente lã marrom da manga de
Samantha para que se movesse. O senhor Beckwith as rodeou rapidamente e abriu um
dos balcões, alagando a penumbra com o radiante sol de abril. Mas antes de que a
senhora Philpot pudesse fazer sair Samantha cessou o misterioso alvoroço.
Os três se voltaram de uma vez para olhar as
portas douradas ao outro lado da habitação.
Durante um momento não se ouviu nada exceto o
suave tic-tac do relógio francês que havia sobre a chaminé. Logo chegou um ruído
muito estranho, como se houvesse algo arranhando as portas. Algo grande. E
furioso. Samantha deu um passo involuntário para trás, a governanta e o mordomo
intercambiaram um olhar apreensivo.
Ao abri-las portas deram um forte golpe às
paredes opostas. Mas emoldurado por elas não havia uma besta, a não ser um
homem, ou o que ficava dele depois de desfazer-se da capa de verniz da distinção
social. O cabelo escuro e desalinhado lhe caía por debaixo dos ombros.
Ombros que quase enchiam a largura da porta. De
seus estreitos quadris penduravam umas calças de ante que marcavam todas as
curvas de suas musculosas pernas. Sua mandíbula estava escurecida por uma barba
de vários dias que lhe dava um ar de pirata. Se tivesse tido um facão entre os
dentes, Samantha teria fugido da casa temendo por sua honra.
Levava meias três-quartos, mas sem botas. Ao
redor do pescoço tinha um lenço frouxo e enrugado, como se alguém tivesse
tentado atá-lo várias vezes e se deu por vencido. A sua camisa de linho lhe
faltavam a metade dos botões, revelando uma parte de peito bem musculoso com um
fino pêlo dourado.
Ali plantado na soleira da porta, inclinou a
cabeça em um ângulo estranho, como se estivesse escutando algo que só ele podia
ouvir, batendo as asas seu aristocrático nariz.
Samantha sentiu um formigamento na nuca. Não
podia livrar-se da sensação de que o que estava procurando era seu aroma. Quando
quase se convenceu de que era ridículo começou a caminhar para diante com a
graça de um depredador natural, direito para ela.
Mas um banco abarrotado de coisas se interpôs em
seu caminho. Embora tentou lançar um grito de advertência, tropeçou-se com o
banco e caiu ao chão.
Muito pior que a queda foi como ficou ali
convexo, como se não tivesse nenhum sentido especial levantar-se. Nunca.
Samantha ficou paralisada enquanto Beckwith
corria a seu lado.
— Senhor! Pensávamos que estava dormindo uma
sesta!
— Sinto decepcionar — disse o conde do Sheffield
com a voz amortecida pelo tapete — A alguém lhe deveu esquecer me agasalhar.
Enquanto se livrava de seu servente e se
levantava cambaleando-se, o sol que entrava pela janela aberta lhe deu
totalmente no rosto.
Samantha ficou boquiaberta.
Uma cicatriz recente, ainda avermelhada, dividia
em duas a esquina de seu olho esquerdo e descia por sua bochecha como um raio,
esticando a pele a seu redor. Tinha sido o rosto de um anjo, com essa beleza
masculina reservada para os príncipes e os serafins. Mas agora estava marcada
para sempre com o selo do diabo. Samantha pensou que possivelmente não fosse o
diabo, a não ser Deus que tinha ciúmes de que um simples humano pudesse ser tão
perfeito. Sabia que deveria lhe parecer repulsivo, mas não podia apartar a
vista. Sua beleza truncada era mais irresistível que sua perfeição.
Levava sua desfiguração como uma máscara,
escondendo detrás dela qualquer signo de vulnerabilidade. Mas não podia fazer
nada para ocultar o persistente desconcerto de seus olhos verdes como a espuma
do mar, com os que estava atravessando a Samantha.
Enrugou o nariz.
— Aqui há uma mulher — anunciou totalmente
convencido.
— Sim, senhor — disse animadamente a senhora
Philpot — Beckwith e eu estávamos tomando o chá em um pequeno descanso.
A governanta voltou a atirar a Samantha do braço,
lhe suplicando em silêncio que escapasse. Mas o olhar cego de Gabriel Fairchild
a tinha deixado cravada ao chão. Começou a mover-se para ela, agora mais
devagar, mas com a mesma determinação que antes. Nesse momento Samantha se deu
conta de que era uma tolice interpretar sua prudência como um signo de
debilidade. Seu desespero o fazia ainda mais perigoso, sobre tudo com ela.
Continuou avançando com tanta resolução que
inclusive a senhora Philpot se refugiou nas sombras, deixando a Samantha só
frente a ele.
Embora seu primeiro impulso foi ir-se dali se
obrigou a ficar com a cabeça alta. O temor inicial de que poderia equilibrar-se
sobre ela estava infundado.
Com uma misteriosa percepção, parou-se a tão
somente um metro dela farejando o ar com cautela. Samantha não podia imaginar
que a fresca fragrância de limão que se pôs detrás das orelhas pudesse atrair
tanto a um homem. Mas a expressão de seu rosto enquanto enchia os pulmões com
seu perfume fez que se sentisse como em um harém esperando o prazer do sultão, e
sua pele se estremeceu como se estivesse tocando-a por toda parte sem levantar
um dedo.
Quando começou a rodeá-la girou com ele, seguindo
um instinto primitivo que não confiava em que estivesse detrás dela. Por fim se
deteve, tão perto que pôde sentir o calor animal que irradiava de sua pele e
contar cada uma das pestanas de ponta dourada que *bordeaban* esses olhos
extraordinários.
— Quem é ela? —perguntou olhando justo por cima
de seu ombro esquerdo — E o que quer?
Antes de que algum dos serventes pudesse
articular uma resposta, Samantha disse com firmeza: — Ela, senhor, é a senhorita
Samantha Wickersham, e veio a solicitar o posto de enfermeira.
O conde desviou seu olhar vazio para baixo,
franzindo os lábios como se lhe parecesse divertido que sua presa fora tão
pequena.
— Quer dizer babá? Alguém que possa me cantar
para que durma, dê-me de comer na boca e me limpe… — vacilou o tempo suficiente
para que os dois criados se encolhessem de medo —… o queixo se me cai a baba?
— Não tenho voz para cantar canções de ninar, e
estou segura de que é perfeitamente capaz de limpar o queixo — respondeu Samantha
tranqüilamente — Meu trabalho consistiria em lhe ajudar a adaptar-se a suas
novas circunstâncias.
Ele se aproximou dela ainda mais.
— E se não quiser me adaptar? E se quiser que me
deixem sozinho para que possa me apodrecer em paz?
A senhora Philpot ficou boquiaberta, mas Samantha
se negou a escandalizar-se.
— Não tem que ruborizar-se por mim, senhora
Philpot. Posso lhe assegurar que estou acostumada aos arrebatamentos infantis.
Quando trabalhava como governanta a meus tutelados gostavam de provar os limites
de minha paciência fazendo birras quando não se saíam com a sua.
Ao ser comparado com um menino de três anos, o
conde baixou a voz até que se converteu em um grunhido ameaçador.
— E devo supor que lhes tirou esse hábito?
— Com o tempo adequado, e paciência. E parece que
neste momento temos essas duas coisas.
Quando se voltou de repente para o senhor
Beckwith e a senhora Philpot Samantha se assustou.
— O que os faz pensar que esta será diferente das
outras?
— As outras? — repetiu Samantha arqueando uma
sobrancelha.
O mordomo e a governanta intercambiaram um olhar
de culpabilidade.
O conde se deu a volta de novo.
— Suponho que não lhe falaram que suas
predecessoras. Vejamos, a primeira foi a velha Cora Gringott. Estava quase tão
surda como eu cego. Fazíamos um bom casal. Passava-me a maior parte do tempo
procurando provas sua trombeta para lhe falar por ela. Se não me falhar a
memória, acredito que durou menos de quinze dias.
Começou a passear-se de um lado a outro por
diante de Samantha dando exatamente quatro passos para diante e quatro passos
para trás com suas largas pernadas. Resultava fácil imaginar passeando pela
coberta de um navio com esse domínio, seu cabelo dourado ao vento e seu olhar
penetrante fixo no horizonte.
— Logo veio essa moça do Lancashire. Era tão
tímida que logo que falava sussurrando.
Nem sequer se incomodou em cobrar seu salário ou
em recolher suas coisas quando partiu. Foi gritando em metade da noite como se a
perseguisse um louco.
— Me imagino — murmurou Samantha.
Depois de uma breve pausa continuou passeando-se.
— E a semana passada perdemos à querida viúva
Hawkins. Parecia mais forte e mais inteligente que as outras. Antes de sair
daqui muito zangada recomendou ao Beckwith que contratasse a um tratador de
animais, porque era evidente que seu amo devia estar em uma jaula.
Samantha se alegrou de que não pudesse ver que
estava torcendo os lábios.
— Já vê, senhorita Wickersham, que sou um caso
perdido. Assim pode voltar para a escola ou a creche de onde veio. Não faz falta
que perca mais seu precioso tempo. Nem o meu.
— Senhor! — protestou Beckwith — Não é necessário
que seja rude com a jovem dama.
—Jovem dama? Já! — Ao estender uma mão o conde
esteve a ponto de decapitar um ficus que parecia que não tinham regado em mais
de uma década — Posso dizer por sua voz que é uma criatura avinagrada sem um
pingo de doçura feminina. Se tivessem querido me buscar uma mulher, no Fleet
Street poderiam ter encontrado uma melhor. Não necessito uma enfermeira! O que
preciso é um bom...
— Senhor! —gritou a senhora Philpot.
Pode que seu amo fosse cego, mas não estava
surdo. Sua súplica escandalizada lhe fez calar-se com mais eficácia que um
golpe. Com o fantasma de um encanto que devia ter sido sua segunda natureza,
girou sobre um talão e fez uma reverência a um brincalhão justo à esquerda de
onde estava Samantha.
— Rogo-lhe que me perdoe por meu arrebatamento
infantil, senhorita. Desejo-lhe um bom dia, e uma boa vida.
Reorientando-se para as portas do salão, avançou
para diante negando-se a andar mais devagar ou ir medindo seu caminho. Poderia
ter alcançado seu destino se não se golpeou o joelho com a esquina de uma mesa
de mogno com tanta força que Samantha fez um gesto de compaixão.
Lançando um juramento, deu à mesa uma violenta
patada e a estrelou contra a parede. Custou-lhe três intentos encontrar os pomos
de marfim, mas por fim conseguiu fechar as portas detrás dele com um golpe
impressionante.
Enquanto se retirava às profundidades da casa, os
ruídos e as blasfêmias esporádicas se foram desvanecendo.
Depois de fechar brandamente a janela, a senhora
Philpot voltou para carrinho e se serviu uma taça de chá. Logo se sentou no
bordo do sofá como se fosse uma convidada, entrechocando ruidosamente a taça
contra o prato.
O senhor Beckwith se afundou pesadamente a seu
lado. Tirando um lenço engomado do bolso de seu colete, secou-se o suor da
frente antes de lançar a Samantha um olhar contrito.
— Temo-me que lhe devemos uma desculpa, senhorita
Wickersham. Não fomos de tudo sinceros.
Samantha se acomodou no brincalhão e cruzou as
mãos enluvadas sobre seu regaço, surpreendida ao descobrir que também ela estava
tremendo. Agradecida pelo refúgio que proporcionavam as sombras, disse: — Bom, o
conde não é o pobre inválido que descreviam em seu anúncio.
— Não foi ele mesmo desde que voltou dessa
maldita batalha. Se lhe tivesse conhecido antes… — A senhora Philpot tragou
saliva com seus olhos cinzas cheios de lágrimas.
Beckwith lhe deu seu lenço.
— Lavinia tem razão. Era todo um cavalheiro, um
autêntico príncipe. Às vezes penso que o golpe que lhe deixou cego também lhe
afetou à mente.
— Ao menos a suas maneiras — disse Samantha
secamente — Seu engenho não parece ter sofrido nenhum dano.
A governanta se passou o lenço por seu estreito
nariz.
— Era um menino brilhante, sempre tão rápido com
os números e as respostas. Era estranho lhe ver sem um livro debaixo do braço.
Quando era pequeno tinha que lhe tirar a vela na hora de lhe deitar por medo de
que colocasse um livro na cama e queimasse as mantas.
Samantha se estremeceu ao dar-se conta de que
também lhe tinham privado desse prazer.
Era difícil imaginar uma vida sem o consolo que
podiam proporcionar os livros.
Beckwith assentiu com os olhos brilhantes pelas
lembranças de tempos melhores.
— Era a alegria e o orgulho de seus pais. Quando
lhe ocorreu a absurda idéia de alistar-se na Marinha Real, sua mãe e suas irmãs
ficaram histéricas e lhe suplicaram que não fosse, e seu pai, o marquês,
ameaçou-lhe lhe deserdando. Mas quando chegou o momento de embarcar se reuniram
todos no mole para lhe dar sua bênção e despedir-se dele.
Samantha estirou uma de suas luvas.
— Não é muito freqüente que um nobre, sobre tudo
sendo o primogênito, dita fazer uma carreira naval, verdade? Pensava que o
exército atraía aos ricos e aos que tinham títulos nobiliários, enquanto que a
marinha era o refúgio dos pobres e os ambiciosos.
— Não deu nenhuma explicação — interveio a
senhora Philpot — Só disse que tinha que seguir a seu coração em qualquer lugar
que lhe levasse. Negou-se a comprar uma fila como fazia a maioria da gente, e
insistiu em chegar aí por seus próprios méritos. Quando receberam a notícia de
que lhe tinham subido a tenente a bordo do Victory sua mãe chorou de alegria, e
seu pai estava tão orgulhoso que esteve a ponto de arrebentar os botões de seu
colete.
— O Victory — murmurou Samantha. O nome desse
navio tinha sido profético. Com a ajuda de outras naves derrotou à armada do
Napoleão no Trafalgar, destruindo o sonho do imperador de dominar os mares. Mas
o preço da vitória foi muito elevado. O almirante Nelson ganhou a batalha, mas
perdeu sua vida, como muitos de quão jovens lutaram valorosamente a seu lado.
Suas dívidas estavam saldadas, mas Gabriel
Fairchild seguiria pagando o resto de sua vida.
Samantha sentiu um arrebatamento de ira.
— Se tem uma família tão fiel, onde estão agora?
— Viajando pelo estrangeiro.
— Em sua residência de Londres.
Depois de responder ao uníssono, os serventes
intercambiaram um olhar de vergonha. A senhora Philpot suspirou.
— O conde passou a maior parte de sua juventude
no Fairchild Park. De todas as propriedades de seu pai, sempre foi seu favorita.
Tem uma casa em Londres, é obvio, mas tendo em conta a crueldade de suas
feridas, sua família pensou que seria mais fácil que se recuperasse no lar de
sua infância, afastado da curiosidade da sociedade.
— Mais fácil para quem? Para ele ou para eles?
Beckwith apartou a vista.
— Em sua defesa devo dizer que a última vez que
vieram a lhe ver os jogou do imóvel.
Por um momento temi que ordenasse ao guarda que
soltasse aos cães.
— Duvido que fora tão difícil livrar-se deles. —
Samantha fechou um momento os olhos e fez um esforço para recuperar a
compostura. Não tinha nenhum direito a julgar a sua família por sua falta de
lealdade — passaram mais de cinco meses desde que resultou ferido. Deu-lhe seu
médico alguma esperança de que possa recuperar algum dia a vista?
O mordomo moveu a cabeça com tristeza.
— Muito poucas. Só há um ou dois casos
documentados nos que se conseguiu desculpar uma perda tão grande.
Samantha inclinou a cabeça.
O senhor Beckwith se levantou. Com suas bochechas
carnudas e sua expressão abatida parecia um bulldog melancólico.
— Espero que nos perdoe por esbanjar seu tempo,
senhorita Wickersham. Sei que teve que alugar um carro para vir aqui. E estarei
encantado de pagar de meu bolso sua volta à cidade.
Samantha ficou em pé.
— Isso não será necessário, senhor Beckwith. De
momento não vou voltar para Londres.
O mordomo intercambiou um olhar de desconcerto
com a senhora Philpot.
— Desculpe?
Samantha se aproximou da cadeira que tinha
ocupado em um princípio e agarrou sua mala.
— Ficarei aqui. Aceito o posto de enfermeira do
conde. Agora, se forem tão amáveis de pedir a um de quão criados recolha meu baú
do carro e me mostrar minha habitação, prepararei-me para começar com minhas
obrigações.
Ainda podia cheirá-la.
Como se quisesse lhe torturar lhe recordando o
que tinha perdido, o sentido do olfato de Gabriel se havia aguçado nos últimos
meses.
Quando passava pelas cozinhas podia dizer
imediatamente se Étienne, o cozinheiro francês, estava preparando um fricandó de
vitela ou uma cremosa besamel para tentar seu apetite. O mínimo rastro de fumaça
lhe informava se o fogo da deserta biblioteca tinha sido avivado recentemente ou
estava apagando-se. Enquanto se derrubava na cama na habitação que se converteu
em uma guarida mais que em um quarto, assaltou-lhe o rançoso aroma de seu
próprio suor pego aos lençóis enrugados.
Era ali aonde tinha retornado para curar suas
feridas, onde dava voltas pelas noites, que só se distinguiam dos dias por seu
silêncio sufocante. Entre o crepúsculo e o amanhecer às vezes se sentia como se
fosse o único ser vivo no mundo.
Gabriel apoiou o dorso da mão sobre sua frente e
fechou os olhos seguindo um velho hábito. Ao entrar no salão identificou
imediatamente a água de lavanda que usava a senhora Philpot e a loção capilar de
almíscar que se tornava Beckwith no pouco cabelo que ficava. Mas não reconheceu
a fresca fragrância que perfumava o ar. Era um aroma doce e azedo, suave e
atrevido de uma vez.
A senhorita Wickersham não cheirava como uma
enfermeira. A velha Cora Gringott cheirava a naftalina, e a viúva Hawkins às
amêndoas amargas que tanto gostava. Mas a senhorita Wickersham tampouco cheirava
à solteirona murcha que parecia quando falava. Se o tom de sua voz era
indicativo, seus poros deveriam emanar uma mescla venenosa de couve podre e
cinzas.
Ao aproximar-se dela descobriu algo mais
surpreendente ainda. Baixo esse limpo aroma cítrico havia um aroma que lhe
voltava louco e nublava o pouco que ficava de seus sentidos e de seu bom
julgamento.
Cheirava a mulher.
Gabriel grunhiu apertando os dentes. Não havia
sentido nenhum desejo desde que despertou nesse hospital de Londres e descobriu
que seu mundo se tornou escuro. Entretanto, o doce aroma da senhorita Wickersham
lhe tinha feito evocar uma confusa mescla de vagas lembranças: beijos roubados
em um jardim iluminado pela lua, roucos murmúrios, a pele acetinada de uma
mulher sob seus lábios. Todos os prazeres que nunca voltaria a conhecer.
Quando abriu os olhos descobriu que o mundo
seguia envolto em sombras. Pode que o que havia dito ao Beckwith fosse certo.
Pode que necessitasse os serviços de outro tipo de mulher.
Se pagasse o suficiente é possível que fosse
capaz de olhar seu rosto destroçado sem sentir repugnância. Mas que importava?
Pensou Gabriel soltando uma gargalhada. Nunca saberia.
Enquanto fechava os olhos e imaginava que era o
cavalheiro de seus sonhos, ele podia supor que era o tipo de mulher que
sussurraria seu nome e lhe faria promessas de lealdade eterna.
Promessas que não tinha nenhuma intenção de
cumprir.
Gabriel se levantou da cama. Essa maldita mulher!
Não tinha direito a tentá-lo tão amargamente e a cheirar tão bem. Menos mal que
tinha ordenado ao Beckwith que a mandásse embora. Assim não teria que voltar a
preocupar-se com ela.
Capítulo 2
Querida senhorita March,
Apesar de minha reputação, posso lhe assegurar que não tenho o
costume de trocar correspondência clandestina com todas as jovens
formosas de que eu gosto...
Ao dia seguinte, enquanto Samantha baixava a
provas pela curvada escada que conduzia ao coração do Fairchild Park, quase se
sentia como se tivesse ficado cega. Não tinham aberto nenhuma só janela da
mansão, como se a casa, ao igual que seu amo, sumiu-se no reino da escuridão
eterna.
Ao pé das escadas havia uma vela que dava a luz
suficiente para ver que os rastros que tinha deixado no corrimão estavam
cobertas de pó.
Fazendo uma careta, tirou-as com sua saia. Com o
tom pardo da cachemira duvidava que ninguém se desse conta.
Apesar da sufocante penumbra era impossível
ocultar por completo a legendária riqueza dos Fairchild, que tinha feito que a
nobre família fora a inveja de todo o mundo. Tentando não sentir-se intimidada
pelo desdobramento de tantos séculos de privilégio, Samantha desceu das escadas
ao vestíbulo. A casa se modernizou dos tempos dos painéis escuros e os arcos
Tudor de suas sombrias raízes jacobinas. As sombras dançavam sobre o reluzente
mármore italiano de nervura rosada sob seus pés. Todas as molduras e as
cornijas, todos os relevos de flores e vasos que adornavam os revestimentos de
madeira tinham sido dourados ou bronzeados. Inclusive o modesto quarto que a
senhora Philpot tinha atribuído a Samantha tinha uma vidraça sobre a porta e
tapeçarias de seda nas paredes.
Beckwith tinha insistido em que seu amo era «um
autêntico príncipe». Contemplando a opulência que lhe rodeava, Samantha
suspirou.
Possivelmente não fosse tão difícil reclamar esse
título se a gente tinha crescido em um palácio.
Resolvida a encontrar a seu novo paciente,
decidiu empregar uma de suas próprias armas.
Inclinando a cabeça para um lado, ficou quieta e
escutou.
Não ouviu gritos nem golpes, a não ser o tinido
musical de pratos e copos. Um som que acabou sendo menos musical quando houve
uma explosão de cristais quebrados seguida de um juramento selvagem. Embora
Samantha fizesse uma careta, em seus lábios se perfilou um sorriso triunfante.
Recolhendo-a saia, atravessou o salão onde se
realizou sua entrevista e saiu pela porta oposta seguindo o ruído. Enquanto
percorria as estadias desertas teve que esquivar vários sinais do passado do
conde. Suas sólidas botas de cano longo rangeram sobre a porcelana rota e as
lascas de madeira. Ao deter-se para endireitar uma delicada cadeira Chippendale,
o rosto gretada de uma estatueta chinesa riu dela.
A destruição não era surpreendente dada a
inclinação de Gabriel a perambular pela casa sem ter em conta sua falta de
visão.
Logo passou por debaixo de um bonito arco. A
ausência de janelas no comilão negava à cavernosa estadia incluso uma fresta de
luz. Se não tivesse sido pelas velas que resplandeciam a ambos os extremos da
majestosa mesa, Samantha poderia ter pensado que se encontrava na cripta
familiar.
Um par de criados com libré custodiavam o
aparador de mogno sob o atento olhar do Beckwith. Nenhum deles pareceu dar-se
conta de que Samantha se encontrava na porta. Estavam muito ocupados observando
todos os movimentos que fazia seu amo. Enquanto o conde dava uma cotovelada a
uma taça de cristal empurrando-a para o bordo da mesa, Beckwith fez um discreto
sinal. Um dos criados correu para diante para agarrar a taça antes que pudesse
cair. Ao redor da mesa o estou acostumado a estava cheio de partes de cristal e
porcelana, evidência de seus anteriores fracassos.
Samantha observou os largos ombros e os
musculosos braços de Gabriel, surpreendida uma vez mais de que fora um homem
imponente.
Seguro que podia lhe romper o delicado pescoço
com os dedos polegares e índice. Se era capaz de encontrá-la, é obvio.
Seu cabelo brilhava com a luz da vela, penteado
só com uns dedos impaciente desde que se levantou da cama. Levava a mesma camisa
enrugada do dia anterior, mas agora estava manchada de graxa e chocolate. E se
tinha subido as mangas de qualquer maneira até os cotovelos para não arrastar os
volantes dos punhos pelo prato.
Levou uma fatia de bacon à boca, rasgou uma parte
da carne tenra com os dentes e logo procurou provas o prato que tinha diante.
Samantha franziu o cenho ao ver a mesa. Não havia nenhum talher à vista. O qual
podia explicar por que Gabriel estava agarrando os ovos cozidos de uma fonte de
porcelana com a mão. Depois de escondê-los ovos se meteu um pãozinho à boca.
Logo se passou a língua pelos lábios, mas não
conseguiu tirá-la mel que tinha na esquina da boca.
Embora se sentisse como uma espécie de espião,
Samantha não podia apartar a vista dessa gota dourada de mel. Apesar de sua
terrível falta de maneiras na mesa, havia algo muito sensual em sua forma de
comer, em sua determinação para aplacar seu apetite, amaldiçoando todo tipo de
convenções. Enquanto agarrava uma costeleta e começava a morder a carne
diretamente do osso, o suco lhe caía pelo queixo.
Parecia um antigo guerreiro que acabou de
derrotar seus inimigos e de raptar a suas mulheres. A Samantha não teria
surpreso que lhe agitasse o osso e gritasse: «Mais cerveja, moça!» De repente
ficou paralisado e farejou o ar com uma expressão feroz. Samantha também abriu
suas fossas nasais, mas o único que pôde cheirar foi o apetitoso aroma do bacon.
Deixando a costeleta no prato, disse com uma
calma inquietante: — Beckwith, deveria me haver informado que acaba de trazer
uns limões frescos para meu chá.
Ao ver a Samantha o mordomo abriu bem os olhos.
— Temo que não, senhor. Mas se quer irei
buscá-los imediatamente.
Gabriel se lançou sobre a mesa tentando agarrar
ao mordomo, mas Beckwith já tinha desaparecido pela outra porta com a cauda de
sua jaqueta detrás dele.
— Bom dia, senhor — disse Samantha sentando-se em
uma cadeira em frente dele, mas longe de seu alcance — Terá que perdoar ao
senhor Beckwith. É evidente que tinha algo urgente que fazer.
Franzindo o cenho, Gabriel voltou a sentar-se em
sua cadeira.
— Esperemos que inclua falsificar algumas cartas
de referência e fazer suas malas. Logo poderão retornar juntos a Londres.
Ignorando o sarcasmo, Samantha sorriu amavelmente
aos imóveis criados. Com suas bochechas tintas, seus narizes sardentos e seu
cabelo castanho encaracolado, nenhum dos dois parecia ter mais de dezesseis
anos. Ao olhá-los melhor se deu conta de que além de ser irmãos eram gêmeos.
— Morro de fome — disse — Poderia tomar o café da
manhã algo?
Inclusive sem ver, Gabriel deveu perceber a
indecisão de seus serventes. Depois de tudo, não era normal que uma empregada
comesse na mesa de seu amo.
— Sirvam à dama, estúpidos! — vociferou — Não
seria muito hospitalar permitir que a senhorita Wickersham se fosse com o
estômago vazio.
Os criados se apressaram a lhe obedecer, e
estiveram a ponto de chocar enquanto punham um prato de porcelana e uns talheres
de prata diante de Samantha e enchiam uma bandeja do aparador. Lançando a um
deles um sorriso reconfortante por cima do ombro, aceitou uma fonte de ovos,
várias fatias de bacon e um pãozinho. Tinha a sensação de que ia necessitar
todas suas forças.
Enquanto o outro criado lhe servia uma taça de
chá fumegante disse ao Gabriel: — Ontem passei a noite me instalando em minha
habitação. Suponho que não lhe importará que tenha esperado até hoje para
começar com minhas obrigações.
— Não tem nenhuma obrigação — respondeu ele
voltando a levá-la costeleta aos lábios — Está despedida.
Ela alisou um guardanapo de linho sobre seu
regaço e tomou um pequeno sorvo de chá.
— Temo que não tem autoridade para me despedir.
Não trabalho para você.
Gabriel baixou a costeleta, formando com suas
sobrancelhas douradas uma nuvem tormentosa sobre a ponte de seu nariz.
— Desculpe? Devo estar perdendo ouvido também.
— Ao parecer o senhor Beckwith me contratou
seguindo as instruções de seu pai.
portanto meu patrão é Theodore Fairchild, marquês
do Thornwood. Até que ele me relatório que meus serviços como enfermeira já não
são necessários, esforçarei-me para lhe satisfazer a ele com meu trabalho, não a
você.
— Bom, é uma grande sorte, verdade? Porque o
único que me satisfaria seria sua partida iminente.
Utilizando uma faca e um garfo, Samantha cortou
uma parte de bacon.
— Então me temo que está condenado a seguir
insatisfeito.
— Dava-me conta no momento em que ouvi sua voz —
murmurou.
Negando-se a dignificar o insulto com uma
réplica, Samantha se meteu o bacon entre os lábios.
Apoiando os dois cotovelos sobre a mesa, ele
lançou um violento suspiro.
— Me diga, senhorita Wickersham, como minha nova
enfermeira, que tarefa gostaria de assumir primeiro? Gostaria de me dar de
comer, por exemplo?
Olhando o branco brilho de seus dentes enquanto
mordia outra parte de costeleta, Samantha disse: — Dado seu… entusiasmo
desenfreado pela comida, preocuparia-me um pouco aproximar tanto os dedos a sua
boca.
Um dos criados sofreu um ataque de tosse
repentino, e seu irmão lhe deu uma cotovelada nas costelas.
Gabriel agarrou a última parte de carne da
costeleta e atirou o osso ao prato, falhando seu objetivo por completo.
— Devo supor que não aprova minhas maneiras na
mesa?
— Não sabia que a cegueira impedisse de usar
talheres e guardanapos. Daria-lhe o mesmo comer com os pés.
Gabriel ficou paralisado. A pele tensa ao redor
de sua cicatriz empalideceu, fazendo que a marca do diabo parecesse mais
impressionante ainda. Nesse momento Samantha se alegrou de que não tivesse uma
faca.
Jogando um comprido braço sobre a cadeira do
lado, inclinou todo seu corpo para o som de sua voz. Embora sabia que não podia
vê-la, sua atenção era tão intensa que Samantha teve que conter o impulso de
encolher-se.
— Devo confessar que me intriga, senhorita
Wickersham. Seu tom é culto, mas não consigo identificar seu acento. Criou-se na
cidade?
— Na Chelsea — respondeu duvidando que tivesse
tido muitas oportunidades de freqüentar o modesto bairro ao norte de Londres. Ao
tomar um gole muito generoso de chá se queimou a língua.
— Tenho curiosidade por saber como uma mulher com
seu… caráter veio a solicitar este emprego. O que lhe levou a responder a dita
chamada? A caridade cristã? Um desejo irresistível de ajudar a seus semelhantes?
Ou talvez seu íntima compaixão pelos mais débeis?
Agarrando uma colherada de ovo de sua taça de
porcelana, Samantha disse com resolução: — Entreguei-lhe ao senhor Beckwith
várias cartas de referência. Estou segura de que as encontrará em ordem.
— Se por acaso não se deu conta — repôs Gabriel
com um tom zombador em sua voz — não pude as ler. Possivelmente você possa me
informar de seu conteúdo.
Ela deixou a um lado a colher.
— Como lhe expliquei ao senhor Beckwith,
trabalhei durante quase dois anos como governanta para lorde e lady Carstairs.
— Conheço a família.
Samantha ficou tensa. Até que ponto os
conheceria?
— Quando se reataram as hostilidades com os
franceses li no Teme que muitos de nossos nobres soldados e marinheiros estavam
sofrendo por falta de atenção. Assim decidi oferecer meus serviços a um hospital
local.
— Sigo sem entender por que deixou que cuidar
meninos para curar feridas sangrentas e dar a mão a homens que perderam a cabeça
pela dor.
Samantha fez um esforço para eliminar a paixão de
sua voz.
— Esses homens estiveram dispostos a sacrificá-lo
tudo por seu país. Assim que eu também posso fazer um pequeno sacrifício por
minha parte.
Ele soprou.
— Quão único sacrificaram foi seu bom julgamento
e seu sentido comum. venderam-se à Marinha Real por uma parte engomada de pano
azul e uns galões dourados nos ombros.
Ela franziu o cenho horrorizada por seu cinismo.
— Como pode dizer algo tão cruel? Inclusive o rei
lhe felicitou por seu valor!
— Isso não deveria lhe surpreender. A Coroa tem
uma larga história recompensando a loucos e sonhadores.
Esquecendo que não podia ver, Samantha se
levantou pela metade da cadeira.
— Não são loucos! São heróis! Heróis como seu
próprio comandante, o almirante lorde Nelson!
— Nelson está morto — disse ele com tom
terminante — Não sei se isso o converte em um herói ou em um louco.
Derrotada no momento, voltou a sentar-se em sua
cadeira.
Gabriel se levantou, utilizando os respaldos das
cadeiras para rodear a mesa. Enquanto suas poderosas mãos se aferravam à madeira
esculpida de seu assento, Samantha ficou quieta olhando para diante com uma
respiração agitada e audível para ambos.
Ele se agachou tanto que seus lábios estiveram a
ponto de roçar perigosamente a parte superior de sua cabeça.
— Estou seguro de que suas intenções são
sinceras, senhorita Wickersham. Mas pelo que se refere, até que recupere o
julgamento e renuncie a seu emprego só tem uma obrigação. — Suas suaves palavras
eram mais contundentes que um grito — Manter-se afastada de meu caminho.
Com essa advertência a deixou, e ao passar junto
ao criado este se adiantou para lhe oferecer seu braço. Embora supunha que não
deveria lhe surpreender que decidisse andar às cegas pela escuridão em vez de
aceitar uma pequena ajuda, encolheu-se quando em algum lugar da casa ressonou um
forte golpe.
Samantha não tinha nada que fazer, exceto passear
pelas estadias escuras do Fairchild Park. O silêncio era quase tão opressivo
como a penumbra. Não havia o bulício que se poderia esperar de uma próspera casa
de campo do Buckinghamshire. Não tinha criadas acontecendo espanadores pelos
*zócalos* e os corrimões, nem donzelas subindo as escadas com cestas de roupa
limpa, nem lacaios conduzindo lenha para alimentar as chaminés. Todos os lares
pelos que passava estavam frios e escuros, com seus rescaldos reduzidos a
cinzas. Os querubins esculpidos dos mantos de mármore das chaminés a olhavam com
tristeza, com suas gordinhas bochechas manchadas de fuligem.
O punhado de serventes que se encontrou parecia
andar por ali sem nenhuma tarefa especial entre mãos. Ao vê-la se escondiam
entre as sombras sem levantar a voz por cima de um murmúrio. Nenhum deles
parecia ter pressa por agarrar uma vassoura e varrer as lascas dos móveis e as
partes de porcelana que cobriam os chãos.
Samantha abriu umas portas dobre ao final de uma
sombria galeria. As escadas de mármore conduziam a um imenso salão de baile.
Durante os escuros meses de inverno não tinha
tido muito tempo para fantasiar, mas agora não pôde evitar fechar os olhos um
instante.
Imaginou o salão envolto em um torvelinho de
cores, música e alegres conversações, e se imaginou a si mesmo deslizando-se
pelo chão reluzente nos fortes braços de um homem. Podia lhe ver sorrir enquanto
ela levantava a mão para acariciar os galões dourados que adornavam seus largos
ombros.
Samantha abriu rapidamente os olhos. Movendo a
cabeça por sua loucura, fechou de repente as portas do salão de baile. Era culpa
do conde. Se lhe permitisse realizar o trabalho para o que tinha sido
contratada, poderia manter sua traiçoeira imaginação sob controle.
Enquanto caminhava por um amplo salão,
emprestando tão pouca atenção como Gabriel a seu redor, golpeou-se o pé com um
console derrubado. Lançando um grito de dor, saltou sobre um pé massageando-os
dedos doloridos através do quebrado couro de suas botas. Se tivesse levado umas
sapatilhas de pele de cabrito provavelmente se teriam quebrado com o golpe.
Olhando as frestas de sol que tentavam atravessar
o sufocante peso das cortinas de veludo, Samantha apoiou as mãos nos quadris.
Pode que Gabriel tivesse decidido enterrar-se nesse mausoléu, mas ela não.
Ao captar um brilho branco pela extremidade do
olho, deu-se a volta e viu uma criada com touca saindo nas pontas dos pés pela
porta.
— Né, moça! —chamou-a.
A criada se deteve e se voltou muito devagar com
uma reticência evidente.
— Sim, senhorita?
— Vêem aqui, por favor. Necessito que me ajude a
abrir estas cortinas. —Grunhindo pelo esforço, Samantha empurrou um pesado banco
com brocados para a janela.
Em vez de correr a ajudá-la, a criada começou a
retroceder retorcendo suas pálidas e sardentas mãos e movendo a cabeça
consternada.
— Não me atrevo, senhorita. O que diria o senhor?
— Poderia dizer que está fazendo seu trabalho —
respondeu Samantha subindo em cima do banco.
Cada vez mais impaciente com as desculpas da
criada, levantou os braços, agarrou dois punhados de tecido e atirou com todas
suas forças. Em vez de abrir-se para os lados, as cortinas se soltaram de seus
ganchos e caíram em uma nuvem de veludo e pó, fazendo espirrar a Samantha.
A luz do sol entrou pelas portas das janelas,
dando às bolinhas de pó um brilho fascinante.
— Não deveria havê-lo feito! — gritou a criada
piscando como quão animais passam muito tempo clandestinamente — vou procurar
imediatamente à senhora Philpot!
Limpando-as mãos na saia, Samantha saltou do
banco e inspecionou seu trabalho com satisfação.
— Parece-me bem. Porque eu gostaria de ter um
pequeno bate-papo com ela.
Com outro grito contido, assustada-a moça saiu a
toda pressa da habitação.
Quando a senhora Philpot entrou solenemente no
salão pouco depois, encontrou à nova enfermeira do conde em um precário
equilíbrio sobre uma delicada cadeira Luis XIV. A governanta só pôde olhar
horrorizada enquanto Samantha dava um forte puxão às cortinas que estava
sujeitando, que caíram sobre sua cabeça enterrando-a em uma nuvem de veludo
verde esmeralda.
— Senhorita Wickersham! — exclamou a senhora
Philpot levantando uma mão para protegê-los olhos do sol deslumbrante que
entrava pelas janelas — O que significa isto?
Descendo de sua atalaia, Samantha sacudiu as
grossas dobras de tecido. Logo, seguindo a escandalizado olhar da governanta,
assentiu pesarosamente ao montão de cortinas que havia no chão.
— Só ia abri-las, mas ao ver tanto pó pensei que
não seria uma má idéia as arejar um pouco.
Com a mão no chaveiro que levava na cintura como
se fosse o punho de uma espada, a senhora Philpot se ergueu.
— Eu sou a governanta do Fairchild Park. Você é a
enfermeira do senhor. Arejar coisas não entra dentro de suas competências.
Olhando à mulher com cautela, Samantha abriu a
janela. Uma suave brisa com aroma de lilás entrou na habitação.
— Pode que não. Mas o bem-estar de meu paciente
sim. Que seu amo não possa ver a luz não significa que tenha que ficar sem ar
fresco.
Limpando seus pulmões poderia melhorar seu
estado… e sua disposição.
Por um momento a senhora Philpot pareceu ficar
intrigada.
Animada por suas dúvidas, Samantha começou a dar
voltas pela habitação encenando seus planos com entusiasmo.
— Pensei que primeiro os criados poderiam varrer
os cristais e retirar os móveis quebrados. Logo, depois de guardar tudo o que se
possa romper, poderíamos pôr os móveis grandes contra as paredes para deixar um
caminho em cada habitação para que o conde ande sem problemas.
— O conde passa a maior parte do tempo em seu
quarto.
— E lhe culpa? — perguntou Samantha piscando com
incredulidade — Como se sentiria você se cada vez que saísse de sua habitação se
arriscasse a romper a tíbia ou a abrir a cabeça?
— Foi o senhor quem ordenou que as cortinas
permanecessem fechadas. E quem insistiu em que se deixasse tudo como estava
antes… — A governanta tragou saliva, incapaz de terminar — O sinto, mas eu não
posso ir contra seus desejos. Nem posso ordenar ao pessoal que o faça.
— Então, não me ajudará?
A senhora Philpot negou com a cabeça com uma
expressão de arrependimento em seus olhos cinzas.
— Não posso.
— Muito bem — assentiu Samantha — Respeito sua
lealdade a seu amo e sua dedicação a seu trabalho.
Com essas palavras girou sobre seus talões, foi a
seguinte janela e começou a atirar das pesadas cortinas.
— O que está fazendo? — gritou a senhora Philpot
enquanto as cortinas caíam em cascata.
Samantha jogou a braçada de veludo sobre o montão
e depois abriu a janela para que entrasse o sol e o ar fresco. Logo se voltou
para a senhora Philpot limpando o pó das mãos energicamente.
— Meu trabalho.
— Segue com isso? — sussurrou uma das criadas a
um criado de bochechas rosadas enquanto entrava nas amplas cozinhas do porão do
Fairchild Park.
— Temo que sim — respondeu ele roubando uma
salsicha fumegante de sua bandeja e metendo-lhe na boca — Não o ouve?
Embora tivesse escurecido fazia quase uma hora,
os ruídos misteriosos continuavam no primeiro piso da casa. Desde a manhã não
tinham cessado os golpes, os grunhidos e o roce ocasional de um pesado móvel ao
ser miserável pelo chão.
Os serventes tinham acontecido o dia como a
maioria dos dias desde que Gabriel havia tornado da guerra: apinhados ao redor
da velha mesa de carvalho frente à chaminé do comilão de serviço, recordando
tempos melhores. Essa fresca noite da primavera Beckwith e a senhora Philpot
estavam sentados um em frente do outro, tomando uma taça de chá atrás de outra,
sem falar nem atrever-se a olhar-se aos olhos.
Depois de um ruído especialmente estridente que
fez encolher-se a todos, uma das donzelas sussurrou: — Não crêem que
deveríamos…?
A senhora Philpot a olhou como um alfavaca,
paralisando a pobre moça onde estava.
— Acredito que deveríamos nos dedicar a nossos
assuntos.
Um dos jovens criados deu um passo adiante,
atrevendo-se a perguntar o que todos estavam pensando.
— E se o ouve o senhor?
Tirando-as óculos para limpar com sua manga,
Beckwith moveu a cabeça com ar triste.
— Faz muito tempo que ao senhor não lhe importa
nada do que ocorre aqui. Não há nenhuma razão para pensar que esta noite vá ser
diferente.
Suas palavras envolveram a todos em uma nuvem de
desalento. Antes estavam orgulhosos de sua dedicação a grande casa que lhes
tinham crédulo. Mas sem ninguém que visse como brilhava a madeira por seus
atentos cuidados, sem ninguém que lhes felicitasse por sua eficácia para manter
os chãos limpos e as chaminés com lenha fresca, não havia muitos motivos para
sair de seu abatimento.
Apenas se deram conta de que uma das criadas mais
jovens tinha entrado sigilosamente nas cozinhas. Depois de ir direita onde a
senhora Philpot, fez um par de reverências sem atrever-se a pedir permissão para
falar.
— Não fique aí subindo e baixando como uma
cortiça na água, Elsie — disse a senhora Philpot — O que passa?
Retorcendo o avental com as mãos, a moça fez
outra reverência.
— Será melhor que venha e o você veja mesma,
senhora.
Intercambiando um olhar de exasperação com o
Beckwith, a senhora Philpot se levantou.
Beckwith se separou da mesa para segui-la.
Enquanto saíam das cozinhas, os dois estavam muito preocupados para dar-se conta
de que o resto dos criados foram detrás deles.
A senhora Philpot se deteve de repente no alto
das escadas do porão, a ponto de provocar uma desastrosa reação em cadeia.
— Chsss! Escutem! — ordenou.
Todos contiveram o fôlego, mas só ouviram uma
coisa.
Silêncio.
Enquanto foram de uma habitação a outra seus
sapatos já não rangiam sobre lascas e entulhos. A luz da lua entrava pelas
janelas descobertas, revelando que os chãos estavam limpos e os móveis quebrados
se separaram em dois pulcros montões: um com as peças que se podiam salvar e o
outro para jogar ao fogo. Embora seguiam estando alguns dos móveis maiores, na
maioria das estadias se limpou um caminho, com todos os objetos frágeis no alto
dos suportes e as prateleiras.
Os tapetes com franjas ou bordas com os que
alguém pudesse tropeçar-se também se retiraram contra a parede.
Em um pálido claro de lua da biblioteca
encontraram à nova enfermeira de seu amo, profundamente dormida em um sofá. Os
criados se amontoaram a seu redor olhando-a desconcertados.
As anteriores enfermeiras do conde tinham ocupado
esse ambíguo estrato social reservado normalmente para as governantas e os
tutores.
Não se consideravam iguais ao dono da casa, mas
tampouco se dignavam a rebaixar-se relacionando-se com outros serventes. Comiam
em suas habitações e lhes teria horrorizado a perspectiva de utilizar suas
suaves e brancas mãos para varrer chãos ou tirar pesadas cortinas ao jardim para
as arejar.
As mãos da senhorita Wickersham já não eram
suaves nem brancas. Suas pálidas unhas estavam rotas e sujas. Na mão direita lhe
tinha formado uma ampola entre o índice e o polegar.
Tinha os óculos torcidos, e com seus roncos uma
mecha de cabelo que lhe tinha cansado sobre o nariz subia para cima antes de
voltar a baixar.
— Devo despertá-la? — sussurrou Elsie.
— Duvido que possa — disse Beckwith em voz baixa
— A pobre está esgotada. — Fez um sinal a um dos criados maiores — por que não
leva a senhorita Wickersham a sua habitação, George? Que uma das criadas vá
contigo.
— Irei eu — disse Elsie ansiosamente esquecendo
seu acanhamento.
Enquanto o criado agarrava à senhorita Wickersham
em seus fortes braços, uma das faxineiras corrigiu brandamente o ângulo de seus
óculos.
Quando se foram, a senhora Philpot seguiu olhando
o sofá com uma expressão indecifrável.
Aproximando-se um pouco mais a ela, Beckwith se
esclareceu garganta com estupidez.
— Dou permissão ao resto do serviço para
retirar-se?
A governanta levantou devagar a cabeça com seus
olhos cinzas cheios de determinação.
— Eu diria que não. Ainda fica muito por fazer e
não vou permitir que sigam vadiando e deixem seu trabalho a seus superiores. —
Estalou os dedos aos dois criados que ficavam — Peter, você e Phillip agarrem
esse sofá e ponham contra a parede. —Intercambiando um sorriso, os gêmeos se
apressaram a levantar os extremos do pesado móvel — Cuidado! — advertiu-lhes —
Se raiarem a madeira descontarei a reparação de seus salários e suas peles.
Voltando-se para as assustadas criadas, deu uma
palmada que ressonou na biblioteca como um disparo.
— Betsy, Jane, tragam um par de faxineiras, uns
trapos e um cubo de água quente. Minha mãe sempre dizia que não tem sentido
varrer se não ir esfregar. E agora que temos as cortinas tiradas será muito mais
fácil limpar as janelas. — Ao ver que as criadas não se moviam, começou às jogar
para a porta com seu avental — Não fiquem aí com a boca aberta como um par de
trutas.
Venham!
A senhora Philpot se dirigiu a uma das janelas
fechadas e a abriu.
— Ah! — exclamou expandindo seu peito enquanto
aspirava uma baforada de ar noturno com aroma de lilás — Pode que para amanhã
esta casa já não cheire como uma tumba.
Beckwith correu detrás dela.
— Perdeste o julgamento, Lavinia? O que vamos
dizer lhe ao senhor?
— Não vamos dizer lhe nada. — A senhora Philpot
assinalou para a porta por onde tinha desaparecido a senhorita Wickersham com um
ardiloso sorriso nos lábios — Ela o fará.
Capítulo 3
Querida senhorita March,
Devo lhe confessar que desde que a vi pela primeira vez não pensei
em nada nem em ninguém mais...
Ao dia seguinte Gabriel desceu pelas escadas
farejando o ar a cada passo. Abriu bem as fossas nasais, mas não pôde perceber
nem um leve rastro de limão. Pode que a senhorita Wickersham lhe tivesse feito
caso e se foi. Com um pouco de sorte não teria que voltar a suportar sua
rabugice. Essa idéia fez que se sentisse curiosamente vazio. Devia ter mais fome
do que pensava.
Renunciando a qualquer intento de precaução,
avançou para o salão preparando-se para o primeiro golpe na tíbia com algum
móvel imóvel.
A verdade era que se alegrava pela dor que lhe
causaria. Cada novo arranhão ou ferida servia para lhe recordar que estava vivo.
Mas não estava preparado para o impacto que lhe
esperava. Enquanto cruzava o salão sem encontrar nem um só tamborete em seu
caminho, um raio de sol lhe deu totalmente no rosto.
Gabriel se deteve cambaleando-se e levantou uma
mão para protegê-lo rosto de seu deslumbrante calor. Fechou os olhos
instintivamente, mas não pôde fazer nada para defender do alegre canto dos
pássaros ou da brisa perfumada de lilás que lhe acariciava a pele.
Por um momento acreditou que estava ainda
sonhando. Que ao abrir os olhos se encontraria em um prado verde sob as sedosas
flores brancas de uma pereira. Mas quando os abriu seguia sendo de noite a pesar
do traiçoeiro calor do sol em seu rosto.
— Beckwith! — vociferou.
Alguém lhe deu um golpinho no ombro. Sem
pensá-lo, Gabriel se deu a volta e tentou agarrar a seu agressor. Embora só
agarrou ar com as mãos, o azedo aroma de limão seguia lhe fazendo cócegas no
nariz.
— Não lhe hão dito alguma vez que é de má
educação esconder-se de um cego? — grunhiu.
— E parece que também perigoso. — Embora a essa
voz familiar faltava seu aspereza habitual, tinha uma qualidade que fazia que
lhe acelerasse o pulso.
Esforçando-se para dominar não só seu
temperamento, Gabriel deu vários passos para trás. Posto que era impossível
evitar o agradável calor do sol, girou deliberadamente o lado esquerdo do rosto
para afastar o som de sua voz.
— Onde diabos está Beckwith?
— Não estou segura, senhor — confessou sua
enfermeira — Esta manhã parece haver uma curiosa enfermidade. O café da manhã
não está preparado e a maioria dos criados estão ainda na cama.
Gabriel estendeu os braços e deu um giro completo
sem golpear nenhum objeto em nenhuma direção.
— Então pode que a pergunta mais apropriada seja:
Onde estão meus móveis?
— OH, não se preocupe. Seguem estando aqui. Mas
pusemos a maioria contra as paredes para que não se tropece com eles.
— Pusemos?
— Bom, sobre tudo eu. — Durante um segundo soou
quase tão confundida como se sentia — Embora pareça que os criados decidiram dar
uma mão quando eu fui à cama.
Gabriel lançou um suspiro carregado de uma
paciência exagerada.
— Se todas as habitações forem exatamente iguais,
como vou saber se estou no salão ou na biblioteca? Ou no *estercolero* da casa?
Durante um maravilhoso momento conseguiu deixá-la
sem palavras.
— Não tinha pensado nisso! — disse finalmente —
Possivelmente deveríamos dizer a quão criados movam umas quantas peças ao centro
de cada habitação para que sirvam de guias — Sua saia rangia enquanto se
passeava a sua redor ensimesmada em seus planos. Gabriel girou com ela mantendo
o lado direito para o som — Se acolchoarmos as esquinas com edredons poderia
andar pela casa sem arriscar-se a fazer-se danifico. Sobre tudo se aprender a
contar.
— Posso lhe assegurar, senhorita Wickersham, que
aprendi a contar quando era pequeno.
Então tocou a ela suspirar.
— Quero dizer a contar seus passos. Se memorizar
quantos passos dá para ir de uma habitação a outra, será capaz de orientar-se
sem problemas.
— Será uma mudança reconfortante, porque desde
que chegou você não tem feito mais que me desorientar.
— Por que faz isso? — perguntou Samantha de
repente com uma curiosidade autêntica em sua voz.
Ele franziu o cenho, esforçando-se para seguir o
ruído de seus passos enquanto andava a seu redor.
— O que?
— Afastar-se de mim quando me movo. Se for à
esquerda, você gira à direita. E vice-versa.
Ele ficou rígido.
— Estou cego. Como pode esperar que saiba para
onde vou? — Ansioso por esquivar suas perguntas, disse — Possivelmente você seja
a que deva explicar por que alguém desobedeceu deliberadamente minhas ordens e
tem aberto as janelas.
— Fui eu. Como enfermeira dela, pensei que um
pouco de sol e de ar fresco poderiam melhorar sua… — se esclareceu garganta como
se tivesse algo nela — circulação.
— Minha circulação está bem, obrigado. E um homem
cego não necessita sol. Lhe recordar todas as belezas que nunca voltará a ver é
bastante cruel.
— Pode que isso seja certo, mas não é justo que
envolva a toda a casa na escuridão com você.
Durante um momento Gabriel não pôde dizer nada.
Desde que havia tornado do Trafalgar, todo mundo tinha estado andando nas pontas
dos pés e sussurrando a seu redor.
Ninguém, nem sequer sua família, atreveu-se a lhe
falar com tanta franqueza.
Voltou-se completamente para o som de sua voz
permitindo que os implacáveis raios de sol lhe dessem no rosto.
— Não lhe ocorreu pensar que mantenho as cortinas
fechadas não por mim, mas sim por eles? Por que teriam que me olhar à luz do
dia? Eu tenho a bênção da cegueira para me proteger de minha terrível
desfiguração.
A reação da senhorita Wickersham a suas palavras
foi quão última esperava. Pôs-se a rir.
Sua risada tampouco era como imaginava. Em vez de
uma risada aguda era uma sonora gargalhada que lhe fez sentir-se ridículo e de
uma vez lhe comoveu, demonstrando que sua circulação estava inclusive melhor do
que pensava.
— É isso o que lhe hão dito? — perguntou ela
rindo-se ainda enquanto tentava recuperar o fôlego — Que está «terrivelmente
desfigurado»?
Ele franziu o cenho.
— Não tem que me dizer isso ninguém. Pode que
esteja cego, mas não sou surdo nem estúpido. Pude ouvir os médicos sussurrando
sobre minha cabeça. Quando me tiraram as ataduras ouvi minha mãe e a minhas
irmãs ofegar horrorizadas. E senti os cruéis olhares em minha pele quando os
criados me levaram da cama do hospital a minha carruagem. Nem sequer minha
família se atreve a me olhar. Por que acredita que me encerraram aqui como se
fora uma espécie de animal em uma jaula?
— Pelo que tenho entendido, foi você quem fechou
as portas da jaula e trancou as janelas. Pode que não seja seu rosto que assusta
sua família, mas seu temperamento.
Gabriel procurou provas sua mão, capturando-a ao
terceiro intento. Surpreendeu-lhe que fora tão pequena, mas firme.
Samantha lançou um grito de protesto enquanto
atirava dela. Em vez de permitir que lhe guiasse pela casa, arrastou-a pelas
escadas e o comprido corredor que albergava a galeria de retratos da família. De
menino tinha aprendido todos os rincões do Fairchild Park, e esse conhecimento
lhe servia ainda. Levou-a pela galeria medindo suas largas pernadas até que
chegaram ao final do corredor. Sabia exatamente o que veria ali: um grande
retrato coberto com um lençol de linho.
Foi ele quem ordenou que tampassem o retrato. Não
podia suportar que ninguém o olhasse e recordasse com tristeza o homem que tinha
sido. Se não fora tão sentimental o teria mandado destruir.
Depois de procurar provas o bordo do lençol a
tirou de um puxão.
— Aqui tem! O que lhe parece agora meu rosto?
Gabriel retrocedeu e se apoiou no corrimão da
galeria, lhe permitindo que examinasse o retrato sem lhe jogar o fôlego na nuca.
Não necessitava sua vista para saber exatamente o que estava vendo. Tinha olhado
este mesmo rosto no espelho todos os dias durante quase trinta anos.
Sabia como jogavam a luz e as sombras sobre cada
plano belamente esculpido. Sabia que tinha uma covinha muita atrativo em sua
rugosa mandíbula. Sua mãe sempre dizia que lhe tinha beijado um anjo enquanto
estava ainda em seu ventre. Quando uma sombra de barba dourada começou a
obscurecer essa mandíbula, ao menos suas irmãs não puderam seguir lhe acusando
de ser mais bonito que elas.
Conhecia esse rosto e o efeito que produzia nas
mulheres. Das tias solteiras que não podiam resistir a tentação de lhe beliscar
as bochechas rosadas quando era um bebê até as jovens que riam e se ruborizavam
quando as saudava no Hyde Park e as belas mulheres que se metiam em sua cama por
pouco mais que uma volta pelo salão de baile e um sorriso sedutor.
Inclusive duvidava que a afetada senhorita
Wickersham pudesse resistir a seus encantos.
Ela examinou o retrato em silencio durante um bom
momento.
— Suponho que é arrumado — disse finalmente com
tom reflexivo — se você gostar dos homens desse tipo.
Gabriel franziu o cenho.
— E que tipo é esse?
Quase pôde ouvir como sopesava suas palavras.
— A seu rosto falta caráter. É alguém a quem lhe
veio tudo com muita facilidade. Já não é um menino, mas tampouco um homem. Estou
segura de que seria um bom acompanhante para um passeio pelo parque ou uma noite
no teatro, mas não é alguém a quem me interessaria conhecer.
Seguindo o som de sua voz, Gabriel lhe agarrou o
braço através de sua manga de lã e o girou para ele com autêntica curiosidade.
— E o que vê agora?
Esta vez não houve vacilação em sua voz.
— Vejo um homem — disse com suavidade — Um homem
com o rugido dos canhões ressonando ainda em seus ouvidos. Um homem golpeado
pela vida, mas não vencido. Um homem com uma cicatriz que lhe faz franzir a boca
quando em realidade gostaria de sorrir. — Passou a ponta de um dedo por essa
cicatriz, fazendo que ao Gabriel lhe pusesse a carne de galinha.
Sobressaltado pela intimidade de seu tato,
agarrou-lhe a mão e a baixou entre eles.
Samantha se livrou dele enquanto sua voz
recuperava seu tom enérgico.
— Vejo um homem que necessita desesperadamente
barbear-se e trocar-se de roupa.
Sabe? Não é necessário que ande por aí como se
lhe tivesse vestido...
— Um cego? — disse com tom zombador tão aliviado
como ela de voltar para um terreno familiar.
— Não tem valete? — perguntou-lhe.
Sentindo um puxão no lenço que tinha encontrado
no chão de sua habitação e se pôs de qualquer maneira ao redor do pescoço,
apartou-lhe bruscamente a mão.
— Despedi-lhe. Não suporto que ninguém ronde a
meu redor como se fora um inválido.
Ela decidiu ignorar essa advertência.
— Não compreendo por que. À maioria dos
cavalheiros de sua posição social sem problemas de vista não lhes importa estar
com os braços estendidos e que lhes vistam como se fossem meninos. Se não
suportar a um valete, ao menos posso dizer aos criados que lhe dêem um banho
quente. A não ser que também tenha alguma objeção a banhar-se.
Quando Gabriel estava a ponto de assinalar que o
único ao que tinha objeções era a ela, lhe ocorreu uma idéia. Pode que houvesse
outro modo de animá-la a ir-se.
— Um bom banho quente não estaria mal — disse
dando um tom suave a sua voz deliberadamente — Mas no banheiro há muitos riscos
para um homem cego. E se me tropeço ao entrar na banheira e me dou um golpe na
cabeça? E se me escorrego na água e me afogo? E se me cai o sabão? Não poderia
agarrá-lo. — Voltou a procurar provas sua mão, esta vez levando-lhe à boca e
pondo os lábios na sensível pele de sua palma — Como minha enfermeira, senhorita
Wickersham, acredito que é você quem deveria me banhar.
Em vez de lhe dar uma bofetada por sua rabugice
como se merecia, Samantha apartou a mão e disse com suavidade: — Estou segura de
que meus serviços não serão necessários. Um desses jovens criados estará
encantado de lhe agarrar o sabão.
Em uma coisa tinha razão. De repente ao Gabriel
tinha gostado de sorrir. Enquanto ela baixava com resolução pelas escadas, foi o
único que pôde fazer para evitar rir em voz alta.
Samantha sustentou o castiçal no alto, banhando o
retrato de Gabriel Fairchild com um te pisquem velo de luz. A casa estava escura
e silenciosa a seu redor, dormida, como esperava que estivesse seu amo. Depois
de seu encontro o conde tinha passado todo o dia encerrado na sufocante penumbra
de sua habitação, negandose inclusive a sair para comer.
Inclinando a cabeça para um lado, Samantha
examinou o retrato desejando ser tão imune a seus encantos como tinha
pretendido. Embora estava datado em 1803 poderiam havê-lo pintado fazia muito
tempo. O leve toque de arrogância no sorriso infantil de Gabriel estava
suavizado pelo brilho zombador de seus olhos verdes. Olhos que olhavam para o
futuro e tudo o que traria com desejo e esperança. Olhos que não tinham visto
nada que não devessem ver e não tinham pago um preço por isso.
Samantha levantou a mão e passou um dedo por sua
suave bochecha. Mas esta vez não houve calor nem sobressalto. Só o frio tecido
burlando-se de sua triste carícia.
— Boa noite, doce príncipe — sussurrou enquanto
tampava o retrato com o lençol.
O suave verdor da primavera cobria os prados
ondulados. Umas esponjosas nuvens brancas sulcavam como cordeiros o céu azul
bolo. O pálido sol banhava seu rosto de calor. Gabriel se apoiou sobre um
cotovelo e olhou à mulher que estava dormindo na relva a seu lado. Uma flor da
pereira pousou sobre seus cachos. Seus olhos sedentos beberam do mel dourado de
seu cabelo, a suave pele de pêssego de sua bochecha, o úmido coral de seus
lábios.
Nunca tinha visto um matiz tão delicioso… nem tão
tentador.
Enquanto aproximava seus lábios aos dela seus
olhos se abriram e seus lábios se curvaram em um sorriso sonolento, fazendo mais
profundos as covinhas que adorava. Mas quando ela foi unir se a ele uma nuvem
passou ondulando sobre o sol e sua inevitável sombra eliminou toda a cor de seu
mundo.
Envolto na escuridão, Gabriel se incorporou de
repente na cama com o ruído de sua respiração ressonando no silêncio. Não tinha
forma de saber se era de dia ou de noite. Só sabia que lhe tinham expulso de seu
único refúgio da escuridão: seus sonhos.
Jogando as mantas para trás, tirou as pernas da
cama e se sentou. Depois de apoiar a cabeça nas mãos tentou recuperar o fôlego e
seu sentido da orientação. Não pôde evitar perguntar-se o que pensaria a
senhorita Wickersham de seu aspecto. Nesse momento não levava nada.
Possivelmente deveria ficar um lenço limpo ao
redor do pescoço para não ofender sua delicada sensibilidade.
Depois de procurar provas um bom momento
encontrou a bata enrugada aos pés da cama e a pôs. Sem se incomodar em atar o
cinturão, levantou-se e andou pesadamente pela habitação.
Desorientado ainda por seu brusco despertar,
calculou mal a distância entre a cama e o escritório e se deu um golpe no pé com
uma das patas da mesa que fez que lhe subisse uma forte dor pela perna.
Reprimindo um juramento, sentou-se na cadeira e
procurou provas o atirador de marfim da gaveta do centro.
Logo mediu o interior da gaveta forrada de veludo
sabendo exatamente o que encontraria: um grosso pacote de cartas pacote com um
laço de seda. Enquanto o tirava chegou ao nariz uma sedutora fragrância.
Não era colônia troca de limão comprada a um
mascate, a não ser um intenso perfume feminino com um toque floral.
Respirando profundamente, Gabriel soltou o laço
de seda e passou as mãos pelo caro papel. As folhas estavam desgastadas e
enrugadas por todos os meses que tinha levado as cartas junto a seu coração.
Abriu uma delas e riscou os elegantes rasgos de tinta com a ponta do dedo. Se se
concentrava o suficiente possivelmente pudesse distinguir uma palavra e
inclusive uma frase familiar.
Palavras vazias. Frases sem sentido.
Apertou a mão um pouco. Logo voltou a dobrar
devagar a carta, pensando que era ridículo que um homem cego guardasse cartas
que já não podia ler de uma mulher que já não lhe queria.
Se é que lhe tinha querido alguma vez.
Seja como for, atou cuidadosamente o laço ao
redor das cartas antes das colocar de novo na gaveta.
Capítulo 4
Querida senhorita March,
Posso esperar que me permita cortejá-la com palavras doces?
Quando Gabriel saiu de seu quarto ao dia
seguinte, desesperado por uma breve pausa de sua própria companhia, seu suspicaz
olfato só captou a mescla de aromas do chocolate e o bacon.
Seguiu-os com cautela até o comilão
perguntando-se onde estaria a senhorita Wickersham. Para sua surpresa, pôde
tomar o café da manhã em paz sem ninguém que criticasse seu aspecto nem suas
maneiras na mesa. Comeu apressadamente e com menos delicadeza que de costume,
esperando poder retornar ao refúgio de seus aposentos antes que sua autoritária
enfermeira saltasse sobre ele.
Depois de limpá-la graxa da boca com uma esquina
da toalha voltou a subir correndo as escadas. Mas quando foi abrir a porta
esculpida de mogno que conduzia à habitação principal sua mão só encontrou ar.
Gabriel retrocedeu, temendo que com a pressa
tenha se equivocado em algum ponto do caminho.
Então uma voz animada disse: — Bom dia, senhor!
— Bom dia, senhorita Wickersham — respondeu
apertando os dentes.
Deu um par de passos tentativos para diante com
sua confiança diminuída pelo traiçoeiro calor do sol em seu rosto, a suave brisa
que lhe acariciava a frente e o canto melódico de algum pássaro que estava justo
fora da janela aberta de seu quarto.
— Espero que não lhe importe a intromissão —
disse ela — pensei que poderíamos ventilar seus aposentos enquanto estava abaixo
tomando o café da manhã.
— Poderíamos? —repetiu ominosamente
perguntando-se quantas testemunhas foram presenciar seu assassinato.
— Não esperaria que o fizesse tudo sozinha! Peter
e Phillip estão preparando seu banho matutino enquanto Elsie e Hannah trocam os
lençóis de sua cama. A senhora Philpot e Meg estão fora arejando as
enforcamentos de sua cama. E Millie está limpando sua sala de estar.
O chapinho da água e o sacudo dos lençóis
confirmaram sua afirmação. Gabriel respirou profundamente o ar poluído pelo doce
aroma de limão e o amido da roupa. Enquanto exalava ouviu um rangido que vinha
de seu vestidor, como o ruído que poderia fazer um rato. Um rato rechonchudo e
calvo que levava um colete.
— Beckwith? — vociferou Gabriel.
O rangido cessou e se converteu em um silêncio
sepulcral.
Gabriel suspirou.
— Pode sair, Beckwith. Posso cheirar sua loção
capilar.
Uns passos lentos lhe informaram que o mordomo
tinha saído arrastando os pés do vestidor. Antes que sua enfermeira pudesse
explicar que fazia ali, Beckwith disse: — Como não quer ter um valete, senhor, a
senhorita Wickersham sugeriu que ordenemos sua roupa por objetos e cores. Assim
poderá vestir-se sozinho sem a ajuda de um criado.
— E você foi tão amável de se oferecer a realizar
essa tarefa. Né, Bruto? —murmurou Gabriel.
Além de invadir o único santuário que ficava, sua
enfermeira tinha recrutado a seus serventes para tomar o mando. Perguntou-se
como se ganhou sua lealdade com tanta rapidez. Pode que tivesse subestimado seus
encantos. Possivelmente fosse mais perigosa do que suspeitava.
— Nos deixem — ordenou bruscamente.
Uma atividade frenética, com o rangido dos
lençóis e o ruído dos cubos, informou-lhe que os criados nem sequer foram fingir
que não lhe tinham entendido.
— Senhor, não acredito que… — começou a dizer
Beckwith — Não seria adequado lhe deixar sozinho em sua habitação com...
— Dá-lhe medo estar sozinha comigo?
A senhorita Wickersham tampouco fingiu que não
lhe tinha entendido. Provavelmente foi o único que notou sua leve vacilação.
— Claro que não.
— Já o ouvistes — disse — Saiam todos.
O ar se agitou enquanto os criados passavam
rapidamente por diante dele. Quando seus passos se deixaram de ouvir pelo
corredor perguntou: — Foram-se?
— Sim.
Gabriel mediu detrás dele até que encontrou o
pomo da porta. Depois de fechá-la com um sonoro golpe se apoiou nela, bloqueando
sua única via de escapamento.
— Não lhe ocorreu, senhorita Wickersham — disse
com tom tenso — que posso ter deixado minha porta fechada por uma razão? Que
talvez deseje que ninguém entre em meu quarto?
Que necessito um pouco de intimidade? — Levantou
a voz — Que possivelmente prefira manter um pequeno rincão de minha vida livre
de sua intromissão?
— Eu acredito que deveria estar agradecido —
respondeu Samantha aspirando pelo nariz — Ao menos já não cheira como se tivesse
cabras aqui.
Gabriel lançou um olhar furioso para ela.
— Neste momento preferiria a companhia das
cabras.
Então a ouviu abrir e fechar a boca. Logo fez uma
pausa para contar até dez antes de seguir falando.
— Pode que tenhamos começado com mau pé, senhor.
Parece ter a impressão equivocada de que vim ao Fairchild Park para lhe
complicar a vida.
— Desde que chegou, a palavra «inferno» me passou
pela mente mais de uma vez.
Ela suspirou.
— Ao contrário do que possa acreditar, aceitei
este trabalho para lhe fazer a vida mais fácil.
— E quando pensa começar?
— Assim que me permita — replicou — Reorganizar
isso a casa para sua comodidade é só o princípio. Além disso posso aliviar seu
aborrecimento lhe levando a dar passeios pelo jardim, lhe ajudar com sua
correspondência, lhe ler em voz alta.
Os livros eram outro dos prazeres dos que já não
podia desfrutar.
— Não, obrigado. Ninguém me lerá como se fosse um
menino tolo. — Enquanto cruzava os braços sobre seu peito incluso ele se deu
conta de que se estava comportando como tal.
— Muito bem. Mas ainda assim há centenas de
coisas que posso fazer para lhe ajudar a adaptar-se a sua cegueira.
— Isso não será necessário.
— Por que não?
— Porque não tenho a intenção de viver assim o
resto de minha vida! — rugiu perdendo finalmente o controle.
Enquanto o eco de seu grito se apagava, o
silêncio cresceu entre eles.
Gabriel se deixou cair sobre a porta e se passou
uma mão pelo cabelo.
— Neste momento, enquanto estamos falando, uma
equipe de médicos contratados por meu pai viajam pela Europa recolhendo toda a
informação possível sobre minha enfermidade. Está previsto que voltem dentro de
quinze dias. Então confirmarão o que suspeitei sempre: que meu transtorno não é
permanente, a não ser uma aberração temporária.
Nesse momento Gabriel agradeceu não poder ver
seus olhos. Temia encontrar neles a tortura que lhe tinha economizado até agora:
sua compaixão. Quase preferia sua risada.
— Sabe o que será o melhor de recuperar a vista?
— perguntou com suavidade.
— Não —r espondeu Samantha sem fanfarronice em
sua voz.
Endireitando-se, Gabriel deu um par de passos
para diante. Ela se negou a ceder terreno até que o teve quase em cima. Ao
sentir que o ar se movia enquanto se retirava, a contornou com estupidez até que
suas posições se investiram e ela foi andando para atrás para a porta.
— Alguns poderiam pensar que seria o prazer de
ver ficar o sol em um horizonte azul ao final de um dia perfeito do verão.
Quando suas costas se chocaram contra a porta,
ele pôs uma mão estendida detrás dela no grosso tabuleiro de mogno.
— Outros poderiam considerar que seria contemplar
as pétalas aveludadas de uma rosa vermelha… — inclinando-se para diante até que
sentiu o quente comichão de seu fôlego em seu rosto, baixou a voz até
convertê-la em uma profunda carícia — ou olhar com ternura aos olhos de uma bela
mulher. Mas posso lhe prometer, senhorita Wickersham, que todos esses prazeres
empalidecerão comparados com a imensa alegria de me liberar de você.
Deslizando a mão para baixo até que encontrou o
pomo da porta, abriu-a de par em par para que saísse ao corredor.
— Está ao outro lado da porta, senhorita
Wickersham?
— Desculpe? — perguntou desconcertada.
— Está ao outro lado da porta?
— Sim.
— Bem.
Sem dizer nada mais, Gabriel a fechou de repente
em seu rosto.
Quando Samantha passou mais tarde pelo vestíbulo
para recolher as enforcamentos da cama de Gabriel da lavanderia, sua escura voz
de barítono baixou flutuando do patamar de acima.
— Me diga, Beckwith, que aspecto tem a senhorita
Wickersham? Não posso imaginar a uma criatura tão fastidiosa. Quão único vejo em
minha mente é uma espécie de bruxa inclinada sobre um caldeirão rindo-se entre
dentes.
Samantha se deteve de repente com o coração
encolhido. Levou-se uma mão tremente a seus grossos óculos e logo ao cabelo
castanho avermelhado que se recolheu em um coque na nuca.
Guiada por uma inspiração repentina, voltou para
campo de visão do Beckwith e ficou um dedo nos lábios, lhe rogando em silêncio
que não revelasse sua presença. Gabriel estava apoiado contra a parede com seus
impressionantes braços cruzados sobre seu peito.
O mordomo tirou seu lenço e se secou o suor da
frente, dividido entre a lealdade a seu amo e o olhar suplicante de Samantha.
— Como enfermeira, suponho que poderia
descrevê-la como… indescritível.
— Vamos, Beckwith. Seguro que pode fazê-lo
melhor. Tem o cabelo loiro? Grisalho? Ou negro como a fuligem? Leva-o curto? Ou
enrolado ao redor da cabeça em uma coroa de tranças? É tão ossuda e enrugada
como sonha?
Beckwith lançou a Samantha um olhar se
desesperada por cima do corrimão. Em resposta, ela inchou as bochechas e riscou
um grande círculo a seu redor com as mãos.
— OH, não, senhor. É uma mulher bastante… grande.
Gabriel franziu o cenho.
— Como de grande?
— OH, pesará uns… — Samantha levantou oito dedos
e logo formou um círculo com o índice e o polegar — Uns oitocentos quilogramas —
concluiu Beckwith sem pensá-lo.
— Oitocentos quilogramas! meu deus! Que
barbaridade!
Samantha pôs os olhos em branco e voltou a
tentá-lo.
— Oitocentos não, senhor — disse Beckwith devagar
com o olhar fixo em seus dedos — Oitenta.
Gabriel se acariciou o queixo.
— É estranho. Seus passos são bastante ligeiros
para ser tão grande, não crie? Quando lhe agarrei a mão, teria jurado que… —
Moveu a cabeça como se queria livrar-se de uma idéia inexplicável — E seu rosto?
— Bom… — disse Beckwith fazendo tempo enquanto
Samantha fechava as pontas dos dedos sobre seu pequeno nariz e atirava para
fora.
— Tem um nariz bicudo bastante largo.
— Sabia! — exclamou Gabriel triunfalmente.
— E os dentes como… — Beckwith estreitou os olhos
desconcertado enquanto Samantha dobrava dois dedos sobre sua cabeça — Um burro?
Negando com a cabeça, enrolou as mãos para formar
umas patas e deu uns pequenos saltitos.
— Um coelho! — Captando por fim o espírito do
jogo, Beckwith esteve a ponto de aplaudir com suas mãos rechonchas — Tem os
dentes como um coelho!
Gabriel soprou com satisfação.
— Que sem dúvida alguma encaixam perfeitamente em
seu rosto de cavalo.
Samantha deu uns golpinhos no queixo.
— E no queixo — continuou o mordomo cada vez mais
entusiasmado — tem uma verruga enorme com… — a Samantha ficou a mão debaixo do
queixo e moveu três dedos — Três cabelos frisados que saem dela.
Gabriel se estremeceu.
— É ainda pior do que suspeitava. Não sei o que
me levou a pensar...
Beckwith piscou inocentemente detrás de seus
óculos.
— O que, senhor?
Gabriel esquivou a pergunta.
— Nada, nada. Temo-me que é uma conseqüência de
que passo muito tempo sozinho. — Levantou uma mão — Por favor, me economize mais
detalhe sobre o aspecto da senhorita Wickersham. Possivelmente seja melhor
deixar algumas costure à imaginação.
Logo se voltou para as escadas com passo firme.
Samantha ficou uma mão na boca para conter a risada, mas apesar de seus esforços
lhe escapou um chiado.
Gabriel girou devagar sobre seus talões. Ela se
imaginou o bato as asas de seu nariz e o gesto suspicaz de seus lábios. Conteve
a respiração, temendo que o menor movimento pudesse delatá-la.
Ele inclinou a cabeça para um lado.
— Ouviste isso, Beckwith?
— Não, senhor. Não ouvi nada. Nem sequer o
rangido de uma tabela.
O olhar cego de Gabriel percorreu o chão de
abaixo e se posou perto de Samantha com uma misteriosa precisão.
— Está seguro de que a senhorita Wickersham não
tem nenhum dos atributos de um camundongo? Uns bigodes retorcidos? Uma grande
paixão pelo queijo? Uma tendência a andar por aí espiando às pessoas?
A frente do Beckwith estava começando a brilhar
de novo.
— OH, não, senhor. Não se parece absolutamente a
um roedor.
— É uma sorte. Porque se assim fora teria que lhe
pôr uma armadilha. —Arqueando uma escura sobrancelha, deu-se a volta e começou a
subir as escadas enquanto Samantha se perguntava nervosamente que ceva usaria.
O tangido dos sinos se estendia brandamente pelo
campo. Samantha se deu a volta e se afundou ainda mais em seu travesseiro de
plumas, sonhando com uma ensolarada manhã de domingo e uma igreja cheia de gente
sorridente. Diante do altar havia um homem esticando com seus largos ombros sua
jaqueta de linho de cor camurça. Samantha ia andando pelo comprido corredor com
um ramo de lilás em suas mãos trementes. Podia sentir como lhe sorria, e seu
irresistível calor atraindo-a para ele, mas embora o sol entrasse pelas vidraças
e estava cada vez mais perto , apesar de que seu rosto permanecia nas sombras.
O som dos sinos aumentou, mas já não era
melodioso, a não ser agudo e discordante. A seu ruído insistente se uniram uns
golpes mais insistentes ainda na porta de sua habitação. Samantha abriu os olhos
de repente.
— Senhorita Wickersham! — gritou uma voz
amortecida enche de pânico.
Samantha se levantou da cama e correu à porta
ficando uma bata sobre sua camisola de algodão. Ao abri-la encontrou ao
angustiado mordomo do conde no corredor com um ramalhete de velas em sua mão
tremente.
— Meu deus! O que ocorre, Beckwith? Há um
incêndio?
— Não, senhorita, é o senhor. Não deixará de
chamar até que você vá.
Ela se esfregou os olhos sonolentos.
— Eu teria pensado que seria a última pessoa a
que chamaria. Sobre tudo depois de me jogar esta manhã de seu quarto.
Beckwith moveu a cabeça. Com o queixo tremendo e
os olhos avermelhados, parecia que estava a ponto de tornar-se a chorar.
— Tentei raciocinar com ele, mas insiste em que
quer falar com você.
Embora essas palavras lhe fizessem vacilar, disse
simplesmente: — Muito bem. Irei em seguida.
Vestiu-se rapidamente benzendo a simplicidade de
seu vestido azul escuro de cintura alta e a nova moda francesa. Ao menos não
tinha que perder tempo esperando a que uma donzela lhe atasse o espartilho ou
lutasse com cem botões diminutos forrados de seda.
Quando saiu de sua habitação ajustando-se ainda
as mechas de cabelo solto de seu coque, Beckwith estava esperando-a no corredor
para acompanhá-la ao lado de Gabriel. Enquanto foram rapidamente por um comprido
corredor e umas largas escadas ao terceiro piso da casa, Samantha conteve um
bocejo com a mão. A julgar pela lúgubre luz que se filtrava pela janela limpa do
patamar, a noite estava começando a render-se ao amanhecer.
A porta do quarto de Gabriel estava entreaberta.
Se não tivesse sido pelo enérgico tinido, Samantha teria temido encontrar o
atirado no chão ao bordo da morte.
Mas estava recostado na cabeceira de teca
esculpida do dossel de sua cama com um aspecto muito saudável. Não levava
camisa, e tampouco calças a julgar pela inclinação do lençol de seda sobre seus
quadris. A luz da vela dava uma suave pátina dourada a sua pele, que já parecia
ter sido orvalhada com pó de ouro. Enquanto seu olhar se centrava nesse
impressionante músculo, Samantha sentiu que ficava a boca seca. Um estreito
matagal de cabelo bordeava seu terso ventre antes de desaparecer debaixo do
lençol.
Por um momento Samantha temeu que Beckwith
deixasse cair as velas e lhe pusesse as mãos sobre os olhos. Ante o olhar
escandalizado do mordomo, Gabriel deu um último golpe à campainha que tinha na
mão.
— Senhor! —exclamou Beckwith deixando as velas em
um console próximo antes de voltar junto à porta — Não acredita que ao menos
deveria haver-se abafado antes de que chegasse a jovem dama?
Gabriel pôs um braço musculoso sobre o montão de
travesseiros que havia a seu lado e se estirou como um grande gato preguiçoso.
— Me perdoe, senhorita Wickersham. Não sabia que
não tinha visto nunca a um homem sem camisa.
Agradecendo que não pudesse ver o rubor de suas
bochechas, Samantha disse: — Não seja ridículo. Vi a muitos homens sem camisa. —
ruborizou-se ainda mais — Quero dizer em meu trabalho como enfermeira.
— É uma grande sorte. Mas ainda assim não queria
ofender sua delicada sensibilidade.
— Gabriel procurou provas entre os lençóis até
que encontrou um lenço enrugado. O pôs ao redor do pescoço e o atou em um torpe
nó antes de lhe lançar um diabólico sorriso — Já está. Parece-lhe melhor?
De algum modo conseguiu ter um aspecto mais
indecente com um lenço, mas sem camisa. Se essa era a armadilha que lhe tinha
preparado tinha posto uma boa ceva. Negando-se a dar-se por vencida, Samantha se
aproximou da cama. Gabriel ficou rígido enquanto ela colocava um dedo no nó mau
feito para soltá-lo.
Apesar da quietude de Gabriel e de seus esforços,
o dorso de seus dedos roçou mais de uma vez sua pele de veludo enquanto moldava
o tecido com borde de encaixe em uma cascata branca digna do melhor valete.
— Já está — disse dando a sua obra um tapinha de
aprovação — Assim está melhor.
Gabriel baixou suas pestanas douradas sobre seus
olhos.
— Surpreende-me que não me tenha estrangulado.
— Embora seja uma perspectiva tentadora, não
tenho nenhum desejo de procurar outro emprego agora mesmo.
— É estranho encontrar uma mulher que saiba atar
um lenço com tanta habilidade. Tem um pai ou um avô com os dedos torpes?
— Irmãos — respondeu. Apesar de sua cegueira,
temia que visse mais do que ela queria — Agora poderia me dizer por que tirou na
metade da casa da cama antes de que amanheça?
— Se quer sabê-lo, preocupava-me minha
consciência.
— Não compreendo como uma ocorrência tão estranha
pode lhe tirar o sonho.
Gabriel tamborilou com seus largos dedos uma
travessa forrada de seda.
— Enquanto estava aqui sozinho em minha cama, de
repente me dei conta de que é injusto impedir que cumpra com suas obrigações. —
Acariciou a palavra com sua triste boca, fazendo que Samantha se estremecesse —
Sem dúvida alguma é uma mulher com um grande sentido moral. Não estaria bem
esperar que se sentasse e cobrasse seu generoso salário por não fazer nada.
Assim decidi retificar a situação chamando-a.
— Muito atento por sua parte. E com que obrigação
quer que comece?
Ele refletiu um momento antes que lhe iluminasse
a cara.
— Com o café da manhã. Na cama. Em uma bandeja.
Por favor, não incomode a Étienne tão cedo. Estou seguro de que pode arrumar-lhe
Eu gosto dos ovos cozidos e o bacon um pouco torrado pelas bordas. Prefiro que o
chocolate esteja fumegante, mas não muito quente. Não quero me queimar a língua.
Assombrada por seu despotismo, Samantha
intercambiou um olhar com o Beckwith.
— Deseja algo mais? — Teve que morder o lábio
inferior para não acrescentar Sua Majestade.
— Alguns defumados e dois pãezinhos recém assados
com mel e manteiga. E quando recolher o café da manhã poderia me preparar um
banho e terminar de limpar minha sala de estar.
— Piscou para ela com uma expressão tão angélica
como lhe permitia sua sinistra cicatriz — Se não ser muita moléstia, é obvio.
— Não é nenhuma moléstia — lhe assegurou ela — É
meu trabalho.
— Efetivamente — corroborou ele.
Enquanto a esquina direita de sua boca se curvava
em um sorriso diabólico, Samantha ouviu o ruído de uma armadilha fechando-se em
sua tenra cauda.
Capítulo 5
Querida senhorita March,
Se se burlar de minhas doces palavras, possivelmente deva tentar seduzi-la
com doces beijos...
— Senhorita Wickersham? OH, senhorita Wickersham!
— A cantinela lamentosa estava acompanhada pelo alegre tinido da campainha de
Gabriel.
Samantha se voltou devagar na porta da quarto,
sem fôlego ainda por ter subido quatro pisos das cozinhas do porão pela terceira
vez essa manhã.
Seu paciente estava recostado entre os
travesseiros da cama em um claro de sol matutino.
Ali convexo sobre os lençóis enrugados, com a luz
do sol filtrando-se em seu cabelo revolto, não parecia um inválido, a não ser um
homem que acabava de desfrutar de uma entrevista apaixonada.
Gabriel estendeu a taça Wedgwood que Samantha lhe
acabava de dar com uma careta de decepção na esquina intacta de sua boca.
— Temo-me que o chocolate está temperado.
Importaria-lhe lhe pedir a Étienne que faça outra chaleira?
— É obvio que não — respondeu Samantha voltando
para a cama e agarrando a taça de sua mão com mais força da necessária.
Não tinha chegado ainda ao alto das escadas
quando a campainha começou a soar de novo. Deteve-se e contou até dez em voz
baixa antes de voltar sobre seus passos e aparecer a cabeça pela porta.
— Chamou?
Gabriel deixou cair a campainha.
— Pensei que quando voltar poderia reorganizar
meu armário. Decidi que me resultaria mais fácil me vestir se puser juntos todos
meus lenços, minhas meias e meus coletes.
— A semana passada não se levantou o tempo
suficiente da cama para vestir-se. E ontem passei seis horas combinando sua
roupa em conjuntos completos porque decidiu que não lhe interessava tê-la
ordenada por objetos.
Gabriel suspirou acariciando a colcha de raso.
— Bom, se for muita moléstia… — Agachando a
cabeça, deixou a provocação flutuando no ar.
Ela apertou os dentes em um sorriso que parecia
mas bem um rictus mortal.
— Nem muito menos. Pelo contrário, será um
privilégio e um prazer.
Antes de que pudesse encontrar a campainha entre
os lençóis enrugados, Samantha girou sobre seus talões e baixou as escadas
perguntando-se se poderia convencer ao cozinheiro francês para que jogasse
cicuta ao seguinte chaleira de chocolate para seu amo.
Passou o resto do dia como tinha passado todos os
momentos de vigília da última semana: ao serviço de Gabriel. Desde a primeira
manhã que a chamou não lhe tinha deixado nem um segundo para ela. Cada vez que
pensava em sentar uns minutos ou jogar uma breve sesta, a campainha voltava a
soar. Seu ruído persistente, que continuava até a noite, obrigava a outros
criados a dormir com seus travesseiros sobre as orelhas.
Embora sabia exatamente o que tentava fazer,
Samantha não tinha nenhuma intenção de renunciar a seu trabalho. Estava decidida
a demonstrar que era mais forte que a velha Cora Gringott ou a viúva Hawkins.
Nunca tinha sido uma enfermeira tão devota com o bem-estar de seu paciente.
Mordia-se as réplicas sarcásticas e realizava
incansavelmente as funções de valete, mordomo e cozinheira.
Gabriel estava especialmente suscetível na hora
de deitar-se. Quando colocava as mantas a seu redor e corria as cortinas da
cama, ele se queixava de que a habitação estava um pouco carregada. Abria as
cortinas, tirava as mantas e entreabria uma janela, mas antes de que pudesse ir
nas pontas dos pés à porta ele suspirava e dizia que temia esfriar-se com o ar
da noite. Depois de lhe tampar outra vez ficava na porta esperando a que suas
pestanas douradas caíssem sobre suas bochechas. Então baixava correndo pelas
escadas a sua habitação, sonhando já com seu colchão de plumas e uma noite de
sonho ininterrupto. Mas antes de que pudesse afundar a cabeça em seu luxuoso
travesseiro de penugem de ganso a campainha voltava a soar.
Depois de voltar a vestir-se, Samantha subia de
novo as escadas e se encontrava ao Gabriel apoiado no cabecero da cama sorrindo
como um querubim. Odiava incomodá-la, confessava-lhe com acanhamento, mas lhe
importaria lhe cavar os travesseiros antes de retirar-se a dormir?
Essa noite Samantha se afundou no fofo brincalhão
da sala de estar de Gabriel pensando só em pôr em alto seus doloridos pés uns
minutos.
Gabriel se recostou na cama fingindo estar
dormido e esperou para ouvir chiar a porta.
Acostumou-se ao rangido das saias da senhorita
Wickersham enquanto andava por sua habitação apagando velas e recolhendo os
objetos que tinha conseguido pulverizar pelo chão sem sair da cama. Assim que
acreditasse que estava dormido tentaria escapar. Sempre sabia em que momento se
ia. Sua ausência deixava um vazio quase tangível.
Mas essa noite não ouviu nada.
— Senhorita Wickersham! — disse com firmeza
tirando seus largos pés por debaixo das mantas — Me estão esfriando os dedos dos
pés.
Moveu os dedos, mas ninguém respondeu.
— Senhorita Wickersham?
Sua única resposta foi um suave ronco.
Gabriel apartou os lençóis. Jogar a ser um
inválido dia e noite resultava cada vez mais cansado. Era incrível que sua
enfermeira fosse tão obstinada. Já deveria ter apresentado sua demissão. Mas
apesar de suas amáveis respostas a suas demandas, sua integridade estava
começando a fraquejar.
Só essa noite, depois de lhe pedir que lhe
cavasse os travesseiros pela terceira vez em uma hora, sentiu-a rondando a seu
redor e soube que lhe faltava pouco para render-se.
Foi a provas pelos painéis atapetados até a sala
de estar contigüa a seu quarto. A melodia dos roncos lhe levou a brincalhão que
estava em frente da chaminé. A julgar pelo ar frio, a senhorita Wickersham não
se incomodou em acender o fogo.
Sentindo uma pontada de remorso, Gabriel se
ajoelhou junto à poltrona. Só o esgotamento extremo podia ter deixado assim a
sua infatigável enfermeira. Sabia que devia despertá-la, insistir em que se
levantasse imediatamente e fechasse a janela ou fora a procurar um tijolo quente
envolto em lã para esquentar seus pés. Mas se encontrou aproximando-se dela,
tocando as mechas soltas de cabelo que cobriam sua frente.
Eram mais suaves do que esperava, e se deslizavam
como a seda entre seus dedos.
Os roncos cessaram. Samantha trocou de postura na
poltrona. Gabriel conteve o fôlego, mas em seguida seguiu respirando com um
ritmo constante e profundo.
Sua mão roçou o frio metal de seus óculos de aço.
Apesar do que havia dito Beckwith, pareciam pendurar de um nariz muito pequena
para suportar tanto peso. As tirou com suavidade e as deixou a um lado,
assegurando-se de que só estava velando por sua comodidade. Mas com a cara nua
apresentava uma tentação muito grande.
Era culpa dela, disse-se a si mesmo com firmeza.
Se não tivesse persuadido ao Beckwith para lhe gastar essa brincadeira perversa,
sua curiosidade por seu aspecto poderia estar satisfeita.
Gabriel passou as pontas dos dedos por sua
bochecha, surpreso pela suavidade de sua pele. Devia ser bastante mais jovem do
que lhe tinha levado a pensar sua dura voz.
Em vez de satisfazer sua curiosidade, seu
descobrimento a agravou ainda mais. Por que teria eleito uma jovem distinguida
uma profissão tão ingrata? Tinha sido vítima de um pai aficionado ao jogo ou um
amante infiel que a tinha arruinado antes de abandoná-la a sua sorte? Se não
podiam encontrar trabalho como governantas ou costureiras, essas mulheres
acabavam com freqüência nas ruas vendendo-se a si mesmos.
Sua cautelosa exploração demonstrou que não tinha
cara de cavalo. Seus delicados ossos faziam que tivesse forma de coração, larga
nas bochechas mas com um queixo afiado em que não parecia haver lunares nem
cabelos. O polegar de Gabriel se separou dos outros dedos para encontrar uma
suavidade mais sedutora.
Enquanto lhe acariciava seus lábios carnudos, a
senhorita Wickersham apoiou a bochecha em sua mão e lançou um pequeno gemido de
prazer.
Gabriel ficou paralisado ao sentir uma intensa
concentração de sangue em seu entreperna.
Tinha presumido de que sua circulação estava bem,
mas até esse momento não se deu conta de quão bem estava. Fazia muito tempo que
não tocava a cálida pele de uma mulher, que não sentia a carícia de seu fôlego
enquanto seus lábios se separavam. Inclusive antes do Trafalgar, tinha passado
quase um ano no mar só com um desgastado pacote de cartas e seus sonhos para o
futuro para lhe reconfortar.
Tinha esquecido quão poderosa podia ser a força
do desejo. Além de perigosa.
Apartou rapidamente a mão indignado consigo
mesmo. Uma coisa era torturar a sua enfermeira quando estava acordada, e outra
acariciá-la enquanto dormia. Voltou a aproximar-se dela, esta vez decidido a
despertá-la e mandá-la a seu dormitório antes de que seu julgamento lhe
abandonasse por completo.
Ela se moveu e seguiu roncando. Gabriel suspirou.
Blasfemando para seus adentros, foi a provas à
habitação contigüa e agarrou um edredom. Logo retornou à sala de estar e a
agasalhou torpemente com ele antes de voltar para sua cama fria e vazia.
Samantha se amontoou ainda mais em seu
confortável ninho tentando ignorar que se sentia como se uma dúzia de duendes
estivessem lhe cravando agulhas no pé direito. Não queria despertar, não queria
renunciar ao delicioso sonho que se aferrava ainda aos limites de sua
consciência. Não podia recordar os detalhes exatos. Só sabia que nele se sentia
segura e querida, e que ao sair ficaria com uma profunda sensação de nostalgia.
Abriu devagar os olhos. Através da janela podia
ver a neblina dourada do amanhecer no horizonte. Bocejou e estirou seus músculos
intumescidos tentando recordar a última vez que tinha podido dormir toda a
noite. Ao tirar o pé de debaixo, o edredom se escorregou e caiu ao chão.
Samantha piscou ao dar-se conta de que era um dos
luxuosos edredons da cama do conde. Desconcertada, levantou a mão
instintivamente para tirá-las óculos, mas tinham desaparecido.
Sentindo-se terrivelmente exposta, procurou
provas na poltrona a seu redor pensando que lhe teriam cansado enquanto dormia.
Mas ao inclinar-se para diante as encontrou bem dobradas no tapete junto à
poltrona.
Muito acordada de repente, Samantha as pôs e
olhou com cautela a seu redor. Logo que recordava como tinha acabado ali a noite
anterior, mas lhe vieram à mente alguns fragmentos de seu sonho: os quentes
dedos de um homem lhe tocando o cabelo, lhe roçando a pele, acariciando a
suavidade de seus lábios. Fechando os olhos, levou-se dois dedos aos lábios para
reviver a deliciosa sensação e o desejo que tinha provocado seu tato.
E se não tinha sido um sonho?
Samantha abriu bem os olhos para livrar-se dessa
terrível ideia. Duvidava que o homem que estava dormindo na habitação do lado
fora capaz de tanta ternura. Mas então não se explicava quem a tinha abafado e
lhe tinha tirado os óculos cuidadosamente.
Recolhendo o edredom, levantou-se e foi silencio
a quarto contigüa sem estar segura do que esperava encontrar. Gabriel estava
convexo de barriga para baixo entre as mantas enrugadas com os braços dobrados
sobre a cabeça. O lençol de seda lhe tinha cansado sobre uma perna musculosa,
que estava coberta com o mesmo pêlo dourado que tinha no peito. Samantha sabia
exatamente como tinha conseguido esses músculos: montando a cavalo, caçando,
passeando-se pela coberta de um navio, gritando ordens aos homens sob seu mando.
Aproximou-se um pouco mais à cama. Apesar dos
meses que tinha encerrado naquela casa, a tersa pele de suas costas não tinha
perdido do todo seu brilho dourado. Atraída por essa extensão de ouro fundido,
estendeu a mão. Embora seus dedos logo que roçaram sua pele, sentiu uma quebra
de onda de calor que percorreu todo seu corpo.
Apartou a mão horrorizada por seu descaramento.
Logo lhe jogou por cima o edredom e foi correndo à porta. Podia imaginar o que
pensariam a senhora Philpot e outros criados se a viam sair da quarto do conde
ao amanhecer com a cara ruborizada e os olhos sonolentos.
Agarrando-se ao corrimão, baixou as escadas nas
pontas dos pés apressadamente.
Quando estava a ponto de chegar a seu patamar
ouviu um agudo tinido que descia do piso de acima.
Samantha ficou paralisada, horrorizada pela idéia
de que Gabriel pudesse ter fingido que estava dormindo.
A campainha voltou a soar com mais insistência
ainda.
Afundando os ombros, Samantha deu devagar a volta
e subiu de novo as escadas.
Para a tarde o eco infernal da campainha parecia
haver-se instalado de forma permanente na cabeça de Samantha. Quando estava a
quatro patas no chão do vestidor de Gabriel, estirando-se para recolher um lenço
de seda que se escorregou, voltou a soar o tinido. Ao levantar-se deu um golpe
na cabeça com a prateleira de acima. A prateleira se inclinou, e lhe caíram em
cima uma dúzia de chapéus de pele de castor.
Depois de livrar-se deles murmurou: — Não
compreendo como um homem com uma só cabeça pode necessitar tantos chapéus.
Saiu dos sufocantes limites do vestidor com o
cabelo empapado de suor pego à cabeça e um lenço em cada mão como um par de
serpentes venenosas.
— Chamou, senhor? — grunhiu.
Embora o sol que se filtrava pela janela
projetava um halo angélico ao redor de seu emaranhado corto, a cara de Gabriel
tinha os rasgos taciturnos de um príncipe déspota acostumado a conseguir todos
seus caprichos.
— Estava-me perguntando onde teria ido — disse
com um tom acusatório mais grave que de costume.
— Estive tomando o sol na praia de Brighton —
respondeu ela — Não pensava que me sentiria falta de.
— Houve alguma notícia de meu pai ou de seus
médicos?
— Não desde que perguntei faz dez minutos.
Ele apertou a boca em uma silenciosa
recriminação. Os dois tinham estado todo o dia de mau humor. Apesar de ter
dormido toda a noite, a Samantha seguia atormentando esse sonho escorregadio e a
possibilidade de que ele houvesse sentido suas ridículas carícias. E se pensava
que era uma velha criada patética que morria porque a tocasse um homem?
Desesperada-se por restabelecer uma correção
aparente entre eles, disse com firmeza: — Estive a metade do dia em seu vestidor
ordenando seus lenços por tecidos e comprimentos como me ordenou. Seguro que não
há nada tão urgente que tenha prioridade sobre isso.
— Aqui dentro faz calor. — Gabriel se levou uma
mão à frente — Acredito que tenho febre. — Ao jogar as mantas para trás deixou
ao descoberto uma parte de perna bem musculosa.
Samantha agradeceu que essa manhã se pôs umas
calças, embora só lhe chegassem até o joelho.
Sem dar-se conta, passou-se um dos lenços por seu
acalorado pescoço.
— Hoje faz um dia muito caloroso. Possivelmente
se abrir as janelas...
Quando estava cruzando a habitação disse de
repente: — Não se preocupe. Já sabe que o aroma de lilás me faz cócegas no nariz
e me faz espirrar. — Desabando-se sobre os travesseiros, moveu a mão de um lado
a outro — Talvez poderia me abanar um momento.
Samantha deixou cair a mandíbula.
— Não gosta de também que lhe dê umas uvas
frescas à boca?
— Se você quiser. — Agarrou a campainha — Peço
umas quantas?
Samantha apertou os dentes.
— Por que não toma melhor um pouco de água fria?
Sobrou algo de seu almoço.
Depois de deixar os lenços sobre o espelho de
corpo inteiro que havia na esquina, Samantha serviu uma taça de água da jarra de
barro que estava sobre o console, que tinha sido desenhada para manter fresca a
água de manancial. Enquanto se aproximava da cama não podia deixar de pensar que
se Gabriel não fosse cego a olharia com tanta suspicacia como ela a ele.
— Aqui tem — disse lhe pondo a taça na mão.
Ele se negou a fechar os dedos a seu redor.
— Por que não faz você as honras? Estou um pouco
cansado — suspirou — Esta noite não dormi muito bem. Sonhei que havia um filhote
de urso grunhindo na habitação do lado. Foi muito angustiante.
Apoiou-se nos travesseiros separando os lábios
como um passarinho esperando a que sua mãe lhe desse de comer. Samantha lhe
olhou em silencio durante um comprido momento antes de levantar a taça. O jorro
de água fria caiu sobre a cara de Gabriel, que se incorporou rapidamente
balbuciando e amaldiçoando.
— Maldita mulher! Pretende me afogar?
Samantha se separou da cama e voltou a deixar a
taça no bordo da mesa.
— Isso seria muito bom para alguém como você.
Sabe muito bem que ontem à noite não havia um filhote de urso dormindo na
habitação do lado. Era eu! Como se atreve a tomar-se essas liberdades com minha
pessoa?
Gabriel piscou a água das pestanas com uma
expressão ofendida e desconcertada.
— Não tenho nem a menor ideia do que está
falando.
— Tirou-me os óculos!
Ele soltou uma gargalhada de incredulidade.
— Por sua forma de falar qualquer diria que lhe
tirei a roupa.
Samantha se agarrou o pescoço de seu singelo
vestido verde garrafa.
— Como sei que não o fez?
O silêncio que ficou flutuando entre eles era
mais espesso que o ar quente. Logo sua escura voz entrou em um território
perigoso.
— Se lhe tivesse tirado a roupa, senhorita
Wickersham, posso lhe assegurar que teria merecido a pena despertá-la. — antes
de que Samantha pudesse decidir se isso era uma promessa ou uma ameaça,
prosseguiu — O único que fiz foi lhe tirar os óculos e tampá-la. Só estava
tentando que se encontrasse cômoda.
Para sua surpresa, um rubor de culpabilidade se
estendeu por suas bochechas. Não teria pensado que fosse capaz de ruborizar-se,
embora as mentiras e as verdades pela metade saíssem de sua boca com tanta
facilidade.
Voltou a acomodar-se entre as mantas com uma
expressão mais autoritária que nunca.
— Agora, se tiver terminado com meu banho
improvisado, seria tão amável de me dar uma toalha?
Samantha se cruzou de braços.
— Pegue você mesmo.
Gabriel arqueou uma sobrancelha dourada esticando
sua cicatriz.
— Desculpe?
— Se quiser uma toalha, pegue-a você mesmo. Estou
cansada de lhe servir. Pode que esteja cego, mas tem dois braços e duas pernas
perfeitamente capazes.
Confirmando suas palavras, jogou as mantas para
trás e ficou em pé ultrapassando-a. A campainha caiu ao chão com um ruído
discordante, rodando um pouco pela habitação.
Samantha tinha esquecido quão impressionante
podia ser quando não estava convexo entre os lençóis. Sobre tudo quando só
levava umas desgastados calças de ante até os joelhos.
Embora sua proximidade fez que lhe acelerasse a
respiração e sua pele se estremecesse, negou-se a retroceder nem um só passo.
— Preciso lhe recordar, senhorita Wickersham, que
se não gosta das condições de trabalho que há aqui só tem que apresentar sua
demissão?
— Muito bem, senhor — disse com uma fria e calma
- Isso é o que vou fazer. Me demito.
Uma expressão de surpresa quase cômica lhe cruzou
a cara.
— O que quer dizer com se demite?
— Quero dizer que vou cobrar meu salário,
recolher minhas coisas e abandonar sua casa antes de que escureça. Se quiser
direi ao Beckwith que ponha outro anúncio no periódico antes de ir.
Sugeriria-lhe que esta vez oferecesse um salário mais extravagante ainda, embora
nenhuma quantidade de dinheiro compensaria suportar suas ridículas exigências
durante mais de uma hora.
— Girando sobre seus talões, foi para a porta.
— Senhorita Wickersham, volte aqui imediatamente!
É uma ordem!
— Vou — disse ela por cima do ombro com uma
alegria selvagem correndo por suas veias — Já não estou obrigada a obedecer suas
ordens! — Ignorando seus grunhidos, Samantha saiu pela porta e a fechou de
repente detrás dela com uma grande satisfação.
Gabriel ficou junto à cama com a portada
ressonando em seus ouvidos. Tudo tinha sido tão rápido que ainda estava tentando
assimilá-lo. Os homens que tinha tido sob seu mando nunca se atreveram a
questionar suas ordens, mas essa enfermeira obstinada lhe tinha desafiado
descaradamente.
Tinha ganho, recordou-se a si mesmo. Uma vez
mais. Tinha conseguido exatamente o que queria: sua demissão. Deveria estar
triunfante.
— Senhorita Wickersham! — vociferou indo detrás
dela.
As horas que tinha passado prostrado na cama
tinham feito estragos em seu equilíbrio e seu sentido da orientação. Quando logo
que tinha dado três passos seu tornozelo se enganchou com uma pata do console.
Tanto ele como a mesa começaram a balançar-se. Então algo se escorregou de sua
polida superfície e se produziu uma explosão de cristais quebrados.
Era muito tarde para deter sua queda. Gabriel
caiu para diante pesadamente sentindo uma pontada perto da garganta. ficou ali
convexo um momento tentando recuperar o fôlego. Mas quando tentou levantar um
forte enjôo lhe levou de novo ao chão.
Sua mão aterrissou em um atoleiro quente e úmido.
Durante um minuto pensou que era água da taça e a jarra que se quebrado. Mas
quando se tocou as pontas dos dedos estavam pegajosas.
— Maldita seja — murmurou ao dar-se conta de que
era seu próprio sangue.
De fato parecia uma maldição, porque o atoleiro
de sangue que tinha debaixo era cada vez maior.
Durante um breve instante se encontrou de novo na
coberta do Victory com o nariz alagado pelo fedor do sangue, que não era toda
dela. Um terrível rugido invadiu seus ouvidos, como o rugido de um mar faminto
disposto a tragar-lhe Gabriel estendeu um braço, procurando algo que pudesse
agarrar para não cair nesse profundo abismo. Seus dedos mediram uma forma
familiar: a cabo de madeira de sua campainha.
Arrastou-a para ele, mas o esforço lhe deixou
muito fraco para levantá-la.
Deixou cair a cabeça pensando no irônico e
indigno que era todo isso. Tinha sobrevivido ao Trafalgar para morrer sangrado
no chão de sua própria quarto, traído por um móvel e uma enfermeira mordaz e
dominante. Perguntou-se se a fria senhorita Wickersham choraria em seu enterro.
Enquanto sentia como ia a vida, essa idéia quase lhe fez sorrir.
— Senhorita Wickersham? — chamou fracamente.
Depois de dedicar suas últimas forças a tocar uma vez mais a campainha, sua voz
se afundou em um rouco sussurro — Samantha?
Logo o tinido da campainha e o rugido de seus
ouvidos se converteram em um silêncio tão negro e opressivo como a eterna
escuridão.
Capítulo 6
Querida senhorita March,
Embora me considere perverso e impertinente, apostaria a que essas são
exatamente as qualidades que encontra mais irresistíveis em um homem...
— É insofrível — murmurou Samantha para seus
adentros enquanto colocava uma saia de cetim em seu baú sem incomodar-se em
dobrá-la.
Logo enrolou umas anáguas puídas e as colocou
depois da saia feitas uma bola — Não sei como pude ser tão parva para pensar que
poderia lhe ajudar.
Enquanto ia e vinha por sua modesta quarto
recolhendo forquilhas e sapatos, meias e livros, ouviu um golpe muito familiar
que vinha do piso superior. O teto tremeu, e lhe caíram sobre a cabeça trocitos
de estuque.
Nem sequer olhou para cima.
— Pode que seja tola, mas não voltarei a cair
nesse engano — disse negando com a cabeça — Se quer andar por aí como um
elefante em uma cacharrería, terá que aprender a arrumar-lhe sozinho.
Enquanto estava guardando os livros em sua mala
ouviu o som amortecido de uma campainha, tão breve e suave que poderia havê-lo
imaginado. Colocando uma novela do Sir Walter Scott depois de um volume de
sonetos do Shakespeare, soprou. O parvo era Gabriel se pensava que poderia
persuadi-la com esse patético tinido.
Estava tão preocupada recolhendo suas coisas do
penteadeira que passaram vários minutos mais antes de que se desse conta do que
estava ouvindo.
Um silêncio mortal.
Com um espelho e uma escova na mão, Samantha
lançou ao teto um olhar vacilante.
Uma sensação de formigamento lhe subiu pela
coluna vertebral, mas a desprezou em seguida.
Provavelmente Gabriel havia tornado arrastando-se
à cama.
Quando foi agarrar o frasco de colônia de limão
se deu conta de que estava duvidando.
Sentando-se no tamborete do penteadeira, olhou
seu reflexo. Era um espelho velho, com o cristal picado e ondulado, e a mulher
que a olhava parecia uma estranha. Samantha se tirou os óculos, mas seguiu sem
reconhecer a expressão pensativa de seus olhos.
Estava sendo valente ou covarde? Estava-se
enfrentando ao Gabriel porque era um tirano impossível de agradar, ou estava
fugindo porque se atreveu a lhe pôr as mãos em cima? Tocou-se o cabelo, a
bochecha e os lábios seguindo o caminho de seu sonho. De algum modo, a
arrogância de Gabriel parecia mais fácil de suportar que sua ternura. E muito
menos perigosa para seu castigado coração.
Ficando de novo os óculos, levantou-se para
colocar o frasco de colônia na mala.
Demorou menos de uma hora em eliminar da
habitação todos os signos de sua breve ocupação. Quando se estava atando os
pequenos botões de cobre de sua jaqueta alguém começou a bater na porta de seu
quarto.
— Senhorita Wickersham! Senhorita Wickersham!
Está aí?
Agarrando seu chapéu, Samantha abriu a porta.
— Bem a tempo, Beckwith. Estava a ponto de chamar
um criado para que baixasse minha bagagem.
O aturdido mordomo nem sequer olhou sua mala e
seu baú.
— Tem que vir comigo, senhorita Wickersham! O
senhor a necessita!
— O que ocorre agora? Tem um picor que não pode
alcançar? Ou lhe ficaram os lenços flácidos por estar pouco engomados? — atou-se
os laços de seu chapéu debaixo do queixo — Seja qual seja a estúpida mutreta que
se inventou, posso lhe assegurar que seu amo não me necessita.
Nunca me necessitou. — A Samantha surpreendeu
quanto lhe doía ouvir essas palavras saindo de sua boca.
Então Beckwith, o guardião dos bons maneiras,
agarrou-lhe o braço e tentou tirar a da habitação.
— Por favor, senhorita — suplicou — Não sei o que
fazer! Temo-me que morrerá sem você!
Ela cravou os talões no chão, obrigando ao
Beckwith a deter-se.
— OH, por favor! Não é necessário que seja tão
dramático. Estou segura de que ao conde irá estupendamente sem mim. Nem sequer
se dará conta de que… — Samantha piscou ao mordomo, lhe vendo realmente pela
primeira vez desde que tinha aberto a porta.
Beckwith tinha o colete enrugado, e o escasso
cabelo que cuidava tão já não estava pego à cabeça, a não ser arrepiado em todas
direções, revelando seu brilhante couro cabeludo. Seu olhar se centrou nos dedos
rechonchos que lhe agarravam o braço. Dedos com uma cor avermelhada que já
estavam deixando uma mancha visível na lã de sua manga.
Lhe subiu o coração à garganta.
Torcendo o braço para livrar-se dele, Samantha se
recolheu a saia, foi correndo pelo corredor e subiu as escadas de dois em dois.
A porta da quarto de Gabriel estava ainda
entreaberta.
Ao princípio Samantha só viu o Gabriel convexo de
barriga para baixo no chão, e se levou uma mão à boca para sufocar um grito de
impotência.
A senhora Philpot estava ajoelhada ao outro lado,
lhe pressionando a garganta com um lenço que já estava empapado de sangue. Não
era difícil deduzir o que tinha ocorrido. A seu redor o estou acostumado a
estava coberto de fragmentos de barro e cristal.
Samantha entrou correndo na habitação e ficou de
joelhos sem prestar atenção à pontada que sentiu quando uma parte de cristal
atravessou as dobras de sua saia. Enquanto levantava o lenço para examinar a
feia ferida da garganta de Gabriel, a senhora Philpot voltou a ficar em
agachada, ansiosa por lhe ceder a desagradável tarefa.
A governanta se apartou uma mecha de cabelo dos
olhos, deixando uma mancha de sangue de Gabriel em sua bochecha.
— Encontramo-lhe ao subir o chá. Não tenho nem
idéia de quanto tempo esteve assim.
— A mulher percorreu com seu olhar a jaqueta e o
chapéu de Samantha sem perder-se nem um detalhe. Logo levantou a campainha de
Gabriel com rastros de sangue na cabo de madeira — encontrei isto perto de sua
mão. Deve ter tentado chamar para pedir ajuda, mas ninguém lhe ouviu.
Samantha fechou um momento os olhos, recordando o
débil tinido que tinha ignorado com tanta frieza. Ao abri-los viu o Beckwith na
porta retorcendo seus rechonchas mãos.
— Há um médico no povoado? — perguntou.
Beckwith assentiu.
— Vá lhe buscar imediatamente. Lhe diga que pode
ser questão de vida ou morte. — Ao ver que o mordomo ficava ali parado, incapaz
de apartar a vista de seu amo, Samantha gritou — Vamos!
Enquanto Beckwith se livrava de seu atordoamento
e ficava em marcha, a senhora Philpot se levantou para agarrar um dos lenços
limpos que havia sobre o espelho de corpo inteiro.
Samantha o agarrou da mão e o pôs ao Gabriel na
garganta. Embora a ferida seguia sangrando parecia sangrar cada vez menos.
Samantha só podia rezar para que não fora porque se estava morrendo.
Fazendo gestos à senhora Philpot para que se
ocupasse do lenço, agarrou-lhe pelos ombros decidida a assegurar-se de que não
perdia sangue por nenhum outro sítio. Teve que empregar todas suas forças, mas
com a ajuda do governanta conseguiu lhe dar a volta sobre seus braços. Salvo por
umas pequenas manchas de sangue e o corte de sua cicatriz, tinha a cara limpa.
— Estúpido teimoso — murmurou com a voz quebrada
— Olhe o que te tem feito agora.
Então suas pestanas se separaram lentamente para
revelar esses fascinantes olhos verdes.
Enquanto girava a cabeça e a olhava com uma
claridade cristalina, Samantha ficou paralisada. Logo voltou a fechar os olhos,
como se se tivesse dado conta de que não merecia a pena incomodar-se.
— É você, senhorita Wickersham? — sussurrou — A
chamei.
— Sei. — Apartou-lhe uma mecha de cabelo da
frente — Agora estou aqui. Não penso ir a nenhuma parte.
Ele franziu o cenho.
— Ia dizer lhe que se fora ao inferno.
Samantha sorriu através de uma nuvem de lágrimas.
— É uma ordem, senhor?
— Se fosse não a obedeceria — murmurou — Fulana
impertinente.
Enquanto Gabriel voltava a perder o conhecimento
com a cabeça pendurando sobre seu peito, Samantha decidiu que foi sua debilidade
o que fez que seu insulto soasse como uma carícia.
Quando o doutor Thaddeus Greenjoy saiu da
habitação de Gabriel quase duas horas mais tarde se encontrou a todo o serviço
do conde esperando no corredor. A senhora Philpot estava sentada em uma cadeira
de respaldo reto com seu lenço de encaixe sobre seus lábios trementes. A seu
lado se encontrava Beckwith com uma expressão muito triste, enquanto o resto dos
criados estavam apinhados no alto das escadas cochichando entre eles.
Só Samantha estava sozinha. Embora o médico tinha
permitido às criadas varrer os cristais e aos criados levar ao Gabriel à cama e
lhe cortar as calças empapadas de sangue, negou-se a que ninguém lhe assistisse
enquanto examinava a seu paciente, incluída a enfermeira do conde.
Enquanto fechava devagar a porta detrás dele,
Samantha deu um passo adiante, levando ainda sua enrugada jaqueta manchada de
sangue, e conteve o fôlego esperando a que confirmasse seus piores temores.
O médico percorreu com seu olhar suas caras
sombrias.
— Acredito que detive a hemorragia por agora. O
cristal lhe cortou o jugular. Um centímetro mais e haveria outro nome na cripta
familiar dos Fairchild. — O médico moveu a cabeça com seu branco bigode, com o
que parecia uma cabra velha — É um homem com sorte. Alguém deveria ter estado
lhe cuidando hoje.
Embora todos os serventes sentiram um grande
alívio, nenhum deles podia olhar a Samantha. Sabia exatamente o que estavam
pensando.
Era a enfermeira de seu amo. Supunha-se que era
ela quem devia lhe cuidar. Mas lhe tinha deixado sozinho justo quando mais a
necessitava.
Como se pudesse ouvir seus pensamentos, o médico
vociferou: — É você sua enfermeira?
Fazendo um esforço para não vacilar, Samantha
assentiu.
— Sim.
Ele se esclareceu garganta para lhe demonstrar o
que pensava disso.
— As jovens como você deveriam estar por aí
tentando caçar um marido, não encerradas no quarto de um doente. — Abriu sua
maleta e lhe deu um frasco marrom — Dê a ele um pouco disto para que durma toda
a noite. Mantenha a ferida limpa. E que esteja na cama pelo menos três dias. —
As sobrancelhas brancas do médico se juntaram sobre seu proeminente nariz — Não
será muito para você, verdade, querida?
Enquanto uma escandalosa imagem dela e Gabriel
rodando nus por um campo de rosas acetinadas passava por sua mente, Samantha se
deu conta horrorizada de que se estava ruborizando.
— É obvio que não, senhor. Ocuparei-me de que
cumpra todas suas ordens.
— Se o fizer, esse robusto jovem voltará a estar
em pé em seguida.
O médico fechou sua maleta e começou a baixar as
escadas. Os criados ficaram um momento conversando de duas em duas com suas
caras mais animadas.
Beckwith, a alma da discrição, esperou até que
ninguém pudesse lhe ouvir antes de aproximar-se de Samantha.
— Segue querendo que um criado baixe sua bagagem,
senhorita?
Ela não pôde encontrar nenhuma pingo de
brincadeira nos suaves olhos marrons do mordomo.
— Parece-me que não, Beckwith. Agora, se me
desculpa — disse lhe dando um apertão de agradecimento no braço — acredito que
seu amo me necessita.
Samantha passou essa noite cuidando de Gabriel o
melhor que pôde: olhando sua atadura para ver se sangrava, lhe dando láudano
quando começava a mover-se e a queixar-se e comprovando se tinha febre. Para o
amanhecer a cor estava começando a voltar para suas bochechas. Só então se
atreveu a apoiar a cabeça no respaldo da cadeira que tinha aproximado da cama e
a fechar seus olhos exaustos.
Quando soaram uns tímidos golpes na porta
despertou sobressaltada. A luz do sol entrava pela janela abuhardillada do fundo
da habitação.
Olhou alarmada ao Gabriel, mas lhe encontrou
profundamente dormido, subindo e baixando o peito regularmente com cada
respiração. Se não fora por suas olheiras, ninguém teria imaginado que tinha
sobrevivido a uma prova tão dura.
Ao abrir a porta Samantha viu no corredor ao
Peter com uma bacia cheia de trapos e uma jarra de água quente. O jovem criado
lançou um olhar nervoso à cama.
— Sinto incomodá-la, senhorita. Mandou-me a
senhora Philpot para banhar ao senhor.
Samantha jogou uma olhada por cima do ombro.
Gabriel era tão impressionante dormido como acordado. Mas não ia evitar mais
suas responsabilidades. Sua negligência tinha estado a ponto de lhe matar.
Tragando-se seu nervosismo, disse: — Não será
necessário, Peter.
— Phillip — lhe corrigiu.
— Phillip — lhe agarrando a bacia e a jarra,
disse com firmeza — Sou sua enfermeira.
Eu lhe banharei.
— Está segura, senhorita? — ruborizando-se
debaixo de suas sardas, baixou a voz até sussurrar — Será correto?
— É obvio que sim — lhe assegurou fechando a
porta com o pé.
Samantha deixou a bacia na mesa que havia junto à
cama e logo esvaziou a jarra nela.
Tremiam-lhe tanto as mãos que a água lhe salpicou
toda a saia. Não era necessário que estivesse tão nervosa, arreganhou-se. Banhar
ao Gabriel era simplesmente outra de suas obrigações, como trocar uma atadura ou
lhe dar uma medicina na boca.
Acalmou seus temores dedicando toda sua atenção a
limpar as manchas de sangue de seu rosto e sua garganta. Mas quando chegou o
momento de apartar o lençol vacilou. Supunha-se que era uma mulher de mundo, uma
mulher que não deveria assustar-se ante a perspectiva de ver um homem nu. Em seu
atual estado, disse-se a si mesmo com firmeza, atender ao Gabriel era como
banhar a um menino pequeno.
Mas enquanto dobrava o lençol para baixo,
deixando ao descoberto seu musculoso peito e seu terso abdômen, resultou
evidente que não era um menino, a não ser um homem, e extremamente viril.
Colocando o trapo na água quente, Samantha o
passou pelas colinas e os vales de seu peito, eliminando até o último rastro de
sangue seca.
As reluzentes gotas de água ficavam nos cachos
dourados de seu peito. Quando uma especialmente atrevida se deslizou por debaixo
do lençol enrolado sobre seus estreitos quadris, seguiu-a com o olhar,
hipnotizada pelo estímulo do proibido.
Tinha-lhe assegurado ao Phillip que era correto
que lhe banhasse. Mas não havia nada correto na repentina secura de sua boca,
sua respiração agitada e o perverso desejo de levantar esse lençol e jogar uma
olhada debaixo.
Lançou um olhar furtivo à porta desejando havê-la
fechado.
Mordendo o lábio inferior, Samantha agarrou o
bordo do lençol com o índice e o polegar e o subiu para cima centímetro a
centímetro.
— Sou eu ou há corrente aqui?
Para ouvir essa escura voz de barítono, um pouco
fraco, mas tão zombadora como sempre, Samantha deixou cair o lençol como se
estivesse ardendo.
— Desculpe, senhor. Só estava comprovando seu...
— Circulação? — disse movendo uma mão para ela —
Siga, por favor. Não quisesse que deixasse de satisfazer sua… curiosidade. Por
minha saúde, é obvio.
— Quanto tempo leva consciente? — perguntou
Samantha enquanto aumentavam suas suspeitas.
Ele se estirou, fazendo que se ondulassem os
tersos músculos de seu peito.
— OH, desde antes de que Phillip batesse na
porta.
Recordando como tinha acariciado os contornos
esculpidos da parte superior de seu corpo, Samantha quis desaparecer.
— Esteve acordado todo o tempo? Não posso
acreditar que fora a me deixar...
— O que? — piscando com seus olhos cegos, parecia
o vivo retrato da inocência — Que cumprisse com suas obrigações?
Samantha fechou a boca, sabendo que não podia
seguir discutindo sem incriminar-se, e subiu o lençol para cima de um puxão para
proteger seu peito nu de seu olhar.
— Se tiver problemas para descansar posso lhe dar
mais láudano.
Ele se estremeceu.
— Não, obrigado. Prefiro que me aduela a não
sentir nada. Assim ao menos sei que estou vivo. — Enquanto ela olhava a atadura,
esboçou um triste sorriso que fez que lhe encolhesse o coração — Só espero que
não deixe uma cicatriz que danifique meu aspecto.
Lhe apartando o cabelo revolto, Samantha apoiou
uma mão em sua frente. Curiosamente, era ela a que parecia ter febre.
— Agora mesmo a vaidade deveria ser sua última
preocupação. Tem sorte de estar vivo, sabe?
— Isso dizem. — antes de que ela pudesse tirar a
mão, agarrou-lhe a boneca e a pôs em meio dos dois — Mas o que tem que sua
sorte, senhorita Wickersham? Não deveria estar de novo em Londres mostrando sua
compaixão a um marinheiro agradecido que a olharia com olhos de cordeiro e
pediria sua mão assim que ficasse em pé?
— E onde estaria aí a provocação? — perguntou
Samantha brandamente incapaz de apartar a vista desses grandes dedos masculinos
curvados ao redor de sua delicada boneca, com o polegar sobre seu acelerado
pulso — Prefiro esbanjar minha compaixão com bestas ingratas com mau caráter. Se
queria que ficasse, não era necessário que se cortasse o pescoço. Poderia haver
me pedido isso amavelmente.
— Arruinando minha reputação de besta? Não
acredito. Além disso, só a estava chamando para ter o prazer de despedi-la
pessoalmente. — Passou o polegar pela palma de sua mão em um pouco parecido a
uma carícia.
— Bom, agora não posso ir — disse ela
animadamente — Minha consciência não me permitirá partir até que se recupere por
completo de sua queda.
Ele suspirou.
— Então suponho que terá que ficar. Não queria
manchar uma consciência tão antiga como a sua.
Desconcertada por suas palavras, Samantha deu um
puxão para livrar-se dele. Seus dedos deixaram uma marca vermelha na pele de sua
boneca.
— Embora não é de tudo perfeita — acrescentou
assinalando para a cadeira — Rouca enquanto dorme.
— E a você lhe cai a baba — replicou atrevendo-se
a lhe tocar um instante a esquina da boca.
— Touché, senhorita Wickersham! Sua língua é tão
afiada como seu engenho.
Possivelmente deveria chamar o médico antes de
que comece a sangrar de novo. — Baixou o lençol até a cintura e tirou as pernas
da cama — Melhor ainda, irei lhe buscar eu mesmo. Apesar de meu pequeno
contratempo, esta manhã me sinto assombrosamente vivo.
— OH, não! — Samantha lhe agarrou pelos ombros e
voltou a lhe recostar nos travesseiros — O doutor Greenjoy disse que tem que
estar na cama pelo menos três dias. — Franziu o cenho — Embora não me disse o
que devia fazer para lhe manter nela.
Acomodando-se de novo entre os travesseiros,
Gabriel pôs as mãos detrás da cabeça com um brilho de maldade em seus olhos.
— Não se preocupe, senhorita Wickersham. Estou
seguro de que lhe ocorrerá algo.
A chuva repicava contra as janelas da habitação
de Gabriel. Em vez de lhe ajudar a dormir, seu incessante ritmo lhe alterava
ainda mais os nervos. Qualquer esperança de escapar de sua prisão nos dois
últimos dias tinha sido obstaculizada pela constante presencia de sua
enfermeira.
Sua crescente inquietação parecia amplificar os
sons da habitação: o rangido da cadeira junto à janela quando a senhorita
Wickersham se afundava um pouco mais nas almofadas, o de seus dentes ao morder
uma rangente maçã, o do papel quando passava a página de seu livro.
Empregando a memória e a imaginação, Gabriel
quase podia vê-la ali, no sítio que tinha ocupado com tanta freqüência quando
era pequeno e essa era quarto de seus pais. O abajur da mesa do lado projetava
um suave oásis de luz a seu redor, mantendo afastadas as sombras.
Provavelmente tinha os pés debaixo dela para
proteger os da umidade que se filtrava pelo zócalo os dias de chuva.
Enquanto dava outra dentada à maçã viu como
cravava os dentes brancos em sua deliciosa pele-vermelha e como tirava sua
pequena língua para agarrar uma gota de suco na esquina de sua boca.
Provavelmente levava um desses ridículos lenços
de linho e encaixe que as mulheres ficavam no alto da cabeça. Mas por muito que
se concentrasse não conseguia ver seu rosto.
Tamborilou os lençóis com seus largos dedos
enquanto sua frustração ia em aumento.
Esclareceu-se garganta, mas a única resposta que
obteve foi o rangido de outra página ao passar.
Voltou a esclarecer a garganta, esta vez com a
força de um pontapé.
Seus esforços foram recompensados com um suspiro
de resignação.
— Está completamente seguro de que não quer que
lhe leia em voz alta, senhor?
— Eu diria que não — respondeu — Me sentiria como
se tivesse voltado para a infância.
Samantha se encolheu de ombros.
— Como quero. Não queria perturbar seu mau humor.
Gabriel lhe deu o tempo suficiente para voltar a
centrar-se na história antes de dizer: — O que está lendo?
— Uma peça de teatro. Speed the Plough, do Thomas
Morton. É uma comédia de costumes muito ameno.
— Vi-a faz tempo no Teatro Real, no Drury Lane.
Estou seguro de que se sentirá identificada com a senhora Grundy — disse
refirindo-se *a esse bastión* da dissimulação que não aparece nunca em cena — Eu
teria pensado que gostaria mais uma tragédia do Goethe. Um sinistro relato moral
no qual um pobre desgraçado acaba condenado para toda a eternidade por
vislumbrar uma meia ou algum outro pecado imperdoável.
— Prefiro pensar que nenhum pecado é imperdoável.
— Então invejo sua inocência — respondeu surpreso
ao dar-se conta de que o tinha feito.
O som de outra página ao passar lhe disse que
preferia ler a discutir com ele. Quando se estava resignando a jogar uma larga
sesta ela riu em voz alta.
Gabriel franziu o cenho irritado e levantou uma
perna sujeitando os lençóis com cuidado sobre seu regaço.
— Riu-se ou lhe há indigestado a maçã?
— OH, não é nada — respondeu ela alegremente — Só
uma passagem especialmente graciosa.
Depois de outra risita, Gabriel vociferou: — Não
acredita que é de má educação desfrutar de sozinha de tanto brilhantismo
literário?
— Pensava que não queria que lhe lesse.
— Considere-o curiosidade morbosa. Morro por
saber o que lhe faz graça a uma criatura tão insípida como você.
— Muito bem.
Enquanto seguia lendo um divertido diálogo entre
dois irmãos que estavam apaixonados pela mesma dama, Gabriel ficou surpreso ao
descobrir que sua enfermeira se equivocou de vocação.
Deveria haver-se dedicado ao teatro. Suas
perfeitas inflexões faziam que os personagens cobrassem vida. Antes de que
pudesse dar-se conta, Gabriel se encontrou sentado na cama inclinando-se para o
som de sua voz.
Em meio de uma brincadeira um pouco picante, ela
se deteve metade de frase.
— Me perdoe. Não pretendia interromper seu
descanso.
Ansioso por saber como acabava a cena, ele fez um
gesto para desprezar sua desculpa.
— Pode terminar. Suponho que inclusive seu
falatório infernal é preferível ao som de meus pensamentos.
— Imagino que se cansará em seguida.
Ao Gabriel não custou imaginar seu sorriso
afetado enquanto voltava a colocar a cabeça atrás do livro. Mas ao menos fez
conta, continuando onde o tinha deixado e lendo a obra até o final.
Ao terminar o último ato, ambos lançaram um
suspiro de satisfação.
Quando Samantha falou finalmente já não havia
dureza em sua voz.
— O aborrecimento deve ser seu pior inimigo,
senhor. Estou segura de que antes da guerra desfrutava de muitos… prazeres.
Era sua imaginação ou tinha acariciado a palavra
com sua voz?
— O aborrecimento era meu pior inimigo até que
chegou você ao Fairchild Park.
— Se me permitir isso, poderia lhe ajudar a
aliviar um pouco seu tédio. Poderia lhe levar a dar largos passeios pelo jardim.
Poderia lhe ler em voz alta todas as tardes. Inclusive poderia lhe ajudar com a
correspondência se quiser. Tem que haver alguém a quem lhe faça ilusão ter
notícias delas. Seus companheiros da Marinha? Sua família? Seus amigos de
Londres?
— Para que vou danificar suas boas lembranças? —
perguntou secamente — Seguro que preferem pensar que estou morto.
— Não seja ridículo — lhe arreganhou — Estou
segura de que todos se alegrarão ao receber uma breve nota em que lhes diga como
vai.
Ao Gabriel desconcertou o enérgico som de seus
passos cruzando a habitação, até que ouviu abrir a gaveta do escritório.
Atuando instintivamente, jogou as mantas para
trás e se lançou para o som. Esta vez o desespero aguçou sua pontaria em vez de
entorpecêla.
Suas mãos se fecharam sobre os contornos
familiares da gaveta e o fecharam de repente. Quando estava a ponto de exalar um
suspiro de alívio, deu-se conta de que o suave e quente objeto apanhado entre
seus braços estendidos era sua enfermeira.
Capítulo 7
Querida Cecily,
Agora que me atrevi a me dirigir a você por seu primeiro nome, posso
imaginar meu nome formado por seus deliciosos lábios?
Durante um instante Samantha nem sequer se
atreveu a respirar. O hipnótico repico da chuva, a suave penumbra e o quente
fôlego de Gabriel sobre seu cabelo a deixaram suspensa em um estado no qual o
tempo não tinha nenhum sentido. Gabriel também parecia estar hipnotizado. Essa
manhã ela tinha insistido em que ficasse uma camisa, mas não tinha insistido em
que a atasse. O largo peito apoiado sobre suas costas logo que parecia mover-se.
Seguia com as mãos contra a gaveta do escritório, com seus musculosos braços em
tensão.
Embora sua embaraçosa postura não fosse
precisamente um abraço, Samantha não pôde evitar pensar no fácil que lhe
resultaria pôr seus braços a seu redor e lhe atrair para o calor de seu corpo
até que não tivesse mais remédio que fundir-se com ele.
Ficou rígida. Não era uma jovenzinha sonhadora
sem caráter que se deixava seduzir pelo primeiro cavalheiro que o fazia um
sinal.
— Me perdoe, senhor — disse rompendo o perigoso
feitiço — Não pretendia ser indiscreta. Só estava procurando tinta e papel de
escrever.
Gabriel baixou os braços, mas foi Samantha quem
se apartou rapidamente para pôr certa distância entre eles. Sem seu calor
rodeando-a, a umidade que logo que tinha notado antes lhe meteu nos ossos, que
de repente pareciam velhos e quebradiços. Sentando-se de novo na cadeira junto à
janela, sentiu um calafrio.
Gabriel ficou um comprido momento em silêncio,
como se estivesse abstraído. Logo, em vez de lhe reprovar por entremeter-se como
esperava, abriu a gaveta. Suas mãos não vacilaram para encontrar o que havia
dentro. Quando se voltou e atirou o grosso pacote para ela, Samantha ficou tão
surpreendida que esteve a ponto de escapar das mãos.
— Se quer ler um pouco divertido, prove com estas
cartas. — Embora o desprezo escurecesse a cara de Gabriel, Samantha se deu conta
de que não era por ela — Como poderá comprovar, contêm todos os elementos com os
que normalmente se desfruta em uma farsa: uma brincadeira engenhosa, um romance
secreto, um idiota patético tão ébrio de amor que está disposto a arriscá-lo
tudo para conquistar o coração de sua amada, inclusive sua vida.
Ela olhou o pacote de cartas pacote com um laço.
O papel de linho estava desgastado, mas perfeitamente conservado, como se as
cartas se dirigiram muito, mas com grande cuidado.
Enquanto Samantha lhes dava a volta chegou ao
nariz um perfume de mulher tão doce e evocativo como as primeiras gardênias da
temporada.
Gabriel tirou a cadeira do escritório, deu-lhe a
volta e se sentou nela escarranchado.
— Adiante — ordenou fazendo um gesto para ela —
Se as ler em voz alta poderemos rir os dois.
Samantha acariciou os extremos do laço de seda
que fazia tempo tinha rodeado o brilhante cabelo de uma mulher.
— Não acredito que seja correto que leia sua
correspondência privada.
Ele se encolheu de ombros.
— Como quero. De todos os modos algumas obras é
melhor representá-las que as lê-las.
Por que não começo com o primeiro ato? — Dobrou
os braços sobre o respaldo da cadeira com uma expressão grave em seu rosto.
— O pano de fundo se levantou faz uns três anos,
quando nos conhecemos em uma festa na casa de campo de lorde Langley. Era muito
diferente às demais moças que tinha conhecido. A maioria não tinha nenhuma idéia
em suas bonitas cabeças além de caçar um marido rico antes que acabasse a
temporada. Mas ela era inteligente, divertida e culta. Podia falar de poesia e
política com a mesma facilidade.
Compartilhamos um só baile, e sem intercambiar
nem um beijo me roubou o coração.
— Roubou-lhe você o seu?
Seus lábios se curvaram em um triste sorriso.
— Tentei-o. Mas desgraçadamente me precedia minha
reputação de libertino. Como eu era um conde e ela a filha de um humilde barão,
pensou que só queria jogar com seus sentimentos.
Samantha não sabia se podia culpar a jovem. O
homem do retrato do corredor provavelmente tinha conquistado — e quebrado —
muitos corações.
— Eu teria pensado que tanto ela como sua família
estariam encantados de atrair a atenção de um nobre tão estimado, e rico.
— Isso é o que pensei eu — reconheceu Gabriel —
Mas ao parecer sua irmã maior esteve envolta em um desafortunado escândalo com
um visconde, uma entrevista à luz da lua, e a furiosa mulher do visconde. O
maior desejo de seu pai era que sua filha pequena se casasse com um
latifundiário, e inclusive com um clérigo.
Uma fugaz imagem de Gabriel com colar esteve a
ponto de fazer que Samantha risse em voz alta.
— Assim que você lhe teria decepcionado.
— Exatamente. Como não podia persuadi-la com meu
título, minha riqueza ou meus encantos, tentei conquistá-la com minhas palavras.
Durante vários meses intercambiamos largas
cartas.
— Secretamente, é obvio.
Ele assentiu.
— Se se tivesse sabido que mantinha
correspondência com um cavalheiro, sobre tudo com um de minha reputação, seu bom
nome teria ficado destruído.
— Entretanto estava disposta a correr esse risco
— assinalou Samantha.
— Eu acredito que os dois desfrutávamos com a
emoção do jogo. Quando nos encontrávamos cara a cara em um baile ou uma velada,
murmurávamos umas palavras amáveis e logo fingíamos indiferença. Ninguém sabia
que estava desejando levá-la a um rincão do jardim ou um quarto deserto e
beijá-la até perder o sentido.
Sua voz rouca fez que Samantha se estremecesse.
Embora tentasse resistir a tentação, viu o Gabriel passando uma mão por seu
cabelo dourado enquanto se passeava por um quarto escuro.
Viu o desejo que iluminava seus olhos ao cheirar
o perfume de gardênias de sua dama. Sentiu a força de seus braços ao fazê-la
passar pela cortina. Ouviu-lhe gemer enquanto se uniam seus lábios e seus
corpos, consumido pela sede irresistível do proibido.
— Qualquer teria pensado que me aborreceria com
um flerte tão inocente. Mas eu adorava suas cartas. — Moveu a cabeça com uma
expressão abstraída — Nunca tinha imaginado que a mente de uma mulher pudesse
ser tão fascinante. Para minha mãe e minhas irmãs não havia nada mais
interessante que a última fofoca dos Almack's ou os pratos de moda gastos de
Paris.
Samantha reprimiu um sorriso.
— Deve ser uma grande surpresa para você
descobrir que uma mulher podia ter uma mente tão aguda e perspicaz como a sua.
— Assim é — confessou lhe informando com seu
suave tom que tinha captado seu sarcasmo — Atrás de vários meses dessa deliciosa
tortura, escrevi-lhe e tentei convencê-la para que se fugisse comigo a Gretna
Green. Negou-se, mas não foi tão cruel para me deixar sem nenhuma esperança.
Prometeu-me que se podia demonstrar que tinha algum interesse neste mundo que
fora além de minha partida de cartas no Brook's, alguma paixão que não estivesse
relacionada com os cavalos, os cães de caça e as bailarinas da ópera, estaria
disposta a casar-se comigo, embora isso significasse desafiar os desejos de seu
pai.
— Que magnânima — murmurou Samantha.
Gabriel franziu o cenho.
— Entretanto não confiava de tudo em meu afeto.
Embora lhe jurasse meu amor apaixonadamente, no fundo pensava que seguia sendo
um irresponsável que tinha herdado o mais importante: meu título, minha riqueza,
minha posição social. — Arqueou uma sobrancelha em um gesto zombador, esticando
sua cicatriz — Incluso minha beleza.
A Samantha lhe estava começando a revolver o
estômago.
— Assim decidiu lhe demonstrar que estava
equivocada.
Ele assentiu.
— Alistei-me na Marinha Real.
— Por que a Marinha? Seu pai poderia lhe haver
conseguido uma prestigiosa fila no exército.
— E o que teria demonstrado com isso? Que tinha
razão? Que era incapaz de conseguir nada por meus próprios méritos? Se essa
tivesse sido minha intenção, poderia me haver unido à tropa para representar o
papel de herói. Não há nada como um uniforme e uns galões brilhantes nos ombros
de um homem para que uma dama gire a cabeça.
Samantha lhe viu entrando em um concorrido salão
de baile com o chapéu de três picos debaixo do braço e seu escuro cabelo
reluzente sob as luzes dos abajures. Sua impressionante figura teria feito que
todas as jovens solteiras se ruborizassem e sorrissem afetadamente detrás de
seus leques.
— Mas sabia que sua dama não giraria a cabeça com
tanta facilidade — se arriscou a dizer ela.
— E que não seria tão fácil conquistar seu
coração. Assim que me alistei sob o mando do Nelson, convencido de que a minha
volta estaria preparada para converter-se em minha esposa.
Sabendo que íamos estar separados vários meses,
enviei-lhe uma última carta lhe rogando que me esperasse. Prometendo-lhe que ia
me converter no homem e o herói que se merecia. — Tentou esboçar um sorriso —
Assim termina o primeiro ato. Não é necessário continuar, verdade? Já conhece o
final.
— Voltou a vê-la?
— Não — respondeu sem rastro de ironia em sua voz
— Mas ela me viu. Quando retornei a Londres veio ao hospital. Não sei quanto
tempo levava ali. Os dias e as noites eram intermináveis e indistinguíveis. —
tocou-se a cicatriz com um dedo — Devia parecer um monstro com os olhos cegos e
a cara destroçada. Duvido que soubesse que estava consciente. Ainda não tinha
forças para falar. Mas pude cheirar seu perfume como um sopro de ar celestial
entre o fedor infernal da cânfora e a carne podre.
— O que fez ela? — sussurrou Samantha.
Gabriel pôs uma mão sobre seu coração.
— Se o autor da obra tivesse sido mais
sentimental, sem dúvida alguma se teria arrojado sobre meu peito me jurando amor
eterno. Mas simplesmente partiu. Não era necessário, já sabe.
Dadas as circunstâncias, não esperava que
cumprisse com sua obrigação.
— Obrigação? — repetiu Samantha tentando ocultar
sua ira — Eu pensava que uma promessa de matrimônio era um compromisso entre
duas pessoas que se queriam.
Ele riu sem vontades.
— Então é mais ingênua do que era eu. Como nosso
compromisso era secreto, ao menos se economizou a humilhação de um escândalo
público.
— Uma grande sorte para ela.
Os olhos de Gabriel tinham uma expressão
estranha, como se o passado fora para eles mais visível que o presente.
— Às vezes me pergunto se a conhecia realmente.
Pode que só fora um produto de minha imaginação. Alguém que inventei a partir de
uma frase inteligente e a fantasia de um beijo roubado: meu sonho da mulher
perfeita.
— Era formosa? — Perguntou Samantha sabendo já a
resposta.
Embora Gabriel esticasse a mandíbula, sua voz se
suavizou.
— Deliciosa. Tinha o cabelo de cor mel, os olhos
como o mar sob um céu do verão, a pele mais suave que...
Olhando suas mãos gretadas, Samantha se
esclareceu garganta. Não estava de humor para escutar uma descrição poética de
encantos que ela não possuía.
— E o que foi que esse modelo de perfeição?
— Suponho que voltou para seio de sua família no
Middlesex, onde provavelmente se casará com um latifundiário e se retirará a uma
casa de campo para criar um montão de filhos a base de pudim.
Mas nenhum deles teria uma cara angélica, nem uns
olhos verdes como a espuma do mar bordeados por umas pestanas douradas.
Samantha quase se compadecia dela por isso.
— Era uma idiota.
— Desculpe? — Gabriel arqueou uma sobrancelha,
visivelmente surpreso por sua contundente declaração.
— Essa garota era uma idiota — repetiu Samantha
com mais convicção ainda — E você é mais idiota ainda por perder o tempo
pensando em uma criatura frívola que provavelmente se preocupava mais por seus
bonitos vestidos de baile e seus passeios pelo parque que por você.
— Levantando-se, aproximou-se dele e lhe pôs as
cartas na mão — Se não querer que ninguém mais se tropece com seus tesouros
sentimentais, sugiro-lhe que durma com elas debaixo do travesseiro.
Gabriel não fez nenhum movimento para agarrar as
cartas. Simplesmente olhou para diante com a mandíbula tensa. Bateu as asas seu
nariz, mas Samantha não sabia se era porque estava furioso ou para aspirar o
intenso aroma floral que emanava do papel perfumado. Quando estava começando a
perguntar-se se tinha chegado muito longe ele apartou as cartas bruscamente.
— Pode que tenha razão, senhorita Wickersham.
Depois de tudo, umas cartas não lhe servem de nada a um homem cego. Por que não
as agarra você?
Samantha retrocedeu.
— Eu? Que diabos se supõe que devo fazer com
elas?
Gabriel ficou em pé ultrapassando-a.
— Por que ia importar me? Atire-as ao lixo ou as
queime se quiser. — Um triste sorriso curvou uma esquina de sua boca antes de
acrescentar brandamente — Mas aparte as de minha vista.
Samantha estava sentada no bordo da cama com sua
descolorida camisola de algodão olhando o pacote de cartas que tinha na mão.
Fora, depois da janela, fazia uma noite muito escura.
A chuva açoitava os cristais, como se a
empurrasse o vento para castigar a quem desafiasse seu poder. A pesar do
agradável fogo que crepitava na chaminé, seguia sentindo frio até os ossos.
Seus dedos brincaram com os desfiados extremos do
laço que atava o pacote. Gabriel tinha crédulo nela para que se desfizesse das
cartas.
Não estaria bem trair essa confiança.
Ao dar um puxão ao laço as cartas se desdobraram
sobre seu regaço. Tirando-as óculos, desdobrou a de acima com mãos trementes.
Uma cuidada letra de mulher fluía pelo papel de linho.
A carta estava datada em 20 de setembro de 1804,
quase um ano antes do Trafalgar. Apesar de sua Flórida elegância, suas palavras
tinham um tom bastante superficial.
-
Querido Lorde Sheffield,
-
Em sua última missiva, bastante
impertinente, afirmava me querer por meus «deliciosos lábios» e meus
«luminosos olhos azuis». Mas devo lhe perguntar: «Seguirá-me querendo quando
esses lábios estejam franzidos não pela paixão, mas sim pela idade?
Quererá-me quando meus olhos estejam apagados, mas meu afeto por você não
tenha diminuído?» Quase posso lhe ouvir rindo-se enquanto anda a pernadas
por sua casa, dando ordens a seus serventes com essa arrogância que encontro
tão insofrível e irresistível de uma vez. Sem dúvida alguma passará a noite
maquinando uma resposta engenhosa desenhada para me encantar e me desarmar.
-
Mantenha esta carta perto de seu
coração como eu lhe levo sempre a você perto do meu.
-
Dela,
-
Miss Cecily March
Cecily não pôde resistir a tentação de assinar com um floreio que delatava sua
juventude.
Samantha enrugou a carta em seu punho. Não sentia
lástima por ela, só desprezo. Suas falsas promessas tinham tido um preço muito
alto.
Não era melhor que algumas raparigas medievais
que atavam seus sedosos favores ao braço de um cavalheiro antes de lhe enviar a
uma morte segura.
Recolhendo as cartas, Samantha se levantou e foi
à chaminé. Queria queimá-las para reduzi-las a cinzas como mereciam pretender
que essa moça arrogante e imatura não tinha existido nunca. Mas enquanto se
preparava para jogá-la às chamas algo deteve sua mão.
Pensou nos largos meses que Gabriel as tinha
entesourado, na paixão com a que as tinha protegido de sua curiosidade, na
avidez de sua expressão ao inalar sua fragrância. Era como se as destruindo se
rebaixasse o sacrifício que tinha feito para conquistar o coração de sua autora.
Deu-se a volta para examinar a pequena habitação.
Não tinha desfeito da toda sua bagagem depois do acidente de Gabriel, porque lhe
resultava mais fácil agarrar o que necessitava que voltar a guardá-lo tudo no
imenso armário da esquina. Ajoelhando-se junto ao baú forrado de couro, atou de
novo as cartas com o laço e as assegurou com um nó. Logo as meteu no fundo do
baú para que ninguém voltasse a tropeçar com elas.
Capítulo 8
Querida Cecily,
Resulta-me difícil acreditar que sua mãe não chamasse a seu pai por seu
primeiro nome até depois de lhe dar cinco filhos...
Quando Samantha entrou no quarto de Gabriel ao
dia seguinte lhe encontrou sentado na penteadeira com uma navalha de barbear na
garganta.
Ao lhe ver lhe deu um tombo o coração.
— Não o faça, senhor. Hoje lhe deixarei
levantar-se da cama. O prometo.
Gabriel girou para o som de sua voz brandindo
ainda a navalha.
— Sabe qual é uma das maiores vantagens de ser
cego? — perguntou animadamente — Já não necessita um espelho para te barbear.
Pode que não necessitasse um espelho, mas isso
não impedia que a polida superfície da parte superior da penteadeira projetasse
carinhosamente seu reflexo. Como de costume, não se tinha incomodado em atá-los
botões de sua camisa de linho de cor marfim, que ao abrir-se revelava uma ampla
extensão de peito com pó dourado e um musculoso abdômen.
Samantha atravessou a habitação e fechou sua
pequena mão sobre a sua, sujeitando a navalha antes que pudesse voltar a
levantá-la.
— Dê-me isso antes que corte o pescoço. Outra
vez.
Ele se negou a soltá-la.
— E como sei que não vai fazê-lo você?
— Se lhe cortar o pescoço seu pai poderia me
deixar sem salário.
— Ou duplicar-lhe Ela atirou até que Gabriel
entregou a contra gosto a navalha de manga perlado.
Rodeando com cuidado a atadura, Samantha utilizou
uma broxa a jogo para estender o sabão de barbear com perfume de zimbro sobre
sua barba de três dias. Sob sua mão perita, a folha se deslizou com facilidade
por seu pêlo dourado revelando a rugosa mandíbula. Tinha a pele suave, mas
firme, tão diferente à sua. Para chegar ao oco de debaixo da orelha teve que
inclinar-se sobre ele, e lhe roçou o ombro com seu peito.
— A que vem esse interesse repentino por
arrumar-se? — perguntou em voz baixa para dissimular que se ficou sem fôlego —
Tem uma ambição secreta de converter-se no seguinte Beau Brummell?
— Beckwith acaba de trazer notícias de meu pai. A
equipe de médicos que contratou tornou da Europa. Querem reunir-se comigo esta
tarde.
Seu rosto expressivo ficou paralisado. Em um
intento de lhe ajudar a ocultar sua esperança, Samantha agarrou uma toalha para
lhe tirar os restos de sabão da cara.
— Se não poder lhes conquistar com sua beleza,
possivelmente possa lhes seduzir como fez comigo com sua hospitalidade e suas
boas maneiras.
— Dê-me isso! — balbuciou Gabriel enquanto lhe
esfregava energicamente a boca e o nariz — O que está tentando fazer? Me afogar?
Enquanto Samantha se inclinava para diante ele
levantou o braço por cima do ombro.
Mas em vez de agarrar a toalha sua mão se fechou
sobre a suavidade de seu peito.
Para ouvir um pequeno sobressalto Gabriel ficou
gelado. Mas com o arrebatamento de calor que chegou a entreperna se derreteu em
seguida. Embora lhe parecia impossível, sentiu um rubor infantil estendendo-se
por sua mandíbula.
Tinha acariciado seios muito mais generosos, mas
nenhum que encaixasse em sua mão tão perfeitamente. Seus dedos se curvavam ao
redor de sua felpuda suavidade como se os tivessem moldado ali. Embora não se
atrevia a mover nem um dedo, sentiu como lhe endurecia o mamilo contra a palma
de sua mão através do tecido de encaixe de seu vestido.
— Meu deus — sussurrou — Isso não é a toalha,
verdade?
Ela tragou saliva com sua rouca voz muito perto
de seu ouvido.
— Não, senhor. Temo-me que não.
Não tinha nem idéia de quanto tempo poderiam ter
estado desse modo se Beckwith não tivesse entrado em tropicões pela porta.
— Não sabia que camisa queria, senhor — disse com
a voz amortecida pelo que o Gabriel supôs que era um montão de camisas — assim
que disse a Meg que as lavasse todas.
Enquanto o mordomo cruzava a habitação para ir
para o vestidor, Gabriel e Samantha se separaram bruscamente como se lhes
tivessem pilhado em flagrante delito.
— Muito bem, Beckwith — disse Gabriel atirando
várias coisas ao chão enquanto se levantava de um salto.
Teria dado uma década de sua vida por ver a
expressão de sua enfermeira nesse momento. Teria conseguido por fim que perdesse
a compostura? Estariam ruborizadas suas suaves bochechas? E se era assim, seria
por vergonha ou por desejo?
Ouviu-a afastar-se dele e dirigir-se à porta
andando para trás.
— Se me desculpar, senhor, há algumas costure que
devo atender abaixo…, já sabe...
assim deixarei que se dispa… quero dizer que se
vista. — Houve um ruído surdo, como se alguém se tropeçou com uma porta, um
«Ai!» amortecido e logo o som dessa mesma porta abrindo-se e fechando-se.
Para então Beckwith tinha saído do vestidor.
— Que estranho — murmurou o mordomo.
— O que?
— É muito estranho, senhor. Nunca tinha visto a
senhorita Wickersham tão nervosa e acalorada. Você crie que terá febre?
— Espero que não — respondeu Gabriel muito sério
— Com a quantidade de tempo que passei com ela, poderia ser vítima da mesma
enfermidade.
Um engano inocente.
Isso era o que tinha sido. Ao menos isso é o que
Samantha se dizia a si mesmo enquanto passeava pelo vestíbulo esperando a que
Gabriel fizesse sua aparição. Os médicos tinham chegado de Londres fazia quase
meia hora e estavam esperando na biblioteca para reunir-se com ele.
Samantha não conseguiu captar nenhuma pista das
notícias que traziam por seus gestos amáveis e suas expressões cautelosas.
Um engano inocente, repetiu-se a si mesmo
detendo-se de repente. Mas não tinha havido nada inocente em como se acelerou
sua respiração sob o tato de Gabriel. Nem na tensão que havia entre eles, como
se o ar se carregou de repente com uma tormenta do verão.
Para ouvir uns passos detrás dela se deu a volta.
Gabriel estava baixando as escadas, deslizando uma mão com firmeza pelo
reluzente corrimão de mogno. Se não tivesse sabido que era cego não o teria
imaginado. Avançava com passo seguro e a cabeça alta. Beckwith baixava detrás
dele sorrindo com orgulho.
A Samantha deu um tombo o coração. O Gabriel
selvagem que tinha encontrado ao chegar ao Fairchild Park se converteu em uma
versão mais amadurecida do homem do retrato. O negro sombrio de suas calças e
seu fraque compensava perfeitamente o branco imaculado de sua camisa, seu lenço
e seus punhos.
Inclusive se tinha pacote as mechas de cabelo
solto em um acréscimo aveludado. Se não tivesse sido pelo corte de sua bochecha
esquerda, poderia ter parecido um cavalheiro de campo baixando as escadas para
reunir-se com sua dama.
De um modo estranho, a cicatriz só acentuava sua
beleza masculina, dando profundidade onde antes só tinha roçado a superfície.
Para ouvir um grito de assombro detrás dela
Samantha se deu conta de que não era quão única tinha presenciado sua
transformação.
Alguns outros serventes se apareceram nas portas
esperando ver seu amo. O jovem Phillip tinha chegado a pendurar-se da galeria do
terceiro piso.
Peter deu um puxão à jaqueta de seu irmão gêmeo
antes que pudesse cair pelo corrimão sobre a cabeça de Gabriel.
Sem saber muito bem como tinha chegado ali,
Samantha estava lhe esperando quando chegou ao pé das escadas.
Com um misterioso conhecimento de sua presença,
Gabriel se deteve exatamente a um passo dela e lhe fez uma reverência.
— Boa tarde, senhorita Wickersham. Espero que meu
aspecto receba sua aprovação.
— Parece um perfeito cavalheiro. Inclusive
Brummell se deprimiria de inveja. —Ao levantar a mão para estirar uma dobra de
seu lenço se deu conta de que era um gesto de mulher casada, que estava
desconjurado. Baixou a mão apressadamente. Afastando-se dele, disse com uma
formalidade excessiva — Seus convidados já chegaram, senhor. Estão esperando-o
na biblioteca.
Gabriel deu meia volta, mostrando o primeiro
indício de insegurança. Beckwith lhe agarrou por cotovelo e lhe orientou para a
porta da biblioteca.
A Samantha pareceu que estava terrivelmente
sozinho indo para o desconhecido sem nada que lhe guiasse exceto sua esperança.
Quando estava a ponto de ir detrás dele, Beckwith lhe pôs uma mão no ombro com
suavidade, mas com firmeza.
— Por escuros que sejam, senhorita Wickersham —
murmurou enquanto Gabriel desaparecia na biblioteca — há alguns caminhos que um
homem deve percorrer sozinho.
O tempo passava lentamente, medido pelos
ponteiros de relógio de bronze do relógio do patamar. Seu movimento circular ao
redor da lua cheia de sua esfera parecia funcionar com espasmos irregulares,
apropriados para marcar décadas em vez de minutos.
Cada vez que a Samantha lhe ocorria uma nova
desculpa para passar pelo vestíbulo se encontrava com meia dúzia de criados que
já estavam ali. Quando ia de caminho à cozinha para procurar um copo de leite,
encontrou ao Elsie e Hannah encerando o corrimão da escada como se sua vida
dependesse disso, enquanto Millie estava em uma escada de tesoura limpando as
lágrimas de cristal do abajur com um espanador. Quando foi levar o copo vazio à
cozinha encontrou ao Peter e Phillip a quatro patas polindo o chão de mármore.
Parecia que os serventes tinham oculto ao Gabriel suas esperanças com tanta
diligência como ele a eles. Embora todos estavam estirando o pescoço para a
biblioteca, de suas grosas portas de mogno não saía nem um murmúrio.
Para o final da tarde não havia nenhuma bolinha
de pó no vestíbulo, e o chão de mármore estava tão brilhante de tanto poli-lo
que Meg, a robusta lavadeira, esteve a ponto de se escorregar e romper o
pescoço. Fazia tantas viagens pelo vestíbulo com sua cesta cheia de roupa que
Samantha suspeitava que estava agarrando roupa poda dos armários para lavar.
A seguinte vez que Samantha passou por ali para
levar um livro ao estudo apareceu a senhora Philpot. Betsy tinha estado limpando
o *zócalo* adjacente à biblioteca durante quase uma hora, esfregando com tanta
força que o verniz se estava começando a levantar em algumas zonas.
— Que diabos crie que está fazendo? —
perguntou-lhe bruscamente a governanta.
Samantha fez uma careta. Mas em vez de brigar a
jovem criada por perder o tempo, a senhora Philpot lhe tirou o trapo e começou a
esfregar em direção contrária.
— Terá que limpar sempre no sentido do grão da
madeira, não ao reverso.
Samantha se deu conta de que com esse método a
senhora Philpot tinha conseguido aproximar a orelha à porta da biblioteca.
Para quando se começou a pôr o sol todo mundo
tinha deixado de fingir que estava trabalhando. Samantha estava sentada no
degrau mais baixo, com os óculos quedas e o queixo apoiado na mão, enquanto
outros criados se encontravam pulverizados pelas cadeiras e as escadas em vários
estados de repouso. Alguns estavam meio dormidos, enquanto que outros esperavam
com uma tensa espera fazendo ranger os nódulos e intercambiando um sussurro de
vez em quando.
Quando a porta da biblioteca se abriu de repente
todos centraram sua atenção nela. Então saíram meia dúzia de homens com trajes
escuros que fecharam a porta atrás deles.
Samantha ficou em pé escrutinando suas caras
sombrias.
Embora a maioria tentasse evitar seu ansioso
olhar, um homem pequeno com uns afáveis olhos azuis e umas costeletas bem
recortadas a olhou diretamente e moveu a cabeça com ar triste.
— Sinto-o muito — murmurou.
Samantha voltou a sentar-se na escada sentindo-se
como se lhe tivessem tirado tudo o sangue de seu coração com um punho cruel. Até
esse momento não se deu conta de quão elevadas eram suas esperanças.
Enquanto Beckwith saía de um nada para acompanhar
aos médicos à porta com a mandíbula queda, ela ficou olhando a madeira
impenetrável da porta da biblioteca.
A senhora Philpot estava agarrando a bola do
extremo do corrimão com seus largos dedos pálidos. Sua enérgica confiança
parecia haver-se desvanecido, substituída por uma incerteza quase comovedora.
— Deve ter fome. Não deveríamos…?
— Não — disse Samantha com firmeza recordando a
advertência do Beckwith — Não até que esteja preparado.
Enquanto o pôr-do-sol se convertia em crepúsculo
e o crepúsculo na aveludada escuridão de uma cálida noite da primavera, Samantha
chegou a arrepender-se de sua paciência. Os minutos que tinham acontecido
lentamente enquanto Gabriel estava com os médicos agora pareciam acontecer
voando sobre umas asas negras. Um a um os criados abandonaram sua vigília e se
retiraram às cozinhas ou a seus aposentos do porão, incapazes de suportar o
silêncio ensurdecedor que saía da biblioteca. Embora nenhum deles o teria
reconhecido, teriam preferido ouvir os gritos de seu amo seguidos do ruído de
cristais quebrados.
Samantha foi a última em partir, mas depois de
que um Beckwith abatido lhe desse as boa noite incluso ela se deu por vencida.
Em seguida se encontrou riscando um estreito caminho no tapete de sua habitação.
Pôs-se a camisola e se trancou o cabelo, mas não suportava a idéia meter-se em
sua confortável cama de ferro caiado enquanto Gabriel seguia encerrado em seu
próprio inferno.
Passeou-se de um lado a outro para tentar
acalmar-se. Sem dúvida alguma o pai de Gabriel sabia o resultado de sua busca.
Por que não tinha acompanhado a sua prezada equipe de médicos? Sua presença
poderia ter suavizado o golpe mortal que vinham a lhe dar.
E a mãe de Gabriel? Sua negligência era mais
imperdoável ainda. Que classe de mulher deixaria a seu único filho a cargo de
serventes e desconhecidos?
Samantha centrou seu olhar no baú da esquina onde
tinha escondido as cartas de sua prometida. Tinha pensado Gabriel em algum
rincão secreto de seu coração que com a vista poderia recuperar seu amor
perdido? Estaria chorando também a morte desse sonho?
O relógio do patamar de abaixo começou a dar a
hora. Samantha se apoiou na porta contando um a um os tristes tangidos até que
deram as doze.
E se Beckwith estava equivocado? E se havia
alguns caminhos tão escuros e perigosos que não se podiam percorrer sem
apoiar-se em uma mão? Embora fora a de um estranho.
Com sua mão tremente, Samantha agarrou o castiçal
e saiu da habitação. Quando estava baixando as escadas se deu conta de que lhe
tinha esquecido colocar os óculos. Enquanto atravessava o vestíbulo sua vela
projetava sombras piscantes nas paredes. O silêncio era ainda mais opressivo que
a escuridão. Não era o silêncio acolhedor de uma casa tranqüila. Era o silêncio
sufocante de uma casa que continha o fôlego em uma tensa espera. Não era tanto a
ausência de sons como a presença do medo.
A porta da biblioteca seguia fechada. Samantha
pôs a mão ao redor do pomo esperando que estivesse fechada com chave. Mas a
porta se abriu com facilidade sob seu tato.
Então lhe assaltaram uma série de impressões
vertiginosas: o débil fogo que crepitava na chaminé; o copo vazio junto à
garrafa quase vazia de uísque escocês que havia na esquina da mesa; os papéis
pulverizados pelo chão como se alguém os tivesse atirado em um arrebatamento de
ira.
Mas todas essas impressões se desvaneceram ao ver
o Gabriel reclinado na cadeira do escritório com uma pistola na mão.
Capítulo 9
Querida Cecily,
Duvido que tarde uma década em conseguir que meu nome saia de seus lábios. Dez
minutos a sós sob a luz da lua deveriam bastar...
— Estava acostumado a dizer a meus amigos que era
capaz de carregar uma pistola com os olhos fechados. Suponho que tinha razão —
disse Gabriel com voz cansada inclinando uma bolsa de couro sobre a boca da
arma. Embora na garrafa que havia junto a seu cotovelo ficavam menos de três
dedos de uísque, tinha as mãos tão firmes que não derramou nenhuma pingo de
pólvora.
Enquanto utilizava uma varinha de ferro para
imprensar a carga, Samantha ficou fascinada por essas mãos; por sua elegância,
sua habilidade, sua economia de movimentos. E se estremeceu ao imaginar as
movendo-se sobre a pele de uma mulher. Sua pele.
Livrando-se de seu feitiço sedutor, ficou justo
diante da mesa.
— Não sei se devo mencioná-lo, senhor, mas não
acredita que uma pistola carregada em mãos de um homem cego pode ser um pouco
perigosa?
— Essa é a questão, né? — recostou-se na cadeira
acariciando com o polegar o percussor da pistola.
Apesar de sua postura relaxada e seu tom
lacônico, Samantha notou a tensão que percorria todos seus músculos. Já não
parecia um perfeito cavalheiro. Sua jaqueta estava pendurada descuidadamente em
um busto próximo, e tinha o lenço solto ao redor de seu largo pescoço. As mechas
de cabelo dourado se escaparam de seu acréscimo, e um brilho febril iluminava
seus olhos cegos.
— Devo supor que as notícias que recebeu não
foram que seu agrado? —perguntou sentando-se com cautela na cadeira mais
próxima.
Ele girou a cabeça para seguir seu movimento,
mantendo o canhão da pistola afastado dela.
— Digamos que não eram exatamente o que esperava.
Samantha tentou manter um tom casual.
— Quando se recebe uma má notícia o habitual é
disparar ao mensageiro, não a gente mesmo.
— Só tinha uma bala e não tinha sabor de que
médico disparar.
— Não lhe deram nenhuma esperança?
Ele negou com a cabeça.
— Nem a mais mínima. OH, um deles, o doutor Gilby
acredito, disse algumas tolices sobre o sangue que se acumula detrás dos olhos
depois de um golpe como o que recebi eu. Ao parecer houve um caso na Alemanha no
qual se recuperou a visão quando o sangue foi absorvido.
Mas quando seus companheiros calaram a gritos por
dizer disparates teve que reconhecer que nunca se registrou uma cura espontânea
depois de seis meses.
Samantha suspeitava que esse Gilby era o médico
de olhos afáveis que lhe tinha expresso suas condolências.
— Sinto-o muito — disse com suavidade.
— Não necessito sua compaixão, senhorita
Wickersham.
Para ouvir a dureza de seu tom ficou rígida.
— Tem razão, é obvio. Suponho que tem bastante
com a sua.
Durante um breve instante Gabriel torceu uma
esquina da boca como se tivesse querido sorrir. Logo deixou tranqüilamente a
pistola sobre a pastas de couro da mesa. Samantha a olhou com ansiedade, mas não
se atreveu a agarrá-la. Embora estivesse cego e meio bêbado, seus reflexos
seguiam sendo provavelmente o dobro de rápidos que os seus.
Ele procurou provas a garrafa de uísque, esvaziou
o que ficava no copo e o levantou para fazer um brinde.
— Pelo destino, cujo sentido da justiça só está
superado por seu senso de humor.
— Justiça? — repetiu Samantha surpreendida — Não
acreditará que merecia perder a vista? Por que? Para demonstrar que é um herói?
Gabriel deixou o copo na mesa de repente,
salpicando um pouco de uísque pelo bordo.
— Não sou um maldito herói!
— Sim é! — A Samantha custou um pequeno esforço
recitar o que sabia dos acontecimentos nos que resultou ferido pelas crônicas do
Teme e a Gazette — Foi o primeiro em divisar ao franco-atirador na *sobremesana*
do Redoubtable. Quando viu que tinha ao Nelson em seu ponto de olhe, lançou um
grito de advertência e logo correu pela coberta para o almirante arriscando sua
própria vida.
— Mas não o consegui. — Gabriel aproximou o copo
à boca e tomou o uísque de um só gole — E ele tampouco.
— Porque lhe derrubou uma peça de metralha antes
de que pudesse lhe alcançar.
Gabriel ficou um comprido momento em silêncio.
Logo perguntou em voz baixa: — Sabe o que é quão último vi enquanto estava
tendido nessa coberta me afogando no fedor de meu próprio sangue? Vi essa bala
atravessando o ombro do almirante. Vi o desconcerto em seu rosto enquanto caía
ao estou acostumado a agonizando. Depois ficou tudo vermelho, e logo negro.
— Mas você não apertou o gatilho da arma que lhe
matou. — Samantha se inclinou para diante na cadeira com voz apaixonada — E
ganharam a batalha. Graças ao valor do Nelson e o sacrifício de homens como
você, os franceses foram derrotados. Pode que sigam reclamando nossa terra, mas
lhes ensinaram quem serão para sempre os donos do mar.
— Então suponho que deveria dar graças a Deus por
me permitir fazer esse sacrifício.
Pense em quão afortunado foi Nelson. Embora já
tinha dado um braço e um olho por seu país, também pôde desfrutar de do
privilégio de perder sua vida. — Gabriel jogou a cabeça para trás com uma risada
infantil, parecendo-se tanto ao homem do retrato que a Samantha lhe parou um
instante o coração — Me surpreende de novo, senhorita Wickersham. Quem teria
pensado que baixo esse duro peito pulsava um coração romântico?
Ela se mordeu o lábio, tentada a lhe recordar que
seu peito não lhe tinha parecido tão duro quando seus dedos se curvaram
possessivamente a seu redor.
— Atreve-se a me acusar de sentimentalismo? Não
era eu a que guardava velhas cartas de amor em meu escritório, verdade?
— Touché — murmurou ele com menos entusiasmo.
Havia tornado a agarrar a pistola e estava explorando seus contornos com uma
suave carícia. Quando voltou a falar o fez em voz baixa e sem rastro de ironia —
O que queria que fizesse? Sabe tão bem como eu que um homem cego não tem nada
que fazer em nossa sociedade a não ser que esteja pedindo esmola na esquina de
uma rua ou encerrado em um manicômio. Só serei uma carga e um objeto de
compaixão para minha família e qualquer outro desgraçado que me queira.
Samantha se apoiou na cadeira sentindo uma
estranha calma.
— Então, por que não se dispara e acaba com isto?
Quando terminar chamarei à senhora Philpot para que o limpe tudo.
Gabriel esticou a mandíbula e apertou a pistola.
— Vamos. Faça-o — insistiu com sua voz cheia de
força e de paixão — Mas posso lhe prometer que é o único que se compadece de
você.
Alguns homens não tornaram ainda desta guerra. E
alguns não voltarão nunca. Outros perderam os braços e as pernas. Estão
mendigando nas sarjetas com seus uniformize e seu orgulho feito farrapos.
Insultam-lhes, pisoteiam-lhes, e a única esperança que fica é que um
desconhecido com um pingo de caridade cristã em sua alma lhes jogue uma moeda em
seus pires.
Enquanto isso, você está aqui de mau humor
rodeado de luxos, com todos seus caprichos atendidos por uns serventes que ainda
lhe olham com admiração. — Samantha se levantou, alegrando-se de que não pudesse
ver as lágrimas que empanavam seus olhos — Tem razão, senhor. Esses homens são
heróis, você não. Você é só um miserável covarde ao que lhe dá medo morrer, mas
lhe dá mais medo seguir vivendo.
De algum modo esperava que agarrasse a pistola e
lhe disparasse. Não esperava que se levantasse e começasse a rodear a mesa.
Embora seus passos eram tão firmes como suas
mãos, o álcool fazia que se pavoneasse um pouco mais ao andar. Pensava que o
depredador que tinha encontrado ao chegar ao Fairchild Park tinha desaparecido,
mas então se deu conta de que só tinha estado dormindo detrás dos olhos
carregados de Gabriel, esperando até detectar de novo o aroma de sua presa.
Bateu as asas ostensivamente seu nariz enquanto
ia para ela. Embora Samantha poderia lhe haver esquivado facilmente, algo em seu
rosto lhe fez deter-se. Agarrou-a pelos ombros e a atraiu para ele com
brutalidade.
— Não foi totalmente sincera comigo, verdade,
senhorita Wickersham? — Seu coração esteve a ponto de deter-se antes que
continuasse — Não escolheu esta vocação por sua grande compaixão por seus
semelhantes. Perdeu a alguém na guerra, verdade? Quem era? Seu pai?
Seu irmão? — Ao baixar a cabeça o calor de seu
fôlego lhe acariciou a cara, fazendo que se sentisse tão bêbada e atrevida como
ele — Seu amante? — Saindo de seus belos lábios, essa palavra era sarcástica e
carinhosa de uma vez.
— Dava gamos que não é o único que está expiando
seus pecados.
Ele riu dos dois.
— O que sabe de pecados um modelo de virtude como
você?
— Mais do que se imagina — sussurrou voltando a
cara.
Seu nariz roçou a suavidade de sua bochecha,
embora não sabia se tinha sido a propósito ou por acidente. Sem o amparo de seus
óculos se sentia terrivelmente vulnerável.
— Anima-me a seguir vivendo, mas não me dá
nenhuma razão para isso. —Sacudiu-a com um gesto tão duro como sua voz — Pode
fazê-lo, senhorita Wickersham? Pode me dar uma razão para viver?
Samantha não sabia se podia ou não. Mas quando
girou a cabeça para responder suas bocas chocaram. Então a beijou inclinando sua
boca sobre a dela, arrastando o doce calor de sua língua por seus lábios até que
se separaram com um ruído quebrado, entre um ofego e um gemido.
Muito ansioso para aceitar sua rendição,
estreitou-a contra ele tendo sabor de uísque, perigo e desejo.
Ela fechou os olhos emocionada. No sedutor abraço
da escuridão só tinha seus braços para sujeitá-la, o calor de sua boca para
esquentá-la, seus roucos gemidos para fazer dançar seus sentidos. Enquanto sua
língua saqueava com crueldade a suavidade de sua boca, o pulso de Samantha se
acelerou em seus ouvidos, marcando os batimentos do coração de seu coração e
todos os momentos de arrependimento.
Deslizando os braços de seus ombros a suas
costas, atraiu-a para ele até que seus seios acabaram pegos a seu inquebrável
peito. Ela pôs um braço ao redor de seu pescoço, tentando responder à
desesperada avidez de sua boca.
Como ia salvar lhe se nem sequer podia salvar-se
a si mesmo?
Estava descendendo com ele na escuridão, disposta
a lhe entregar sua alma e sua vontade.
Embora ele dizia que cortejava à morte, o que
fluía entre eles era vida. Vida na antiga dança de suas línguas ao unir-se. Vida
no irresistível puxão de seu abdômen e a deliciosa dor entre suas coxas.
Vida que pulsava contra a suavidade de seu ventre
através da desgastado tecido de sua camisola.
— Meu deus! — exclamou ele apartando-se de
repente.
Ao ficar sem seu apoio, Samantha teve que pôr as
mãos na mesa detrás dela para não cair. Enquanto abria os olhos resistiu o
impulso de protegê-los com uma mão. Depois de perder-se nas deliciosas sombras
do beijo de Gabriel, inclusive o débil resplendor do fogo da chaminé parecia
muito intenso.
Fazendo um esforço para recuperar o fôlego,
deu-se a volta e viu o Gabriel medindo seu caminho ao redor da mesa. Já não
tinha as mãos firmes. Atirou um frasco de tinta e lançou um abridor de cartas
com manga de bronze ao chão antes de agarrar por fim a pistola. Enquanto
levantava a arma com uma expressão decidida, Samantha afogou um grito em sua
garganta.
Mas só alargou a mão para ela ao outro lado da
mesa. Procurou provas sua mão e pôs nela a pistola.
— Vá — lhe ordenou com os dentes apertados
dobrando seus dedos ao redor da arma.
Quando ela vacilou a empurrou para a porta
levantando a voz — Vá-se já! Me deixe!
Lançando um último olhar por cima do ombro,
Samantha colocou a pistola na saia de sua camisola e se foi correndo.
Capítulo 10
Querida Cecily,
Eu gostaria de saber se tiver decidido já qual de minhas virtudes lhe intriga
mais: meu acanhamento ou minha humildade...
Quando Samantha ouviu um ruído amortecido se
incorporou na cama, aterrada ao pensar que tinha sido o disparo de uma pistola.
— Senhorita Wickersham? Está acordada?
Enquanto Beckwith seguia chamando pôs uma mão
sobre seu peito para tentar acalmar os batimentos do coração de seu coração. E
ao ver o baú da esquina recordou que a pistola de Gabriel estava agora enterrada
no fundo, junto a seu pacote de cartas.
Apartou as mantas e se levantou da cama,
ficando-as óculos sobre seus cansados olhos.
Depois de que Gabriel a jogasse tinha passado o
resto da noite amontoada em um nó miserável, convencida de que tinha sido uma
estúpida ao lhe deixar nesse estado. Finalmente ficou dormida quase ao
amanhecer, vítima do esgotamento.
Ficando-a bata, abriu um pouco a porta.
Embora parecia que Beckwith também tinha passado
uma noite agitada, em seus olhos havia um brilho de bom humor.
— Me perdoe por incomodá-la, senhorita, mas o
senhor quer vê-la na biblioteca. Quando puder, é obvio.
Samantha arqueou uma sobrancelha com cepticismo.
Isso era algo que nunca lhe tinha preocupado.
— Muito bem, Beckwith. Diga-lhe que baixarei em
seguida.
Lavou-se e se vestiu com mais cuidado que de
costume, procurando em seu limitado vestuário algo que não fosse cinza, negro ou
marrom.
Finalmente ficou um vestido de cintura alta de
veludo azul escuro e se atou um laço a jogo ao redor de seu coque. Quando se
inclinou sobre o espelho da penteadeira para enroscar uma mecha de cabelo solto
se deu conta de que aquilo era ridículo. Depois de tudo, Gabriel não podia
apreciar seus esforços.
Movendo a cabeça ante seu reflexo, foi
apressadamente à porta. Mas cinco segundos depois voltou para penteadeira para
tornar-se um pouco de colônia de limão detrás das orelhas e no oco da garganta.
Samantha vacilou diante da porta da biblioteca
com uma estranha sensação no estômago.
Demorou um minuto em identificar essa emoção como
acanhamento. Isto é ridículo, disse-se a si mesmo. Ela e Gabriel tinham
compartilhado um beijo bêbado, nada mais. Não era como se cada vez que lhe
olhasse à boca fosse recordar como se havia sentido, com que domínio tinha
moldado seus lábios, o fumegante calor de sua língua...
O relógio do patamar começou a dar as dez,
tirando a de seu sonho. Depois de alisá-la saia, Samantha chamou energicamente à
porta.
— Entre.
Obedecendo a breve ordem, abriu a porta e
encontrou ao Gabriel sentado detrás da mesa, como a noite anterior. Mas esta vez
não havia nenhum copo vazio, nenhuma garrafa de uísque e, felizmente, nenhuma
arma mais mortífera que um abridor de cartas.
— Bom dia, senhor — disse entrando na habitação —
Me alegra ver que segue entre os vivos.
Gabriel se esfregou uma sobrancelha com o dorso
da mão.
— Se não fosse assim, ao menos cessaria este
martírio infernal que tenho na cabeça.
Uma inspeção mais detalhada revelou que não tinha
saído ileso dos acontecimentos da noite anterior. Embora se tinha trocado de
roupa, uma barba incipiente sombreava sua mandíbula. A pele de ao redor da
cicatriz estava branca e tirante, e tinha mais olheiras que de costume.
A lacônica elegância da noite anterior tinha
desaparecido, deixando em seu lugar uma postura rígida que não parecia dever-se
tanto à formalidade como ao mal-estar que sentia cada vez que movia a cabeça.
— Sente-se, por favor. — E enquanto ela se
sentava disse — Lamento havê-la chamado tão bruscamente. Devo ter interrompido
sua preparação da bagagem.
Samantha abriu a boca desconcertada, mas antes
que pudesse dizer nada ele prosseguiu ao tempo que seus largos dedos jogavam com
a manga de bronze do abridor de cartas.
— Não posso culpá-la por partir, certamente. Meu
comportamento de ontem à noite foi imperdoável. Eu gostaria de jogar a culpa ao
álcool, mas me temo que meu mau caráter e meu desajuizado têm a mesma
responsabilidade. Embora possa parecer o contrário, asseguro-lhe que não tenho o
costume de forçar meus cuidados às empregadas a meu serviço.
Samantha sentiu uma estranha pontada perto de seu
coração. Tinha estado a ponto de esquecer que isso era quão único era para ele:
uma empregada.
— Está seguro disso, senhor? Porque me parece que
ouvi falar com a senhora Philpot de um incidente com uma jovem donzela na escada
de serviço...
Gabriel lançou a cabeça para ela fazendo uma
careta.
— Quando aconteceu isso tinha quatorze anos! E
pelo que lembrança foi Musette a que me encurralou… — Se deteve estreitando os
olhos ao dar-se conta de que lhe tinha provocado deliberadamente.
— Pode estar tranqüilo, senhor — lhe assegurou
ela ajustando-as óculos — Não sou uma solteirona faminta de amor que acredita
que todos os homens com os que se encontra vão seduzi-la.
Nenhuma jovenzinha lunática que se deprime com um
beijo roubado.
Embora a expressão de Gabriel se aguçasse,
mordeu-se a língua.
— Pelo que a mim respeita — disse Samantha com
uma ligeireza que não sentia — podemos fingir que sua pequena indiscrição não
ocorreu nunca. Agora, se me desculpa — concluiu levantando-se da cadeira — A não
ser que encontre alguma outra razão para que faça a bagagem, tenho várias...
— Quero que fique — disse ele bruscamente.
— Desculpe?
— Quero que fique — repetiu — Disse que antes era
governanta. Bom, quero que me ensine.
— O que, senhor? Embora deveria refinar um pouco
suas maneiras, pelo que eu vi não lhe dão mal as letras e os números.
— Quero que me ensine a seguir vivendo assim. —
Levantou as duas mãos com as Palmas para cima com um leve tremor — Quero que me
ensine a ser cego.
Samantha voltou a sentar-se na cadeira. Gabriel
Fairchild não era dos que suplicavam.
Mas acabava de despir sua alma e seu orgulho ante
ela. Durante um comprido momento não pôde falar.
Confundindo sua indecisão por cepticismo, disse
ele: — Não posso prometer que serei o aluno mais agradável, mas tentarei ser o
mais capaz.
— Apertou os punhos — Tendo em conta minha
recente conduta, sei que não tenho direito a lhe pedir isto, mas...
— Farei-o — disse ela com suavidade.
— Fará-o?
— Sim. Mas devo lhe advertir que como professora
posso ser muito severa. Se não colaborar receberá uma reprimenda.
Seus lábios esboçaram um leve sorriso.
— Não haverá golpes nos nódulos?
— Só se for impertinente. — levantou-se de novo —
Agora, se me desculpar, tenho que preparar algumas classes.
Quando estava quase na porta Gabriel voltou a
falar com voz rouca.
— Respeito ao de ontem à noite...
Ela se voltou, quase agradecida de que não
pudesse ver o brilho de esperança em seus olhos.
— Sim?
Em seu rosto desfigurada não havia nem rastro de
ironia.
— Prometo-lhe que não voltará a ocorrer um engano
de julgamento tão lamentável.
Embora lhe estava caindo o estômago aos pés,
Samantha se esforçou para dar um tom alegre a sua voz.
— Muito bem, senhor. Estou segura de que a
senhora Philpot e todas as criadas dormirão muito melhor esta noite.
Essa tarde foi Samantha quem chamou o Gabriel.
Para a primeira classe escolheu deliberadamente o ensolarado salão, pensando que
seus amplos espaços abertos se adaptariam bem a seus planos. Um Beckwith
sorridente acompanhou ao Gabriel a entrar na habitação, e logo voltou andando
para trás sem deixar de fazer reverências. Enquanto fechava as portas Samantha
teria jurado que o mordomo lhe fez uma piscada, embora sabia que se lhe
pressionava simplesmente lhe diria que tinha uma bolinha de fuligem no olho.
— Boa tarde, senhor. Pensei que poderíamos
começar as classes com isto. —Dando um passo para diante, pôs o objeto que
estava sujeitando em sua mão.
— O que é? — Gabriel agarrou o objeto
cautelosamente com dois dedos, como se pudesse lhe haver dado uma serpente.
— É um de suas antigas fortificações. E muito
elegante, por certo.
Enquanto os dedos de Gabriel exploravam a cabeça
de leão esculpida no punho de marfim da fortificação, aumentou sua expressão de
desconfiança.
— Para que quero um fortificação se não poder ver
por onde vou?
— Essa é precisamente a questão. Me ocorreu que
se quer deixar de andar pela casa como um urso precisa saber o que tem diante
antes de chocar-se.
Com uma expressão mais pensativa, Gabriel
levantou a fortificação e riscou um amplo arco com ele. Samantha se agachou
enquanto passava assobiando junto a sua orelha.
— Assim não! Isto não é uma briga de espadas!
— Se o fora teria possibilidades de ganhar.
— Só se seu adversário fosse também cego. —
Lançando um suspiro de exasperação, Samantha se colocou detrás, pôs as mãos a
seu redor e fechou seus dedos sobre os dele até que os dois agarraram com
firmeza o punho esculpido da fortificação. Logo baixou a ponta à altura do chão
e começou a guiar seu braço em um suave arco.Isso é. Mova-o devagar de um lado a
outro.
Balançados por seu tom hipnótico, seus corpos
oscilaram de uma vez como se estivessem seguindo o ritmo de uma dança primitiva.
A Samantha lhe ocorreu a absurda idéia de apoiar a bochecha em suas costas. Seu
aroma era quente e deliciosamente masculino, como um claro no bosque em uma
ensolarada tarde do verão.
— Senhorita Wickersham?
— Mmmm? — respondeu sonhando ainda acordada.
A voz de Gabriel tremeu com um tom divertido que
não se incomodou em dissimular.
— Se isto for uma fortificação, não deveríamos
andar?
— OH! Claro! — Separando-se rapidamente dele,
apartou-se uma mecha de cabelo de sua ardente bochecha — Bom, quem deveria andar
é você. Se vier até a esquina, desenhei uma série de caminhos e obstáculos para
que pratique.
Sem lhe pensá-lo agarrou por braço. Gabriel ficou
rígido, esticando todos seus músculos.
Ela atirou, mas ele não parecia ter nenhuma
intenção de mover-se. Samantha se deu conta de que era a primeira vez que
tentava lhe levar a algum sítio. Inclusive quando Beckwith lhe acompanhava pela
casa, o mordomo não se atrevia a lhe tocar exceto para lhe orientar para onde
queria ir.
Esperava que lhe soltasse a mão e vociferasse que
não toleraria que lhe levasse por aí como se fora um menino necessitado. Mas ao
cabo de um momento a tensão começou a desvanecer-se. Embora sua resistência
fosse evidente ainda, quando ela se moveu ele a seguiu.
Com a ajuda do Peter e Phillip tinha disposto um
par de sofás, três cadeiras e dois bancos formando uma espécie de salão
improvisado. No meio havia duas ou três mesas e uns pedestais dóricos com os
bustos de mármore de Ateneu, a deusa da sabedoria, e Diana, a deusa da caça.
Samantha também tinha colocado nas mesas algumas
figuras de porcelana e outras peças frágeis, pensando que Gabriel precisava
aprender a sortear obstáculos pequenos além de grandes.
Situou-lhe à entrada de seu traçado.
— Isto é muito singelo. Quão único tem que fazer
é usar a fortificação para chegar ao outro lado do salão.
Ele franziu o cenho.
— Se não o consigo, castigará-me com ele?
— Só se não guardar a compostura.
Embora Samantha se obrigasse a manter-se afastada
dele, não pôde evitar que suas mãos revoassem ao redor de seus ombros.
Em vez de arrastá-lo, Gabriel lançou a
fortificação para diante empurrando-o, mas bem.
Ao tocar o primeiro pedestal, o busto sorridente
que havia em cima começou a balançar-se.
Samantha foi correndo e agarrou a Diana antes que
caísse ao chão.
Cambaleando-se sob o peso do busto, disse: — Foi
um bom intento. Mas poderia ter um pouco mais de cuidado. Pense que é um dos
labirintos do Vauxhall — assinalou referindo-se aos legendários jardins de
Londres — Não iria por eles dando golpes, verdade?
— Normalmente, quando um cavalheiro se orienta
bem por um labirinto, há uma espécie de recompensa lhe esperando no centro.
Samantha riu.
— Teseo só encontrou ao Minotauro lhe esperando.
— Mas com seu valor para derrotar à besta o jovem
guerreiro conquistou o coração da princesa Ariadna.
— Não teria sido tão intrépido se a jovem não lhe
tivesse dado uma espada mágica e um novelo de lã para sair do labirinto — lhe
recordou — Se fosse Teseo, que recompensa gostaria de receber?
Um beijo.
A resposta subiu de forma espontânea aos lábios
de Gabriel, pondo-o mais nervoso ainda.
Já estava se arrependendo da nobre promessa que
tinha feito essa manhã. Se a risada de cortesã de sua enfermeira não
contrastasse tanto com sua atitude recatada...
Possivelmente fosse melhor que estivesse cego. Se
pudesse ver seus lábios, estaria pensando continuamente em quão doces seriam sob
os seus.
Essa manhã já tinha perdido bastante tempo
perguntando-se de que cor poderiam ser. De um rosa suave como o interior de
algumas conchas marinhas médio enterradas na areia? De um vermelho intenso como
as rosas selvagens que cresciam nos páramos açoitados pelo vento? Ou de cor
coral como as frutas exóticas que faziam que a língua e os sentidos cantassem de
prazer? Mas o que importava seu tom se já sabia que eram deliciosamente carnudos
e estavam perfeitamente desenhados para beijar?
— Já sei qual será sua recompensa! — exclamou ela
ao ver que não respondia — Se praticar com diligência, em seguida o fará tão bem
que já não me necessitará.
Embora Gabriel reconhecesse sua brincadeira com
um leve sorriso, estava começando a perguntar-se se esse dia chegaria alguma
vez.
Samantha veio a ele de noite. Já não necessitava
luz ou cor, só sensação: a doçura de sua fragrância, seu cabelo sedoso
deslizando-se sobre seu peito nu, seu rouco gemido enquanto ondulava seu suave
corpo contra ele.
Gemeu enquanto lhe acariciava a orelha e lhe
lambia os lábios, a curva da mandíbula… a ponta do nariz. Seu quente fôlego o
fazia cócegas na cara, cheirando a terra úmida, carne rançosa e meias
três-quartos mofados secando-se sobre um fogo.
— O que…? — Despertando de repente, Gabriel
apartou o focinho peludo de seu rosto.
Depois de se incorporar esfregou desesperadamente
os lábios com o dorso da mão.
Demorou vários segundos em dar-se conta de que
não era de noite, mas sim pela manhã, e de que a exuberante criatura que estava
pulando em sua cama não era sua enfermeira.
— É fantástico! — exclamou Samantha desde algum
lugar aos pés da cama com sua voz cheia de orgulho — Apenas lhes apresentaram e
já lhe agarrou carinho.
— Que diabos é isto? — perguntou Gabriel tentando
sujeitar o que fosse — Um canguru? — Lançou um gemido amortecido enquanto o
intruso saltava sobre sua dolorida entreperna.
Samantha riu.
—Não seja tolo! É um collie encantador. Quando
passava ontem por diante da casa de seu guarda veio correndo a me saudar. E
pensei que seria perfeito.
— Para que? — disse Gabriel tentando manter
afastado ao cão — Para o almoço do domingo?
— Nem muito menos! — Samantha o tirou
rapidamente. Pelo cantarolo que seguiu, supôs que estava abraçando ao pequeno
monstro — Este pequenino não é nenhum almoço, verdade, precioso?
Desabando-se sobre os travesseiros, Gabriel moveu
a cabeça sem poder acreditar-lhe Quem teria pensado que sua mordaz enfermeira
seria capaz de dizer essas tolices? Ao menos não tinha que ver como acariciava o
ventre da criatura ou, pior ainda, como esfregava o nariz contra seu focinho. A
emoção que sentia era tão estranha que demorou um minuto em identificá-la.
Estava ciumento! Ciumento de um cão sarnento com a pele áspera e um fôlego
fétido.
— Tome cuidado — lhe advertiu Gabriel enquanto
continuavam os beijos e os arrulhos — Poderia ter pulgas. Ou varíola — murmurou
para seus adentros.
— Não deve preocupar-se com as pulgas. Peter e
Phillip o banharam em uma das velhas tinas do Meg no pátio.
— Que é onde deveria ficar pelo que a mim
respeita.
— Mas então não desfrutaria de sua companhia.
Quando era pequena vivíamos ao lado de um velho cavalheiro que tinha perdido a
vista.
Tinha um pequeno terrier que lhe acompanhava
sempre. Quando seus criados lhe tiravam passear, o terrier ia por diante com sua
correia enfeitada e lhe levava ao redor das lajes irregulares e os atoleiros de
barro. Se uma brasa caía da chaminé ao tapete, o cão ladrava para alertar aos
serventes. — Como se lhe tivesse dado um sinal, o cachorrinho que tinha em seus
braços lançou um agudo latido.
Gabriel fez uma careta.
— Que inteligente. Embora eu acredite que teria
sido preferível morrer queimado na cama. Não acabou o pobre homem surdo além de
cego?
— Direi-lhe que esse cão foi um amigo fiel, um
excelente companheiro até o dia que seu dono morreu. Seu mordomo disse a nossa
donzela que quando lhe enterraram o pobre passou vários dias diante da cripta da
família esperando a que voltasse seu querido amo. — Sua voz ficou um momento
amortecida, como se tivesse enterrado sua deliciosa boca no cabelo do cão — Não
é a história mais comovedora que ouviu alguma vez?
Ao Gabriel intrigava mais o fato de que a família
de Samantha tivesse sido o bastante rica para contratar os serviços de uma
donzela. Mas quando a ouviu suspirar e procurar um lenço no bolso de sua saia
soube que estava perdido. Cada vez que sua enfermeira ficava sentimental ficava
sem defesas.
— Se insistir em que tenha um cão, poderia ser ao
menos um de verdade? Um cão lobo irlandês ou um mastim, por exemplo?
— Muito grandes. Este pequeno pode lhe seguir a
qualquer parte — comentou voltando a lhe pôr sobre seu regaço.
Ele cheirou o aroma a limão de seu cabelo,
confirmando suas suspeitas de que os criados tinham banhado ao cão com a
fragrância favorita de Samantha. O animal foi saltando aos pés da cama, e com um
profundo grunhido começou a roer os dedos de Gabriel através do edredom.
Gabriel lhe ensinou os dentes lhe grunhindo
também.
— Como gostaria de chamá-lo? — perguntou
Samantha.
— De maneira nenhuma que se possa repetir diante
de uma dama — disse tentando tirar o dedo gordo da boca do cão.
— É muito tenaz — observou ela enquanto o cão
baixava ao chão. Ao sentir que o edredom se ia com ele, Gabriel o agarrou
desesperadamente. Uns centímetros mais e a senhorita Wickersham descobriria o
efeito que o sonho e seu suave cantarolar tinham tido nele.
— É bastante teimoso e intratável — reconheceu
Gabriel — É tão teimoso que é impossível lhe agradar ou raciocinar com ele.
Sempre se sai com a sua embora tenha que passar por cima dos desejos e as
necessidades de outros. Eu acredito que deveria lhe chamar… — os lábios de
Gabriel se curvaram em um sorriso enquanto desfrutava com seu silêncio
espectador — Sam.
Nos dias que seguiram Gabriel teria ocasião de
chamar o cão de tudo exceto por seu nome. Em vez de trotar diante dele para
detectar obstáculos e perigos potenciais, a infernal criatura adorava saltar a
seu redor, andar entre suas pernas e lhe atirar o fortificação. Se tivesse tido
algum motivo além da exasperação perpétua, teria suspeitado que sua enfermeira
tentava planejar uma queda mortal.
Ao menos ninguém podia acusar a de exagerar. O
cão lhe acompanhava sempre. Não importava onde fosse Gabriel, seguia-lhe seu
ansioso ofego e o ruído constante de suas pequenas unhas no parqué e os chãos de
mármore. Os criados já não tinham que preocupar-se com varrer o comilão quando
Gabriel comia. Sam se sentava justo debaixo da cadeira de seu amo e agarrava os
trocitos de comida que caíam antes que pudessem chegar ao chão. Quando Gabriel
ia apoiar a cabeça em seu travesseiro de noite, encontrava-a já ocupada por uma
cálida bola de cabelo.
Se o cão não estava ofegando em seu pescoço
estava roncando em sua orelha. Quando Gabriel não podia suportar mais sua
ruidosa respiração, agarrava o edredom da cama e ia se dormir à sala de estar.
Ao despertar uma manhã descobriu que o cão tinha
desaparecido. Desgraçadamente, também tinha desaparecido um de seus melhores
expulsa.
Gabriel baixou as escadas utilizando a
fortificação para percorrer cada lance. A verdade era que se sentia muito
orgulhoso dos progressos que estava fazendo com ela, e estava desejando
demonstrar sua mestria a Samantha. Mas a elegante fortificação não fez nada para
evitar que pisasse em um atoleiro quente ao pé das escadas.
Levantou o pé coberto por uma meia três-quartos
tentando assimilar o que acabava de lhe ocorrer em mais de um sentido. E jogando
a cabeça para trás gritou «Sam!» com todas suas forças.
Tanto o cão como sua enfermeira responderam a sua
chamada. O cão brincou de correr a seu redor três vezes, e logo se desabou sobre
seu pé seco enquanto Samantha exclamava: — Meu deus! Não sabe quanto o sinto!
Supunha-se que Phillip ia tirar lhe esta manhã a dar um passeio pelo jardim. Ou
era Peter?
Apartando ao cão de seu pé, Gabriel avançou para
o som de sua voz com a meia três-quartos chapinhando a cada passo.
— Como se vem o arcebispo de Londres a ocupar-se
dele. Não lhe quero aqui nem um minuto mais. Sobre tudo debaixo de meus pés! —
Apontou com um dedo para o que esperava que fora a porta, embora temia que fosse
a coluna do vestíbulo — Lhe quero fora de minha casa!
— OH, vamos. Em realidade não é culpa dela. Já
sabe que não deveria andar por aí com meias três-quartos.
— Poderia me haver posto as botas que Beckwith me
tinha preparado — explicou com uma paciência exagerada — se tivesse podido
encontrar as duas. Mas quando despertei a direita tinha desaparecido
misteriosamente.
Então disse uma voz masculina que vinha da porta:
— Não o vão acreditar! Olhem o que acaba de encontrar o jardineiro!
Capítulo 11
Querida Cecily,
Pode que meu acanhamento me tenha impedido de falar com o valor necessário para
têla junto a mim...
— O que é? — perguntou Gabriel com um
pressentimento cada vez mais forte.
— OH, nada — respondeu Samantha apressadamente —
Não sei que tolice está dizendo Peter.
— Não é Peter, é Phillip — assinalou Gabriel.
— Como pode sabê-lo? — Parecia realmente
surpreendida de que pudesse distinguir a um gêmeo do outro.
— Ao Peter gosta de tornar-se só um toque de água
de rosas quando se arruma pelas manhãs, enquanto que Phillip se banha nela
esperando que Elsie se fixe nele. E não necessito a vista para saber que agora
mesmo está provavelmente mais vermelho que um tomate. O que tem aí, moço? —
perguntou dirigindo-se diretamente ao jovem.
— Nada que lhe interesse, senhor — lhe assegurou
Samantha — É só uma bonita...
cenoura. Por que não a leva às cozinhas, Phillip,
e diz a Étienne que comece a fazer um guisado para o jantar?
A confusão do criado se refletiu em sua voz.
— Me parece que é uma bota velha. Pergunto-me
como terá acabado tão danificada e enterrada no jardim.
Recordando o belo couro coríntio que havia talher
suas panturrilhas, Gabriel resistiu como pôde o impulso de grunhir.
Quando voltou a falar sua voz era suave e
controlada.
— O vou pôr muito fácil, senhorita Wickersham. Ou
se vai o cão — se aproximou o suficiente para cheirar seu quente fôlego com
sabor a hortelã — ou se vai você.
Ela suspirou.
— Bom, se isso for o que quer. Phillip, poderia
acompanhar ao Sam ao jardim?
— É obvio, senhorita. Mas o que faço com isto?
— Deveríamos devolver-lhe a seu legítimo dono.
Antes que Gabriel se desse conta do que ia fazer,
a bota cheia de barro lhe deu um golpe no peito.
— Obrigado — disse afastando a de seu corpo.
Movendo a fortificação por diante dele, deu-se a
volta e retornou para as escadas. Mas sua solene retirada se danificou quando
chegou ao primeiro degrau um passo antes do que esperava.
Logo ficou paralisado ao dar-se conta de que
tinha a meia três-quartos direito tão molhado como o esquerdo.
Sentindo o olhar divertido da senhorita
Wickersham em suas costas, subiu as escadas chapinhando todo o caminho.
Gabriel ficou o travesseiro sobre os ouvidos, mas
nem sequer as grosas capas de plumas podiam amortecer o terrível uivo que
entrava pela janela de sua habitação. Tinha começado no momento em que apoiou a
cabeça no travesseiro, e não parecia que fora a parar antes do amanhecer.
O cão soava como se lhe tivessem partido o
coração.
Ficando de barriga para cima, Gabriel lançou o
travesseiro para a janela. Um silêncio desaprovado invadia o resto da casa. A
senhorita Wickersham estava provavelmente amontoada em sua cama, dormindo
felizmente. Quase podia vê-la ali, com suas sedosas mechas de cabelo estendidos
sobre o travesseiro e seus suaves lábios entreabertos. Mas inclusive em sua
imaginação as sombras velavam seus delicados rasgos.
Provavelmente se tinha tirado o aroma de limão de
sua pele ao preparar-se para ir à cama, deixando só a doçura essencial de seu
aroma.
Era mais forte e embriagador que qualquer outra
fragrância, e prometia um jardim de delícias terrestres que nenhum homem poderia
resistir.
Gabriel gemeu enquanto lhe doía o corpo de desejo
e frustração. Se o cão não se calava logo acabaria uivando com ele.
Jogando o edredom para trás, levantou-se e foi
para a janela. Procurou provas o fecho, e ao levantar o marco para cima se
cravou uma lasca no polegar.
— Te cale! — sussurrou ao vazio sob sua janela —
Pelo amor de Deus! Não poderia te calar?
O uivo do cão cessou de repente. Houve um gemido
esperançoso e logo silêncio.
Lançando um suspiro de alívio, Gabriel se voltou
para a cama.
Então continuou o uivo com mais intensidade que
antes.
Depois de fechar a janela de repente, Gabriel
voltou dando pernadas à cama e procurou provas a bata que estava pendurada sobre
a coluna.
Logo saiu da habitação sem incomodar-se sequer em
agarrar a fortificação.
— Estaria-lhes bem empregado que me caísse pelas
escadas e me rompesse o pescoço — murmurou enquanto baixava muito devagar os
degraus — Em vez de chorar sobre minha tumba, provavelmente o cão mijaria sobre
ela.
Deveria lhe dizer ao guarda que mate a esse
maldito animal.
Depois de se tropeçar com um banco e de dar um
golpe na tíbia com a pata de uma mesa, conseguiu abrir um dos *ventanales* da
biblioteca.
Enquanto abria a janela, o ar frio da noite lhe
acariciou a pele. Vacilou resistindo a expor seu rosto desfigurado à fria luz da
lua.
Mas o triste uivo prosseguiu, conectando com algo
profundo em seu interior. E decidiu que apesar de tudo não havia lua.
Cruzou com cuidado a terraço de ladrilhos, com as
pedras soltas cravando-se nos novelo de seus pés descalços, e logo saiu à erva
coberta de rocio seguindo o som. Quando estava quase em cima dele a noite ficou
em silêncio, tanto que pôde ouvir o coaxar distante de um sapo e o rouco
sussurro de sua própria respiração.
Ficando de joelhos, mediu o chão a seu redor com
as duas mãos.
— Pelo amor de Deus, onde está? Se não queria te
encontrar estaria babando sobre mim.
Então rangeu um arbusto próximo e um sólido vulto
de cabelo caiu em seus braços como se o tivessem arrojado de um canhão.
Choramingando de alegria, o pequeno collie ficou
sobre suas patas traseiras e começou a banhar a cara de Gabriel com beijos
úmidos.
— Seja, seja — murmurou agarrando ao animal
tremente em seus braços — Não faz falta que fique tão sentimental. Quão único
quero é dormir tranqüilo.
Agarrando ainda ao cão, Gabriel ficou em pé
cambaleando-se e iniciou o comprido caminho de volta a sua habitação. Tinha que
reconhecer que com esse corpo pequeno e quente debaixo de seu queixo a noite não
parecia tão escura nem o caminho tão largo.
Nem sequer Samantha se atreveu a fazer nenhum
comentário ao dia seguinte quando Gabriel baixou as escadas com o Sam trotando
alegremente junto a seus talões. Embora seguia queixando de que o cão estava
sempre estorvando, quando pensava que não havia ninguém olhando lhe acariciava
as suaves brinca ou jogava uma parte de carne debaixo da mesa.
Para o final dessa semana Gabriel era capaz de
sortear o labirinto de móveis sem tropeçar-se com nenhuma mesa nem levar-se por
diante nenhuma figurinha de porcelana. Satisfeita com seus progressos, Samantha
decidiu que tinha chegado o momento de começar com a seguinte classe.
Essa noite Gabriel se encontrou passeando de um
lado a outro frente às leva do comilão, sentindo-se como um animal enjaulado com
cada passo. Quando chegou à hora habitual, Beckwith lhe disse gaguejando que o
jantar se atrasaria e que devia esperar fora até que lhe chamassem.
Agarrando sua fortificação, Gabriel pegou uma
orelha à porta intrigado pelos tinidos e os rangidos misteriosos que vinham de
dentro. Sua curiosidade e seu temor aumentaram quando reconheceu o murmúrio
suave, mas autoritário de sua enfermeira.
Gabriel estava tão concentrado tentando escutar
suas palavras que não ouviu o Beckwith aproximar-se da porta. Quando o mordomo a
abriu de repente esteve a ponto de cair de cabeça na habitação.
— Boa noite, senhor — disse Samantha desde algum
lugar a sua esquerda com um tom divertido em sua voz — Espero que perdoe o
atraso. Agradeço-lhe sua paciência.
Franzindo o cenho, Gabriel cravou a ponta da
fortificação no chão para tentar recuperar o equilíbrio e a dignidade.
— Estava começando a me perguntar se isto ia ser
um jantar a meia-noite. Ou possivelmente um café da manhã de madrugada. —
Levantou a cabeça, mas não ouviu o ofego familiar que normalmente acompanhava
todas suas comidas — O que têm feito com o Sam? É muito esperar que lhe ponham
diante de uma fonte de prata com uma maçã na boca?
— Hoje Sam jantará no comilão dos serventes. Mas
não se preocupe com ele. Peter e Phillip prometeram jogar suficiente comida
debaixo de suas cadeiras. Espero que me perdoe por lhe desterrar, mas pensei que
já era hora de que se acostumasse de novo aos adornos da civilização. — Um
sorriso alegrou sua voz — Com esse fim, a mesa está coberta com uma toalha de
linho branca.
Ao longo dela há três castiçais de prata com
quatro velas cada um que dão um brilho magnífico a melhor porcelana e o melhor
cristal que a senhora Philpot pôde encontrar.
Ao Gabriel não custou muito imaginar o quadro que
Samantha havia descrito. Só havia um problema. Inclusive com sua fortificação na
mão, não se atrevia a aproximar-se da mesa por medo a romper algo ou que lhe
incendiasse a roupa.
Notando sua indecisão, Samantha lhe agarrou
brandamente pelo cotovelo.
— Se me permitir isso, acompanharei a sua
cadeira. Tomei-me a liberdade de lhe situar à cabeça da mesa como lhe
corresponde.
— Significa isso que você jantará no comilão dos
serventes como lhe corresponde? — perguntou enquanto lhe guiava ao redor da
mesa.
Lhe deu um tapinha no braço.
— Não seja ridículo. Jamais me ocorreria lhe
privar de minha companhia.
Ante sua insistência se acomodou em sua cadeira.
Enquanto a ouvia sentar-se a sua direita cruzou torpemente as mãos sobre seu
regaço.
Lhe tinha esquecido o que se supunha que devia
fazer com elas quando não estavam procurando comida. De repente lhe pareciam
muito grandes e torpes para suas bonecas.
Para alívio dele, um dos serventes chegou
imediatamente com o primeiro prato.
— Peito de peru assada com cogumelos silvestres —
anunciou Samantha enquanto o criado servia uma ração em seu prato.
Com o suculento aroma que chegou ao nariz lhe fez
a boca água. Esperou a que o criado se fora antes de alargar a mão, mas então
Samantha se esclareceu garganta bruscamente.
Gabriel retirou a mão castigada.
— O garfo está a sua esquerda, senhor. E a faca a
sua direita.
Suspirando, Gabriel mediu a toalha junto a seu
prato até que encontrou o garfo. Seu peso lhe resultava torpe e estranho. Na
primeira tentativa para o prato falhou por completo. A prata chocou ruidosamente
contra a fina porcelana, e fez uma careta. Custou-lhe outros três intentos
encontrar um cogumelo. Depois de persegui-lo pelo prato durante quase um minuto,
por fim conseguiu cravá-lo com o garfo e levar-lhe à boca.
Enquanto o saboreava perguntou: — O que tem
posto, senhorita Wickersham?
— Desculpe? — disse realmente surpreendida pela
pergunta.
— Há descrito tudo o que há no comilão. Por que
não fala de seu aspecto? Pelo que eu sei, poderia estar aí sentada com uma
regata e umas meias. — Cravando outro cogumelo, Gabriel agachou a cabeça para
ocultar um sorriso perverso.
— Não acredito que meu aspecto seja pertinente
para o desfrute desta comida — respondeu Samantha com frieza — Possivelmente
deveríamos ter começado com uma lição para manter uma conversação civilizada.
Gabriel teria preferido retirar os pratos da mesa
e lhe dar uma lição de...
Tragou o cogumelo apartando essa perigosa idéia
de sua cabeça.
— Por que não me agrada? Como vou manter uma
conversação civilizada com uma dama quando nem sequer posso imaginá-la em minha
mente?
— Muito bem — disse ela com tom sério — Hoje levo
um vestido de bombasí negro.
Tem um pescoço bastante alto ao estilo isabelino
e um xale de lã para me proteger das correntes.
Ele se estremeceu.
— Sonha como o que levaria uma tia solteira a um
funeral. Sobre tudo ao dele. Sempre lhe gostaram das cores tão escuras?
— Não sempre — respondeu Samantha em voz baixa.
— E seu cabelo?
— Se deve sabê-lo — respondeu com um tom
exasperado — levo-o em um coque coberto com uma rede para cabelo negra de
encaixe na nuca. É um estilo que encontro muito prático.
Gabriel ficou um momento pensativo antes de mover
a cabeça.
— Sinto muito. Não me serve.
— Como?
— Não posso imaginá-la vestida de luto. Me está
tirando o apetite. Ao menos me economizou a descrição de seus sapatos, que estou
seguro de que são o cúmulo da sensibilidade.
Ouviu um fraco rangido, como se Samantha tivesse
levantado a toalha para olhar debaixo, mas não disse nada para defender-se.
Então se reclinou em sua cadeira acariciando-a
queixo.
— Acredito que leva algo do novo estilo francês;
uma musselina nata, possivelmente, com a cintura alta e um decote baixo
quadrado, desenhado para abraçar brandamente as formas femininas em todo seu
esplendor. — Estreitou os olhos — E não a vejo com um xale, a não ser com uma
estola de caxemira tão suave como as asas de um anjo sobre esse oco tão adorável
na dobra de 71 Teresa Medeiros Tua Até o Amanhecer seu cotovelo. O vestido lhe
roça os tornozelos e deixa entrever uma meia de seda de cor rosa com cada passo
que dá.
Esperava que interrompesse sua escandalosa
descrição com um irado protesto, mas parecia que se ficou hipnotizada com o
timbre de sua voz.
— Nos pés leva umas sapatilhas de seda rosa muito
frívolas, que só servem para entrar rebolando em um salão de baile e passar a
noite dançando. Também leva um laço a jogo em seu coque de cachos dispostos
artisticamente, alguns dos quais caem ao redor de suas bochechas como se
acabasse de sair do banho.
Durante um comprido momento não se ouviu nada.
Quando Samantha falou por fim, tinha a voz tão apagada que Gabriel esboçou um
sorriso.
— Sem lugar a dúvidas, ninguém pode lhe acusar
por falta de imaginação, senhor. Ou por não conhecer bem os objetos femininos.
Ele se encolheu de ombros com um gesto tímido.
— É uma conseqüência de ter acontecido muito
tempo em minha juventude tentando as tirar.
Ela tragou saliva.
— Possivelmente seja melhor que comamos antes que
se sinta tentado a descrever minha roupa interior imaginária.
— Isso não será necessário — respondeu ele com um
tom tão suave como a seda — Não leva nada.
A brusca respiração de Samantha e o ruído dos
talheres contra a porcelana lhe advertiram que se encheu a boca para não ter que
seguir suportando suas rabugices.
Desejando poder fazer o mesmo, Gabriel voltou a
cravar o garfo no prato. Conseguiu cravar uma parte de carne, mas por seu peso
sabia que era muito grande para levar-lhe aos lábios sem ganhar uma reprimenda.
Apertando os dentes, suspirou. O peru não teria sido mais escorregadio se
tivesse estado correndo pela mesa grasnando e movendo suas asas. Se não queria
morrer de fome, parecia que não ficava mais remedeio que utilizar a faca.
Mediu à direita de seu prato, mas antes que
pudesse encontrar a manga da faca sua folha lhe fez um pequeno corte no polegar.
— Maldita seja! — exclamou metendo o apêndice
entre os lábios.
— Meu deus! — gritou Samantha realmente
consternada — Se feito mal? —Gabriel ouviu como arrastava a cadeira para
levantar-se.
—Não! — disse bruscamente brandindo o garfo para
ela como se fosse um sabre — Não necessito sua compaixão. O que preciso é comida
no estômago, porque com a fome que me tenho poderia comer isso a você.
Samantha voltou a sentar-se em sua cadeira.
— Não o tinha pensado — disse em voz baixa — Me
permite ao menos lhe cortar a carne?
— Não, obrigado. A não ser que pense me seguir
toda minha vida para me cortar a carne e me limpar o queixo, será melhor que
aprenda a fazê-lo eu sozinho.
Depois de deixar o garfo Gabriel foi agarrar sua
taça, esperando que um bom gole de vinho aliviasse sua vergonha por ser tão
bruto. Mas com sua estupidez só conseguiu derrubar a taça.
Não necessitava sua vista, só o grito
sobressaltado de Samantha, para saber que o vinho se derramou pela toalha branca
e sobre seu regaço.
Ficou em pé com a fome, a vergonha e a frustração
tirando por fim o melhor dele.
— Isto é uma loucura! Estaria melhor pedindo
esmola em qualquer esquina que fingindo que ainda tenho alguma esperança de me
fazer passar por um cavalheiro. — Deu um golpe com o punho na mesa, fazendo soar
a porcelana — Sabia que as damas estavam acostumadas competir pelo privilégio de
sentar-se a meu lado no jantar? Que rivalizavam por meus cuidados como se 72
Teresa Medeiros Tua Até o Amanhecer fossem um doce delicioso? Que mulher vai
querer agora minha companhia? Quão único poderia esperar são uns grunhidos e o
regaço manchado de vinho. Isso se não gostar muito fogo a seus cachos sem me dar
conta incluso antes que sirvam o jantar.
Agarrando a toalha com as duas mãos, deu um forte
puxão que mandou a porcelana, o cristal e todos os esforços de Samantha ao chão
com um grande estrépito.
Gabriel sentiu uma corrente em suas costas, como
se alguém tivesse entrado de forma precipitada.
— Está bem, Beckwith — disse Samantha
tranqüilamente. O mordomo de ter vacilado, porque acrescentou com firmeza — Eu
me ocuparei.
Logo Beckwith e a corrente se foram, deixando-os
sozinhos de novo. Gabriel ficou ali na cabeceira da mesa, sufocado e com a
respiração agitada. Queria que Samantha se zangasse com ele e lhe dissesse que
se converteu em um monstro. Queria que lhe dissesse que não havia nenhuma
esperança para ele. Então poderia deixar de tentá-lo, de lutar...
Em vez disso sentiu que seu ombro lhe roçava a
perna enquanto se ajoelhava a seus pés.
— Quando recolher tudo isto — disse brandamente
sobre o tinido amortecido da porcelana e os cristais quebrados — pedirei outro
prato.
Sua sossegada calma e sua negativa a perder a
compostura lhe punham mais nervoso ainda. Procurando provas sua boneca, Gabriel
a atraiu contra seu peito.
— É capaz de ficar furiosa quando defende a quão
idiotas servem ao rei e à pátria, mas não parece capaz de defender-se a si
mesmo. Não tem coração? Não tem sentimentos?
— Claro que tenho sentimentos! — respondeu ela —
Sinto cada chicotada de sua língua, cada comentário incisivo. Se não tivesse
sentimentos não teria perdido todo o dia tentando fazer que o jantar fosse uma
experiência agradável para você. Não me teria levantado ao amanhecer para falar
com o cozinheiro de seus pratos favoritos. Não teria passado toda a manhã no
bosque procurando cogumelos especialmente suculentos. E tampouco teria passado a
metade da tarde tentando decidir que baixela iria melhor a sua mesa: a Worcester
ou a Wedgwood. — Gabriel podia sentir seu pequeno corpo tremendo de emoção —
Sim, tenho sentimentos. E também tenho um coração, senhor. Mas não vou permitir
que me rompa isso.
Enquanto se livrava dele, algo quente e úmido
caiu na mão de Gabriel. Ouviu seus passos sobre os cristais quebrados e logo o
golpe de uma porta.
Sabendo que estava completamente sozinho, Gabriel
passou a língua pelo dorso de sua mão e comprovou que tinha sabor de sal.
Afundando-se em sua cadeira, tampou-se a cara com
as mãos.
— Tinha razão em uma coisa, toco — murmurou — Não
te viria mal aprender a manter uma conversação civilizada na mesa.
Um momento depois Gabriel sentiu uma mão cálida
sobre seu ombro.
— Posso lhe ajudar, senhor? — A voz do Beckwith
tremeu um pouco, como se estivesse preparando-se já para um brusco rechaço.
Gabriel levantou devagar a cabeça.
— Sabe, Beckwith? — disse dando um tapinha na mão
do fiel criado — Acredito que sim.
Capítulo 12
Querida Cecily,
Não sabe quanto me alivia que diga que admira o valor em um homem...
Samantha estava zangada.
Não tinha muita experiência nesse terreno. Nem
sequer de pequena estava acostumada recorrer ao mau humor para sair-se com a
sua.
Normalmente bastava com um sorriso e um argumento
lógico para conseguir o que queria de seus pais. Mas agora não tinha nenhuma
esperança de obter o que queria.
Durante três dias logo que tinha saído de sua
habitação, exceto para jantar com os serventes no comilão do porão. E sempre
levava um livro.
Se parecia que alguém ia aproximar se dela,
colocava o nariz detrás dele até que partia olhando de esguelha e suspirando.
Sabia que sua atitude era infantil, que ao não
cumprir com suas obrigações estava dando motivos ao Gabriel para que dissesse ao
Beckwith que enviasse uma mensagem a seu pai e a despedisse. Mas já não lhe
importava.
O fato de que ele a estivesse evitando com tanto
empenho como ela a ele não melhorava seu estado de ânimo. Ao parecer, a simples
ideia de encontrar-lhe por acaso lhe resultava tão repugnante que tinha ordenado
que as portas do salão permanecessem fechadas quando procurasse refúgio ali.
Samantha passava por diante das portas ignorando os golpes e os rugidos
ocasionais que chegavam a seus ouvidos.
Beckwith e a senhora Philpot também pareciam
indiferentes a sua desgraça. Em duas ocasiões os encontrou amontoados em uma
esquina murmurando despreocupadamente. Assim que a viram fecharam a boca com um
gesto de culpabilidade e se foram resmungando que deviam tirar brilho à concha
de sopa e assegurar-se de que Meg pusesse o amido adequado nas toalhas.
Samantha supôs que estavam debatendo a maneira
mais amável de lhe dizer que deveria começar a procurar outro emprego.
O sonho era tão evasivo como a paz. A terceira
noite depois de sua briga com o Gabriel, enquanto estava deitada na cama olhando
ao teto, seu estômago começou a queixar-se. Como já tinha perdido a metade da
noite dando voltas debaixo dos lençóis, decidiu baixar silenciosamente e ajustar
um bolo de carne nas cozinhas desertas.
Enquanto estava passando pelo salão chegou aos
ouvidos uma espécie de canção amortecida. Pensando que era muito estranho que as
portas estivessem fechadas depois de meia-noite, pegou uma orelha a um dos
painéis dourados.
Não estava perdendo o julgamento. O que tinha
ouvido era música. Um homem estava cantarolando enquanto uma mulher lhe
acompanhava com voz de soprano.
Antes que pudesse identificar a letra da canção,
o homem começou a cantar um *staccato*.
— Um, dois, três e quatro… um, dois, três,
quatro...
Então se ouviu um golpe tremendo. Depois de um
comprido e misterioso silêncio, uns passos rápidos se aproximaram da porta.
Samantha atravessou correndo o vestíbulo e
conseguiu esconder-se detrás de uma estátua de mármore do Apolo de tamanho
natural antes que se abrisse uma das portas.
Beckwith saiu do escuro salão soprando um pouco e
com o cabelo revolto. Samantha ficou com a boca aberta ao ver que lhe seguia a
senhora Philpot alisando o avental e ficando uma mecha de cabelo solto detrás da
orelha.
A governanta levantou seu nariz *Patricia* no ar.
— Boa noite, senhor Beckwith.
— Que durma bem, senhora Philpot — respondeu ele
fazendo uma pequena reverência.
Enquanto se foram em diferentes direções,
Samantha saiu de detrás da estátua com a boca aberta ainda. Não lhe teria
surpreso que Elsie e Phillip tivessem saído do salão rindo-se, mas nunca teria
suspeitado que o formal mordomo e a severa governanta se permitissem o luxo de
ter uma encontro a meia-noite. Parecia que o pessoal doméstico mais veterano do
Fairchild Park era mais afortunado no amor que ela.
Movendo a cabeça, voltou a subir as escadas sem
apetite.
Para a tarde seguinte o mau humor de Samantha
estava começando a lhe crispar os nervos. Agarrando seu xale, decidiu ir dar um
comprido passeio pelos terrenos da casa esperando que as nuvens e o vento de
abril se levassem todos os pensamentos de Gabriel de sua cabeça.
Ao voltar encontrou uma grande caixa de madeira
retangular sobre sua cama.
Atirando o xale na cadeira mais próxima,
aproximou-se com cautela à caixa. Pode que Beckwith tivesse ordenado que a
subissem para que guardasse suas coisas quando a jogassem à rua.
Ao levantar com cuidado a tampa ficou
boquiaberta. Em seus limites perfumados de sândalo havia um delicado vestido de
musselina de cor nata. Incapaz de resistir a tentação, Samantha o levantou e o
pôs sobre seu peito.
Não tinha visto nada tão delicioso em muito
tempo. As mangas abobadas do vestido estavam adornadas com uma tira de encaixe,
e um largo laço de raso franzia o tecido justo por debaixo de seus seios. O
decote quadrado era o bastante baixo para atrair a atenção de um homem.
Como o tecido era tão fino que parecia quase
transparente, por debaixo de sua saia drapeada só se podia levar a roupa
interior mais delicada e feminina.
Desde seus diáfanos ombros até a elegante penetra
que fluía do sob festoneado, o vestido não lhe teria ficado melhor se um dos
modistas mais famosos de Paris o tivesse feito especialmente para ela.
Acredito que leva algo do novo estilo francês.
Enquanto a escura voz de barítono de Gabriel
acariciava seus sentidos, viu o cartão de papel vitela que se cansado das dobras
da saia.
Sujeitando ainda o vestido, agarrou o cartão da
caixa e reconheceu a meticulosa letra do Beckwith.
— Lorde Sheffield solicita o prazer de sua
companhia para jantar esta noite às oito — murmurou.
Enquanto lhe escorregava o cartão dos dedos,
deixou o vestido na cama ao dar-se conta do ridículo que devia ficar sobre o fio
de lã marrom de seu traje.
Não ficava mais remédio que rechaçar o presente
de Gabriel e seu convite. Não era uma de suas antigas amantes para que tentasse
lhe tirar o mau humor com presentes caros e palavras doces. Voltou a olhar a
caixa com tristeza. Ficou-se tão impressionada com o vestido que não tinha
acabado de descobrir seus tesouros.
Ao voltar a colocar a mão na caixa seus dedos
acariciaram...
… uma estola de cachemira tão suave como as asas
de um anjo sobre esse oco tão adorável na dobra de seu cotovelo.
Samantha retirou a mão. Como podia um homem cego
conhecer esse oco? Porque todas as mulheres o tinham, recordou-se a si mesmo com
severidade. Provavelmente Gabriel tinha beijado muitos antes de perder a vista.
Agarrou a tampa decidida a fechar essa caixa da
Pandora antes que saísse dela outra tentação mais atraente.
Nos pés leva umas sapatilhas de seda rosa muito
frívolas, que só servem para entrar rebolando em um salão de baile e passar a
noite dançando.
— Os sapatos não — sussurrou Samantha rodeando
com os dedos a tampa da caixa — Não pôde ser tão diabólico.
Baixando a tampa sobre a cama, apartou a estola
com cuidado. Um gemido de impotência saiu de seus lábios. As sapatilhas que
havia no fundo da caixa eram de um rosa muito suave, tão formosas e etéreas que
pareciam mais adequadas para fadas que para pés mortais.
Samantha baixou seu olhar a suas sólidas botas de
cano longo de couro, que estavam mais sujos que de costume por ter andado com
eles pelos terrenos do imóvel. Voltou a olhar as sapatilhas mordendo o lábio.
Por provar-lhe não passaria nada. Depois de tudo, que possibilidades tinha que
ficassem bem? Agarrando um fixador, sentou-se no tapete e começou a desatá-las
botas.
Samantha se tinha acostumado a andar pela mansão
com suas práticas botas. Com as delicadas sapatilhas atadas ao redor dos
tornozelos se sentia como se estivesse flutuando enquanto descia pela curvada
escada. Ao passar pela coluna com espelhos do vestíbulo jogou uma olhada a seu
reflexo. Não lhe teria surpreendido que dos ombros cremosos do elegante vestido
saíssem um par de finas asas de seda.
Com sua graciosa saia ondulando sobre seus
tornozelos, não se sentia como a sensata enfermeira de Gabriel, mas sim como uma
jovenzinha com o coração esperançoso. Só ela sabia quão perigosa podia ser essa
esperança. Enquanto girava para o comilão, Samantha tirou os óculos do bolso do
vestido e as pôs com expressão desafiante.
Embora não havia nenhum servente à vista tinha a
sensação de que a estavam vigiando, de que as comporta se abriam e se fechavam
detrás dela. Ao passar pelo salão teria jurado que ouviu um suspiro, e logo um
risinho do Elsie rapidamente amortecido. Quando se deu a volta encontrou as
portas do salão entreabertas. A escura estadia parecia estar deserta.
Chegou ao comilão justo quando o relógio do
patamar começava a dar as oito. As impressionantes *leva* de mogno estavam
fechadas.
Samantha vacilou, sem saber como seriam suas
boas-vindas. Umas noites antes Gabriel deve ter se sentido como um mendigo em
sua própria festa enquanto esperava que respondesse a sua chamada.
Armando-se de valor, ficou bem a estola e logo
chamou com firmeza à porta.
— Entre.
Ao aceitar o rouco convite, encontrou ao jovem
príncipe do retrato na cabeceira da mesa em um lhe pisquem atoleiro de luz.
Capítulo 13
Querida Cecily,
Deveria lhe advertir que está respirando meu valor por sua conta e risco...
O homem que estava na cabeceira da larga mesa
poderia ter adornado qualquer comilão ou salão de Londres. Do reluzente alfinete
de diamantes que assegurava as dobras de seu impecável lenço branco até as
borlas de couro de seu segundo melhor par de botas, sua imagem teria feito que
qualquer valete sorrisse de orgulho. Os volantes de seu peitilho e seus punhos
estavam perfeitamente acentuados por um fraque e umas calças de cor ante que
envolviam seus estreitos quadris como uma segunda pele.
Levava o cabelo comprido recolhido em um
acréscimo com uma cinta de veludo negro, realçando a forte linha de sua
mandíbula e os impressionantes rasgos de seu rosto. A luz da vela suavizava os
rugosos borde de sua cicatriz e encobria o vazio de seu olhar.
A garganta de Samantha se esticou com um desejo
que não podia permitir o luxo de sentir.
— Espero não lhe haver feito esperar, senhor —
disse fazendo uma reverência que ele não pôde ver — Pensava jantar no comilão
dos serventes, como me corresponde.
Ele torceu a esquina direita de sua boca.
— Isso não será necessário. Esta noite não é
minha enfermeira. É minha convidada.
Gabriel se aproximou da cadeira de sua direita e
a tirou com muito cuidado, arqueando uma sobrancelha para convidá-la a
sentar-se.
Samantha vacilou, sabendo que estaria mais segura
aos pés da mesa, fora de seu alcance. Mas a expressão de seu rosto era tão
esperançoso que se encontrou rodeando a mesa para unir-se a ele. Enquanto se
inclinava para colocar a cadeira debaixo 77 Teresa Medeiros Tua Até o Amanhecer
da mesa sem nenhum esforço, ela se fixou nos músculos de seus braços e no calor
que irradiava de seu peito.
Logo se sentou em sua cadeira.
— Espero que não lhe importe comer com a baixela
Worcester. Temo-me que a Wedgwood sofreu um desafortunado acidente.
— Vá tragédia. — Ao olhar a seu redor se deu
conta de que o aparador estava vazio e de que na mesa havia vários pratos de
fácil alcance, entre eles uns apetitosos morangos frescos — Não vejo ninguém
para nos atender. Também deu a noite livre a outros serventes?
— Pensei que se mereciam uma pausa de suas
obrigações. Esta semana se esforçaram muito.
— É claro que sim. Devem ter trabalhado muitas
horas só para fazer este vestido.
— Felizmente, a nova moda leva tão pouco tecido
que Meg só se aconteceu duas noites sem dormir para confeccioná-lo.
— E quantas noites sem dormir ficou você?
Em vez de responder, Gabriel agarrou a garrafa de
clarete que havia entre eles. Samantha levantou seu guardanapo preparando-se
para o pior, mas sua mão rodeou com cuidado o elegante pescoço da garrafa. Logo
observou boquiaberta como jogava um jorro generoso em cada monopoliza sem
derramar nenhuma só gota na antiga toalha.
— Já vejo que os serventes não são os únicos que
se esforçaram esta semana —comentou brandamente tomando um sorvo de vinho.
— Posso servi-la? — perguntou ele agarrando a
colher de uma fonte de prata com um guisado de frango.
— É obvio — murmurou ela observando fascinada com
que precisão servia a comida nos dois pratos.
Desprezando a faca e o garfo, agarrou sua colher
e começou a comer.
— Então, devo supor que lhe gostou do vestido?
Samantha se alisou a saia.
— É quase tão bonito como pouco prático. Como
conseguiu Meg calcular tão bem as medidas?
— Tem bom olho para essas coisas. Disse que não
era muito mais alta que minha irmã pequena, Honoria. — Esboçou um sorriso — Se
tivesse feito caso ao Beckwith poderia haver ficado como uma loja de campanha.
— E as sapatilhas? Também tem um ferreiro tão
habilidoso?
— Viver tão perto de Londres tem suas vantagens,
já sabe. Ao coração do Beckwith lhe vem bem fazer uma viagem de vez em quando às
lojas de Oxford Street. E à senhora Philpot não resultou difícil entrar em sua
habitação e medir uma de suas botas enquanto estava jantando abaixo.
— Os serventes do Fairchild Park são tão
preparados como seu amo. Mas me temo que não possa ficar com estas coisas tão
belas. Não seria adequado.
— Vamos, por favor. Não fui tão insolente. Deu-se
conta de que não incluí nenhum objeto interior.
— Isso está bem — respondeu Samantha com doçura
metendo uma saborosa parte de frango na boca — Porque não levo nada.
A colher de Gabriel ressonou na mesa. Tomou um
grande gole de vinho, mas parecia que seguia tendo problemas para tragar.
— Asseguro-lhe que nunca lamentei mais que agora
minha enfermidade — conseguiu dizer por fim. Logo se esclareceu garganta com uma
expressão séria — Espero que aceite mais que meus presentes. Espero que aceite
minhas desculpas por me comportar de um modo tão abominável a outra noite.
Enquanto Samantha lhe via medir a toalha para
procurar pacientemente a colher seu sorriso se desvaneceu. A colher estava só a
uns centímetros de seus dedos, mas podia ter estado na habitação do lado.
— Temo-me que sou eu a que deve lhe pedir perdão.
Não me tinha dado conta de quão difícil deve ser para você um pouco tão simples
como comer.
Ele se encolheu de ombros.
— A faca e o garfo são complicados de dirigir. Se
não puder sentir a comida não posso encontrá-la. — Franziu o cenho com ar
pensativo — Vou demonstrar.
Empurrando a cadeira para trás, levantou-se com o
guardanapo na mão e ficou detrás de sua cadeira. O pulso de Samantha se acelerou
enquanto se inclinava sobre ela. Seu quente fôlego arrepiou o pêlo de sua nuca,
fazendo que se arrependesse de haver-se recolhido o cabelo em um frívolo coque
alto.
Antes que pudesse protestar lhe tinha tirado os
óculos. Guiando-se unicamente pelo tato, enrolou o guardanapo em uma tira e a
pôs sobre os olhos, atando-lhe detrás da cabeça com um nó frouxo.
Sem a luz da vela para orientar-se, Samantha
dependia completamente de Gabriel; de seu calor, de seu aroma, de seu tato.
Enquanto o dorso de seus dedos lhe roçava a garganta, fazendo que se
estremecesse, deu-se conta de quão vulnerável era para ele.
— Vai se vingar de mim fazendo comer o frango com
os dedos? — perguntou.
— Não seria tão cruel. Não quando um cego dá de
comer a outro cego. — Ouviu o roce dos pratos enquanto apartava um e aproximava
outro — Prove isto — disse lhe pondo um garfo na mão.
Sentindo-se um pouco ridícula, Samantha cravou no
prato que tinha diante. Não estava segura de qual era o objetivo porque lhe
escorria constantemente. Depois de persegui-lo pelo prato várias vezes,
finalmente conseguiu trespassá-lo. Enquanto levantava o garfo chegou ao nariz o
suculento aroma de um morango fresco, e lhe começou a fazer a boca água. Quando
tinha o bocado bem merecido a uns centímetros de seus lábios lhe escorregou do
garfo e caiu com um golpe insolente na mesa.
— Maldita seja! — blasfemou esperando ouvir a
risada zombadora de Gabriel.
Mas simplesmente lhe tirou o garfo da mão com
suavidade.
— Já vê, senhorita Wickersham, que quando a gente
está privado de sua vista tem que depender de outros sentidos. Como o aroma… —
Enquanto a intensa fragrância do morango penetrava em suas fossas nasais,
Samantha teria jurado que o nariz de Gabriel lhe roçou o pescoço em uma suave
carícia — O tato… — Seus quentes dedos rodearam possessivamente sua nuca
enquanto passava o morango por seus lábios para separá-los e sua voz se fazia
mais profunda — O gosto...
Embriagada por uma frouxidão deliciosa, não pôde
resistir a tentação de abrir-se a ele.
Desde que a serpente se aproximou da Eva no
paraíso não se havia sentido uma mulher tão tentada por uma fruta proibida.
Aceitando seu convite tácito, Gabriel deslizou o morango por seus lábios
abertos, onde sua doce polpa explorou em sua língua antes de lançar um gemido de
satisfação.
— Mais? — perguntou ele com uma voz tão sedutora
como a do diabo.
Samantha queria mais. Muito mais. Mas negou com a
cabeça e apartou a mão temendo que pudesse despertar um apetite impossível de
satisfazer.
— Não sou uma menina — disse lhe imitando
deliberadamente — E não necessito que me dêem de comer.
— Muito bem. Como queira. — Ouviu-lhe mover os
pratos de novo, estalando os lábios enquanto provava cada um — Já está — disse
por fim voltando a lhe dar o garfo — Prove isto.
Embora o suave tom de sua voz deveria lhe haver
prevenido, Samantha cravou o garfo no prato decidida a demonstrar que era capaz
de capturar o que fosse ao primeiro intento. Quando sua mão se afundou até a
boneca em uma terrina de uma substância fria ofegou.
— Os mingaus de Étienne são famosos — murmurou
Gabriel em seu ouvido — Passa horas removendo a nata até que consegue a
consistência adequada.
— Como pode ser tão perverso? — Samantha tirou
sua mão do doce pegajoso — O tem feito a propósito.
Enquanto estava procurando seu guardanapo Gabriel
lhe agarrou a boneca.
— Me permita — disse levando a mão a sua boca.
Samantha não estava preparada para que seu dedo
indicador se deslizasse entre os lábios de Gabriel. O calor úmido de sua boca
contrastava com o frio do mingau. Logo chupou a rica nata de seu dedo com um
abandono sensual que derreteu suas defesas. Resultava fácil imaginar usando essa
mesma língua em outras zonas mais vulneráveis de seu corpo.
Samantha voltou a apartar a mão com as bochechas
ardendo debaixo da atadura.
— Quando me convidou para jantar com você,
senhor, não sabia que ia ser o prato principal.
— Ao contrário, senhorita Wickersham. Seria uma
sobremesa muito mais deliciosa.
— Por meu caráter doce? — perguntou com seu tom
mais mordaz.
Ele riu em voz alta. Incapaz de resistir a
presenciar algo tão estranho, Samantha se tirou a atadura improvisada. Gabriel
havia se tornado a sentar em sua cadeira com um sorriso torcido acentuando as
sedutoras rugas ao redor de seus olhos.
O resto da noite foi um companheiro de jantar
ideal, fazendo ornamento desse encanto legendário que tinha levado a tantas
mulheres a competir por seu afeto. Quando terminaram o mingau, utilizando as
colheres em lugar dos dedos, ele se levantou e lhe ofereceu sua mão.
Samantha se passou o guardanapo pelos lábios
temendo que pudesse lhe seguir onde fora.
— Está-se fazendo tarde, senhor. Deveria me
retirar.
— Não se vá ainda. Tenho algo que lhe ensinar.
Incapaz de resistir essa sincera súplica,
Samantha se levantou e pôs sua mão sobre a dele com cautela. Utilizando sua
fortificação para orientar-se, conduziu-a do comilão por um comprido e sombrio
corredor até um par de portas douradas nas que não se fixou nunca.
Procurando provas os braceletes de bronze,
Gabriel abriu as duas portas de uma vez.
— Meu deus! — sussurrou Samantha contemplando uma
visão que estava além de sua imaginação.
Era o salão de baile que tinha descoberto em sua
primeira exploração da casa. Mas em vez de vê-lo da galeria se encontrava no
centro de seu esplendor. Todas as velas dos abajures de bronze estavam acesas,
dando um brilho reluzente aos azulejos venezianos. Uma fileira de *ventanales*
coroados por uns elegantes arcos envidraçados davam ao jardim iluminado pela
lua.
Gabriel apoiou sua fortificação contra a parede.
Ali não o necessitava. Não havia móveis grandes para tropeçar-se nem estatuetas
delicadas para romper.
— Concede-me o prazer deste baile? — perguntou
lhe oferecendo seu braço.
— Esteve praticando, verdade? — disse Samantha
com tom acusatório recordando os misteriosos compasses musicais e os golpes que
tinha ouvido no salão — Pensava que Beckwith e a senhora Philpot tinham uma
entrevista a meia-noite.
Gabriel riu enquanto a levava a centro da pista
reluzente.
— Duvido que ficasse a energia necessária. A
cabeça do Beckwith e a minha se chocaram mais vezes das que queria recordar, e
os pobres dedos da senhora Philpot não se teriam recuperado nunca se tivesse
levado botas em vez de meias três-quartos. Em seguida nos demos conta de que sou
um desastre com os minués e as danças campestres.
— Se não poder sentir a seu casal — começou a
dizer ela recordando suas palavras anteriores.
— … não posso encontrá-la. Por isso estive ontem
quase toda a noite dançando a valsa com o Beckwith — suspirou — É uma lástima
que a senhora Philpot não dance a valsa.
— A valsa? — repetiu Samantha incapaz de ocultar
sua surpresa — Mas se o próprio arcebispo o denunciou como o cúmulo da
libertinagem.
Os olhos de Gabriel brilharam de alegria.
— Pois imagine o que teria pensado se me tivesse
visto dançar com meu mordomo.
— Inclusive o príncipe do Gales afirma que é uma
indecência que um homem se aproxime tanto a uma mulher. Tanta proximidade entre
os casais só pode conduzir a todo tipo de incorreções.
— De verdade? — murmurou Gabriel soando mais
intrigado que escandalizado. Logo entrelaçou seus dedos com os dela
aproximando-a mais a ele.
Samantha ficou sem ar, como se já tivesse dado
várias voltas pelo salão.
— Pode que um baile tão progressista seja
aceitável em Viena ou em Paris, senhor, mas o proibiram em todos os salões de
Londres.
— Não estamos em Londres — lhe recordou Gabriel
agarrando-a em seus braços.
Logo inclinou a cabeça para a galeria. Enquanto
começava a soar um clavicordio meio doido por um servente invisível, Gabriel pôs
uma mão na parte inferior de suas costas e começaram a mover-se acompanhados
pelos suaves acordes da Barbara Allen. Essa triste balada, com sua história de
oportunidades esbanjadas e amores perdidos, sempre tinha sido uma das favoritas
de Samantha. Não a tinha ouvido nunca como uma valsa, mas se ajustava
perfeitamente à cadência da dança.
Enquanto seu corpo se adaptava ao ritmo
irresistível, Gabriel sentiu que recuperava sua graça natural. Ao fechar os
olhos lhe vieram outras sensações mais deliciosas ainda: a emoção de ter um
corpo feminino contra o seu, o suave sussurro de sua saia, a confiança com a que
lhe seguia.
Pela primeira vez desde o Trafalgar não sentia
falta de sua vista. Girando pelo deserto salão de baile com a Samantha em seus
braços se sentia completo de novo.
Jogando a cabeça para trás com uma risada
exultante, Gabriel lhe deu várias voltas pela pista.
Para quando soaram os últimos compasses da
Barbara Allen estavam os dois rendo-se sem fôlego. Enquanto o clavicordio
começava a tocar «Vêem viver comigo», uma bonita melodia muito lenta para uma
valsa, seus passos se detiveram. Gabriel agarrou rapidamente a Samantha,
negando-se a render-se a ela e ao momento.
— Se está tentando me convencer de quão
civilizado é, está fracassando miseravelmente — assinalou ela.
— Pode que debaixo de nossas maneiras refinados e
nossas sedas luxuosas no fundo todos sejamos uns bárbaros. — Levando sua mão a
sua boca, deu-lhe um beijo no centro da palma permitindo que seus lábios
acariciassem sua pele sedosa — Inclusive você, minha correta e recatada
senhorita Wickersham.
O escuro tremor de sua voz era inconfundível.
— Se tivesse um caráter mais cínico, senhor,
poderia suspeitar que preparou tudo isto não para desculpar-se, a não ser para
me seduzir.
— O que preferiria? — Incapaz de resistir mais a
tentação, Gabriel baixou a cabeça para procurar a resposta diretamente em seus
lábios.
Samantha fechou os olhos, como se desse modo
pudesse negar a culpabilidade pelo que ia ocorrer. Mas não podia negar o
estremecimento de desejo que estava sentindo enquanto os lábios de Gabriel
roçavam os sua em uma suave carícia. Não tinha nada que ver com o beijo que
tinham compartilhado na biblioteca. Isso tinha sido um ataque apaixonado a seus
sentidos. Isto era o beijo 81 Teresa Medeiros Tua Até o Amanhecer de um amante,
uma pequena amostra de todos os prazeres que lhe podia oferecer, ainda mais
tentadores e perigosos para seu solitário coração.
Gabriel acariciou as curvas de seus lábios para
tentar separá-los e para que aceitassem a doce persuasão de sua língua. Enquanto
seu calor aveludado percorria sua boca, aprofundando cada vez mais, Samantha
sentiu que se derretia contra ele e que sua resistência desaparecia. De repente
estava suplicando em uma festa de quão sentidos a seu corpo tinham negado
durante muito tempo.
Queria encher-se dele, saciar todos seus desejos
com a exuberante delícia de seu beijo.
Enquanto sua língua se unia à dança primitiva,
saboreando seu doce sabor a vinho, ele lançou um profundo gemido. Não
necessitava sua vista para deslizar a mão em seu decote e encontrar a suavidade
de seu peito através de sua combinação de seda, para passar o polegar por seu
mamilo distendido até que gemeu em sua boca, invadida por um prazer tão intenso
como proibido.
Envergonhado por esse gemido de impotência e sem
saber onde poderiam aventurar-se seus ávidos dedos, Gabriel apartou sua mão e
sua boca de Samantha.
Fazendo um esforço para recuperar o fôlego,
apoiou sua frente na dela.
— Não foi totalmente sincera comigo, verdade,
senhorita Wickersham?
— Por que diz isso?
Caso que a nota de pânico em sua voz era o
resultado de sua indiscrição, aproximou-se de sua delicada orelha e sussurrou: —
Porque, para minha decepção, leva roupa interior.
A canção terminou nesse momento, e o brusco
silêncio lhes recordou que havia alguém na galeria.
— Monte outra melodia, senhor? — Animada-a voz do
Beckwith chegou flutuando sobre o corrimão, lhes assegurando que o mordomo não
era consciente do drama que se estava desenvolvendo no salão de baile.
Foi Samantha a que respondeu depois de reunir o
valor necessário para livrar-se de seus braços.
— Não, Beckwith, obrigado. Lorde Sheffield
precisa descansar. Amanhã seguirá com suas classes as duas em ponto. — Seu tom
não foi menos cortante quando se deu a volta para o Gabriel e disse — Obrigado
pelo jantar, senhor.
Divertido ante essa transformação, fez-lhe uma
reverência.
— Graças a você, senhorita Wickersham… pelo
baile.
Levantou a cabeça para escutar como se afastava,
perguntando-se, não pela primeira vez, o que outros secredos poderia esconder
sua enfermeira.
Ao voltar para comilão de serviço Beckwith
encontrou à senhora Philpot só diante da chaminé saboreando uma taça de chá.
— Como foi a noite? — perguntou.
— Eu diria que foi um grande êxito. Justo o que
ambos necessitavam. Mas não fomos tão discretos como acreditávamos. Pelo visto a
senhorita Wickersham nos ouviu ontem à noite no salão.
— riu entre dentes — Pensava que tínhamos uma
entrevista romântica.
— Imagine. — A senhora Philpot levantou a taça de
chá a seus lábios para ocultar um sorriso.
Beckwith moveu a cabeça de um lado a outro.
— Quem se poderia imaginar a um velho solteiro
suscetível e uma viúva tão formal flertando na escuridão como dois meninos
apaixonados?
— Isso digo eu. — Deixando a taça sobre a
chaminé, a senhora Philpot começou a tirálas forquilhas do cabelo.
Enquanto as sedosas mechas negras lhe caíam pelos
ombros, Beckwith baixou a mão para passar os dedos por eles.
—Sempre me gostou de seu cabelo, já sabe.
Ela agarrou sua mão rechonchuda e a apoiou sobre
sua bochecha.
— E você sempre me gostaste. Ao menos desde que
reuniu o valor para chamar uma jovem viúva «Lavinia» em vez de «senhora
Philpot».
— Dá-te conta de que aconteceram quase vinte
anos?
— Parece que foi ontem. Que canções lhes há meio
doido?
— «Barbara Allen», e sua favorita: «Vêem viver
comigo».
— Vêem viver comigo e ser meu amor — disse ela
citando o famoso poema do Marlowe.
— E provaremos todos os prazeres — concluiu ele
pondo-a em pé.
Lhe sorriu com os olhos brilhantes como uma
menina.
— Sabe que o senhor nos despediria se soubesse?
Beckwith moveu a cabeça antes de beijá-la com
suavidade.
— Pelo que vi hoje, eu acredito que nos
invejaria.
Capítulo 14
Querida Cecily,
Como se atreve a insinuar que minha família a consideraria inferior a
mim? É minha lua e minhas estrelas. Eu só sou pó sob seus delicados
pés...
As duas em ponto do dia seguinte Samantha
atravessou o vestíbulo com suas cômodas botas de cano longo e uma expressão tão
resolvida que outros serventes decidiram apartar-se de seu caminho. Tinha o
cabelo recolhido em um austero coque na nuca e os lábios apertados, como se
tivesse estado chupando limões em vez de perfumar-se com eles. O severo corte de
seu vestido cinza escuro conseguia dissimular todas suas curvas e inclusive a
forma de seus tornozelos.
Enquanto esperava ao Gabriel se passeou pelo
salão, fazendo ranger suas antiquadas anáguas como se as tivessem lavado com
amido.
Não lhe ajudava saber que todos seus esforços
para parecer respeitável não serviriam de nada com o Gabriel. Se por ele fora
podia estar lhe esperando só com umas meias e uma regata de seda. Abanou-se com
a mão enquanto sua perversa imaginação lhe proporcionava uma série de imagens
vertiginosas do que poderia lhe fazer nesse caso.
Por fim apareceu no salão às duas e meia
arrastando sua fortificação em um gracioso arco por diante dele. Sam ia trotando
a seus talões com uma bota amassada na boca.
Dando golpezinhos com o pé, Samantha olhou o
relógio da chaminé.
— Suponho que não tem nem idéia do tarde que é.
— Nem a menor ideia. Não posso ver o relógio —
lhe recordou com suavidade.
— OH — disse ela desconcertada momentaneamente —
Então suponho que será melhor que comecemos. — relutante a lhe tocar, agarrou a
manga de sua camisa e lhe levou a entrada do improvisado labirinto.
Ele grunhiu.
— Os móveis outra vez não, por favor. Já o tenho
feito cem vezes.
— E o fará cem mais até que orientar-se com a
fortificação seja algo natural para você.
— Preferiria praticar o baile — disse com um tom
inconfundível em sua voz.
— Para que vai praticar uma arte que já domina? —
replicou Samantha lhe dando um empurrãozinho para um sofá.
Quando Gabriel chegou ao final do labirinto,
resmungando algo sobre um minotauro, sua fortificação só encontrou ar.
Franzindo o cenho, moveu a fortificação em um
arco mais amplo.
— Onde diabos está o escritório? Teria jurado que
faz uns dias estava aqui.
Em resposta, Samantha ficou diante dele e abriu
um par de *ventanales* para limpar o caminho a terraço. Ladrando
escandalosamente, Sam soltou a bota e passou por diante deles, correndo como uma
bala detrás de uma lebre imaginária. Uma suave brisa com aroma de lilás entrou
na habitação.
— Como parece dominar o salão e a pista de baile
— explicou — pensei que esta tarde poderíamos dar um passeio pelo jardim.
— Não, obrigado — disse com tom categórico.
Samantha perguntou surpreendida: — Por que não?
Se lhe aborrecer o salão, estará desejando desfrutar de uma nova diversão e um
pouco de ar fresco.
— Tenho todo o ar que necessito aqui dentro.
Desconcertada, Samantha baixou a vista. Gabriel
estava agarrando a fortificação como se fora um salva-vidas, com os nódulos
brancos pela tensão. Tinha a cara rígida, com a esquina esquerda da boca para
baixo. O encanto da noite anterior tinha desaparecido, deixando em seu lugar uma
terrível máscara.
Ficou um momento sem respiração ao dar-se conta
de que não estava zangado. O que passava era que tinha medo. Também se deu conta
de que não lhe tinha visto enfrentar-se à luz do sol nenhuma só vez desde que
tinha chegado ao Fairchild Park.
Baixando o braço, tirou-lhe a fortificação
brandamente e o apoiou contra a parede. Logo pôs a mão sobre seu rígido braço.
— Pode que seus pulmões não necessitem ar fresco,
senhor, mas os meus sim. E não esperará que uma dama saia a passear uma
esplêndida tarde da primavera sem um cavalheiro que a acompanhe.
Samantha sabia que se estava arriscando ao apelar
a uma galanteria que já não possuía.
Mas para sua surpresa pôs seus dedos sobre os
dela e inclinou a cabeça em uma reverência zombadora.
— Que não se diga que Gabriel Fairchild negou
algo a uma dama.
Deu um passo para diante, e logo outro. O sol lhe
banhava a cara como ouro fundido.
Depois de atravessar à soleira a fez deter-se.
Ela temia que se tornasse atrás, mas parecia que só tinha feito uma pausa para
respirar profundamente. Samantha fez o mesmo, aspirando ao aroma da terra recém
lavrada e o perfume das flores de uma trepadeira próxima.
Quando Gabriel fechou os olhos, Samantha esteve
tentada de fechar também os seus para centrar seus sentidos na carícia da cálida
brisa e o gorjeio do robin que estava arreganhando a seu casal enquanto faziam
um ninho no ramo de um espinheiro próximo. Mas se o tivesse feito se teria
perdido a expressão de prazer que cruzou a cara de Gabriel.
Com seu espírito mais animado o insistiu a
mover-se, lhe guiando para uma franja de grama de cor verde esmeralda que
descendia até um ruído muro de pedra nos limites de um bosque.
Cada detalhe dos meticulosos jardins, desde suas
pedras esculpidas até os serpenteantes arroios, tinha sido desenhado para imitar
uma paisagem silvestre.
Com seus dedos ainda apoiados sobre os dela,
Gabriel seguia o passo facilmente, com mais graça e segurança a cada pernada.
— Não deveríamos nos afastar muito da casa. E se
me vê alguém do povo? Não queria assustar aos meninos.
Apesar de seu tom seco, Samantha sabia que só
estava brincando pela metade.
— Aos meninos só dá medo o desconhecido, senhor.
Quanto mais tempo passe encerrado no Fairchild Park mais temível será sua
reputação.
— Certamente não queremos que acreditem que sou
uma espécie de monstro que perambula na escuridão, verdade?
Samantha o olhou, mas era impossível saber se
estava burlando dela ou dele. Pode que tivesse perdido a vista, mas seus olhos
não tinham perdido seu estranho brilho. Com a luz do sol eram ainda mais
espetaculares, com suas profundidades tão claras e transparentes como um mar
cristalino. O ar trêmulo dava a seu cabelo o tom de uma *guinea* recém
*cunhada*.
— Não é necessário que permaneça encerrado em
casa quando tem estes belos jardins ao seu dispor. Tenho entendido que antes era
muito ativo. Tem que haver alguma atividade ao ar livre com a que possa
desfrutar ainda.
— Que tal o tiro ao arco? — disse
sarcasticamente. Sam saiu saltando do bosque e lhes obrigou a andar mais devagar
enquanto brincava de correr ao redor de seus pés — E sempre está a caça. Ninguém
poderia me culpar se confundir um cachorrinho com uma raposa.
— Deveria lhe dar vergonha — lhe arreganhou ela —
Sam pode ser algum dia sua salvação. É muito inteligente.
Para ouvir seu nome, o collie se tornou na erva e
se retorceu sobre seu lombo com os olhos em branco e a língua fora. Samantha se
levantou a saia e se aproximou dele, esperando que seu companheiro não se desse
conta.
Mas Gabriel parecia estar preocupado em outras
questões.
— É possível que tenha razão, senhorita
Wickersham. — Samantha o olhou, surpreendida de que se rendesse com tanta
facilidade — Pode que haja alguma atividade ao ar livre com a que poderia
desfrutar. Algo que possa igualar a diferença, por assim dizê-lo.
Gabriel ganhou todas as rondas da galinha cega.
Não havia forma de lhe vencer. Além de agarrar
aos serventes mais ágeis antes que pudessem escapar, podia identificá-los
cheirando simplesmente o cabelo ou a roupa. Seus reflexos eram tão rápidos que
também podia esquivar a qualquer que levasse a atadura, escorrendo-se de seus
dedos estendidos um segundo antes que tentassem lhe apanhar.
Quando Samantha chamou os empregados para que se
unissem ao jogo ficaram surpreendidos ao ver seu amo apoiado sobre um cotovelo
na ladeira banhada pelo sol, com o cabelo solto e uma fibra de erva entre seus
lábios. E se surpreenderam ainda mais quando sua enfermeira lhes explicou o que
deviam fazer. Enquanto os outros criados se alinhavam em uma rígida formação,
para saudar um dignitário, Beckwith expressou sua desaprovação e a senhora
Philpot disse que nunca tinha presenciado um espetáculo tão abafadiço.
Peter e Phillip foram os primeiros em romper a
formação. Encantados de livrar-se de suas obrigações um dia da primavera tão
fabuloso, os gêmeos evitavam as sutilezas do jogo, preferindo agarrar-se e
pegar-se com seus punhos sardentos cada vez que podiam. Quando conseguia
imobilizar a seu irmão, Phillip lançava tímidos olhares ao Elsie para
assegurar-se de que a bonita criada estava olhando.
Seduzidos pela suave brisa e o bom humor de seu
amo, outros serventes se foram animando pouco a pouco. Quando lhe tocou ficá-la
atadura, Willie, o enxuto guarda escocês, acabou perseguindo a Meg, a lavadeira,
com suas nodosas mãos estendidas como garras.
Chiando como uma colegial, Meg se levantou as
saias e correu pela ladeira com suas robustas pernas dando voltas a toda
velocidade e Sam ladrando a seus talões. Então, ao girar à esquerda em vez de à
direita, Willie passou por diante dela e baixou rodando pela costa até o arroio.
— Como Willie não pôde pilhar ao Meg, toca-lhe ao
amo outra vez — gritou Hannah aplaudindo com entusiasmo.
Enquanto Meg tirava o guarda do arroio jorrando e
amaldiçoando, Beckwith dirigiu brandamente ao Gabriel ao alto da ladeira.
Inclusive a senhora Philpot tinha começado a participar do jogo. Sem que ninguém
o pedisse, deu a seu amo três voltas e logo se afastou dele com uns saltitos tão
enérgicos que fizeram que as chaves de sua cintura tilintassem.
Enquanto Gabriel se orientava, o resto dos
serventes ficaram paralisados na ensolarada ladeira. Não podiam mover-se nem um
centímetro se Gabriel não se aproximava o suficiente para lhes tocar. Só então
podiam fugir. Samantha ficou deliberadamente no bordo exterior de seu círculo,
como cada vez que havia meio doido ao Gabriel. Estava decidida a não lhe dar
nenhuma desculpa para que lhe pusesse as mãos em cima.
Gabriel girou devagar com as mãos apoiadas em
seus estreitos quadris. Até que o vento não removeu o cabelo de Samantha,
agitando uma mecha rebelde de seu coque, não se deu conta de que tinha cometido
o engano de colocar-se a favor do vento. O bateu as asas seu nariz e entrecerrou
os olhos com uma expressão que conhecia muito bem.
Então se deu a volta e começou a avançar para
ela, arrasando com suas impressionantes pernadas o terreno que havia entre eles.
Ao passar junto ao Elsie e Hannah sem parar-se, as criadas se levaram uma mão à
boca para tentar conter seus risinhos.
Os pés de Samantha pareciam estar cravados à
terra. Não poderia haver-se movido se Gabriel tivesse sido uma besta de carga
com intenção de devorá-la. Era plenamente consciente dos olhares atentos dos
outros criados, do gotejar de suor que lhe descia pelos seios, de que seu sangue
parecia espessar-se em suas veias como se fosse mel.
Como sempre, Gabriel se deteve um momento antes
de equilibrar-se sobre ela. Enquanto suas mãos roçavam sua manga, Peter e
Phillip protestaram por sua falta de resistência. Era muito tarde para fugir.
Quão único tinha que fazer era dizer seu nome para que se terminasse a ronda.
— Nome! Nome! — começaram a cantar as moças.
Gabriel levantou a outra emano para lhes pedir
que se calassem. Tinha identificado aos outros serventes por seu aroma de sabão
ou a fumaça. Mas também tinha direito a identificá-los pelo tato.
Enquanto a esquina de sua boca se curvava em um
vago sorriso, Samantha ficou paralisada, incapaz de impedir que aproximasse sua
mão.
Era como se outros tivessem desaparecido,
deixando-os sozinhos nessa ventosa ladeira.
Fechou os olhos enquanto os dedos de Gabriel lhe
roçavam o cabelo e logo jogavam sobre seu rosto. Rodeou com suavidade o bordo de
seus óculos, riscando todos os ocos e as curvas como se queria memorizar seus
rasgos. A pesar do calor que fazia sentiu um delicioso calafrio por todo seu
corpo. Como podiam ser suas mãos tão masculinas e tão delicadas ao mesmo tempo?
Enquanto as pontas de seus dedos roçavam a
suavidade de seus lábios, seu medo desapareceu para converter-se em um pouco
mais perigoso ainda. Encontrou-se desejando apoiar-se sobre ele, inclinar a
cabeça para trás e lhe oferecer um doce sacrifício só para lhe agradar. Estava
tão subjugada por esse escandaloso desejo que demorou um momento em dar-se conta
de que tinha deixado de tocá-la.
Então abriu os olhos. Embora Gabriel tinha a
cabeça agachada, a agitação de seu peito lhe indicou que também lhe tinha
afetado seu breve contato.
— Não estou seguro — disse com uma voz o bastante
forte para que se estendesse pela ladeira — mas a julgar pela suavidade da pele
e o delicado perfume, eu acredito que capturei… — Fez uma pausa para aumentar a
espera deliberadamente — Ao Warton, o menino dos estábulos!
Os serventes puseram-se a rir a gargalhadas. Um
deles deu um golpe no ombro ao desconcertado Warton.
— Só ficam duas oportunidades, senhor — lhe
recordou Millie.
Gabriel se deu uns golpezinhos no lábio inferior
com o dedo indicador.
— Bom, se não é Warton — disse suavizando sua voz
— então deve ser minha querida...
minha devota...
Enquanto punha uma mão em seu coração, fazendo
rir de novo às criadas, Samantha conteve o fôlego, perguntando-se o que ia dizer
exatamente.
—… senhorita Wickersham.
Os serventes romperam em um sincero aplauso, e
Gabriel estendeu um braço para a Samantha em uma graciosa inclinação.
Ela sorriu e fez uma reverência zombadora falando
entre dentes.
— Ao menos não me confundiu com um dos cavalos de
sua carruagem.
— Não seja ridícula — sussurrou ele — Sua juba é
muito mais suave.
Um Beckwith sorridente lhe deu um golpezinho no
ombro e logo lhe pôs um lenço de linho na mão.
— A atadura, senhor.
Gabriel se voltou de novo para a Samantha com uma
de suas sobrancelhas arqueadas em um gesto diabólico.
— OH, não! — retrocedeu enquanto ele se
aproximava dela dando voltas à atadura de um modo quase ameaçador — Já tive
suficiente de seus ridículos jogos. De todos eles — acrescentou sabendo que
captaria a ênfase.
— Vamos, senhorita Wickersham — replicou — Não
vai obrigar a um homem cego a persegui-la, verdade?
— Ah, não? — recolhendo-a saia, Samantha pôs-se a
correr pela ladeira, rindo-se de impotência para ouvir os passos de Gabriel
detrás dela.
O humor na pesada carruagem do marquês do
Thornwood era triste e sombrio. Só Honoria, de dezessete anos, atrevia-se a
mostrar algum sinal de esperança incorporando-se para olhar pelo guichê as sebes
que passavam enquanto o veículo avançava pelo largo caminho para o Fairchild
Park.
Suas duas irmãs maiores estavam praticando essa
ira de sofisticado aborrecimento tão essencial para as jovens damas de certa
idade, beleza e posição social. Eugenia, de dezoito anos, estava desfrutando de
uma comunhão amorosa com o espelho de mão que tinha tirado de sua bolsa de raso,
enquanto Valerie, de dezenove anos, pontuava cada buraco com um suspiro de
resignação.
Valerie estava especialmente insuportável desde
que se comprometeu com o filho menor de um duque ao final da temporada anterior.
E fora qual fora o giro que tomasse a conversação, começava a maioria de suas
frases com «Quando Anthony e eu estejamos casados…» Sentado em frente delas, seu
pai se passou um lenço com borde de encaixe pela frente.
Ao ver que tinha a cara tinta sua mulher
murmurou: — Está seguro de que isto é uma boa idéia, Teddy? Se lhe tivéssemos
avisado que vínhamos...
— Se lhe tivéssemos avisado teria ordenado a quão
serventes não deixassem passar. — Como não estava acostumado a falar bruscamente
com sua mulher, Theodore Fairchild suavizou sua reprimenda lhe dando um tapinha
na mão enluvada.
— Eu acredito que isso teria sido uma bênção. —
Eugenia deixou de olhar-se no espelho a contra gosto — Dessa maneira não teria a
oportunidade de ladrar e grunhir como um cão raivoso.
Valerie assentiu.
— Por sua forma de comportar-se em nossa última
visita, qualquer um diria que se tornou louco além de cego. Menos mal que
Anthony e eu não estamos casados ainda. Se tivesse ouvido como se atreveu a
dirigir-se a mim...
— Deveria lhes dar vergonha falar assim de seu
irmão! — Honoria apartou a vista do guichê para as olhar com seus olhos marrons
ardendo de paixão sob a asa de seu chapéu.
Surpreendidas de que sua irmã pequena ficasse tão
séria com elas, Valerie e Eugenia intercambiaram um olhar de assombro.
Enquanto o carro passava por uma grade de ferro e
começava a subir pelo íngreme caminho, Honoria continuou.
— Quem te tirou da água gelada, Genie, quando te
caiu no lago Tillman embora lhe tinham advertido que o gelo estava muito fino
para patinar? E quem defendeu sua honra, Valha, quando esse menino tão
desagradável disse na festa de lady Marbeth que lhe tinha permitido que te
roubasse um beijo? Gabriel foi o melhor irmão maior que qualquer garota poderia
desejar, mas vocês estão aí lhe insultando como um par de vacas ingratas.
Valerie apertou a mão da Eugenia com seus olhos
verdes claros cheios de lágrimas.
— Isso não é justo, Honoria. Sentimos falta da o
Gabriel tanto como você. Mas esse bruto mal-humorado que nos jogou com caixas
destemperadas a última vez que viemos aqui não era nosso irmão. Não era Gabriel!
— Vamos, garotas — murmurou seu pai — Não é
necessário piorar uma situação difícil discutindo entre vocês. — Enquanto
Honoria voltava a olhar com tristeza pelo guichê tentou esboçar um de seus
alegres sorrisos — Quando seu irmão veja o que lhe trouxemos pode que esteja
mais suave conosco.
— Esse é o problema — disse bruscamente lady
Thornwood — Segundo seus apreciados médicos não verá nada, verdade? Nem hoje nem
nunca. — Ao enrugar seu rosto gordinho lhe caíram umas lágrimas pelas bochechas
empoeiradas. Agarrou o lenço que lhe ofereceu seu marido e o passou pelos olhos
— É possível que Valerie e Eugenia tenham razão. Possivelmente não deveríamos
ter vindo. Não sei se posso suportar ver meu querido filho encerrado nessa
escura casa como se fosse um animal.
— Mamãe? — Honoria esfregou o cristal do guichê
com uma nota de assombro em sua voz.
— Não incomode agora a mamãe — disse Eugenia —
Não vê que está alterada?
Valerie tirou um frasco de amoníaco de sua bolsa
e o deu a sua mãe.
— Toma, mamãe. Usa isto se lhe vierem os vapores.
Lady Thornwood o rechaçou, centrando sua atenção
na expressão aturdida de sua filha pequena.
— O que ocorre, Honoria? Parece que viu um
fantasma.
— Poderia ser. Será melhor que jogue uma olhada.
Enquanto Honoria abria o guichê, lady Thornwood
subiu sobre os joelhos de seu marido, lhe pisando sem nenhum olhar para unir-se
a sua filha. Picadas pela curiosidade, Valerie e Eugenia se apinharam detrás
delas.
Ao parecer havia uma espécie de jogo festivo. Os
participantes estavam repartidos pela ladeira coberta de erva que havia frente à
mansão, com suas risadas e seus gritos soando como música pelo ar. Estavam muito
ocupados divertindo-se para dar-se conta de que se aproximava um carro.
Estirando o pescoço para ver por cima do muro de
chapéus, o marquês ficou com a boca aberta.
— Que diabos fazem os serventes perdendo o tempo
quando se supõe que devem estar trabalhando? O que acreditam que é isto, o dia
de Natal? Deveria ordenar ao Beckwith que os despeça de todos.
— Terá que lhe agarrar antes — assinalou Valerie
enquanto o mordomo corria pela ladeira perseguindo à senhora Philpot.
Eugenia se levou uma mão à boca para sufocar uma
risita escandalizada.
— Olhe isso, Valha! Quem teria pensado que esse
velho estirado seria capaz de algo assim?
Quando a marquesa se deu a volta para repreender
a sua filha por falar de um modo tão insolente seu olhar se centrou no homem que
estava rodeando os borde do folguedo. Ficou tão pálida que parecia que depois de
tudo ia necessitar o amoníaco.
Enquanto fazia uma pausa no alto da colina, com
seu imponente figura emoldurada pelo deslumbrante céu azul, levou-se uma mão ao
coração acreditando por um jubiloso momento que tinha recuperado a seu filho.
Estava ali bem erguido, com os ombros jogados para trás e seu cabelo dourado
reluzente sob a luz do sol.
Mas então se voltou e viu a cicatriz que
danificava sua beleza, lhe recordando que o Gabriel que tinha conhecido e
querido se foi para sempre.
Samantha sabia que não poderia esquivar ao
Gabriel eternamente. Mas podia lhe obrigar a persegui-la um momento, e isso é o
que fez, correndo por detrás dos outros serventes enquanto continuavam jogando.
Pode que estivesse cego, mas seus passos eram tão seguros como os de um puma, e
por isso lhe surpreendeu que se tropeçasse com um arbusto de erva e caísse ao
chão.
— Gabriel! — gritou utilizando seu nome de pilha
sem dar-se conta.
Levantando-a saia, foi correndo a seu lado e se
ajoelhou na erva junto a ele, imaginando-se já o pior. E se tinha quebrado um
tornozelo ou se golpeou a cabeça com uma pedra?
Atormentada pela lembrança de seu corpo manchado
de sangue tendido no chão de sua habitação, apoiou sua cabeça em seu regaço e
lhe apartou com ternura o cabelo da frente.
— Pode me ouvir, Gabriel? Está bem?
— Agora sim. — antes de que Samantha pudesse
reagir a esse rouco murmúrio, rodeou-lhe a cintura com os braços e lhe fez rodar
sobre a erva com os óculos torcidos.
Não esperava que fosse tão atrevido, que a
tombasse no chão ali mesmo diante dos serventes e de Deus, como se fora um
pastor e ela uma pastora disposta a tudo. Mas o fez, enredando-as pernas com sua
saia enquanto os dois punham-se a rir.
Quão seguinte soube é que estava tombada de
barriga para cima com o quente corpo de Gabriel sobre o seu. Quando se relaxou a
tensão suas risadas se desvaneceram.
Samantha se deu conta muito tarde de que também
outros se ficaram em silêncio.
Olhou por cima do ombro de Gabriel, piscando
através de seus óculos torcidos. Sobre eles havia um desconhecido, um homem
robusto que levava umas médias de raias verdes e douradas e umas antiquadas
calças até o joelho. Tinha o cabelo dourado ligeiramente empoeirado, o qual
fazia difícil determinar sua idade. Uns punhos de deliciosos encaixes
valencianos bordeavam suas grosas bonecas. Enquanto estendia uma mão para ela, o
rubi do enorme selo que levava no dedo do meio brilhou como uma gota de sangue
fresca com a luz do sol.
— Se-nhor — gaguejou Beckwith. Com a atadura
torcida sobre um olho, parecia um pirata rechonchudo — Não recebemos nenhuma
mensagem. Não lhes esperávamos.
— Isso é evidente — respondeu o homem com um tom
imperioso que Samantha reconheceu imediatamente.
Só então se deu conta de que estava olhando o
rosto severo de Theodore Fairchild, marquês de Thornwood, o pai de Gabriel… e
seu patrão.
Capítulo 15
Querida Cecily,
Posso lhe assegurar que minha família a adorará tanto como eu...
Ignorando a mão estendida do marquês, Samantha se
livrou de Gabriel e ficou em pé.
Gabriel também se levantou rapidamente, adotando
uma postura rígida e uma expressão de cautela.
Outros serventes estavam em pequenos grupos
olhando para outro lado, como se tivessem preferido estar esvaziando urinóis ou
limpando os estábulos.
Endireitando seus óculos, Samantha fez uma
pequena reverência.
— Encantada de lhe conhecer, senhor. Sou Samantha
Wickersham, a enfermeira de seu filho.
— Já vejo que melhorou muito desde nossa última
visita. — Embora sua voz fosse áspera, teria jurado que viu um brilho de humor
nos olhos do marquês.
Não se atrevia a imaginar o aspecto que devia
ter. Com a saia enrugada e manchada de erva, as bochechas tintas e o cabelo que
lhe caía do coque até a metade das costas, provavelmente parecia uma fulana mais
que uma mulher respeitável que alguém contrataria para cuidar de seu filho.
Encolhidas na ladeira atrás do marquês havia
quatro mulheres esquisitamente vestidas, com todos os cachos em seu lugar
debaixo de seus primorosos chapéus e todos os laços, os vestidos perfeitamente
engomados. Samantha sentiu que lhe esticava a boca. Conhecia as de sua classe
muito bem.
Embora fizessem que se sentisse pior ainda,
levantou o queixo negando-se a humilhar-se ante elas. Se a família de Gabriel
não tivesse renunciado a sua responsabilidade respeito a ele não teria sido
necessário contratá-la. E se seu pai a despedia agora não haveria ninguém para
lhe cuidar.
— Pode que encontre meus métodos pouco
convencionais, lorde Thornwood — disse — Mas acredito que o sol e o ar fresco
podem melhorar tanto o corpo como a disposição.
— Deus sabe que tenho uma ampla margem para
melhorar ambas as coisas — murmurou Gabriel.
Enquanto o marquês se voltava para seu filho sua
arrogância desapareceu. Não podia lhe olhar diretamente à cara.
— Olá, filho. Alegro-me de te ver com tão bom
aspecto.
— Pai — disse Gabriel com rigidez — Eu gostaria
de poder dizer o mesmo.
Uma das mulheres foi pela erva para eles fazendo
ranger suas anáguas de raso. Embora sua pele fosse pálida e suave como os
encaixes antigos, a idade lhe tinha roubado parte de sua robusta beleza.
Gabriel ficou rígido, com uma expressão de
cautela em seu rosto, enquanto ela ficava nas pontas dos pés e lhe dava um beijo
na bochecha intacta.
— Espero que nos perdões por nos apresentar
assim. Mas fazia um dia espetacular, perfeito para dar um passeio pelo campo.
— Não seja ridícula, mãe. Como ia esperar que não
cumprisse com seu dever cristão? De volta a casa poderia parar no orfanato ou no
asilo para repartir um pouco mais de consolo entre os desafortunados.
Embora Samantha fizesse uma careta a mãe de
Gabriel só suspirou, como se esse recebimento não fosse mais que o que esperava.
— Vamos, meninas — disse fazendo um gesto a suas
filhas — Saúdem a seu irmão.
As duas loiras esbeltas ficaram atrás como se
temessem que Gabriel pudesse morder, mas a pequena de cabelo castanho se
aproximou correndo e jogou os braços ao pescoço, fazendo quase que perdesse o
equilíbrio.
— OH, Gabe, não podia passar mais tempo longe de
ti! Joguei-te tanto de menos!
Mostrando o primeiro sinal de aproximação, lhe
deu um torpe tapinha no ombro.
— Olá, pequena. Ou deveria te chamar lady
Honoria? A não ser que leve os saltos do Valerie, cresceste pelo menos cinco
centímetros da última vez.
— Pode acreditar que dentro de quinze dias vão
apresentar me na corte? E não esqueci sua promessa. — Agarrando por braço ao
Gabriel como se temesse que partisse, voltou-se para a Samantha sorrindo. Tinha
um dos dentes frontais um pouco torcidos, o qual lhe dava ainda mais encanto —
Desde que era uma menina, meu irmão me prometeu que dançaria comigo o primeiro
baile em minha apresentação em sociedade.
— Que galante — disse Samantha em voz baixa
captando o breve espasmo de dor que cruzou a cara de Gabriel.
O marquês se esclareceu garganta.
— Não monopolize toda a atenção de seu irmão,
Honoria. Esqueceste que temos uma surpresa para ele?
Enquanto Honoria soltava ao Gabriel a contra
gosto e voltava com suas irmãs, seu pai se deu a volta e fez um gesto aos
criados de libre que estavam no boléia da impressionante carruagem estacionada
no caminho. Depois de descer de um salto, começaram a desatar as cordas de um
pouco muito grande que estava envolto com uma lona no bagageiro do carro.
Enquanto levavam o pesado vulto ao alto da
colina, cambaleando-se sob seu peso, o pai de Gabriel se esfregou as mãos com
antecipação.
Para quando os criados o depositaram na erva
diante de Gabriel, Samantha tinha tanta curiosidade como o resto dos serventes.
— Assim que sua mãe e eu o vimos soubemos que era
justo o que necessitava. — Sorrindo a sua mulher, o marquês deu um passo para
diante e tirou a lona com um floreio majestoso.
Samantha estreitou os olhos, fazendo um esforço
para enfocar o estranho objeto. Quando por fim o conseguiu quase desejou não
havê-lo feito.
— O que é? — sussurrou Elsie ao Phillip — uma
espécie de aparelho de tortura?
A senhora Philpot olhou ao horizonte enquanto
Beckwith se aproximava mais a ela, mostrando um repentino interesse pelas pontas
de seus sapatos.
Prevenido pelo embaraçoso silêncio dos criados,
Gabriel perguntou bruscamente: — Bom, que diabos é?
Como ninguém respondia, pôs um joelho no chão e
começou a passar as mãos pelo objeto. Enquanto seus dedos riscavam o contorno de
uma roda de ferro, lhe trocou a cara ao dar-se conta do que era.
Logo se endireitou com um movimento rígido.
— Uma cadeira de inválido. Trouxeste-me uma
cadeira de inválido. — Sua voz era tão baixa e perigosa que a Samantha lhe
arrepiou o pêlo da nuca.
Seu pai estava ainda sorrindo.
— Uma grande ideia, verdade? Assim não terá que
preocupar-se por te tropeçar com nada. Sente-se nela, põe-te uma manta sobre o
regaço e alguém te leva empurrando onde queira ir.
Alguém como Beckwith ou a senhorita Wickersham.
Samantha ficou tensa, esperando a inevitável
explosão. Mas quando Gabriel falou por fim sua voz cuidadosamente modulada
resultou mais ameaçadora que se tivesse arrojado um grito.
— Pode que não te tenha fixado, pai, mas ainda
tenho duas pernas perfeitamente capazes.
Agora, se me desculpar, acredito que vou
utilizá-las.
Fazendo uma reverência, girou sobre seus talões e
se foi majestosamente em direção contrária à casa. Embora não tinha sua
fortificação para orientar-se, Samantha não queria lhe humilhar mais indo atrás
dele ou ordenando a um dos criados que lhe seguisse. Nem sequer Sam se atreveu a
lhe perseguir. O pequeno collie se tombou junto à Samantha, seguindo com seu
taciturno olhar ao Gabriel enquanto desaparecia no bosque.
Como lhe tinha advertido Beckwith, havia alguns
caminhos que um homem devia percorrer sozinho.
Samantha estava na sala onde Beckwith a tinha
entrevistado o primeiro dia escutando o relógio dourado da chaminé, que marcava
os minutos de sua vida. O desaparecimento de Gabriel a tinha obrigado a atuar
como anfitriã improvisada de sua família. Tinha-se desculpado o tempo suficiente
para arrumar o cabelo e ficar um vestido limpo, um sombrio modelo de bombasí
marrom escuro sem um volante que suavizasse suas severas linhas.
A marquesa estava sentada no bordo de sua
poltrona com os lábios franzidos em um gesto de desaprovação e as mãos cruzadas
sobre seu regaço, enquanto o marquês se desabou na sua com sua enorme barriga
esticando os botões de seu colete de cachemira. Valerie e Eugenia estavam
acomodadas em um sofá com um aspecto tão miserável que Samantha quase sentia
lástima por elas.
Honoria se tinha encarapitado em um banco a seus
pés com os joelhos abraçados ao peito como uma menina. A volumosa cadeira de
rodas estava em uma esquina, lhes reprovando a todos eles com sua sombra
sinistra.
Enquanto a luz dourada ia remetendo, só um
suspiro ocasional e o tinido amortecido de uma taça de chá rompiam o angustiante
silêncio.
Samantha aproximou sua taça aos lábios, fazendo
uma careta ao dar-se conta de que se esfriou o chá.
Ao baixar a taça se encontrou à mãe de Gabriel
olhando-a abertamente.
— Que tipo de enfermeira é você, senhorita
Wickersham? Não posso acreditar que lhe tenha deixado ir-se dessa maneira sem
enviar a um criado para que lhe atenda. E se tem cansado por uma ravina e se
quebrado o pescoço?
Samantha deixou a taça no prato tentando negar
que estivesse expressando seus próprios temores.
— Posso lhe assegurar que não é necessário
preocupar-se, senhora. Seu filho é muito mais auto-suficiente do que pode
imaginar.
— Mas aconteceram quase três horas. Por que não
retornou?
— Porque nós estamos ainda aqui. — Para ouvir a
contundente declaração de seu marido, a marquesa se voltou para lhe olhar. Ele
se afundou em sua poltrona ainda mais.
— Então, por que não voltamos para casa? —
disseram Valerie e Eugenia quase ao uníssono.
— Por favor, papai — suplicou Valerie — Nos
estamos aborrecendo!
Eugenia fez uma bola com seu lenço de encaixe com
uma expressão otimista.
— Valha tem razão, mamãe. Se Gabriel não nos
quiser aqui, por que não respeitamos seus desejos e vamos? A senhorita
Wickersham seguirá estando aqui para lhe cuidar.
— Não sei para que necessita uma enfermeira —
disse Honoria lançando a Samantha um olhar apologético — Se me deixassem ficar
eu poderia cuidar dele.
— E sua apresentação na corte? — recordou-lhe seu
pai com suavidade — E seu primeiro baile?
Honoria agachou a cabeça, deixando que seus
suaves cachos castanhos caíssem sobre seu perfil pensativo. Embora fose mais
solidária que suas irmãs, só tinha dezessete anos.
— Gabriel me necessita mais do que eu necessito
um ridículo baile.
— Não tenho nenhuma dúvida de que cuidaria muito
bem a seu irmão — disse Samantha escolhendo com cuidado suas palavras — mas
estou segura de que ficaria mais tranqüilo sabendo que tem feita sua estréia e
tiveste a oportunidade de encontrar um marido que te adorará tanto como ele.
Enquanto Honoria a olhava com agradecimento, a
mãe de Gabriel se levantou e se aproximou de uma janela que tinham deixado um
pouco aberta para que entrasse a brisa no congestionado salão.
Ficou um momento ali olhando a escuridão cada vez
mais profunda com seus olhos atormentados pelas sombras.
— Não sei como pode seguir vivendo assim. Às
vezes penso que teria sido melhor que...
— Clarissa! — vociferou o marquês incorporando-se
e dando um golpe com sua fortificação no chão.
Lady Thornwood se deu a volta com uma nota
histérica em sua voz.
— Por que não o reconhece, Theodore? Todos o
pensamos cada vez que lhe vemos, verdade que sim?
Samantha ficou em pé.
— O que pensam?
A mãe de Gabriel se voltou para ela com uma
expressão furiosa.
— Que teria sido melhor que meu filho tivesse
morrido na coberta desse navio. Que sua vida tivesse terminado rapidamente.
Desse modo não teria tido que seguir sofrendo. Não teria tido que seguir vivendo
esta vida miserável.
— Que oportuno teria sido isso para você! —
Samantha esboçou um amargo sorriso — depois de tudo, seu filho teria morrido
como um herói. Em vez de ter que enfrentar-se a um desconhecido mal-humorado uma
bonita tarde da primavera, poderia ter vindo aqui a pôr flores em sua tumba.
Todos poderiam ter chorado sua trágica perda, mas teriam acabado a tempo para o
primeiro baile da temporada. Me diga, lady Thornwood, deseja terminar com o
sofrimento de Gabriel, ou com o seu?
A marquesa ficou pálida como se Samantha lhe
tivesse dado uma bofetada.
— Como se atreve a me falar assim, criatura
presunçosa?
Samantha se negou a acovardar-se.
— Não suporta lhe olhar à cara, verdade? Porque
já não é o jovem arrumado que adorava. Não pode representar o papel de filho
perfeito com sua mãe. Assim está disposta a baixar o pano de fundo sobre sua
cabeça. Por que acredita que não está aqui agora? —Percorreu a sala com seu
olhar acusatório antes de voltar a centrar-se na mãe de Gabriel — Porque sabe
exatamente o que estão pensando cada vez que lhe olham. Pode que seu filho
esteja cego, senhora, mas não é tolo.
Enquanto Samantha estava ali apertando suas mãos
trementes, deu-se conta de que Valerie e Eugenia estavam olhando-a horrorizadas.
E a Honoria tremia o lábio inferior como se estivesse a ponto de tornar-se a
chorar.
Samantha se sentiu envergonhada. Entretanto não
se arrependia de suas palavras, só do preço que lhe haviam flanco.
Voltou-se para o marquês levantando o queixo para
lhe olhar à cara.
— Me perdoe por minha rabugice, senhor. Para
amanhã terei a bagagem preparada para partir.
Enquanto ia para a porta, o marquês se levantou
para lhe bloquear o passo com suas espessas sobrancelhas arqueadas em um gesto
severo.
— Espere um momento. Não a despedi ainda.
Samantha inclinou a cabeça, esperando que lhe
jogasse a reprimenda que se merecia por falar com tão pouco respeito a sua
mulher.
— Nem o farei — disse — A julgar pelo
impressionante desdobramento de temperamento que presenciei, é possível que seja
exatamente o que esse meu filho necessita. — Agarrando sua fortificação, passou
por diante de Samantha e se dirigiu para a porta, deixando-a ali surpreendida —
Clarissa, meninas, vamos a casa.
Lady Thornwood ficou boquiaberta.
— Não esperará que vá e deixe ao Gabriel aqui
sozinho. — Lançou a Samantha um olhar malévolo — Com ela.
— As meninas têm razão. Não voltará enquanto nós
estejamos aqui. — Os lábios do marquês se curvaram em um sorriso irônico, que a
Samantha recordou tanto ao Gabriel que ficou um momento sem respiração — A
verdade é que não posso lhe culpar. Quem quer ter um bando de abutres rondando a
seu redor quando está lutando por sua vida? Vamos, garotas. Se nos dermos pressa
poderemos nos colocar na cama antes de meia-noite.
Valerie e Eugenia se apressaram a obedecer a seu
pai, agarrando bolsas, leques, xales e chapéus a seu passo. Lançando a Samantha
um último olhar para lhe advertir que não esqueceria — nem perdoaria — sua
insolência, a marquesa passou a seu lado com seu enorme peito se sobressaindo
como a proa de um navio de guerra. Honoria ficou atrasada na porta o tempo
suficiente para despedir-se de Samantha com tristeza.
Enquanto as rodas de sua carruagem foram
estralando pelo caminho, Samantha ficou sozinha com a odiosa cadeira como única
companhia.
Olhou-a desejando arrancar o cheio de suas
almofadas de crina com suas mãos nuas.
Mas em vez disso acendeu um abajur e a deixou na
mesa junto à janela. Quando levava ali vários minutos, escrutinando as sombras
com seu olhar, deu-se conta do que tinha feito. Não podia depender da luz de um
abajur para que Gabriel voltasse para casa.
Pode que sua mãe tivesse razão. Possivelmente
deveria enviar a alguém para lhe buscar.
Mas não lhe parecia justo mandar fora aos criados
para que lhe trouxessem para casa como se fosse um menino obstinado que tinha
fugido por uma afronta sem importância.
E se não queria que o encontrassem? E se estava
cansado de que todo mundo tentasse lhe impor suas expectativas? Sua família
tinha deixado claro que só queria recuperar a seu Gabriel, o homem que ia pela
vida com uma confiança absoluta, desdobrando seus encantos a cada passo.
Apesar de sua denúncia apaixonada, era realmente
melhor que eles? Tinha chegado ali pensando que só queria lhe ajudar. Mas estava
começando a questionar seus próprios motivos, a perguntar-se se sua devoção
desinteressada podia ocultar um coração muito egoísta.
Samantha olhou a chama do abajur. Sua luz lhe
pisquem não poderia ajudar ao Gabriel a voltar para casa.
Mas ela sim.
Agarrando o abajur, saiu pelo ventanal de noite.
Samantha se dirigiu ao bosque, porque ali era
onde Gabriel tinha desaparecido. O abajur, que na casa parecia tão brilhante,
dava uma pálida luz a seu redor, com o resplendor suficiente para manter
afastadas as sombras. Sua chama estava diminuída pelo negrume aveludada da noite
sem lua e o matagal de ramos que havia sobre sua cabeça enquanto entrava no
bosque. Não podia imaginar como devia ser viver nessa escuridão dia e noite.
Enquanto os ramos se espessavam, cobrindo o céu
por completo, diminuiu o passo. A queda da noite tinha transformado Fairchild
Park em um lugar selvagem cheio de perigos e terrores.
Passou por cima de uma árvore cansada, assustada
por um misterioso rangido e os gritos das criaturas invisíveis da noite. Estava
começando a desejar o forte corpo de Gabriel em mais de um sentido.
— Gabriel? — disse em voz baixa para não
arriscar-se a que a ouvissem os serventes da casa.
A única resposta foi outro rangido na maleza a
suas costas. Samantha se parou, e o rangido também. Logo deu um par de passos
tentativos, e o rangido prosseguiu. Esperando que só fossem suas anáguas
engomadas, levantou-as do chão e deu outro passo. O rangido soou mais forte
ainda. Voltou a deter-se com os dedos paralisados ao redor da asa do abajur. O
rangido cessou, para ser substituído por um ofego feroz tão próximo que Samantha
teria jurado que sentiu em sua nuca o quente fôlego de um depredador invisível.
Não havia nenhuma dúvida.
Alguém… ou algo… estava seguindo-a.
Reunindo todo seu valor, deu-se a volta movendo o
abajur diante dela.
— Te mostre!
Um par de úmidos olhos marrons saíram das
sombras, seguidos por um corpo peludo e uma cauda que não parava de mover-se.
— Sam! — sussurrou Samantha ajoelhando-se — É um
cão muito mau! — Apesar da reprimenda, agarrou ao cão em braços e o balançou
contra seu coração palpitante — Não deveria te arreganhar, verdade? — ficou
direita enquanto lhe acariciava as suaves *brinca* — Suponho que você também
quer lhe encontrar.
Enquanto se aventurava ainda mais no bosque,
chamando o Gabriel a intervalos cada vez mais freqüentes, aferrou-se ao pequeno
collie negando-se a renunciar a seu calor reconfortante.
Depois de andar um comprido momento se deu conta
de que não havia maneira de voltar sobre seus passos. Quando estava começando a
pensar que Gabriel ia ter que enviar aos criados para que fossem procurá-la,
apareceu uma construção de pedra e madeira em meio da escuridão. Parecia uma
espécie de celeiro ou estábulo abandonado e esquecido faz muito tempo.
Pode que Gabriel tivesse conhecido esse lugar
quando passeava pelo bosque de menino.
Era um lugar no qual poderia ter procurado
refúgio se tivesse tropeçado com ele.
Agarrando ainda o abajur e ao cão, Samantha abriu
a porta de uma cotovelada deixando a metade das dobradiças pendurando e fazendo
uma careta ante seu penetrante chiado.
Ao levantar o abajur estendeu um pálido círculo
de luz pelas velhas vigas de carvalho, os montões de palha, as bridas podres e
os ganchos oxidados que penduravam das prateleiras de madeira estilhaçada.
Incapaz de ignorar mais tempo seu meneio,
Samantha deixou ao Sam no chão para que pudesse correr e farejar tudo o que
havia a seu redor. Exceto os ratos que faziam ranger a palha, não parecia que
houvesse outro ser vivo ali.
— Gabriel? — gritou sem querer alterar o estranho
silêncio — Está aqui?
Avançou um pouco mais na penumbra. Quase no
centro do estábulo, uma desvencilhada escada de madeira desaparecia para cima na
escuridão.
Samantha suspirou. Não queria jogá-la vida
explorando um palheiro decrépito, mas não tinha sentido chegar tão longe para
não investigar todas as possibilidades. Embora Gabriel não estivesse agora ali,
podia descobrir algum sinal de que tinha estado em algum momento.
Enrolando-a saia sobre o braço e sujeitando o
abajur com cuidado, iniciou a comprida e difícil ascensão pela escada. As
sombras ameaçadoras dançavam diante dela, fazendo oscilar a luz lhe pisquem do
abajur. Quando por fim chegou acima e pisou nas pranchas poeirentas lançou um
suspiro de alívio.
O palheiro parecia estar tão deserto como o resto
do estábulo. Não havia sinais de que ninguém se refugiou ali nos últimos vinte
anos. O céu noturno se via através da porta aberta, sem lua, mas não desprovido
de luz. Um suave manto de estrelas iluminava sua profunda escuridão.
Samantha se deu a volta, estreitando os olhos
para escrutinar as sombras debaixo das vigas. Era sua imaginação ou tinha visto
mover-se algo? E se Gabriel se refugiou ali depois de tudo? E se estava ferido e
era incapaz de responder a sua chamada? Entrou um pouco mais no palheiro,
estremecendo-se quando um espesso véu de teias de aranha lhe roçou a cabeça.
— Há alguém aí? — sussurrou balançando o abajur
diante dela.
As sombras estalaram em movimento, e Samantha se
cambaleou para trás, rodeada pelo bater frenético de asas *correosas* e agudos
chiados. Enquanto os assustados morcegos abandonavam seu refúgio e saíam
disparados pela porta aberta do palheiro, levantou os braços instintivamente
para proteger o cabelo e os olhos de suas asas.
Então lhe caiu o abajur, que detrás rodar até o
bordo do palheiro aterrissou no sujo chão de abaixo em uma explosão de cristais.
O último morcego desapareceu na noite. Esporeada pelo ganido sobressaltado do
Sam e o aroma acre do azeite do abajur que começava a arder, Samantha correu
para a escada pensando só em extinguir o fogo antes de que pudesse incendiar a
palha e queimar todo o estábulo.
Quando tinha descendido uma terceira parte da
escada pisou em um degrau podre que ao romper-se fez perder o equilíbrio.
Balançou-se precariamente, debatendo-se entre o desespero e a esperança durante
um momento que lhe fez eterno, e logo caiu para trás ao vazio.
Ouviu o golpe de sua cabeça no chão, ouviu
choramingar ao Sam enquanto lambia a bochecha e lhe acariciava a orelha com seu
frio e úmido focinho, ouviu o crepitar das chamas que começavam a estender-se
pela palha.
— Gabriel? — sussurrou lhe vendo sorrir sob a luz
do sol justo antes que seu mundo se sumisse na escuridão.
Capítulo 16
Querida Cecily,
Embora diga que sou persistente e persuasivo segue resistindo a meus
encantos...
Gabriel estava sentado junto à porta da torre
escutando o murmúrio do arroio sobre as rochas. O edifício sem teto tinha sido
construído a semelhança do torreão em ruínas de um castelo antigo. De menino
tinha passado muitas horas brandindo uma espada de madeira para salvar o das
hordas bárbaras que tinham um grande parecido com suas irmãs pequenas.
Estava sentado em um banco de pedra com as costas
apoiada na parede e suas largas pernas estendidas diante dele. A brisa noturna
lhe agitava o cabelo, que lhe tinha saído do acréscimo e lhe cobria em parte a
cicatriz. Além disso tinha as botas destroçadas e a manga de sua camisa feita
farrapos. Também tinha um arranhão no dorso da mão e um doloroso nó no joelho.
Mas a ferida mais profunda era a que tinha
sofrido seu coração para ouvir a conversação entre sua mãe e Samantha.
Depois de vagar pelo bosque durante horas
utilizando um ramo como fortificação improvisada, decidiu voltar para casa.
Pensando em entrar sem que lhe vissem, mediu seu caminho ao redor das paredes
até que encontrou uma janela aberta. Mas seus planos se frustraram quando a voz
de sua mãe saiu por essa janela.
… teria sido melhor que meu filho tivesse morrido
na coberta desse navio. Que sua vida tivesse terminado rapidamente. Desse modo
não teria tido que seguir sofrendo. Não teria tido que seguir vivendo esta vida
miserável.
Gabriel se desabou contra a parede movendo a
cabeça de um lado a outro. As palavras de sua mãe não podiam lhe fazer dano. Só
confirmavam o que suspeitava desde fazia tempo.
Que oportuno teria sido isso para você!
Quando se estava se separando da janela a voz de
Samantha lhe deixou paralisado.
Levantou a cabeça para um lado, seduzido pela
fúria e a paixão de suas palavras. Teria dado algo por ver a cara de sua mãe
nesse momento. Duvidava que ninguém se atreveu nunca a falar com a Clarissa
Fairchild, marquesa do Thornwood, com tanta insolência.
Porque sabe exatamente o que estão pensando cada
vez que lhe olham. Pode que seu filho esteja cego, senhora, mas não é tolo.
Quando Samantha terminou teve que fazer um
esforço para não entrar no salão e gritar Bravo! com uma sincera ronda de
aplausos.
— Essa é minha garota — sussurrou dando-se conta
de repente de que era certo.
Esse foi o golpe que lhe deixou cambaleando-se. O
golpe que lhe fez afastar-se da casa para procurar refúgio na fria torre.
Gabriel girou a cara para um céu que não podia
ver, com o alegre murmúrio do arroio burlando-se dele. Parecia que tinha
esbanjado a maior parte de sua juventude adorando o altar da beleza para acabar
apaixonando-se por uma mulher que não tinha visto nunca.
Então se deu conta de que nem sequer lhe
importava o aspecto de Samantha. Sua beleza não tinha nada que ver com uma pele
cremosa, uma covinha na bochecha ou um cabelo exuberante de cor mel. Embora não
fosse bonita seria irresistível para ele. Sua beleza irradiava de seu interior:
de sua inteligência, de sua paixão, de sua insistência para fazer que fosse um
homem melhor do que tinha pensado ser.
Já não estava disposto a conformar-se com menos.
Inclusive sua querida Cecily tinha resultado ser só um belo sonho que se
desvaneceu com a intensa luz do amanhecer. Embora não pudesse ver, no fundo de
seu coração sabia que Samantha estaria ali sempre que a necessitasse.
Gabriel procurou suas provas improvisado
fortificação. Já podia voltar para casa para aceitar sua reprimenda. Sem dúvida
alguma Samantha se zangaria quando se inteirasse de que tinha escutado sua
conversação. Mas pode que seu humor se suavizasse quando lhe confessasse que a
queria mais que a sua vida. Enquanto se levantava esboçou um sorriso. Quanto
gostaria de ver a cara de sua mãe quando lhe informasse que tinha intenção de
casar-se com sua enfermeira.
Quando estava na metade de caminho ouviu um
latido familiar que vinha do bosque.
— Que diabos…? — conseguiu dizer antes que algo
pequeno e robusto se chocasse contra suas pernas e estivesse a ponto de lhe
atirar.
Nem sequer a torpe exuberância do Sam podia
danificar o bom humor de Gabriel.
— Um dia destes me matará — disse utilizando o
ramo para recuperar o equilíbrio.
Enquanto seguia andando para a casa podia ouvir o
cão dançando a seu redor, ladrando freneticamente e fazendo que cada passo fora
um risco potencial.
— O que tenta fazer, Sam? Despertar aos mortos?
Em resposta, o cão agarrou o extremo do ramo e
esteve a ponto de arrancar-lhe Embora Gabriel atirou para trás o cão não se deu
por vencido, e cravou ainda mais os dentes na madeira com um profundo grunhido.
Com um juramento exasperado, Gabriel se ajoelhou
na erva úmida. Em vez de saltar a seus braços como esperava, o collie agarrou
sua manga já rota com os dentes e começou a atirar dela grunhindo e
choramingando.
— Pelo amor de Deus, o que ocorre? — Gabriel
tentou agarrar ao cão, mas Sam lutava para escapar dele tremendo e retorcendo-se
como um louco.
Gabriel franziu o cenho. O pequeno collie odiava
estar fora quando anoitecia. A essas horas normalmente estava já encolhido em
seu travesseiro, roncando felizmente. Por que decidiria de repente ir sozinho ao
bosque depois de anoitecer?
Não o faria.
Essa pequena voz em sua cabeça soava como uma
verdade absoluta. Sam só se atreveria a entrar no bosque de noite se estivesse
acompanhando a alguém. Alguém que poderia estar lhe buscando a ele. Alguém como
Samantha.
Ignorando seus frenéticos movimentos, Gabriel
cheirou a pele do cão. Sem dúvida alguma tinha o inconfundível aroma de limão
pego a seu suave cabelo. Mas sua fresca doçura estava quase eclipsada por outro
aroma mais intenso e amargo.
O da fumaça.
Gabriel se levantou bruscamente farejando o ar.
Qualquer outra pessoa poderia ter atribuído o leve aroma de cinza à fumaça de
uma chaminé. Mas tinha invadido seus pulmões como uma escura névoa.
O cão saltou de seus braços. Ladrando ainda
freneticamente, Sam deu uns passos para o bosque e logo voltou correndo aos pés
de Gabriel, como se lhe estivesse insistindo a lhe seguir.
Gabriel estava ali parado, entre a casa e o
bosque. Necessitava ajuda, mas Samantha necessitava a ele, e não havia forma de
saber quanto tempo tinha perdido tentando interpretar os sinais do cão.
Por fim se voltou para o que esperava que fosse a
casa e gritou «Fogo! Fogo!» com todas suas forças. Quase teria jurado que ouviu
uma porta abrindo-se e uma voz feminina assustada, mas não tinha tempo de ficar
a comprová-lo.
— Me leve para ela, Sam! Vamos! — ordenou
seguindo os frenéticos latidos do cão.
Sem necessidade de que lhe dissesse nada mais,
Sam entrou no bosque. Gabriel foi correndo detrás dele movendo seu ramo como uma
espada.
Ignorando o roce das sarças e as chicotadas dos
ramos que lhe golpeavam a cara, Gabriel avançou pelo bosque como uma espécie de
besta selvagem. Caiu mais de uma vez ao tropeçar-se com troncos podres de
árvores e raízes expostas. Mas ficava em pé e continuava andando, detendo-se
cada poucos passos para escutar o sonoro latido do Sam.
Se se atrasava muito o cão voltava saltando a seu
lado como se queria assegurar-se de que estava lhe seguindo. Com cada passo que
dava aumentava o aroma de fumaça.
Depois de uma penosa travessia através da
*maleza* se deteve em uma espécie de clareira. Levantou a cabeça para escutar,
mas só ouviu os pacíficos sons noturnos do bosque.
Vencendo o pânico, concentrou-se com mais força e
por fim captou o latido do Sam: longínquo, mas audível ainda. Gabriel foi nessa
direção, decidido a encontrar a Samantha antes que o cão tivesse que voltar
sobre seus passos.
A fumaça já não era um aroma, a não ser uma
presença evidente, densa e sufocante.
Enquanto Gabriel o atravessava às cegas seu ramo
se chocou contra algo imóvel e se partiu em dois.
Depois de atirá-la, apartou uma cortina de hera e
pôs uma mão na rugosa superfície. O muro de pedra estava tão quente que a
retirou imediatamente.
Devia ter chegado ao velho estábulo que estava no
limite do imóvel dos Fairchild. O edifício tinha sido abandonado muito antes que
ele nascesse.
— Samantha! — gritou procurando desesperadamente
alguma abertura.
Sam estava ladrando agora freneticamente, quase
ao bordo da histeria. Gabriel seguiu o som até uma porta aberta. O cão entrou
correndo no estábulo, e Gabriel sabia que não ficava mais remedeio que lhe
seguir. Não podia esperar a que alguém da casa lhes encontrasse. Era a única
esperança de Samantha.
Respirando profundamente, foi a toda pressa atrás
do cão. Podia ouvir o crepitar das chamas que acariciavam as velhas vigas de
madeira em cima dele. A turva fumaça se metia em seus pulmões tentando absorver
todo o ar.
— Samantha! — gritou esperando que pudesse lhe
ouvir ainda.
Quando só tinha dado uns passos ouviu um forte
rangido. Antes que pudesse levantar uma mão, um pouco pesado lhe deu um golpe na
têmpora.
Gabriel começou a cair no estábulo, mas quando
aterrissou estava de novo na coberta do Victory com a metralha assobiando sobre
sua cabeça e o intenso aroma dos canhonaços penetrando em seu nariz. O sangue
lhe caía pela cara nos olhos e a boca, e ao levantar a cabeça viu o Nelson
desabando-se sobre a coberta com uma expressão de desconcerto em seu rosto.
Gabriel apertou os punhos. Tinha visto morrer ao
Nelson, mas não veria a Samantha.
Reunindo todo seu valor, ficou em pé se
cambaleando e levantou uma mão para protegêla cara das brasas que caíam do
palheiro. O latido do Sam se converteu em um agudo gemido que parecia quase
humano.
Inclinando-se ou engatinhando, Gabriel avançou
pelo **** estou acostumado a seguindo o som até que algo rangeu debaixo de sua
bota. Ao agachar-se e apalpar a arreios retorcidos dos óculos de Samantha seu
coração esteve a ponto de deter-se.
Mas então suas mãos tocaram algo quente e suave.
Agarrou o flácido corpo de Samantha em seus braços e se estremeceu de alivio ao
sentir o murmúrio de seu fôlego contra seu rosto.
— Agüenta um pouco, céu — sussurrou lhe dando um
ardente beijo na frente — te agarre a mim e tudo irá bem.
Levando-a como uma menina, voltou correndo por
onde tinha vindo, esperando que Sam o seguisse. Enquanto saía pela porta o
estábulo se derrubou detrás deles, e a rajada de calor esteve a ponto de lhe
atirar.
Não diminuiu o passo até que estiveram longe da
sufocante nuvem de fumaça e cinzas.
Quando Samantha aspirou a primeira baforada de ar
fresco começou a tossir com um som rouco e agonizante que saía do mais profundo
de seu peito. Ajoelhando-se em um leito de folhas úmidas, Gabriel a recostou
sobre seu regaço. Tinha a bochecha quente, mas não podia determinar sua cor.
Morrendo um pouco com cada uma de suas
respirações tortuosas, esperou a que lhe acontecessem os espasmos.
De repente algo frio e úmido lhe roçou o braço.
Gabriel tocou o cabelo do Sam, e lhe deu uma suave massagem no corpo para tentar
acalmar seu violento tremor.
— É o melhor cão do mundo, Sam — disse chiando os
dentes pela reação — Assim que voltemos para casa te darei todas minhas botas.
Que diabos, comprarei-te umas se quiser.
Quando Samantha abriu os olhos viu o Gabriel
sobre ela com a cara tensa de preocupação. Inclusive com a cicatriz e manchado
de fuligem, era o mais bonito que tinha visto nunca.
— Vi-te — disse levantando a mão para lhe tirar
uma bolinha de fuligem da bochecha — Sorrindo-me sob a luz do sol justo antes
que todo se voltasse escuro.
Gabriel tentou sorrir, mas em sua boca se
refletiu outra emoção. Escondeu a cara em seu cabelo, agarrando-a como se não
fora a soltá-la nunca. Samantha gemeu brandamente pelo bem que se sentia de novo
em seus braços.
— Está ferida? — Baixando suas costas a seu
regaço, passou freneticamente as mãos por seus braços e suas pernas — Te tem
quebrado algo? Tem alguma queimadura?
— Acredito que não. — Moveu a cabeça de um lado a
outro e logo fez uma careta ao sentir uma dor aguda no pescoço — Mas me dói a
cabeça.
— A mim também — reconheceu ele com tom
arrependido.
Pela primeira vez Samantha viu o corte sangrento
que tinha na têmpora esquerda.
— OH! — exclamou enquanto lhe enchiam os olhos de
lágrimas ao dar-se conta do perto que tinha estado de lhe perder — Estava te
buscando. Os morcegos me assustaram e me caiu o abajur. Foi minha culpa.
Os olhos de Gabriel resplandeceram das sombras.
— Suponho que teremos que descontar o custo do
estábulo de seu salário. Provavelmente demorará vários anos em pagar o que me
deve.
— Como me encontraste? — perguntou ela começando
a respirar com mais facilidade.
— Tive uma pequena ajuda.
Seguindo seu gesto, ao levantar a cabeça Samantha
viu o Sam encolhido em um ninho de folhas a uns metros deles, farejando ainda o
ar nervosamente. Tinha o cabelo coberto de fuligem e chamuscado em algumas
zonas.
— Disse-me que algum dia poderia ser minha
salvação — disse Gabriel — E tinha razão.
— Mas poderia te haver matado! — Levantando um
punho, Samantha lhe deu um golpezinho no ombro — Não te há dito alguma vez
ninguém que os cegos não devem entrar correndo em edifícios em chamas?
— Suponho que agora vais arreganhar me por ser um
idiota.
Ela negou furiosamente com a cabeça, ignorando a
dor que sentiu ao fazê-lo.
— Um idiota não. Um herói. — Lhe saltaram as
lágrimas dos olhos enquanto levantava a mão para lhe acariciar a bochecha e a
rugosa cicatriz — Meu herói.
Tragando saliva, agarrou sua mão e levou as
pontas dos dedos a seus lábios.
— A heroína é você, querida minha. Com um capitão
a metade de feroz que você sob seu mando, Nelson poderia ter empurrado ao
Napoleão até Paris.
— Por que diz essa tolice? Venceram-me uma escada
podre e um bando de morcegos.
— Eu estava falando de um adversário mais
temível. Minha mãe.
Samantha piscou ao dar-se conta do que queria
dizer.
— Ouviu-o?
— Todas e cada uma das palavras. Era o único que
podia fazer para não pedir uma repetição.
Algo na expressão de Gabriel estava deixando-a
sem fôlego de um modo diferente.
Tinha-lhe visto burlar-se, irritar-se e
divertir-se a sua costa, mas nunca lhe tinha visto tão...
resolvido.
— Já sabe que escutar escondido depois de uma
janela é de má educação — assinalou — Embora esteja cego.
Ele moveu a cabeça de um lado a outro.
— Sabia que não poderia evitar essa recriminação
para sempre. Hei-te dito alguma vez quanto te admiro?
A ela lhe escapou uma risada nervosa.
— Acredito que não. Mas tampouco é necessário.
Estou satisfeita com minha própria consideração. Não necessito nem desejo que me
admirem.
Gabriel lhe aconteceu uma mão pelo cabelo.
— E que lhe adorem? Você gostaria que lhe
adorassem?
O coração lhe estava começando a retumbar no
peito. Pode que se deu muita pressa em falar. Pode que estivesse mortalmente
ferida depois de tudo.
— É obvio que não! Só as jovens estúpidas com a
cabeça cheia de idéias românticas desejam esse tipo de atenção.
— E o que deseja você… Samantha? — antes que
pudesse lhe repreender por usar seu primeiro nome, sua cálida mão encontrou a
curva de sua bochecha — Não há nada que queira tanto que lhe *aduela*? —
Roçou-lhe com o polegar seus carnudos lábios, que estavam desejando que a
beijasse.
— A ti — sussurrou com impotência lhe rodeando a
nuca com a mão e atraindo sua boca para a dela.
Apesar do sabor a lágrimas e fuligem foi o beijo
mais doce que Samantha tinha desfrutado. Gabriel se entregou por completo.
Enquanto a abraçava passou sua língua por sua boca, provocando um fogo mais
ardente ainda que de que acabavam de escapar. Por provar suas chamas, Samantha
estava disposta a queimar-se.
Logo a tendeu sobre o leito de folhas movendo-se
sobre ela como a sombra de um sonho.
Samantha fechou os olhos, ansiosa por unir-se a
ele na escuridão.
Apartando sua boca da dela, começou a beijar a
delicada coluna de seu pescoço, inalando profundamente como se cheirasse ao
perfume mais delicioso em vez da limão e fumaça.
— Não posso acreditar que tenha estado a ponto de
te perder — disse com voz rouca roçando com seus lábios o pulso que pulsava a um
lado de sua garganta.
Ela se aferrou a seus largos ombros, deixando-se
levar por um delicioso mar de sensações.
— Estou segura de que Beckwith poderia ter
contratado a outra enfermeira. Inclusive poderia ter convencido à viúva Hawkins
para que voltasse a te cuidar.
Gabriel se estremeceu contra sua garganta, mas
não sabia se era de risada ou de espanto.
— Te remoa a língua, mulher. — Levantou a cabeça
com um brilho diabólico em seus olhos — Melhor ainda, me deixe fazê-lo.
Enquanto sua boca se inclinava sobre a sua,
Samantha lhe deu todas as oportunidades.
Gabriel extraiu um doce beijo detrás de outro de
seus lábios até que ficou sem fôlego e ele acabou ofegando. Apenas se deu conta
de que seus quadris tinham começado a mover-se sobre as seu em um baile mais
provocador ainda que o que tinham compartilhado no salão de baile.
Mas não podia ignorar as quebras de onda de
prazer que começavam a subir da parte inferior de seu corpo. Ofegou em sua boca
enquanto ele se esfregava contra o montículo de seu entre perna. Era incrível e
emocionante sentir por fim essa parte dele que tinha visto perfilada com tanta
claridade debaixo de suas calças, saber o que queria fazer com ela.
Seus joelhos se separaram debaixo de sua saia.
Ele pôs aí a mão, tentando chegar a ela através das grosas capas de linho e lã.
Samantha gemeu e se retorceu sob suas arrudas
carícias, surpreendida por sua falta de vergonha e o intenso desejo de que lhe
tocasse a pele nua. Quando apartou a mão ficou decepcionada. Mas logo sentiu que
a colocava por debaixo de sua saia. Seus dedos se deslizaram pela lã de sua meia
e sua liga até a pele sedosa de sua coxa com uma urgência que não podia
resistir.
Quando roçou com as pontas de seus dedos os
cachos de seu entre perna Samantha afundou a cabeça contra seu pescoço, invadida
por uma repentina sensação de vergonha insuportável.
Seu tato já não era rude, a não ser
esquisitamente tenro. Seus dedos acariciavam sua pele torcida como se fossem
chamas, dissolvendo todos seus receios em um arrebatamento de paixão.
Gabriel grunhiu.
— Sabia que se conseguia chegar debaixo dessas
saias recatadas poderia demonstrar que não era feita de gelo. Te derreta para
mim, céu — sussurrou acontecendo a língua por sua orelha enquanto introduzia seu
dedo mais comprido nessa doce suavidade.
Ela gemeu enquanto seu corpo se estremecia com os
movimentos de seu dedo sem poder controlá-lo. Sempre tinha sabido que tinha a
reputação de ser um bom amante, mas não se deu conta de que conhecia seu corpo
melhor que ela, que era capaz de centrar-se unicamente em seu prazer excluindo o
seu.
O custo de sua repressão foi traído por sua
respiração agitada e a rigidez que sentia contra sua coxa.
Logo acrescentou outro dedo a sua exploração,
alargando-a brandamente enquanto acariciava com o polegar o ponto crucial de
seus cachos úmidos e a fazia palpitar deliciosamente.
Seus dedos seguiram agradando-a até que acabou
retorcendo-se e gemendo, com uma necessidade que não sabia que possuía. Uma onda
de escuro prazer se levantou sobre sua cabeça.
Enquanto rompia, derramando uma intensa sensação
de êxtase por todo seu corpo em uma maré incessante, beijou-a com força para
capturar seu grito quebrado em sua boca.
Seu beijo se suavizou pouco a pouco, como se
queria acalmar os deliciosos espasmos que sacudiam seu corpo.
— Sinto muito! — disse ela quando por fim pôde
falar.
Gabriel lhe apartou uma mecha de cabelo da
frente.
— Por que?
— Não queria ser tão egoísta.
Ele riu entre dentes.
— Não seja ridícula. Me gostou quase tanto como a
ti.
— De verdade?
Ele assentiu.
Animada por sua confissão, Samantha deslizou uma
mão entre eles e acariciou a longitude de seu constante desejo através do fino
ante de suas calças.
— Então provavelmente você gostará disto ainda
mais.
Gabriel ficou tenso.
— Com certeza que sim — disse entre dentes — mas
me temo que terei que esperar até mais tarde.
— Por que?
Deu-lhe um tenro beijo em seus lábios franzidos.
— Porque estamos a ponto de ter companhia
inesperada.
Meio aturdida ainda de prazer, Samantha se
incorporou em seus braços e ouviu algo grande e torpe que se movia pela
*maleza*.
Gabriel conseguiu lhe baixar a saia justo antes
que Beckwith saísse correndo do bosque com o Peter e Phillip detrás dele.
— Graças a Deus que estão bem, senhor! — exclamou
o mordomo movendo seu abajur sobre os dois — Quando vimos que o estábulo se
derrubou nos tememos o pior.
— Por todos os Santos, Beckwith! — Gabriel
levantou uma mão para proteger-se — Pode apartar essa maldita luz de meus olhos?
Está-me cegando!
Um inquietante silêncio caiu sobre o claro
enquanto todos eles, incluído Gabriel, davam-se conta do que acabava de dizer.
Capítulo 17
Querida Cecily,
Se não me permite seduzi-la, então não me deixa mais remedeio que...
— Tem que estar ela aqui? — perguntou a marquesa
do Thornwood lançando a Samantha um olhar fulminante.
Nada lhe teria gostado mais a Samantha que poder
escapar do abarrotado estudo. Era uma tortura estar ali sentada no bordo de uma
cadeira de respaldo reto guardando a compostura quando tinha o coração
esmigalhado, dividido entre a esperança e o desespero.
Antes que pudesse levantar-se e desculpar-se,
Gabriel disse com firmeza: — É obvio que sim. É minha enfermeira, já sabe. —
Embora não podia girar a cabeça para ela, o calor de sua voz lhe assegurava que
era muito mais que isso para ele.
Estava sentado diante de uma mesa de cartas com a
cabeça sujeita a uma espécie de artefato de ferro proporcionado pelo doutor
Richard Gilby, o único médico que se atreveu a lhe oferecer alguma esperança de
que poderia recuperar a vista. O homenzinho de olhos afáveis e costeletas bem
recortadas não expressou nenhuma queixa quando lhe tirou da cama em metade da
noite o marquês do Thornwood, ao que por sua vez tinha levantado da cama um
Beckwith muito alterado. O médico tinha pego vários utensílios que pareciam
aparelhos de tortura medievais mais que instrumentos médicos e se pôs em caminho
para o Fairchild Park com o resto da família de Gabriel.
Embora o sol tivesse saído fazia umas horas,
Eugenia e Valerie seguiam dormindo nos extremos opostos de um sofá com brocados.
Honoria estava revoando atrás do médico,
observando atentamente cada instrumento que tirava de sua maleta. O marquês se
passeava por diante do fogo com a fortificação na mão, enquanto sua mulher
estava sentada em um de quão brincalhões flanqueavam a chaminé como se fosse um
trono, manuseando nervosamente seu lenço.
Samantha era incapaz de sustentar seu olhar de
desaprovação. Embora se tinha tirado a fuligem do cabelo e a pele e se pôs um
vestido limpo, não podia fazer nada para eliminar a lembrança indelével das
carícias de Gabriel e o imenso prazer que lhe tinham proporcionado.
— Estraguem! — gritou o médico fazendo saltar a
todos.
Seus assentimentos e seus pigarros estavam
começando a lhes pôr nervosos. Embora fosse o que mais se jogava, só Gabriel
parecia disposto a esperar até que o homem terminasse seu reconhecimento para
começar a fazer perguntas. Sam era o único que não parecia preocupado pelos
procedimentos incomuns. O collie estava acomodado no tapete da chaminé roendo
uma brilhante expulsa de montar.
O marquês deu um golpe com a fortificação no chão
com seu rosto reluzente de suor.
— O que ocorre? Tem descoberto algo?
Lhe ignorando, o doutor Gilby se deu a volta e
estalou os dedos para as janelas.
— Voltem a fechar as cortinas. Imediatamente.
Beckwith e a senhora Philpot se apressaram a lhe
obedecer, e estiveram a ponto de tropeçar o um com o outro. Embora outros
serventes não tinham permissão para entrar na habitação, Samantha tinha visto o
Peter e ao Phillip aparecer pelas janelas mais de uma vez na última hora.
A penumbra que descendeu com as cortinas lhe deu
uma agradável pausa. Ao menos poderia olhar ao Gabriel sem ter que ocultar a
ansiedade de seus olhos. Agora que já não tinha seus óculos para protegê-los se
sentia como se todas suas emoções fossem evidentes.
O doutor Gilby pôs uma lupa enorme na parte
dianteira do suporte de ferro. Enquanto sustentava uma vela lhe pisquem em
frente dele, Honoria ficou nas pontas dos pés para olhar por cima de seu ombro.
— O que vê agora? — perguntou ao Gabriel.
— Sombras em movimento? Formas? — Gabriel moveu a
cabeça e estreitou os olhos para tentar concentrar-se — Para ser sincero, não
muito.
— Excelente — disse o médico dando a vela a
Honoria.
Tirou a tela do abajur de azeite que tinha junto
a seu cotovelo e logo aproximou rapidamente o abajur à cara de Gabriel, que se
encolheu visivelmente.
— E agora?
Gabriel voltou a cabeça para não ter que olhar
diretamente ao abajur.
— Uma bola de fogo tão brilhante que logo que
posso olhá-la.
Era impossível saber se o profundo suspiro do
doutor Gilby pressagiava uma boa notícia ou um desastre. Soltou o aparelho da
cabeça de Gabriel e logo fez um gesto para as janelas como se fosse um professor
que acabava de dirigir o concerto mais importante de sua carreira.
— Podem abrir as cortinas.
Quando Beckwith e a senhora Philpot abriram os
pesados cortinados a luz do sol alagou o salão. Samantha observou suas mãos
cruzadas sem atrever-se a olhar ao Gabriel.
O marquês agarrou a mão tremente de sua mulher e
a apertou com força. Inclusive Eugenia e Valerie se moveram, olhando ao médico
com uns esperançosos olhos verdes que eram quase idênticos aos de seu irmão.
Mas foi Gabriel quem rompeu o tenso silêncio.
— Por que esta mudança repentina, doutor? Até
ontem à noite não podia fazer nenhum tipo de distinção entre luzes e sombras.
Colocando de novo o suporte de ferro em sua
maleta, o doutor Gilby moveu a cabeça de um lado a outro.
— Possivelmente não saibamos nunca. É possível
que com o forte golpe que se deu na cabeça se formasse um coágulo de sangue que
pode ter demorado meses em dissolver-se.
Gabriel se tocou com cuidado o corte da têmpora.
— Deveria ter ordenado a meu mordomo que me
golpeasse na cabeça com um de minhas fortificações faz tempo.
Samantha queria aproximar-se dele, lhe rodear com
seus braços e lhe dar um tenro beijo nessa ferida que se feito por ela.
Não tinha nenhum direito a lhe tocar, mas podia
fazer a pergunta que estava flutuando no ar. Pergunta-a que a todos outros dava
muito medo expor.
— Voltará a ver?
O médico deu um tapinha ao Gabriel no ombro com
seus olhos azuis brilhantes.
— Podem passar vários dias ou várias semanas
antes que sua mente seja capaz de distinguir mais que sombras e formas, filho,
mas tenho razões para pensar que vais recuperar te totalmente.
Samantha se levou uma mão à boca para conter um
soluço involuntário.
Soltando um grito de alegria, Honoria se tornou
ao pescoço de Gabriel. O resto da família se apinhou a seu redor: Eugenia,
Valerie e sua mãe lhe asfixiando com seus abraços perfumados enquanto seu pai
lhe dava tapinhas cordiais nas costas. Inclusive Sam se levantou para unir-se à
festa, acrescentando seu agudo latido ao alegre estalo de risadas e murmúrios.
Ao olhar mais à frente Samantha viu a senhora
Philpot nos braços do Beckwith, com suas estreitas costas tremendo de emoção.
Enquanto o mordomo mantinha o olhar de Samantha por cima do ombro da governanta,
poderia ter jurado que viu um brilho de simpatia em seus olhos.
Então se levantou e saiu da habitação, sabendo
que já não tinha nada que fazer ali. Subiu as escadas até o segundo piso com o
queixo alto e a coluna vertebral reta no caso de algum dos outros criados estava
olhando. E quando por fim chegou ao refúgio de seu quarto fechou a porta detrás
de si.
Mantendo uma mão sobre a boca para amortecer seus
soluços, deslizou-se pela porta dobrando-se com uma pontada de alegria e dor.
Inclusive quando lhe começaram a cair as lágrimas
sobre o dorso da mão não poderia haver dito se estava chorando pelo Gabriel ou
por ela.
Samantha estava sentada no bordo da cama com sua
camisola, trancando-se metodicamente o cabelo. Isso era quão único tinha feito
desde que se encerrou em sua habitação pela manhã: gestos rotineiros. Quando a
senhora Philpot enviou ao Elsie com a bandeja do jantar comeu até a última
colherada da rica sopa, embora o que gostava de era atirá-la pela janela. Se
podia seguir vivendo um momento cada vez possivelmente não tivesse que
enfrentar-se ao futuro.
Um futuro sem o Gabriel.
Seus dedos vacilaram. A mecha de cabelo médio
trancado lhe escapou das mãos. Não podia negar mais tempo a verdade. Seu
trabalho ali tinha terminado. Gabriel já não a necessitava.
Voltava a estar onde lhe correspondia: nos braços
amorosos de sua família.
Depois de descer da cama foi ao armário e tirou
sua desgastada mala de couro. Logo a abriu junto à cama antes de levantar a
tampa de seu baú.
Nunca tinha pensado que ficaria nostálgica com as
feias sarjas e as médias de lã que tinha utilizado desde que chegou ao Fairchild
Park, mas de repente o que mais gostava de era afundar a cara nelas e chorar.
Apartando-as brandamente, tirou umas anáguas e uma regata limpa e as meteu na
mala com um fino volume de poemas do Marlowe. Quando estava a ponto de fechar o
baú lhe chamou a atenção uma esquina de papel de cor nata.
As cartas de Gabriel.
Tinha tentado as enterrar profundamente para que
não voltassem a sair nunca à superfície. Mas ali estavam, tão prementes e
irresistíveis como o primeiro dia.
Samantha agarrou o pacote com o laço e deixou que
o baú se fechasse. Logo se sentou a um lado da cama e passou as pontas dos dedos
pelo papel, tão desgastado de tanto tocá-lo que parecia que ia desfazer se sob
seu tato. Podia imaginar ao Gabriel acariciando o delicado linho com suas fortes
mãos, sopesando cada palavra como se fosse ouro.
Sabia que mais tarde se odiaria, mas não podia
resistir a tentação de soltar o laço do pacote. Enquanto estava desdobrando a
primeira carta e levantando-a à luz da vela que ardia na mesinha de noite soou
um golpe na porta.
Samantha se levantou com um gesto de
culpabilidade. Depois de escrutinar freneticamente a habitação colocou a mala
debaixo da cama de uma patada. E quando estava a meio caminho da porta se
lembrou das cartas que tinha na mão.
Então chamaram de novo à porta com um toque de
impaciência inconfundível.
— Um momento, por favor! — gritou antes de voltar
correndo à cama e colocar as cartas debaixo do colchão.
Ao abrir a porta viu o Gabriel, que estava ali
vestido unicamente com uma bata de seda verde. Antes que pudesse dizer nada se
aproximou dela lhe rodeando a cara com as mãos, introduziu a língua em sua boca
e a beijou com uma intensa ternura que a deixou sem fôlego. Para quando separou
seus lábios dos dela estava enjoada de desejo.
— Boa noite, senhor — sussurrou cambaleando-se
ainda.
Apartando-a a um lado, Gabriel entrou na
habitação. Fechou a porta de repente detrás dele e se apoiou nela.
— O que ocorre? — Samantha lançou um olhar
preocupado à porta — Persegue uma horda de bárbaros?
— Pior. É minha família. — passou-se uma mão pelo
cabelo revolto — Se instalaram na mansão como um bando de pombas. Pensava que
não ia esquivar os alguma vez. Sabe o difícil que é escapulir-se de alguém que
não pode ver?
Alegrando-se de que tampouco pudesse ver seus
olhos inchados e as marcas das lágrimas em suas bochechas, disse animadamente: —
Segundo o doutor Gilby, não terá que preocupar-se muito mais por isso.
Ele moveu a cabeça como se não pudesse
compreender de todo sua boa sorte.
— É assombroso, verdade? Mas quer saber o que é o
mais assombroso de tudo? — Voltou a aproximar-se dela e lhe agarrou sua fina
boneca — Quando o doutor Gilby me disse que me recuperaria totalmente me dava
conta de que o que mais desejava ver no mundo era sua doce cara.
Samantha olhou para outro lado.
— Temo-me que posso te decepcionar profundamente.
— Isso é impossível. — Todo rastro de humor
desapareceu de sua voz, deixando-a curiosamente sombria — Você nunca poderia me
decepcionar.
Mordendo o lábio, Samantha se soltou a boneca e
ficou fora de seu alcance. Dava-lhe menos medo que pudesse voltar a beijá-la que
o que poderia fazer ela se o fazia.
— A que devo a honra desta visita tão pouco
convencional?
Gabriel se apoiou na porta e se cruzou de braços,
fazendo que se estremecesse com seu olhar lascivo.
— Não se faça a inocente comigo, senhorita
Wickersham. Não sou o primeiro lorde que entra furtivamente no quarto de sua
criada mais irresistível.
— Não foi você, senhor, quem me disse que não
tinha o costume de dedicar seus cuidados às empregadas a seu serviço?
Apartando-se da porta, Gabriel avançou para o som
de sua voz com a elegância de uma pantera.
— Para que necessito a força quando a sedução é
muito mais eficaz? E muito mais — seus lábios acariciaram a palavra —
prazenteira.
Samantha começou a retroceder, temendo que este
Gabriel tão brincalhão fosse mais perigoso ainda para seu coração. Mas ao mesmo
tempo não podia resistir a tentação de participar do jogo.
— Deveria saber que não sou o tipo de mulher que
se deixa seduzir com quinquilharias caras, umas quantas palavras floridas ou
algumas promessas extravagantes feitas no calor do momento. Nem meu corpo nem
meu coração ganham com tanta facilidade.
Enquanto a sombra de Gabriel caía sobre ela, a
parte posterior de seus joelhos se chocou contra a cama. Ele pôs uma mão sobre
seu peito para que se tombasse nela. Antes que pudesse protestar a seguiu para
baixo e lhe rodeou a bochecha com uma de suas grandes mãos.
— Agora mesmo não tenho nenhuma quinquilharia,
mas o que te parece se te prometo te fazer minha esposa e te amar o resto de
nossos dias?
Capítulo 18
Querida Cecily,
Cada minuto parece uma eternidade enquanto espero sua resposta...
— Tornaste-te louco? — Samantha empurrou ao
Gabriel com a força suficiente para que caísse ao chão.
Uma vez ali se incorporou com expressão
desconcertada.
— Não me tinha ocorrido que era muito mais seguro
pedi-lo por carta.
Saltando da cama, Samantha começou a passear-se
pela pequena habitação, refletindo com seus passos frenéticos o tumulto de seu
coração.
— Pode que o golpe não te tenha afetado só à
vista. Pode que te tenha afetado também à memória. Porque parece ter esquecido
que é um conde, um membro da nobreza, enquanto que eu sou uma simples faxineira.
— Samantha, você é...
Ela se deu a volta para lhe olhar.
— Senhorita Wickersham!
Em seus belos lábios se desenhou um meio sorriso
que a enfureceu ainda mais.
— Senhorita Wickersham, é a mulher que adoro e
com a que tenho intenção de me casar.
Ela lançou as mãos ao ar.
— O teu não tem remédio, verdade? Está
recuperando a vista só para perder o julgamento.
— Não te dá conta de que não fica outra opção?
— Por que diz isso?
— Porque já te comprometeste. Esqueceste-o?
Pelo gesto desafiante de sua boca sabia que não
poderia esquecer com que falta de vergonha tinha vibrado sob sua mão, as quebras
de onda de prazer que tinham sacudido todo seu corpo. Levaria essa recordação à
tumba.
— Libero você de qualquer obrigação. Não há
nenhuma razão para que passe o resto de sua vida pagando por uma estúpida
indiscrição.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Isso foi para ti o que passou ontem à noite?
Uma indiscrição?
Incapaz de pensar uma negativa convincente,
Samantha continuou passeando.
— Estou segura de que sua mãe se teria ficado
horrorizada se tivesse sabido que pediu em matrimônio à filha desse barão. O que
diria se lhe contasse que tem intenção de te casar com sua enfermeira?
Gabriel agarrou a prega de sua camisola enquanto
passava por diante dele e a sentou sobre seu regaço. Logo a rodeou com seus
braços fazendo impossível qualquer ideia de escapar.
— Por que não vem comigo agora e o averiguamos?
Ao retorcer-se só conseguiu que a abraçasse com
mais força.
— Daria-lhe um ataque a pobre mulher! Com essa
notícia a mataria. E a mim também — acrescentou com seriedade.
Ele riu.
— Não é tão ogro como parece. De fato, quando nos
conhecemos, vi que havia uma notável similitude com você...
Samantha pôs uma mão sobre sua boca.
— Não o diga! Não te atreva a dizê-lo!
Rindo-se ainda, Gabriel apartou a mão de seus
lábios.
— Estou seguro de que chegará a querê-la. — Sua
voz se suavizou enquanto o brilho de maldade desaparecia de seus olhos,
deixando-os com um tenro brilho — depois de tudo vai ser a avó de seus filhos.
As palavras de Gabriel se cravaram como uma faca
no coração de Samantha, fazendo que vislumbrasse um futuro que nunca poderia
compartilhar. Piscou para conter as lágrimas. É possível que não tivesse amanhã,
mas podia ter essa noite.
— Estava equivocada — sussurrou.
Ele franziu o cenho.
— No que?
— Sou o tipo de mulher que se deixa seduzir com
palavras floridas e promessas extravagantes. — lhe envolvendo a bochecha com a
mão, levantou a cara a sua altura.
Enquanto Gabriel sentia a suavidade dos lábios de
Samantha debaixo dos seus foi como se uma luz tivesse iluminado sua alma.
Rodeando com um braço seus quadris, levantou-a a estreita cama de ferro e a
tendeu entre os lençóis enrugados.
Sabia que devia esperar até que estivessem
casados. Mas tinha esperado tanto tempo esse momento que parecia mais que uma
vida.
— Espera — disse ela lhe parando quase o coração
— vou apagar a vela.
Ele esperou a que voltasse para seus braços antes
de murmurar: — De todas as formas não necessito a vela. Só necessito a ti.
Procurando a prega de sua camisola, Gabriel o
tirou por cima da cabeça. Nesse momento se sentiu como um desposado. Saber que
Samantha estava nua debaixo dele, que podia passar toda a noite explorando os
deliciosos tesouros de seu corpo, fez que ficasse a boca seca e que suas mãos
tremessem de desejo.
Fazia muito tempo que não tinha a uma mulher nua
em seus braços. Inclusive antes do Trafalgar tinha passado vários meses de
celibato voluntário pensando em Cecily. Enquanto outros marinheiros do Victory
satisfaziam suas necessidades carnais com prostitutas durante suas breves
estadias em terra, ele permanecia a bordo do navio relendo as cartas de Cecily.
Seu corpo ardia por desafogar-se, mas tinha deixado que se consumisse enquanto
sonhava com o dia no qual se reuniria com ela. Embora tivesse sabido que esse
dia não chegaria nunca, teria estado disposto a esperar esse momento. A
Samantha.
Gabriel se desatou o cinturão da bata e a deixou
cair sobre seus ombros, desesperado por sentir sua pele. Beijando-a como se cada
beijo fosse o último, deslizou-se habilmente debaixo de seu corpo, gemendo
quando seu peito se encontrou com a doce brandura de seus seios, quando seu
membro inchado roçou os suaves cachos de seu entre perna. Queria afundar-se nela
imediatamente, desfrutar de todo o prazer que lhe tinha sido negado durante
esses largos meses.
Mas Samantha não era uma prostituta. Merecia mais
que um pó rápido. Agarrou-se a seus ombros e lançou um gemido de protesto quando
apartou sua boca da sua e a pôs de flanco. Logo que havia lugar para os dois na
estreita cama, mas isso vinha bem ao Gabriel. Desse modo lhe resultava mais
fácil pôr uma perna sobre sua coxa e acomodar-se sob seu pescoço enquanto lhe
rodeava um peito com a mão. Seu mamilo estava já tão amadurecido como um bago
suculento lhe rogando que tomasse em sua boca.
E isso é o que fez para agradá-la: acariciá-lo,
lambê-lo e sugá-lo com os lábios, a língua e os dentes até que ela começou a
arquear-se debaixo de enquanto lhe atirava do cabelo. Uma exultação familiar lhe
percorreu as veias. Não necessitava a vista para isso. Fazer o amor a uma mulher
na escuridão sempre tinha sido para ele tão natural como respirar.
— Posso senti-lo — sussurrou ela entre ofegos
soando desconcertada e escandalizada de uma vez.
— Isso espero — respondeu ele levantando a cabeça
de seu peito a contra gosto — Não queria te fazer perder o tempo.
— Não. Quero dizer...
Gabriel tinha a sensação de que se pudesse ver
seu rosto nesse momento teria estado tinta com um rubor adorável.
—… aí abaixo — concluiu Samantha.
Ele moveu a cabeça enquanto lhe escapava uma
risada de impotência.
— Posso te prometer que vais sentir muito mais aí
abaixo antes que acabe contigo.
Como se fosse cumprir sua promessa, deslizou uma
mão pela pele acetinada de seu abdômen. Ela se estremeceu sob seu tato, mas ele
prolongou o prazer e o tortura tomando-se seu tempo para explorar a suave curva
de seu ventre e os ocos de seus quadris.
Para quando seus dedos roçaram a suavidade de seu
pêlo púbico, bastou com um empurrãozinho de sua coxa para que separasse as
pernas e lhe permitisse acessar ao que havia entre elas.
— Faz que me sinta lasciva — confessou suspirando
de prazer — Como se pudesse fazer algo por ti… contigo.
Gabriel não pensava que pudesse excitar-se mais,
mas enquanto uma série de imagens eróticas vertiginosas passavam por sua mente
se deu conta de que estava equivocado.
— Estarei encantado de te dar toda uma vida para
comprová-lo.
— E se não tivéssemos toda uma vida? —
Abraçou-lhe com uma ferocidade surpreendente — E se só tivéssemos este momento?
— Então não perderia nenhuma oportunidade para
fazer isto — disse procurando sua boca para lhe dar um tenro beijo — Ou isto. —
Baixou os lábios a seu peito e passou a língua ao redor do mamilo inchado — Ou
isto. — Sua voz se converteu em um gemido enquanto deslizava os dedos entre seus
cachos, acariciando a suave pele de abaixo.
Ela gemeu com suas carícias em uma rouca canção
de bem-vinda. Seu corpo estava já preparado para lhe receber, abrindo-se como
uma flor sob o beijo do sol. Então passou o polegar sobre o casulo que se
escondia entre essas pétalas aveludadas. Queria que ardesse para ele, que
desejasse esse momento no qual tomaria dentro dela e a faria dela.
— Por favor, Gabriel… — Se arqueou contra sua mão
lhe sussurrando ao ouvido — Não posso esperar mais.
Enquanto separava as coxas começou a lhe
acariciar seu membro palpitante, lhe fazendo o convite que nenhum homem podia
resistir.
Enquanto seus dedos lhe rodeavam como laços de
veludo, ele apertou os dentes em um arrebatamento de êxtase.
— Bom, se me pedir isso assim.
Então ficou em cima dela com sua ereção sobre
seus cachos úmidos, situados às portas do céu.
— Gabriel, há algo que tenho que te dizer. —
aferrou-se a suas costas com uma nota de pânico em sua voz.
Seus dedos procuraram seus lábios e os fizeram
calar com uma tenra carícia.
— Está bem, Samantha. Não tenho que saber nada
mais. Sei que não foste totalmente sincera comigo. Uma mulher como você não
solicitaria um trabalho como este se não estivesse fugindo de seu passado. Mas
não me importa. Não me importa se tiver havido outro homem antes que eu. Não me
importa se tiver havido uma dúzia de homens. O único que me importa é que agora
mesmo está em meus braços.
Para demonstrar que era um homem de palavra,
Gabriel jogou os quadris para trás e penetrou em seu interior. Através de um véu
de prazer ouviu um grito quebrado e sentiu algo frágil e insubstituível que
cedia ante a insistente demanda de seu corpo.
Então ficou imóvel dentro dela com medo a
mover-se e a respirar.
— Samantha?
— Mmmm? — respondeu com um rouco chiado.
Gabriel tentou ficar quieto enquanto lhe abraçava
em um arrebatamento de prazer.
— O que foste dizer me?
Ouviu como tragava saliva.
— Que não o tinha feito nunca.
Ele se derrubou sobre seu pescoço reprimindo um
juramento.
— Quer que pare? — Inclusive enquanto o dizia não
sabia se poderia fazê-lo.
Ela moveu a cabeça violentamente.
— Não. — Enredando seus dedos em seu cabelo,
voltou a aproximar sua boca a seus lábios — Nunca.
Enquanto suas línguas se envolviam em uma
deliciosa dança se arqueou contra ele, e esse simples movimento lhe deixou
extasiado. Gabriel sempre se orgulhou de sua sofisticação.
Surpreendeu-lhe comprovar que ainda era o
bastante bárbaro para querer golpear o peito e lançar um grito de triunfo, tudo
porque era o primeiro homem que a tinha tomado, o único. Começou a deslizar-se
para dentro e para fora com uns movimentos largos e profundos desenhados
especialmente para transformar seus gemidos de dor em gemidos de prazer.
Com a Samantha para compartilhá-la com ele, a
escuridão já não era um inimigo, a não ser um amante. Tudo era textura e
sensação, fricção e contraste. Ela era suave. Ele era áspero. Ela dava. Ele
recebia.
Pensando que se merecia uma indulgência pela dor
que lhe tinha causado, algo que fizesse que merecesse a pena, Gabriel pôs uma
mão entre eles. Sem deixar de acariciá-la com a língua e com o pênis, tocou-a
com suavidade até que se convulsionou a seu redor com um grito rouco que foi
quase sua perdição.
Levantando-lhe os braços sobre a cabeça e
entrelaçando seus dedos até que suas mãos e seus corações ficaram unidos,
sussurrou apaixonadamente: — Te agarre a mim, céu. Não me solte nunca.
Samantha obedeceu, envolvendo suas magras pernas
a seu redor. Então não pôde agüentar mais, não pôde resistir o ritmo frenético
que lhe golpeava o sangue como tambores tribais.
Gabriel a penetrou com força uma e outra vez até
que acabaram os dois ébrios de prazer, até que sentiu esses intensos tremores
que começavam a surgir de suas vísceras uma vez mais.
Enquanto sentia uma poderosa sacudida e se
derramava em uma quente corrente, Gabriel lhe cobriu a boca com a sua temendo
que seus gritos despertassem a toda a casa.
Samantha despertou em braços de Gabriel. A cama
era tão estreita que só podiam estar de lado com as costas contra seu peito,
como duas colheres em uma gaveta.
Ao olhar para a janela se alegrou ao comprovar
que o céu estava ainda escuro, sem nenhuma luz que anunciasse o amanhecer.
Teria-lhe gostado de ficar ali para sempre com o musculoso braço de Gabriel ao
redor de sua cintura, seu fôlego lhe movendo o cabelo e seu traseiro nu
acomodado em seus quadris. Podia sentir seu coração pulsando contra suas costas
em uma doce canção de ninar.
Até essa noite só tinha uma vaga idéia do que
acontecia entre um homem e uma mulher no quarto. Mas não estava preparada para a
realidade. Pela primeira vez compreendeu que um ato aparentemente simples
levasse às mulheres para buscá-la ruína e aos homens a arriscá-lo tudo.
Compreendeu por que se escreviam sonetos,
livravam-se duelos e se perdiam vistas, tudo pela magia que se produzia quando
um homem e uma mulher se uniam nas sombras da noite.
Havia uma nova ternura entre suas coxas, uma nova
dor que acrescentar ao de seu coração. Entretanto era uma dor doce e um preço
muito pequeno pelo milagre de ter ao Gabriel dentro dela.
Como se pudesse captar a direção de seus
pensamentos, Gabriel se moveu e estreitou o braço ao redor de sua cintura
enquanto a envolvia ainda mais com seu corpo.
Algo empurrou a suavidade de suas nádegas. Algo
duro e insistente. Samantha não pôde resistir a tentação de dar a seu traseiro
um meneio experimental.
Gabriel lançou um grunhido sonolento antes de
murmurar: — Céu, não tente ao dragão se não quer que te coma viva. — Apartou-lhe
o cabelo revolto do pescoço e lhe roçou a nuca com os lábios com uma ternura que
lhe fez estremecer-se de desejo — Antes não deveria ter sido tão brusco contigo.
Necessita tempo para te recuperar.
Sabendo que isso era um luxo que não tinha,
arqueou-se contra ele apoiando suas nádegas contra sua ereção.
— Só necessito a ti.
Gabriel gemeu em sua orelha.
— Isso não é justo. Sabe que é quão único nunca
poderia te negar.
Mas podia negar-se a si mesmo enquanto a
agradava. Com uma mão começou a roçar seus mamilos alternando o índice e o
polegar enquanto deslizava a outra entre suas pernas e acariciava a pele torcida
com delicioso cuidado. Pouco depois Samantha sentiu que se derretia em um
intenso arrebatamento de prazer. Teve que morder o travesseiro para não gritar
em voz alta.
Só então cobriu com suas mãos a suavidade de seus
seios e se deslizou dentro dela por detrás. Samantha queria mover-se contra ele,
lhe animar a mover-se, mas ele a reteve até que seu corpo começou a vibrar a seu
redor, fazendo ressonar com seu batimento do coração insistente o ritmo de seu
coração.
— Por favor… — gemeu a ponto de deprimir-se em
seus braços — Gabriel, por favor...
Sua súplica incoerente recebeu a atenção que
merecia. Nunca tinha sonhado que fosse possível sentir tanta paixão e tanta
ternura de uma vez. Para quando acabou com ela não poderia haver dito onde
terminava seu corpo e onde começava o seu. Só sabia que se sentia como se lhe
estivesse rompendo o coração e que tinha as bochechas cheias de lágrimas.
— Está chorando — disse ele obrigando-a a
tombar-se.
Ela conteve um soluço.
— Não.
Tocou-lhe a bochecha com um dedo e logo o levou
aos lábios para demonstrar que estava mentindo.
— É o que sempre tinha suspeitado — disse com tom
sério — Não tem por que ocultar mais tempo a verdade.
Respirando agitadamente, Samantha piscou.
Ele pôs uma mão sobre seu coração.
— Debaixo dessa fachada prática pulsa o coração
de uma autêntica romântica. Não se preocupe, senhorita Wickersham. Seu segredo
está a salvo comigo. — A olhou de esguelha, com o corte diabólico de sua
cicatriz fazendo que parecesse um libertino — Sempre que me compense, é obvio.
— Pode contar com isso. — Aproximando sua boca a
dela, Samantha selou sua promessa com um beijo ardente.
Samantha ficou a última forquilha no cabelo para
assegurar seu grosso coque na nuca.
Levava a mesma saia marrom e a mesma jaqueta que
o dia que chegou ao Fairchild Park. A um observador casual teria parecido que
era exatamente a mesma mulher. Esse observador não se teria fixado na cor rosada
de suas bochechas, nas marcas da barba em seu pescoço, em seus lábios ainda
inchados pelos beijos de seu amante.
Enquanto ficava seu chapéu de palha se voltou
para a cama.
Gabriel estava convexo de barriga para baixo na
luz perolada do amanhecer, ocupando com seu impressionante corpo quase todo o
colchão. Tinha a cabeça apoiada sobre seus braços, com o joelho direito
levantado para um lado, arrastando quase o lençol de seus estreitos quadris. Uma
espessa mecha de cabelo escuro lhe cobria a cara.
Seu gigante dourado.
Suas mãos desejavam lhe tocar uma vez mais, mas
sabia que não podia arriscar-se a despertar. Em um vão intento de vencer a
tentação ficou um par de luvas negras.
Não tinha mais remedeio que deixar o baú. Já
tinha tirado a mala média feita de debaixo da cama. Só ficava uma coisa por
fazer.
Aproximou-se da cama medindo cada passo como se
fosse o último. Enquanto se ajoelhava a uns centímetros de seu rosto, Gabriel se
moveu e murmurou algo em sonhos. Samantha conteve o fôlego, pensando por um
momento que abriria os olhos, que em vez de olhar através dela olharia nas
profundidades de sua alma.
Em vez disso lançou um profundo suspiro e se deu
a volta, medindo com sua mão os lençóis revoltas como se estivesse procurando
algo.
Deslizando a mão sob o colchão, Samantha agarrou
o montão de cartas que tinha metido ali a noite anterior. Sem incomodar-se em
atá-las com o laço, meteu-as na mala e logo ajustou as correias.
Depois tirou um papel dobrado do bolso de sua
saia, e lhe tremeu um pouco a mão enquanto o deixava no travesseiro junto à
cabeça de Gabriel.
Quão seguinte soube é que estava na porta com a
mala na mão.
Permitiu jogar um último olhar ao Gabriel.
Pensava expiar seus pecados vindo aqui, mas parecia que só tinha acumulado um
pecado atrás de outro, cada um mais imperdoável que o anterior. Mas
possivelmente o maior de todos tinha sido apaixonar-se tão profundamente dele.
Apartando a vista da cama, saiu da habitação
fechando com cuidado a porta detrás dela.
Capítulo 19
Querida Cecily,
Levo suas cartas e todas minhas esperanças para nosso futuro junto a meu
coração...
—Beckwith!
Quando esse grito familiar ressonou pelos
corredores do Fairchild Park, todos os serventes da mansão ficaram firmes. Seus
olhares aturdidos se cravaram no teto enquanto soava um golpe ensurdecedor
seguido de uma enxurrada de juramentos o bastante fortes para levantar a capa
dourada dos *zócalos*.
Ouviram-se uns passos baixando atropeladamente as
escadas e logo um agudo chiado seguido de outro juramento.
— Se te separasse de meu caminho não te pisaria
na maldita cauda!
Umas unhas repicaram no chão de mármore enquanto
Sam se retirava rapidamente.
Beckwith intercambiou um olhar ansioso com a
senhora Philpot antes de dizer: — Estou no comilão, senhor.
Gabriel entrou no comilão feito uma fúria com o
cenho franzido. Só levava uma bata, e estava brandindo sua fortificação como se
fosse uma arma.
— Viu a Samantha? Quando me despertei esta manhã
se foi.
Alguém soltou um ofego escandalizado. Gabriel se
voltou devagar, dando-se conta muito tarde de que não estavam sozinhos.
Farejou o ar abrindo bem suas fossas nasais.
— Só posso cheirar a bacon e a café recém feito.
Quem mais está aqui?
— OH, quase ninguém — disse Beckwith gaguejando —
Só a senhora Philpot. Elsie. Sua mãe. Seu pai. E… — se esclareceu garganta com
desconforto — suas irmãs.
— Como? Não está Willie o guarda? O que ocorre?
Não pôde livrar-se de seu trabalho o tempo suficiente para tomar o café da manhã
com o resto da família? — Gabriel moveu a cabeça de um lado a outro — Não
importa. A única pessoa que me interessa é Samantha. Viu-a?
Beckwith franziu o cenho.
— Agora que o diz, acredito que não. O qual me
surpreende, porque são quase as dez e a senhorita Wickersham é normalmente muito
ativa.
Está muito entregue a seu trabalho.
Olhando ao Gabriel de cima abaixo desde seus pés
nus até seu cabelo despenteado, seu pai riu entre dentes.
— Sim, já se vê.
Eugenia, Valerie e Honoria puseram-se a rir.
— Meninas! — exclamou sua mãe lhes lançando um
olhar furioso — Podem lhes levantar da mesa. Deixem-nos sozinhos.
Enquanto começavam a arrastar as cadeiras a
contra gosto interveio Gabriel: — Deixa que fiquem. Já não são umas meninas. Não
é necessário que as mande a sua habitação cada vez que há uma espécie de drama
familiar.
— Vê? — sussurrou Honoria dando uma cotovelada ao
Valerie enquanto voltavam a sentar — Te disse que era o melhor irmão maior do
mundo.
— Irei ver se posso encontrar à senhorita
Wickersham, senhor — disse a senhora Philpot — Possivelmente a tenha visto algum
dos outros criados.
— Obrigado — respondeu Gabriel.
Enquanto a governanta saía da habitação, o
marquês se reclinou em sua cadeira e entrelaçou suas mãos sobre sua volumosa
barriga com um melancólico suspiro.
— Lembrança que quando era um pouco mais jovem
que Gabriel, havia uma atrativa donzela...
— Theodore! — Sua mulher o olhou iradamente.
Ele se aproximou para lhe dar um tapinha na mão.
— Isso foi muito antes de te conhecer, querida.
Quando pus os olhos em ti não voltei a desviá-los. Só estava tentando dizer que
isso ocorre aos melhores homens. Não é nenhuma vergonha flertar com as criadas.
Gabriel se voltou para seu pai.
— Eu não estou flertando com a Samantha! Quero-a
e tenho intenção de me casar com ela.
Seus pais ficaram boquiabertos.
— Vou procurar o amoníaco? — sussurrou Eugenia —
Parece que mamãe vai deprimir se.
— Com uma plebéia? — perguntou Valerie
horrorizada — vais casar te com uma vulgar plebéia?
— Posso te assegurar que a senhorita Wickersham
não tem nada de vulgar — disse Gabriel.
— É o mais romântico que ouvi em minha vida! —
exclamou Honoria com seus olhos marrons resplandecentes — Posso te ver
cavalgando em seu cavalo branco para resgatá-la a de uma vida de pobreza.
Gabriel soprou.
— Se alguém resgatou a alguém aqui, foi ela.
— Meu filho — disse seu pai — não é necessário
que tome nenhuma decisão precipitada.
Ontem à noite se inteirou de que foste recuperar
a vista. Posso compreender que estivesse afligido pela emoção. Que te deixasse
arrastar aos braços dessa...
— Sim? — perguntou Gabriel com uma expressão
ameaçadora.
— Encantadora moça — concluiu seu pai alegremente
— Mas isso não significa que tenha que te precipitar a um matrimônio com umas
perspectivas tão inoportunas. Quando recuperar a vista e volte para Londres pode
lhe pôr um piso perto de sua casa para que seja sua amante se quiser.
A cara de Gabriel se obscureceu, mas antes que
pudesse responder a senhora Philpot voltou a entrar no comilão.
— Sinto muito, senhor, mas não há nem rastro dela
em nenhuma parte. Ninguém a viu.
Mas encontrei esta nota em sua habitação. — Sua
voz se converteu quase em um sussurro, fazendo que todos se perguntassem que
mais tinha encontrado — Sobre seu travesseiro.
— Lê-a — ordenou Gabriel procurando provas a
cadeira vazia mais próxima.
Enquanto se sentava, a senhora Philpot deu a nota
ao Beckwith.
O mordomo desdobrou a contra gosto o papel com
suas rechonchudas mãos tremendo um pouco.
— Querido lorde Sheffield — leu — sempre lhe
disse que chegaria um dia no qual já não me necessitaria. Embora saiba que é um
homem de honra, não espero que cumpra com as promessas feitas no calor do —
Beckwith vacilou, lançando ao Gabriel um olhar angustiado.
— Segue — disse Gabriel com seus olhos sombrios.
— Não espero que cumpra com as promessas feitas
no calor da paixão. Esses fogos ardem com muita intensidade, cegando inclusive a
quem deveria ver. Logo recuperará a vista e sua vida. Uma vida da que não posso
formar parte. Rogo-lhe que não me julgue com muita dureza.
Espero que em um canto de seu coração possa me
recordar com carinho. Sempre sua… Samantha.
Enquanto Beckwith dobrava a nota, a senhora
Philpot se aproximou mais a ele procurando sua manga com os dedos trementes. A
Honoria caíam as lágrimas pelas bochechas, e inclusive Eugenia teve que passar o
lenço pela ponta do nariz.
— Tinha razão — disse sua mãe com suavidade
deixando a taça de chá sobre a mesa — É uma moça muito especial.
Seu pai suspirou.
— Sinto muito, filho, mas sem dúvida alguma é o
melhor.
Sem dizer uma palavra, Gabriel se levantou e foi
para a porta movendo sua fortificação por diante.
— Aonde vai? — perguntou-lhe seu pai francamente
desconcertado.
Então se deu a volta para lhes olhar com a cara
tensa de determinação.
— Vou procurá-la, isso é o que vou fazer.
Seu pai intercambiou um olhar de preocupação com
sua mãe antes de fazer a pergunta que todos tinham em mente.
— E se não querer que a encontrem?
Samantha entrou no dormitório do apartamento de
cobertura da grande casa de acampo sem incomodar-se em fechar a porta detrás
dela.
Embora cheirasse a fechado e as sombras cobriam a
espaçosa habitação, não se atrevia a abrir as cortinas e abrir as janelas. O sol
da manhã só lhe faria mal nos olhos.
Apoiou a mala na cama deixando cair os ombros de
cansaço. Depois de arrastá-la ao longo de várias viagens de carros abarrotados
de gente, parecia que levava nela pedras em vez de alguns objetos de roupa
interior, um pacote de velhas cartas e um fino volume de poesia.
Desde não ter sido pelas cartas poderia havê-la
atirado ao canal de irrigação mais próximo em seu comprido passeio do povo. O
alegre gorjeio dos pássaros que aninhavam nas sebes que bordavam o caminho
parecia burlar-se dela.
Ainda levava a roupa com a que três dias antes
tinha saído do Fairchild Park ao amanhecer. A prega de sua saia estava coberta
de pó, e na jaqueta tinha uma mancha de leite que o filho de uma criada lhe
tinha cuspido em uma viagem especialmente movimentada do Hornsey ao South Mims.
Samantha sabia que deveria estar rindo-se dessas
coisas, mas um intumescimento misericordioso tinha descendido sobre sua alma.
Inclusive enquanto se perguntava se voltaria a
sentir algo alguma vez, teve que reconhecer que o intumescimento era preferível
à dor que lhe tinha esmigalhado o coração quando deixou ao Gabriel dormindo em
sua cama.
Sentou-se no tamborete diante da penteadeira.
Tinha deixado essa habitação sendo uma menina, mas quem a olhava das sombras do
espelho era uma mulher. Por sua expressão sombria ninguém teria pensado que seus
olhos podiam brilhar de felicidade ou que tinha covinhas nas bochechas ao
sorrir.
Doíam-lhe os braços de esgotamento enquanto os
levantava para tirá-las forquilhas do coque. Quando seu flácido cabelo caiu
sobre seus ombros piscou com os olhos sonolentos, uns olhos da cor do mar sob um
céu do verão.
Nas escadas soaram os passos de sua mãe, tão
enérgicos e familiares que Samantha sentiu um arrebatamento de nostalgia
inesperado pela época em que ela podia lhe aliviar qualquer dor, por intenso que
fora, com um forte abraço e uma taça de chá quente.
— Me parece — disse sua mãe enquanto subia pelas
escadas — que quando a uma dá permissão sua mãe para viajar ao estrangeiro com
uma amiga rica, ao menos poderia lhe enviar uma carta para que saiba que segue
viva e não se está apodrecendo em um sujo cárcere francês.
Tampouco deveria entrar em casa às escondidas
como os ladrões em vez de anunciar sua volta. Não me teria informado de que
estava em casa se sua irmã não...
Samantha se deu a volta no tamborete.
Sua mãe ficou na porta horrorizada com uma mão
sobre o coração.
— Meu deus, Cecily! O que tem feito com seu
precioso cabelo?
Capítulo 20
Querido lorde Sheffield,
Embora afirme que só é pó sob meus delicados pés, para mim é como pó de
estrelas em um céu noturno, sempre em meus sonhos, mas fora de meu
alcance...
— Não pôde desvanecer-se no ar. É impossível!
— Isso diria eu, senhor. Mas é exatamente o que
parece ter ocorrido. Quando seu carro chegou a Londres essa tarde se perdeu a
pista da senhorita Wickersham. Meus homens estiveram procurando durante mais de
dois meses e não puderam encontrar nem rastro dela. É como se não tivesse
existido nunca.
— Claro que existiu. — Gabriel fechou os olhos um
momento e recordou a Samantha em seus braços, mais real que algo que havia meio
doido em sua vida.
E se não tivéssemos toda uma vida? E se só
tivéssemos este momento?
Essa enigmática pergunta o tinha açoitado desde
que tinha sido o bastante estúpido para deixar que se fora de seus braços e de
sua cama.
Abriu os olhos para observar ao homem pequeno e
elegante que estava sentado ao outro lado da mesa. A névoa que havia neles
desaparecia um pouco mais cada dia. Em pouco tempo poderia sair ele mesmo a
procurar a Samantha. Mas até então não ficava mais remédio que confiar nesse
homem. Danville Steerforth era um dos melhores detetives do país. Ele e seus
companheiros com seus vistosos coletes vermelhos e suas jaquetas azuis eram
famosos tanto por sua habilidade como por sua discrição.
Ao homem não parecia lhe impressionar a cicatriz
de Gabriel. Provavelmente tinha visto coisas muito piores em seu trabalho.
— O registro da Chelsea porta por porta não
serviu que nada — lhe informou Steerforth retorcendo seu bigode de cor caramelo
— Está seguro de que não deixou nenhuma outra pista de sua procedência ou de
onde pôde ir?
Passando o dedo por um abridor de cartas com
manga de bronze, Gabriel negou com a cabeça.
— Registrei uma dúzia de vezes o baú que deixou
em sua habitação. Mas só encontrei umas quantas peças de vestuário
indescritíveis e um frasco de colônia de limão.
Não mencionou que ao abrir o armário descobriu
que tinha deixado seus presentes, que em realidade não tinha visto até esse
momento.
Enquanto tocava brandamente o delicado vestido de
musselina, a estola de cachemira e as sapatilhas rosas que só serviam para
dançar, ressonaram em sua mente os tristes acordes da Barbara Allen. Tampouco
revelou que a fragrância familiar de seu perfume tinha feito que se cambaleasse
de desejo.
— E suas cartas de referência? Apareceram?
— Temo-me que não. Parece que meu mordomo as
devolveu o mesmo dia que foi contratada.
Steerforth suspirou.
— É uma lástima. Inclusive um simples nome
poderia nos haver dado alguma pista.
Gabriel rastreou em sua memória. No fundo de sua
mente havia um detalhe insignificante que não podia recordar.
— Na primeira comida que compartilhamos mencionou
que tinha trabalhado com uma família. Os Caruthers? Os Carmichael? — Estalou os
dedos — Os Carstairs! Isso! Disse que tinha trabalhado durante dois anos como
governanta para lorde e lady Carstairs.
Steerforth ficou em pé sorrindo-lhe.
— Excelente, senhor! Organizarei uma entrevista
com a família imediatamente.
— Espere — disse Gabriel enquanto o homem
recolhia seu chapéu e sua fortificação.
Com sua vista um pouco melhor cada dia, não podia
suportar a idéia de ficar ali sentado enquanto outros procuravam a Samantha —
Possivelmente seja melhor que eu realize mesmo essa entrevista.
Se Steerforth estava decepcionado porque lhe
usurpassem o controle da investigação, dissimulou-o bem.
— Como queira. Se encontrar alguma pista que
possamos seguir, fique em contato comigo imediatamente.
— Pode contar com isso — lhe assegurou Gabriel.
Steerforth vacilou na porta dando voltas a seu
chapéu de feltro.
— Me perdoe se for inoportuno, lorde Sheffield,
mas nunca me há dito por que está tão desesperado por encontrar a essa mulher.
Rouboulhe enquanto esteve a seu serviço? Levou-se algo insubstituível?
— Sim, senhor Steerforth. — Gabriel esboçou um
triste sorriso enquanto olhava os olhos pormenorizados do homem — Meu coração.
Cecily Samantha March estava sentada no terraço
do Carstairs Hall tomando o chá com seu melhor amiga e aliada, Estelle, a única
filha de lorde e lady Carstairs. O quente sol de junho lhe acariciava a cara
enquanto uma brisa balsâmica lhe movia os curtos cachos de cor mel.
Embora levava dois meses dando-se azeite mineral
no cabelo, para desgosto de sua mãe não tinha conseguido livrar-se completamente
do tintura de henna. Decidindo que não podia suportar mais que Samantha
Wickersham a olhasse do espelho, Cecily acabou cortando-lhe em um arrebatamento
de ira. Estelle lhe tinha assegurado que de todos os modos o cabelo curto fazia
furor em Londres. Cecily pensava que lhe sentava bem, que o fazia parecer mais
amadurecida, não como a menina estúpida que tinha sido.
É obvio, sua mãe chorou ao ver o que tinha feito,
e também seu pai parecia que ia desfazer se em lágrimas. Mas nenhum dos dois
tinha tido valor para lhe arreganhar. Sua mãe ordenou a uma de quão criadas
recolhesse o cabelo e o jogasse ao fogo. Cecily se sentou e observou como se
queimava.
— Não começou sua família a perguntar-se por que
passas tanto tempo aqui? — perguntou Estelle agarrando um bolinho da bandeja que
havia sobre a mesa.
— Estou segura de que se alegram de livrar-se de
mim. Temo-me que agora mesmo não sou uma boa companhia.
— Tolices. Sempre foste uma companhia
maravilhosa. Até quando está triste e com o coração partido. — Estelle
lubrificou o bolinho com nata e o meteu na boca.
Ao menos quando estava com o Estelle, Cecily não
tinha que fingir que tudo ia bem. Não tinha que rir das piadas de seu irmão nem
mostrar interesse pelos trabalhos de sua irmã. Não tinha que tranqüilizar a sua
mãe lhe dizendo que estava bem lendo em sua habitação até as tantas ou evitar os
olhos desconcertados de seu pai. Sabia pelos olhares de preocupação que
intercambiavam que sua atuação não estava sendo muito convincente. Tinha
aperfeiçoado seus dotes dramáticos nas funções de teatro que ela e seus irmãos
representavam para seus pais quando eram pequenos, mas parecia que lhe tinham
abandonado o dia que deixou o papel de enfermeira de Gabriel.
Estelle lambeu um pouco de nata da esquina de sua
boca.
— Dá-me medo que a seus pais pareça estranho que
passemos tanto tempo juntas quando se supõe que passamos a metade da primavera
percorrendo a Itália com meus pais.
— Chsss! — Cecily deu um golpezinho ao Estelle
por debaixo da mesa para lhe recordar que lorde e lady Carstairs estavam
sentados ao outro lado das janelas arqueadas do salão desfrutando de seu chá.
Com seu agudo engenho, seus cachos escuros e seus
olhos saltitantes, Estelle era a única amiga em que Cecily podia ter crédulo
para levar a cabo um plano tão arriscado. Mas a discrição nunca tinha sido seu
forte.
— É uma sorte que voltasse para casa uns dias
antes que você e sua família — murmurou Cecily esperando que Estelle captasse a
indireta e também baixasse a voz.
Estelle se inclinou para diante.
— Não podíamos fazer outra coisa com esse
Napoleão ameaçando bloqueando toda a Inglaterra. Mamãe não queria que ficássemos
estancados na Itália e perdêssemos toda a temporada.
Dava-lhe medo que se fixasse em mim um conde
italiano, apaixonado, mas sem dinheiro, em lugar de um rechonchudo visconde
inglês que sempre se preocupará mais por seus cães de caça que por mim.
Cecily moveu a cabeça de um lado a outro.
— Isso faz que odeie mais a esse pequeno tirano.
E se sua família tivesse voltado para casa antes que eu? Meus pais se haveriam
posto frenéticos. Alegro-me de que nossas famílias não pertençam ao mesmo
círculo social. Se falassem de nossa viagem seria um desastre.
— Prometi enviar uma mensagem ao Fairchild Park
assim que puséssemos pé em chão inglês. Isso te teria dado tempo suficiente para
procurar uma nova desculpa.
— Como o que? — perguntou Cecily tomando um sorvo
de chá — Talvez poderia ter enviado uma nota a minha mãe: «Sinto-o muito, mamãe,
mas me fugi para oferecer meus serviços como enfermeira a um conde cego que
casualmente é um dos maiores uvas sem semente do mundo».
— Antigo uva sem semente — lhe recordou Estelle
arqueando uma sobrancelha — Não te prometeu que deixaria de seduzir mulheres e
de romper corações quando lhes conheceram?
— Isso disse. E se não tivesse sido tão estúpida
lhe teria acreditado. Mas em vez disso lhe desafiei a alistar-se na Marinha Real
para que pudesse demonstrar que era digno de meu amor.
— Moveu a cabeça enojada pela ingênua e quão
egoísta tinha sido — Se me tivesse fugido a Gretna Green com ele quando me pediu
isso não lhe teriam ferido, não teria perdido a vista.
— E você não teria ido nunca ao Fairchild Park.
— Quando ouvi os rumores de que estava vivendo
sozinho nessa casa como uma espécie de animal ferido pensei que poderia lhe
ajudar — disse Cecily observando a um par de perus reais que se pavoneavam pela
grama ondulada.
— Fez-o?
Salvou-lhe de responder um golpe estridente na
porta principal. Então olhou ao Estelle com o cenho franzido.
— Esperam seus pais a alguém?
— Só a ti. — Estelle piscou ao sol de meia tarde.
— É uma hora muito estranha para uma visita
surpresa, não?
Ambas levantaram a cabeça para o salão bem a
tempo para ouvir o mordomo entoar: — O conde do Sheffield.
Cecily ficou pálida. Embora seu primeiro impulso
foi esconder-se debaixo da mesa, provavelmente se teria ficado paralisada se
Estelle não a tivesse agarrado pela boneca e a tivesse levado detrás de um
*rododendro* que havia justo ao outro lado de uma das janelas.
— Que diabos está fazendo aqui? — sussurrou
Estelle.
Cecily moveu a cabeça freneticamente, sentindo-se
como se o coração fora a sair-se o do peito.
— Não sei!
Agacharam-se atrás do arbusto quase sem
atrever-se a respirar enquanto se faziam as apresentações e se intercambiavam os
cumpridos.
— Espero que perdoem esta intromissão. — Quando a
voz rouca e profunda de Gabriel saiu pela janela Cecily sentiu que seu corpo se
estremecia de desejo. Só tinha que fechar os olhos para que estivesse detrás
dela, em cima dela, dentro dela.
— Não seja ridículo! — arreganhou-lhe a mãe do
Estelle — Estamos encantados de conhecer um herói tão famoso. Todo Londres está
entusiasmado com a notícia de sua assombrosa recuperação. É certo que recuperou
totalmente a vista?
— Ainda vejo algumas sombras quando começa a
obscurecer, mas cada vez é mais suportável. Meu médico acredita que a minha
mente está custando um pouco adaptar-se aos progressos que têm feito meus olhos.
Cecily apertou seus olhos, incapaz de resistir a
tentação de rezar uma breve, mas fervente oração para dar graças ao céu.
— Mas não vim aqui hoje para falar de mim —
estava dizendo Gabriel — Esperava que pudessem me ajudar com uma questão
pessoal.
Estou procurando uma mulher que esteve
recentemente a meu serviço e faz tempo ao dele: a senhorita Samantha Wickersham.
— Está-te procurando a ti! — sussurrou Estelle
lhe dando ao Cecily uma cotovelada tão forte que lhe fez grunhir.
— Não — respondeu com tom sério — Está
procurando-a a ela. Não te lembra? Foi idéia tua que lhe déssemos uma carta de
referência de seus pais. Foi você quem falsificou a assinatura de seu pai.
— Mas caso que se tentava ficar em contato com
eles ainda estariam em Roma.
— Bom, pois não é assim.
— Samantha Wickersham? — estava dizendo lorde
Carstairs — Não recordo esse nome.
Era uma criada?
— Não exatamente — respondeu Gabriel — Segundo a
carta de referência que lhe proporcionou, foi a governanta de seus filhos.
Durante dois anos.
Lady Carstairs parecia estar mais desconcertada
ainda que seu marido.
— Não me lembro nem dela nem dessa carta. Isso
teria sido faz vários anos, mas estou segura de que ainda recordaríamos seu
nome.
— Seu emprego teria que ter sido bastante recente
— assinalou Gabriel com um tom cada vez mais cauteloso — A senhorita Wickersham
é uma moça, provavelmente menor de vinte e cinco anos.
— Isso é impossível. Nosso filho Edmund está em
Cambridge agora mesmo, e nossa filha… Um momento. Estelle, querida — disse sua
mãe para as janelas abertas — segue estando aí fora?
Estelle olhou ao Cecily horrorizada.
— Vai-te! — Cecily lhe deu um empurrão — antes de
que venham a te buscar.
Estelle saiu cambaleando-se de atrás do arbusto.
Alisou-se a musselina branca de sua saia e lançou um último olhar de pânico ao
Cecily antes de responder alegremente: — Sim, mamãe. Estou aqui.
Enquanto Estelle desaparecia na casa, Cecily
atravessou o arbusto e se sentou com as costas pega à parede de tijolos debaixo
da janela.
Fechou bem os olhos para resistir a tentação de
olhar ao Gabriel. Era uma tortura estar tão perto dele e de uma vez tão longe.
— Esta é nossa Estelle — estava dizendo lorde
Carstairs com uma inconfundível nota de orgulho em sua voz — Como pode ver,
deixou de necessitar uma governanta faz vários anos.
— Tem a idade perfeita para começar a encher a
creche com seus próprios bebês — acrescentou sua mulher com uma risada nervosa —
Quando lhe encontrarmos o marido perfeito, é obvio.
Reprimindo um grunhido, Cecily golpeou a parte
posterior de sua cabeça contra a parede.
Quando pensava que as coisas não podiam ir pior,
lady Carstairs estava tentando casar a sua melhor amiga com o único homem ao que
amaria em toda sua vida.
Enquanto Gabriel murmurava uma saudação tentou
não imaginar inclinando-se sobre a mão do Estelle, tentou não imaginar esses
hábeis lábios roçando sua pálida suavidade. A diferença do Cecily, Estelle não
estava acostumado a fazer frente ao sol sem luvas e chapéu.
— Onde está sua amiga? — perguntou lady Carstairs
— Não estavam as duas tomando o chá?
Cecily abriu os olhos de par em par. Se alguém
mencionava seu nome descobririam que era uma mentirosa e uma impostora.
— Não há nenhuma razão para que não tomemos todos
o chá com lorde Sheffield — propôs o pai do Estelle — por que não vais procurar
a…?
De repente ao Estelle deu um violento ataque de
tosse, e Cecily se desabou contra a parede aliviada. Depois de várias rondas de
murmúrios preocupados e tapinhas nas costas, Estelle conseguiu recuperar-se.
— Sinto-o muito! Devi-me engasgar com o bolinho.
— Com que bolinho? — perguntou Gabriel.
— Que comi antes — respondeu ela lhe desafiando a
contradizê-la com o tom frio de sua voz — E me temo que terá que perdoar a minha
amiga. É muito tímida. Foi correndo como um coelho quando ouviu que batiam na
porta.
— Está bem — lhe assegurou Gabriel — Em realidade
não tenho tempo para mais apresentações. E embora avaliação sua hospitalidade,
temo-me que tenho que declinar seu convite.
— Sentimos não ter podido lhe ajudar, Sheffield —
disse lorde Carstairs fazendo chiar sua cadeira ao levantar-se — Parece que foi
vítima de uma pessoa sem escrúpulos. Se ainda tiver essa carta falsificada em
seu poder, aconselho-lhe que a entregue às autoridades imediatamente.
Possivelmente possam encontrar a essa mulher e
pô-la em mãos da justiça.
— Não é necessário recorrer às autoridades. — A
determinação na voz de Gabriel fez que Cecily se estremecesse — Se estiver aí
fora em alguma parte, encontrarei-a.
Quando Estelle saiu da casa pouco depois de que
Gabriel partisse, Cecily estava sentada na colina que dava ao pequeno lago. Uma
pata se deslizava pela serena superfície do lago com sete patinhos de plumas
marrons e verdes detrás dela.
— Não me ocorreu que poderia me descobrir pelas
cartas de referência — disse enquanto Estelle se sentava na erva junto a ela
pondo sua saia como um sino a seu redor — Nem sequer as viu. — Olhou para
Estelle angustiada — Não compreendo por que segue me buscando a mim, a ela.
Pensava que assim que recuperasse a vista
voltaria para a vida que tinha antes de nos conhecer.
Cecily abraçou um joelho contra seu peito,
incapaz de reprimir mais a pergunta que se prometeu não fazer nunca.
— Como é?
— Devo confessar que é muito atrativo. Sempre
pensei que estava exagerando seus encantos, cegada pelo amor e todas essas
tolices, mas tenho que reconhecer que é um exemplar magnífico de masculinidade.
E adoro essa cicatriz! Dá-lhe um aura de mistério. — Estelle se estremeceu —
Parece uma espécie de pirata que poderia te levar sobre seu ombro e pôr em
perigo sua vida.
Cecily apartou a cara, mas não antes que Estelle
visse o rubor de suas bochechas.
— Cecily Samantha March, ele não é o único ao que
lhe ocultaste algo, verdade?
— Não sei o que quer dizer.
— Eu acredito que sim. É certo? fostes…? —
Olhando por cima de seu ombro, Estelle sussurrou — Amantes?
— Só uma noite — confessou Cecily.
— Só uma vez?
— Não. Só uma noite — repetiu Cecily pronunciando
cuidadosamente cada palavra.
Estelle ficou boquiaberta, horrorizada e
encantada de uma vez.
— Não posso acreditar que tenha feito isso. Com
ele! É muito liberal. A maioria das mulheres esperam a estar casadas antes de
ter um amante. — aproximou-se um pouco mais se abanando com a mão — Tenho que
sabê-lo. É tão hábil como parece?
Cecily fechou os olhos enquanto as habilidades de
Gabriel voltavam para sua memória e um intenso desejo lhe percorria as veias.
— Mais ainda.
— Minha mãe! — Estelle se tombou na erva com os
braços estendidos fingindo que se deprimia. Mas se incorporou em seguida e olhou
ao Cecily com expressão preocupada — meu Deus, não estará… grávida, verdade?
— Oxalá o estivesse! — confessou Cecily sem
pensá-lo — Não demonstra isso que sou uma pessoa terrível? Estaria disposta a
romper o coração de minha família, sofrer a censura da sociedade e arriscá-lo
tudo se pudesse ter um bocado dele para levá-lo sempre comigo. — Afundou a cara
no joelho, incapaz de suportar mais tempo o peso do olhar compassivo de sua
amiga.
Estelle lhe acariciou o cabelo.
— Ainda não é muito tarde. Por que não vais ver
lhe, explica-lhe a verdade e lhe pede perdão?
— Não poderia. — Levantou a cabeça e olhou ao
Estelle através de uma nuvem de lágrimas — Não compreende o que fiz? Esteve a
ponto de morrer por mim. Abandonei-lhe quando mais me necessitava. Logo, para
tentar expiar esses pecados, entrei em sua casa com enganos e joguei com suas
lembranças e seus afetos. —Lançou um violento soluço — Como poderia me perdoar
por isso? Como poderia me olhar sem ódio?
Enquanto Estelle a abraçava para que pudesse
chorar as lágrimas que tinha estado contendo durante dois meses, ao Cecily lhe
ocorreu outra terrível ideia. Agora que Gabriel sabia que Samantha lhe tinha
mentido, quanto tempo passaria antes que começasse a perguntar-se se a noite que
passou em seus braços tinha sido também uma mentira?
Capítulo 21
-
Querida Cecily,
Uma palavra de seus lábios e não me separarei de você...
O desconhecido caminhava pelas concorridas
ruas de Londres com uma expressão tão ameaçadora e umas pernadas tão enérgicas
que até os mendigos e os ladrões corriam para apartar-se de seu caminho. Não
parecia lhe importar o penetrante vento de outubro que açoitava a capa de seu
casaco de lã enquanto as frias gotas de chuva caíam da asa curvada de seu
chapéu.
Não era a rugosa cicatriz que lhe desfigurava a
cara o que fazia que os transeuntes abraçassem a seus filhos e se apartassem a
um lado.
Era a expressão de seus olhos. Seu olhar ardente
escrutinava todas as caras que passavam, provocando em todo mundo um calafrio.
A Gabriel não lhe escapava essa ironia. Por fim
podia ver, mas lhe seguiam negando a visão que mais desejava. Cada amanhecer,
por impressionantes que fossem suas rosas e seus dourados, só iluminava o escuro
caminho que tinha por diante. Cada pôr-do-sol predizia a larga e solitária noite
que lhe esperava.
Caminhava majestosamente entre as sombras,
consciente de que começava a obscurecer um pouco antes cada dia. O ano estava
envelhecendo, igual a ele. Muito em breve não seria a chuva a que cairia sobre
suas bochechas, a não ser a neve.
Apesar da generosa quantidade que Gabriel lhes
tinha devotado para seguir procurando a Samantha, Steerforth e seus homens se
deram por vencidos. Depois disso Gabriel começou a percorrer as ruas ele mesmo,
retornando a sua casa do Grosvenor Square de noite só quando estava muito
esgotado para dar outro passo. Tinha visitado todos os hospitais de Londres, mas
ninguém recordava a uma antiga governanta chamada Wickersham que tinha atendido
aos soldados e os marinheiros feridos.
Só havia algo que temia mais que não encontrar a
Samantha. E se não era capaz de reconhecê-la?
O primeiro mês de sua busca arrastou ao Beckwith
com ele. O tímido mordomo o tinha passado tão mau encolhido na esquina de um
sórdido botequim como interrogando aos vendedores ambulantes do Covent Garden.
Finalmente Gabriel teve piedade dele e o mandou de volta ao Fairchild Park.
Agora, como os homens que tinha contratado para
procurá-la, estava obrigado a confiar em descrições que variavam dependendo da
quem perguntasse. Quão único sabia era que estava procurando uma mulher magra de
estatura média com o cabelo castanho, uns rasgos delicados e uns olhos
normalmente talheres por uns óculos muito pouco atrativos. Alguns criados
insistiam em que eram verdes, enquanto que outros juravam que eram marrons. Só
Honoria acreditava que eram azuis.
Sabia que era uma loucura, mas Gabriel tinha que
pensar que se encontrava cara a cara com a Samantha algo em sua alma a
reconheceria.
Desceu por uma rua mau iluminada que conduzia aos
moles. Cada vez que explorava os bairros baixos do Whitechapel ou Billingsgate
lhe dava mais medo encontrar a Samantha que não encontrá-la. A idéia de que
pudesse estar vagando por um beco escuro grávida lhe voltava louco.
Teria-lhe gostado de começar a derrubar portas e
agarrar às pessoas pelo pescoço até que alguém pudesse demonstrar que não era um
produto de sua imaginação.
Sua determinação para encontrá-la não se
cambaleou, mas as dúvidas que tinha desde sua visita a casa dos Carstairs
seguiam lhe atormentando. Lembrava-se da tarde chuvosa que lhe tinha lido Speed
the Plough. Tinha representado todos os papéis com uma grande convicção. E se
também tinha representado o papel de mulher apaixonada? Mas se tinha sido assim,
como podia haver-se entregue a ele tão generosamente? Como podia lhe haver dado
sua inocência sem pedir nada em troca?
Enquanto cruzava um beco escuro chegou ao nariz
uma fragrância evasiva. Parando-se em seco, fechou os olhos e respirou
profundamente, abraçando a escuridão em vez de fugir dela. Ali estava outra vez
esse aroma inconfundível a limão sobre a mescla de aromas das salsichas
queimadas e a cerveja derramada.
Abrindo os olhos, escrutinou as figuras sombrias
que havia a seu redor. Uma mulher com uma capa acabava de passar por diante dele
ao outro lado do beco. Através da chuva poderia ter jurado que viu uma mecha de
cabelo castanho avermelhado saindo de seu capuz.
Correndo detrás dela, Gabriel a agarrou pelo
cotovelo e lhe obrigou a dá-la volta. Quando lhe caiu o capuz para trás viu um
sorriso desdentado e um par de seios flácidos que ameaçavam saindo-se o de seu
amplo decote. Gabriel retrocedeu ao notar o forte aroma de genebra de seu
fôlego.
— Né, não é necessário ser tão brusco com uma
dama. A não ser que goste dessa maneira. — Bateu as asas suas escassas pestanas
com um gesto grotesco — Por uns quantos xelins mais poderia estar disposta a
averiguá-lo.
Gabriel baixou a mão sem poder resistir o impulso
de limpar-lhe em seu casaco.
— Me perdoe, senhora. Confundi-a com outra
pessoa.
— Não tenha tanta pressa! — disse ela enquanto
ele se dava a volta e começava a afastar-se rapidamente, tropeçando-se com um
*deshollinador* mal-humorado em seu intento de escapar — A um tipo tão bonito
como você poderia fazer-lhe grátis. Sei que não tenho muitos dentes, mas alguns
cavalheiros dizem que assim é mais doce.
Cansado até a alma, Gabriel atravessou as sombras
do beco decidido a procurar refúgio na carruagem que tinha deixado estacionado à
volta da esquina.
Levantando o pescoço do casaco para proteger-se
de uma fria rajada de vento e chuva, cruzou a concorrida rua esquivando um carro
cheio de belezas sorridentes e um faroleiro de cara tinta que ia correndo de uma
luz a outra, acendendo o azeite com um breve beijo de sua tocha.
Gabriel não se teria fixado na andrajosa figura
encolhida na calçada debaixo de uma dessas luzes se não tivesse ouvido dizer ao
homem: — Uma esmola, por favor! Meio centavo para ajudar aos que não podem
valer-se por si mesmos!
— Por que não vai ao asilo e ajuda a todos? —
grunhiu um cavalheiro passando por cima dele.
Sem perder seu alegre sorriso, o homem aproximou
seu pires a uma mulher de nariz afiado a que seguiam uma donzela, um criado e um
pajem africano carregado com um montão de pacotes.
— Poderia me dar meio centavo para um prato
quente de sopa, senhora?
— Não necessita um prato quente de sopa. O que
precisa é um trabalho — lhe informou apartando-se dele — Assim não teria tempo
de acossar aos cristãos decentes.
Movendo a cabeça de um lado a outro, Gabriel
tirou um soberano de seu bolso e o jogou ao pires do homem ao passar.
— Obrigado, tenente.
Esse tom suave e culto fez que Gabriel se
detivesse e se desse a volta.
Quando o homem levantou a mão em uma saudação foi
impossível não fixar-se em seu tremor incontrolável e no brilho de inteligência
em seus olhos marrons claros.
— Martin Worth, senhor. Servimos juntos a bordo
do Victory. Provavelmente não se lembrará de mim. Só era um guarda marinho.
Ao olhar melhor Gabriel se deu conta de que o que
pareciam farrapos era em realidade um uniforme naval feito farrapos.
Descolorida-a jaqueta azul caía pendurando sobre um peito quase esquelético. As
sujas calças brancas estavam recolhidas sobre as pernas do Worth, ou o que
ficava delas. Já não necessitava nem meias três-quartos nem botas.
Enquanto Gabriel levantava devagar a mão para
devolver a saudação, uma tosse seca que saiu do peito do Worth esteve a ponto de
lhe dobrar. Era evidente que a umidade lhe tinha metido já nos pulmões. Não
sobreviveria ao próximo inverno.
-
Alguns homens não tornaram ainda
desta guerra. E alguns não voltarão nunca. Outros perderam os braços e
as pernas. Estão mendigando nas sarjetas com seus uniformes e seu
orgulho feito farrapos. Insultam-lhes, pisoteiam-lhes, e a única
esperança que fica é que um desconhecido com um pingo de caridade cristã
em sua alma lhes jogue uma moeda em seus pires.
Enquanto essa voz ressonava em sua memória,
Gabriel moveu a cabeça sem poder acreditar-lhe tinha estado procurando a
Samantha durante meses, mas foi ali, na esquina de uma rua qualquer, olhando a
um desconhecido aos olhos, onde por fim a encontrou.
— Tem razão, guarda marinha Worth. Não me
lembrava de você — confessou tirando o casaco e ajoelhando-se para ficar o sobre
seus esquálidos ombros — Mas agora sim.
Worth lhe olhou totalmente desconcertado enquanto
ele fazia gestos ao outro lado da rua e lançava um agudo assobio para que o
chofer aproximasse a carruagem.
— Não posso acreditar que me tenha convencido
para vir aqui — sussurrou Cecily enquanto ela e Estelle desciam pelas polidas
escadas que conduziam ao concorrido salão de baile da mansão do Mayfair de lady
Apsley — Se em nossa paróquia não houvesse um novo ajudante não teria permitido
que arrastasse a Londres.
— Solteiro? — perguntou Estelle.
— Temo-me que sim. Embora se minha mãe tem algo
que dizer ao respeito não será por muito tempo.
— Por seu tom deduzo que não te parece um bom
partido.
— Ao contrário. Tem tudo o que minha família
acredita que deveria desejar em um marido. É aborrecido, impassível, aficionado
a dar largas dissertações sobre as maravilhas de criar ovelhas de cara negra e
curar salsichas. Adorariam que passasse o resto de meus dias cerzindo suas meias
três-quartos e criando a seus rechonchudos filhos — suspirou — Possivelmente
deveria deixar que me cortejasse. Não mereço nada mais.
Nem sequer as luvas que levava Cecily até o
cotovelo puderam suavizar o impacto das unhas do Estelle ao cravar-se em seu
braço.
— Nem te ocorra pensar algo assim!
— Por que não? Como preferiria que passasse o que
fica de vida? Chorando sobre seu ombro? Sonhando com um homem que não posso ter?
— Não posso predizer como vais passar o resto de
sua vida — disse Estelle enquanto chegavam ao pé das escadas e começavam a
abrirse passo entre os convidados — mas sei como vais passar esta noite.
Sorrindo. Saudando. Dançando. E conversando com jovens a quem não importa nada
as ovelhas ou as salsichas curadas.
— E o que estamos celebrando hoje? Ganhou o
cavalo de lorde Apsley outra carreira no Newmarket? — Cecily sabia tão bem como
Estelle que os anfitriões mais famosos de Londres aproveitavam qualquer desculpa
para animar os compridos e aborrecidos meses entre uma temporada e outra.
Estelle se encolheu de ombros.
— Quão único sei é que tem algo que ver com que
Napoleão siga ameaçando nos bloqueando. Lady Apsley decidiu organizar um baile
em honra de alguns dos oficiais que embarcam amanhã para nos salvar dos horrores
de uma vida sem encaixe belga e figos turcos. Por que não considera esta noite
um sacrifício para apoiar uma causa tão nobre?
— Te esqueceu — disse Cecily alegremente para
ocultar a repentina dor de seu coração — que eu já cumpri com o rei e com a
pátria.
— É verdade. — Estelle suspirou com tristeza — É
uma garota com sorte. Olhe! — exclamou ao ver um criado de libre entre a
multidão com uma bandeja de prata cheia de taças de ponche — Como ainda não se
fixou em nós nenhum cavalheiro, suponho que teremos que ir procurar nosso
ponche. Espera aqui. Agora volto.
Cecily conteve um protesto enquanto Estelle
desaparecia entre a multidão com a cauda de seu vestido branco de musselina
resplandecendo detrás dela.
Logo olhou ao redor do abarrotado salão de baile
com um sorriso forçado em seus lábios.
Estelle tinha insistido em que ficasse um laço a
jogo com seu vestido de cor pêssego entre seus cachos sedosos.
Embora o baile não tivesse começado ainda, um
quarteto de corda estava ensaiando ao fundo do salão. Quando um jovem soldado
acabava de fixar-se no Cecily, um violinista começou a tocar as tristes notas da
Barbara Allen.
Cecily fechou os olhos, recordando com toda
claridade outro salão de baile, outro homem.
Quando os abriu o jovem soldado se dirigia para
ela entre a multidão. Então se deu a volta pensando só em escapar.
Tinha sido um engano deixar que Estelle a
convencesse para ir ali. Olhou a seu redor, mas não viu sua amiga por nenhuma
parte. Teria que procurar sua carruagem e lhe pedir ao chofer que a levasse a
casa dos Carstairs imediatamente. Logo poderia voltar a procurar o Estelle.
Ao ver por cima de seu ombro que o soldado ainda
a perseguia, foi correndo para as escadas e pisou a alguém sem dar-se conta.
— Tome cuidado, jovenzinha! — disse uma senhora
maior franzindo o cenho.
— Sinto-o — murmurou empurrando ao passar a um
homem rechonchudo com o nariz tinto.
Por fim conseguiu sair da multidão, tremendo
quase de alivio ao encontrar-se ao pé das escadas. Só uns passos mais e seria
livre.
Sentindo-se já como se lhe tivessem tirado um
peso de cima, ao olhar por volta do alto das escadas se encontrou olhando
diretamente a uns olhos verdes como a espuma do mar.
Capítulo 22
-
Querido Gabriel,
(Já está! Hei-o dito! Espero que esteja satisfeito!)
Gabriel Fairchild estava no alto das escadas
com sua uniforme de ornamento de oficial da Marinha Real. Levava uma levita azul
escura com botões de bronze e um cós branco ao redor das lapelas. Um singelo
laço azul tinha substituído a seu lenço de volantes. Seu colete, sua camisa e
suas calças eram de um branco deslumbrante, enquanto que um par de impecáveis
expulsa negras rodeavam suas panturrilhas. Seguia levando o cabelo comprido
recolhido em um acréscimo com uma cinta de couro.
Sua chegada foi recebida com uma quebra de onda
de murmúrios e olhares de admiração.
Como Estelle havia predito, a cicatriz lhe dava
um toque de mistério e o fazia parecer ainda mais uma figura heróica. Só Cecily
sabia até que ponto era um herói. Não estaria ao pé dessas escadas se não
tivesse arriscado sua vida para salvar a dela.
Seu coração se cambaleou ao lhe ver assim.
Esperava que continuasse com a vida frívola que tinha antes que se conhecessem
na festa de lady Langley. Mas esse Gabriel era completamente diferente: mais
sombrio, mas de algum modo mais irresistível.
Uma parte dela quase queria que a reconhecesse
como Samantha em lugar do Cecily.
Preferia ver ódio em seus olhos a que a olhasse
como se tivesse menos importância que uma desconhecida.
Ficou paralisada enquanto ele começava a baixar
as escadas. Mas seus elegantes passos lhe levaram justo por diante dela como se
houvesse tornado a ficar cego outra vez.
Abriu os olhos de par em par. Não havia nenhuma
dúvida. Acabavam-lhe de atravessar o coração de uma estocada. Olhou para baixo a
seu vestido, surpreendida ao comprovar que não estava manchado de sangue.
— Desculpe, senhorita.
Ao dá-la volta Cecily se encontrou olhando a cara
ansiosa do jovem soldado.
— Sei que não nos apresentaram ainda devidamente,
mas me estava perguntando se gostaria de dançar comigo.
Cecily podia ver o Gabriel pela extremidade do
olho saudando sua anfitriã, sorrindo enquanto aproximava sua mão a seus lábios.
Uma perigosa sensação de desafio lhe percorreu as veias.
— Será um prazer — lhe informou ao jovem pondo
sua mão enluvada sobre a dele.
Felizmente, as enérgicas notas da dança campestre
faziam que fora impossível falar.
Inclusive enquanto se uniam a alegre penetra de
bailarinos era plenamente consciente de cada passo que dava Gabriel, cada mão
que beijava, cada olhar ávido que lhe lançavam as mulheres mais atrevidas. Não
era difícil seguir seu caminho. Tirava-lhe a cabeça e os ombros à maioria dos
homens da sala.
Em todo esse tempo não pareceu lhe dirigir nenhum
olhar… nenhum pensamento.
Perdeu-lhe de vista justo quando os músicos
começavam a tocar as primeiras notas de um minué passado de moda. Depois de lhes
guiar através de uma intrincada série de figuras, a música trocou de tom
assinalando uma mudança de casal. Encantada de livrar do jovem soldado de mãos
suarentas, Cecily se voltou garbosamente.
De repente se encontrou cara a cara com o
Gabriel. Tragou saliva, esperando em certo modo que se desse a volta e a
deixasse plantada diante de todo mundo.
— Senhorita March — murmurou demonstrando que era
mais consciente de sua presença do que tinha fingido.
— Lorde Sheffield — respondeu ela enquanto
giravam com cautela.
Inclusive através da luva podia sentir o calor da
mão que apertava a sua. Tentou não recordar com quanta ternura a havia meio
doido fazia tempo, o surpreendente prazer que lhe tinham dado suas mãos.
Seu maior temor era que pudesse reconhecer sua
voz. Para modular os tons severos de Samantha Wickersham se inspirou em uma tia
solteira. Mas sabia que sua voz natural lhe tinha escapado em mais de uma
ocasião, como quando gritou seu nome extasiada.
— É agradável lhe ver com tão bom aspecto — disse
adotando deliberadamente uma cadência velada. Não lhe resultou difícil, porque
se sentia como se se estivesse afogando em seu intenso aroma masculino — Ouvi
rumores sobre a milagrosa recuperação de sua vista.
Alegra-me ver que eram certos.
Ele a observou com os olhos encapotados.
— Pode que seja o destino o que nos tenha reunido
esta noite. Nunca tive a oportunidade de lhe dar as obrigado.
— Por que?
— Por vir a me visitar hospital quando estava
ferido.
Cecily sentiu que lhe cambaleava o coração
enquanto ele dava outra volta ao estoque.
Pela primeira vez se compadecia dos franceses.
Era melhor não lhe ter como inimigo.
Inclinando seu rosto, lançou-lhe um sorriso
deslumbrante.
— Não tem que me dar as obrigado. Só estava
cumprindo com meu dever cristão.
Seus olhos se escureceram. Parecia que por fim
tinha conseguido que reagisse de algum modo. Mas seu triunfo foi efêmero. Antes
que ele pudesse responder os músicos terminaram sua canção. A última nota do
minué ficou flutuando no ar entre eles.
Gabriel se inclinou sobre sua mão, lhe roçando os
nódulos com seus lábios em um beijo superficial.
— Foi um prazer voltar a vê-la, senhorita March,
embora só seja para recordar o que pouco a conhecia realmente.
Enquanto o quarteto começava a tocar uma valsa
austríaca, outros bailarinos começaram a abandonar a pista para conversar e
tomar um refrigério. Nada como uma valsa para limpar rapidamente um salão de
baile. Ninguém queria que as pessoas suspeitassem que sabia os passos desse
baile tão escandaloso.
Enquanto Gabriel ficava direito Cecily teve que
vencer um arrebatamento de pânico. Em uns segundos lhe daria as costas e sairia
de sua vida para sempre. Já tinham atraído vários olhares de curiosidade.
Estelle estava lhes observando do outro lado do salão com a cara quase tão
branca como seu vestido.
Que mais podia perder? pensou Cecily. Seu bom
nome? Sua reputação? Embora a sociedade não soubesse, estava já perdida para
qualquer outro homem.
Antes que Gabriel pudesse afastar-se dela pôs a
mão sobre seu braço.
— Não lhe hão dito alguma vez que é de má
educação que um cavalheiro abandone a uma dama que quer dançar?
Ele a olhou com uma expressão zombadora e
cautelosa de uma vez.
— Que não se diga que Gabriel Fairchild negou
algo a uma dama.
Com essas palavras familiares deslizou um braço
ao redor de sua cintura e a atraiu para ele. Enquanto começavam a dançar Cecily
fechou os olhos, reconhecendo nesse momento que estava disposta a correr
qualquer risco, a pagar qualquer preço, por estar de novo em seus braços.
— Devo confessar que me surpreendeu encontrá-la
aqui esta noite — disse Gabriel enquanto giravam pela pista deserta movendo seus
corpos com um ritmo perfeito — Pensava que a estas alturas se teria casado com
um latifundiário ou um fazendeiro. Sei que aprecia a respeitabilidade em um
homem por cima de tudo.
Lançou-lhe um sorriso com uma pequena covinha.
— Como você apreciava em uma mulher que fora
fácil de seduzir?
— Essa é uma qualidade que sem dúvida alguma você
não há possuído nunca — murmurou olhando por cima de sua cabeça.
— A diferença das mulheres que estão comendo-lhe
com os olhos esta noite. Quer que me à parte para que uma delas ocupe meu lugar
em seus braços?
— Agradeço sua generosidade, mas me temo que não
tenho tempo para essas frivolidades. Amanhã pela tarde embarco no Defiance.
Cecily se tropeçou com seus próprios pés. Se ele
não a tivesse agarrado com força poderia haver-se cansado. Fazendo um esforço
para seguir movendo os pés ao ritmo da música, olhou-lhe sem poder acreditar-lhe
— Vai retornar ao mar? Perdeu o julgamento?
— Sua inquietação é comovedora, senhorita March,
mas chega com um pouco de atraso.
Não é necessário que sua cabecinha se preocupe
com meu destino.
— Mas a última vez que se foi quase não volta!
Esteve a ponto de morrer! Custou-lhe a vista, a saúde...
— Sou perfeitamente consciente do que me custou —
disse Gabriel em voz baixa.
Enquanto observava seu rosto desapareceu de seus
olhos o último rastro de brincadeira.
Cecily queria tocá-lo desesperadamente, lhe
rodear a bochecha com sua mão. Mas as promessas e os sonhos quebrados faziam que
a distância que havia entre eles fora instransponível.
Baixou a vista a sua lapela.
— Por que se sente obrigado a representar de novo
o papel de herói? Depois de ter estado a ponto de sacrificar sua vida pelo rei e
pela pátria não acredito que tenha que demonstrar nada mais.
— Pode que a você não, mas a outra pessoa sim.
— Ah! Deveria ter imaginado que havia uma mulher
implicada. — Embora sabia que não podia esperar que passasse o resto de sua vida
suspirando por uma mulher que não tinha existido nunca, sentiu uma profunda
pontada de ciúmes em seu estômago. Era angustiante imaginar em braços de outra
mulher, na cama de outra mulher, fazendo o que tinha feito a ela.
— Sempre esteve disposto a sacrificá-lo tudo por
amor, verdade?
Quando cessou a música ficaram parados em meio da
pista de baile. Cecily podia ver as olhadas de esguelha e ouvir os murmúrios
curiosos.
Esta vez só havia compaixão no olhar de Gabriel.
— Nem sequer sabia o que era o amor até que
conheci e perdi a Samantha. Me perdoe por falar com tanta brutalidade, senhorita
March,
mas você não lhe chega nem à sola dos sapatos.
Depois de lhe fazer uma breve reverencia se deu a
volta e foi para as escadas enquanto todo mundo lhe olhava.
Cecily ficou ali um comprido momento antes de
sussurrar: — Não. Suponho que não.
Gabriel entrou em sua casa de Londres,
alegrando-se de que os serventes estivessem já na cama, e se dirigiu ao salão.
Um dos criados tinha deixado a chaminé acesa para diminuir um pouco o frio de
novembro.
Tirando o casaco úmido, Gabriel se serviu um
generoso jorro de uísque da garrafa de cristal do aparador. Enquanto o licor
ardente descia por sua garganta se lembrou de outra noite escura em que bebeu
muito uísque e pensou em acabar com sua vida. Essa noite Samantha lhe tirou da
escuridão como um anjo, lhe dando uma razão e vontade para viver. Foi a primeira
vez que provou seus lábios e estreitou seu quente corpo contra o seu.
Bebeu o resto do uísque de um só gole. Um dragão
esculpido lhe sorria do pedestal de uma mesa de cristal. A estadia tinha sido
decorada ao estilo chinês, mas essa noite os enforcamentos de seda carmesim, os
móveis laqueados e os pagodes em miniatura pareciam mais ridículas que exóticas.
Não queria reconhecer que ver de novo ao Cecily
podia lhe haver posto de tão mau humor. Pensava que era imune a seus encantos.
Mas ao vê-la ali ao pé das escadas só e perdida como uma menina sentiu uma
sacudida inesperada.
Estava mais magra do que recordava. Ao princípio
lhe surpreendeu seu cabelo curto, mas de um modo estranho lhe sentava bem.
Dava-lhe um toque amadurecido a sua beleza e fazia que seu elegante pescoço
parecesse mais largo e seus luminosos olhos azuis maiores. A inexplicável
tristeza que tinha vislumbrado em suas profundidades era o que mais lhe tinha
impressionado.
Gabriel se serviu outra taça de uísque.
Provavelmente tinha sido um estúpido ao pensar que não lhe afetaria voltar a
vê-la. No mar tinha passado um montão de noites só com sua lembrança e suas
promessas escritas para lhe reconfortar. Promessas que essa noite tinha
destruído com um comentário sarcástico e um sorriso zombador.
Passou-se uma mão pelo cabelo. O uísque só estava
avivando a febre que corria por suas veias. Antes teria procurado alívio para
essa febre nos braços de uma cortesã ou uma bailarina.
Agora o único que tinha para consolar-se eram os
fantasmas das duas mulheres às que tinha amado.
De repente soou na porta principal um golpe que
lhe sobressaltou.
— Quem diabos será a estas horas? — murmurou
enquanto ia para a entrada.
Ao abrir a porta viu ali a uma mulher com uma
capa com capuz. Por um enganoso instante a esperança pulsou com força em seu
coração.
Então se tirou o capuz, revelando uns cachos
curtos de cor mel e um par de precavidos olhos azuis.
Procurou na rua detrás dela, mas não havia
nenhuma carruagem. Era como se tivesse surto de um nada em meio da névoa.
Gabriel sentiu em seu pulso uma advertência.
Deveria jogá-la e fechar a porta em sua preciosa cara. Mas o diabo que tinha
dentro lhe incitou a apoiar-se no marco da porta, cruzar-se de braços e olhá-la
de cima abaixo com insolência.
— Boa noite, senhorita March — disse com voz
cansada — veio para outro baile?
Olhou-lhe com uma expressão cautelosa e
esperançada de uma vez.
— Estava-me perguntando se poderia falar um
momento com você.
Gabriel se apartou. Enquanto passava a seu lado
conteve o fôlego, tentando deliberadamente não inalar o aroma floral de seu
cabelo e de sua pele. Acompanhou-a ao salão recordando todas as vezes que tinha
sonhado estando sozinho com ela; um sonho que se feito realidade muito tarde.
— Quer me dar sua capa? — perguntou tentando não
fixar-se no bem que lhe sentava o veludo verde esmeralda ao brilho aveludado de
sua pele.
Seus finos dedos jogaram com a cinta de seda de
seu pescoço.
— Não, obrigado. Tenho um pouco de frio. —
sentou-se no bordo de uma cadeira de seda a China olhando nervosamente um par de
dragões de ferro fundido para a chaminé.
— Não se preocupe. Não remoem — lhe assegurou
Gabriel.
— É um grande alívio. — Olhou ao redor da
habitação observando sua exuberante decadência — Por um momento pensei que
estava em um fumadeiro de ópio.
— Tenho muitos vícios, mas esse não é um deles.
Gosta de beber algo?
Ela se tirou as luvas e cruzou as mãos sobre seu
regaço.
— Sim, obrigado.
— Temo-me que aqui só tenho uísque. Se quer posso
despertar a um dos criados para que traga um pouco de sherry.
— Não! — Tentou suavizar seu arrebatamento de
pânico com um trêmulo sorriso — Não é necessário que lhes incomode. Um uísque
estará bem.
Gabriel serviu uma taça para cada um e observou
seu rosto atentamente enquanto tomava o primeiro sorvo. Seus olhos começaram a
umedecer-se e tossiu um pouco. Como tinha suspeitado, provavelmente era a
primeira vez que o tinha provado. Esperava que deixasse a taça a um lado
educadamente, mas a aproximou de novo a seus lábios e bebeu o resto do uísque de
um só gole.
Ele abriu bem os olhos. Fosse o que fosse o que
tinha vindo a lhe dizer, parecia que exigia uma boa dose de valor.
— Quer outra taça ou lhe trago a garrafa inteira?
Ela rechaçou sua oferta. O licor tinha
intensificado a cor de suas bochechas e o perigoso brilho de seus olhos.
— Não, obrigado. Deveria ser suficiente.
Gabriel se sentou no extremo do largo divã,
apoiou os cotovelos sobre os joelhos e removeu o uísque em sua taça. Não estava
de humor para intercambiar brincadeiras e comentários intrascendentes.
Depois de um incômodo momento de silêncio Cecily
disse: — Sou consciente de que pode encontrar minha visita muito pouco
convencional, mas tinha que lhe ver antes que embarcasse amanhã.
— A que vem tanta urgência? Ao longo deste ano
podia me haver visto em qualquer momento simplesmente passando pelo Fairchild
Park.
Ela baixou a vista brincando com suas luvas.
— Não estava segura de como seria recebida. Não
poderia lhe haver culpado se me tivesse jogado aos cães.
— Não seja ridícula. Teria sido muito mais eficaz
ordenar a meu guarda que lhe disparasse.
Olhou-lhe de esguelha para ver se estava
brincando. Gabriel nem sequer piscou.
Cecily respirou profundamente.
— Vim aqui esta noite para lhe dizer que eu
gostaria de aceitar sua proposição.
— Desculpe? — inclinou-se para diante pensando
que não tinha ouvido bem.
— Faz tempo me pediu que me convertesse em sua
esposa. — Levantou o queixo para sustentar seu olhar — Eu gostaria de aceitar
essa oferta.
Ele a olhou durante um minuto sem poder
acreditar-lhe e logo pôs-se a rir. As violentas gargalhadas que sacudiam todo
seu corpo lhe obrigaram a levantar-se e apoiar-se na chaminé para recuperar o
fôlego. Não se tinha rido assim desde que Samantha tinha desaparecido de sua
vida.
— Terá que me perdoar, senhorita March — disse
secando-os olhos — Me tinha esquecido que tinha um senso de humor tão perverso.
Ela se levantou para lhe fazer frente.
— Não estava falando em brincadeira.
Gabriel ficou sério de repente e deixou sua taça
de uísque sobre a chaminé.
— Bom, pois é uma lástima, porque pensava que
tinha deixado claro que já não tem nenhum direito sobre meu coração.
— Acredito que suas palavras exatas foram: «Nem
sequer sabia o que era o amor até que conheci e perdi a Samantha».
Ele estreitou os olhos tentando odiá-la.
Ela começou a passear-se de um lado a outro,
arrastando a prega de sua capa pelo tapete oriental.
— Não há nada que nos impeça de nos casar esta
noite. Podemos nos fugir a Gretna Green como me pediu faz tempo.
Gabriel lhe deu as costas e olhou as chamas da
chaminé, incapaz de suportar mais a visão de seu rosto adorável e traiçoeira.
Então lhe envolveu seu aroma floral, o mesmo que
tinha perfumado as cartas que tinha levado junto a seu coração durante esses
compridos e solitários meses no mar. Logo sentiu que sua mão lhe roçava a manga.
— Antes me queria — disse ela em voz baixa — Pode
afirmar que já não me quer?
Ele se deu a volta para olhá-la.
— Claro que a quero, mas não como esposa.
Ela se afastou um pouco dele, mas Gabriel a
seguiu e a fez retroceder para o centro da habitação um passo cada vez.
— Temo-me que já não necessito uma esposa,
senhorita March, mas estaria disposto a convertê-la em minha amante. Poderia
instalá-la em um bonito alojamento perto daqui e desfrutar em sua cama quando
meu navio chegue a porto. — Gabriel sabia que estava sendo injusto, mas não
podia deter-se. Toda a amargura que tinha acumulado em seu coração desde o
Trafalgar estava fluindo em um virulento arrebatamento — Não deve preocupar-se
com suas necessidades materiais.
Posso ser um homem muito generoso, sobre tudo se
me mantêm satisfeito. Tampouco deve sentir-se culpado por aceitar minha
largueza.
Posso lhe assegurar que ganhará todas as
quinquilharias que queira, todos os pendentes de diamantes e os colares de
rubis, ou em suas costas — baixou seu olhar a seus lábios trementes — ou em seus
joelhos.
Gabriel se inclinou sobre ela esperando que lhe
desse uma bofetada na bochecha, acusasse-lhe de ser um bastardo e se fora
correndo para a porta.
Mas em vez disso levantou a mão e se desatou a
cinta do pescoço, fazendo que a capa se deslizasse por seus ombros e caísse ao
chão.
Capítulo 23
-
Querida Cecily,
Não estarei satisfeito até que se encontre em meus braços para sempre...
Cecily estava diante dele frente à luz do fogo.
Só levava uma regata de seda, umas meias com ligas, umas sapatilhas de cor
pêssego atadas com laços ao redor de seus finos tornozelos e uma expressão
desafiante. Estava deliciosa, superando algo que pudesse ter imaginado com seus
quadris redondos, sua esbelta cintura e seus seios firmes. A delicada regata era
tão fina que podia ter sido tecida por mariposas. A sombra das pontas de seus
seios e a junta de suas coxas fez que a boca ficasse seca e seu corpo ficasse
tenso.
Rodeou-a devagar observando o elegante arco de
sua panturrilha, a suave curva de suas nádegas.
Enquanto voltava a ficar diante dela se olharam
diretamente aos olhos.
— Embora as sapatilhas são preciosas, devo dizer
que seu traje nupcial é um pouco ligeiro.
— Possivelmente para uma noiva — replicou tão
altiva como uma rainha apesar da escassez de sua roupa — mas não para uma
amante.
Gabriel moveu a cabeça de um lado a outro,
tentando assimilar ainda o desenvolvimento dos acontecimentos. Nunca tinha
esperado que lhe pusesse as cartas sobre a mesa, sobre tudo de um modo tão
surpreendente.
Observou seu rosto, fascinado pelas emoções que
viu em seus belos olhos azuis.
— Não veio aqui para casar-se comigo, verdade,
senhorita March? Veio aqui para me seduzir.
— Pensei que se não podia conseguir uma coisa
conseguiria a outra.
— Pois estava equivocada — disse ele com tom
categórico. Depois de recolher sua capa a pôs ao redor dos ombros. Logo foi para
a porta, decidido a acompanhar a à saída antes de que sua resolução pudesse
debilitar-se ainda mais — Já lhe hei dito que meu coração pertence agora a outra
mulher.
— Ela não está aqui esta noite — disse Cecily com
suavidade — Mas eu sim.
Gabriel se deteve e se apertou a frente com as
pontas dos dedos.
— Devo lhe advertir, senhorita March, que está
tentando ao destino e a minha paciência.
Sabe quanto tempo vou estar no mar quando zarpar
amanhã? Ali as noites são muito frite e solitárias. A maioria dos homens sob meu
mando vão passar esta noite em zelo como bestas. E não serão muito exigentes
para escolher casal. Servirá-lhes qualquer mulher que esteja disposta.
— Então imagine que sou qualquer mulher.
Gabriel se deu a volta devagar.
Ela deixou cair a capa e se deslizou para ele
como uma visão de uma de suas fantasias mais atrevidas.
— Melhor ainda, reconheça que sou a mulher que
merece pagar por lhe romper o coração. Não é isso o que quis desde que fui
correndo do hospital esse dia? Me castigar?
Incapaz de resistir mais tempo a tentação,
Gabriel lhe rodeou o pescoço com a mão, acariciando com o polegar o pulso que
pulsava violentamente em sua base. É obvio que a castigaria, mas não com dor, a
não ser com prazer. Um prazer que nunca havia sentido. Um prazer que nunca
voltaria a sentir. Um prazer que a perseguiria ao longo de todas as noites e
todos os amantes que viriam.
Baixou a cabeça, mas antes que seus lábios
pudessem roçar a suavidade dos sua ela apartou a cara.
— Não! Não quero que me beije. De todos os modos
não o faria a sério.
Ele franziu o cenho, surpreso por sua veemência.
— A maioria das mulheres necessitam que as beijem
um momento antes de permitir que um homem passe a… outras questões mais
prazenteiras.
— Eu não sou como a maioria das mulheres.
Gabriel se passou uma mão pelo cabelo.
— Estou começando a me dar conta disso.
— Tenho outras duas necessidades.
— Seriamente?
— Não deixe que o fogo se apague e não fechamento
os olhos. — Olhou-lhe com uma expressão acusatória — Me promete que não fechará
os olhos?
— Dou-lhe minha palavra de cavalheiro — respondeu
sentindo-se muito pouco cavalheiresco nesse momento.
Suas necessidades não exigiam um grande
sacrifício por sua parte. Estava tão formosa com a luz do fogo que não queria
nem piscar. Um de seus maiores pesares era que sua cegueira lhe tinha impedido
de ver a Samantha desse modo.
Enquanto Gabriel ia para a chaminé Cecily ficou
no meio do salão tentando não tremer com sua fina regata e suas meias. Com a
camisa tensa sobre seus largos ombros, ele agarrou um tronco o bastante grande
para que ardesse toda a noite e o colocou entre as chamas. Depois de limpar o pó
das mãos se deu a volta, olhando-a com avidez através das sombras.
Estar diante de Gabriel com sua regata enquanto
ele estava completamente vestido era uma sensação incrivelmente perversa. Cecily
se sentia como uma espécie de pulseira cuja vida dependia de sua capacidade para
agradar a seu amo.
Utilizando essa capacidade, tirou-se a regata por
cima da cabeça e a jogou a um lado, ficando só em meias e sapatilhas. Gabriel
lançou um som gutural do mais profundo de sua garganta.
Logo foi para ela, cobrindo com seus firmes
passados o espaço que havia entre eles.
— Nunca a quererei — lhe advertiu enquanto a
tendia debaixo dele no divã.
— Não me importa — sussurrou furiosamente lhe
olhando aos olhos.
E era certo. Quão único queria era uma
oportunidade mais para lhe amar antes que zarpasse ao dia seguinte.
Ele se levantou um pouco para tirar o colete e o
laço do pescoço. Então ela começou a soltar os botões de sua camisa, estendendo
o tecido para apoiar as mãos sobre seu peito e passar as pontas dos dedos pelo
pêlo dourado que encontrou ali.
Enquanto a sombra de Gabriel caía sobre ela girou
a bochecha para um lado para evitar a tentação de seus lábios.
— Quando disse que não queria que a beijasse —
disse ele com um rouco murmúrio — supus que se referia aos lábios.
Logo deslizou sua boca aberta por seu pescoço,
fazendo que lhe pusesse a carne de galinha e apertasse os olhos para conter um
intenso arrebatamento de desejo.
— Não feche os olhos — lhe ordenou com uma voz
áspera que contrastava com suas suaves carícias — Eu também tenho algumas
necessidades.
Cecily obedeceu bem a tempo para ver como baixava
a boca a seu peito. Seu mamilo se encolheu com o roce de sua língua, aceitando
seu beijo e os tremores de prazer que se estendiam por seu ventre. Ele passou de
um peito a outro até que os dois acabaram ardendo de desejo.
Só então deslizou sua hábil boca mais abaixo,
beijando com suavidade a sensível zona de suas costelas, a curva de seu quadril,
a franja tremente de pele sobre o triângulo de cachos de seu entre perna. Para
quando se ajoelhou no chão e arrastou seus quadris até o bordo do divã estava já
tão aturdida que só gemeu um débil protesto.
Suas grandes e cálidas mãos separaram suas coxas,
deixando-a totalmente vulnerável para ele, totalmente exposta a seu ávido olhar.
Um dos troncos se moveu na chaminé e iluminou a habitação com uma chuva de
faíscas. Nesse momento Cecily quase se arrependeu de suas exigências. Mas lhe
aterrava que Gabriel reconhecesse o sabor de seus beijos, o ritmo de seu corpo
movendo-se contra ele na escuridão.
— Sempre foste muito formosa — sussurrou
olhando-a como se fosse uma espécie de tesouro sagrado.
Enquanto baixava a cabeça, com seu cabelo escuro
saindo-se de seu acréscimo, ela não pôde evitar que seus olhos se fechassem.
— Abre os olhos, Cecily. — Quando os abriu lhe
encontrou olhando seu corpo com uma expressão feroz, mas não cruel — Quero que
veja.
Logo que teve tempo de fixar-se em alguns
detalhes incongruentes, como que uma meia lhe tinha escorregado até o tornozelo
e ainda levava postas as sapatilhas, antes que Gabriel aproximasse a boca à sua
e lhe desse um beijo proibido. Seu gemido se fundiu em um gemido.
Logo só sentiu o calor abrasador de sua boca, as
deliciosas carícias de sua língua e uma deliciosa sensação de êxtase.
Enquanto essas quebras de onda de prazer se
elevavam sobre sua cabeça, fazendo que seu corpo se estremecesse e os dedos de
seus pés se curvassem em suas sapatilhas, gritou seu nome com uma voz rouca que
logo que reconhecia como dela.
Através de uma neblina deliciosa viu como se
abria a lapela dianteira das calças. Então ficou sem fôlego ao ver quanto a
desejava.
Ajoelhado ainda entre suas pernas, separou-lhe
bem as coxas e entrou dentro dela.
Gabriel ouviu o ofego do Cecily, viu que punha os
olhos em branco não de dor, mas sim de prazer. Enquanto seu tenso corpo tentava
lhe conter teve que apertar os dentes ao sentir uma pontada de decepção. Deveria
agradecer que não fora inocente. Isso significava que não tinha que reprimir
nada; era o bastante mulher para aceitar algo que pudesse lhe dar. Rodeando-lhe
os ombros com seus braços, levantou-a para cima para pô-la escarranchado.
Cecily envolveu os braços e as pernas ao redor de
Gabriel, empalada na rigidez de seu corpo.
Quero-te, quero-te, quero-te. Essas palavras
passavam por sua mente como uma canção incessante. Temendo que pudesse as dizer
em voz alta, afundou a cara em sua garganta, notando o calor salgado de sua pele
suarenta.
Menos mal que lhe tinha negado seus lábios. Teria
notado essas palavras em seus beijos, ao igual que teria notado as lágrimas de
impotência que lhe caíam pelas bochechas. Esfregou a cara contra ele para
secar-lhe com seu cabelo.
Gabriel voltou a ajoelhar-se no chão e a baixou
até que acabou sobre seu regaço, sentada sobre essa parte dele que estava dentro
dela.
— Me olhe, Cecily — disse.
Tremendo de emoção, olhou aos olhos e viu neles
um reflexo da tenra loucura que se deu procuração de sua alma. Logo ele começou
a mover-se dentro dela e ela sobre ele, e os dois se moveram como um com as
chamas da chaminé acariciando sua pele dourada. Enquanto isso Gabriel não rompeu
sua promessa, não fechou os olhos nem apartou seu olhar da sua.
Cumpriu sua palavra até que o ritmo frenético de
suas investidas lhes levou mais à frente do êxtase a uma doce inconsciência. Só
então, com os braços a seu redor e seu corpo encrespado à entrada de seu ventre,
jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Só então saiu de sua garganta o nome
de uma mulher.
Cecily se derrubou sobre ele, ébria de triunfo e
prazer. No momento no qual o Gabriel se rendeu à escuridão, foi seu nome, não o
de Samantha, que estava em seus lábios e em seu coração.
Gabriel despertou com o Cecily em seus braços.
Seus cachos despenteados lhe faziam cócegas no queixo, e suas suaves respirações
lhe moviam o pêlo do peito. Tinha passado muitas noites solitárias imaginando
esse momento sem dar-se conta de quão agridoce seria quando por fim chegasse.
Enquanto lhe escapava um suave ronco lhe
aconteceu os dedos pelo cabelo. Não sentia saudades que dormisse tão
profundamente. Seu corpo devia estar esgotado de seus ávidas cuidados.
Tinha completo sua promessa de não perder nem um
momento de sua última noite em terra firme.
Tinha utilizado o jovem corpo do Cecily para
satisfazer seus desejos mais escuros e suas fantasias mais doces ao longo de
toda a noite. O tronco que tinha jogado ao fogo estava já consumindo-se.
Mas não havia nenhuma razão para não acrescentar
outro. O brilho apagado do amanhecer se filtrava por uma fresta das grosas
cortinas de veludo.
Ao agachar-se para tampá-la com sua capa de
veludo se deu conta de que tinha sido um estúpido. Enganou-se ao pensar que essa
noite tinha sido uma vingança, que podia castigá-la com prazer, lhe fazer o amor
sem amá-la e logo deixar que se fora. Mas isso ia ser muito mais difícil do que
tinha pensado. Roçou-lhe o cabelo com os lábios perguntando-se se era possível
querer a duas mulheres ao mesmo tempo.
Ela se moveu e levantou a cabeça, piscando com
seus sonolentos olhos azuis.
— Quantos pendentes de diamantes me ganhei até
agora?
— Seu peso em ouro. — Acariciou-lhe com suavidade
a bochecha, sentindo uma aguda pontada de arrependimento — Não deveria haver
dito um pouco tão mesquinho. Só estava tentando te assustar.
— Não funcionou.
— Graças a Deus — sussurrou agarrando-a com mais
força.
Mas Cecily se livrou dele levando-a capa com ela.
A sedutora suavidade de seus seios deslizou por seu corpo. Para quando roçaram
sua virilidade estava já excitado. Outra vez.
Enredando seus dedos em seu cabelo, levantou-lhe
a cabeça para que lhe olhasse enquanto respirava agitadamente.
— Que diabos acredita que está fazendo?
— Tentar conseguir um colar de rubis — murmurou
ela sorrindo com doçura antes de baixar a cabeça para lhe envolver com seus
sensuais lábios.
Quando Gabriel voltou a despertar um raio de sol
entrava pelo oco das cortinas e Cecily se foi.
Incorporou-se e percorreu o salão com seus olhos
nublados. O fogo se apagou, deixando um frio penetrante no ar. Salvo pela taça
de uísque meio vazia na chaminé e sua roupa pulverizada pelo chão, tudo estava
como quando tinha voltado para casa a noite anterior. Não havia nem regata
enrugada, nem capa de veludo, nem Cecily.
Se não tivesse sido pelo sabor persistente de
seus lábios poderia ter pensado que essa noite só tinha sido um sonho provocado
pelo álcool.
— Outra vez não — murmurou baixando as pernas do
divã e tampando-a cara com as mãos.
O que se supunha que devia fazer? Sair e pentear
as ruas de Londres para procurá-la?
Voltar-se louco perguntando-se por que lhe tinha
amado com tanta ternura e logo lhe tinha deixado sem olhar atrás? Ao menos
Samantha se incomodou em deixar uma nota antes de sair de sua vida para sempre.
— Maldita seja — levantou a cabeça sentindo que o
frio se metia em seu coração — Malditas sejam as duas.
Capítulo 24
-
Querido Gabriel,
Não há nenhum lugar onde prefira estar que não sejam seus braços...
Cecily estava olhando pelo guichê da carruagem os
prados e os sebes que passavam, consciente de que cada volta que davam as rodas
do veículo a afastavam mais de Londres. E de Gabriel.
Tendo em conta que a última viagem ao Middlesex o
tinha feito em um carro público com um menino lhe cuspindo leite e um corpulento
ferreiro lhe pisando o pé, deveria ter agradecido os luxos extravagantes da
carruagem dos Carstairs. Mas lhe importavam tão pouco as almofadas de veludo e
os acessórios de bronze como a expressão preocupada de sua amiga.
A exuberância natural do Estelle contrastava com
o véu de tristeza que a rodeava.
Enquanto a carruagem passava por uma ponte de
pedra parecia que as nuvens baixas foram começar a jogar os primeiros flocos de
neve da temporada.
— Sigo sem poder acreditar que te atrevesse a lhe
propor matrimônio — disse Estelle olhando-a com admiração.
— Não o propus. Estava aceitando sua proposição,
mas desgraçadamente se retratou.
— E se tivesse acessado a fugir-se a Gretna
Green? Quando pensava lhe dizer que foi sua tida saudades Samantha?
— Não sei. Mas estou segura de que algum dia
teria surto o momento oportuno. Depois do nascimento de nosso terceiro filho,
possivelmente, ou ao celebrar nosso qüinquagésimo aniversário como marido e
mulher. — Cecily fechou os olhos um instante, atormentada pelas risadas infantis
que nunca ouviria e os dias felizes em braços de seu marido que nunca chegariam.
Estelle moveu a cabeça de um lado a outro.
— Não posso acreditar que volte para mar.
— Por que é tão difícil de acreditar? — perguntou
Cecily amargamente — Quer ser um herói para sua querida Samantha. A última vez
que embarcou esteve a ponto de lhe custar a vista.
Pergunto-me o que lhe custará esta vez. Um olho?
Um braço? A vida?
Apoiou a cara no guichê enquanto lutava contra o
desespero. Tinha animado ao Gabriel a ser um herói quando ela era uma autêntica
covarde. Ao princípio tinha fugido de seu amor por medo a confiar na firmeza de
seu coração. Logo fugiu do hospital porque não podia fazer frente às
conseqüências de sua covardia. Tinha fugido de seus braços no Fairchild Park e
agora estava fugindo de novo.
Só que esta vez teria que seguir fugindo o resto
de sua vida, embora isso significasse não chegar nunca a nenhuma parte.
— Já basta — sussurrou Cecily.
— Desculpa?
Cecily se sentou no bordo de seu assento.
— Temos que dar a volta.
— Como? — perguntou Estelle tentando segui-la.
— Diga ao chofer que dê a volta! Agora mesmo! —
Muito impaciente para esperar a que sua amiga reagisse, Cecily agarrou a vara da
esquina e começou a golpear o painel forrado de seda na parte dianteira do
carro.
O veículo se deteve balançando-se. Quando se
abriu o painel apareceu a cara desconcertada do chofer com o nariz vermelho de
frio.
— O que ocorre, senhorita?
— Tenho que retornar a Londres. Dê a volta
imediatamente!
O chofer lançou ao Estelle um olhar cauteloso,
como se lhe perguntasse se deveria levar a sua amiga direita a um manicômio.
— Faça o que diz — ordenou Estelle com os olhos
brilhantes de emoção — Diga o que diga.
Ele se dirigiu ao Cecily a contra gosto.
— Aonde, senhorita?
— Aos arredores de Greenwich. E depressa! A vida
de um homem pode depender disso!
Quando a carruagem ficou em marcha Cecily caiu
para trás no assento. Necessitando desesperadamente um fio de esperança para
agarrarse, estreitou a mão do Estelle com um trêmulo sorriso em seus lábios.
— E também a vida de uma mulher.
O tenente Gabriel Fairchild estava diante do
espelho no estudo de sua casa de Londres com sua uniforme. Enquanto se ajustava
o laço azul escuro no pescoço o corte de sua cicatriz inclinou para baixo a
esquina de sua boca, uma boca que parecia que não tinha sorrido nunca.
Não era uma cara que a um inimigo gostaria de ver
o outro lado de um fuzil, uma espada ou um canhão. Era a cara de um homem
nascido para a guerra, não para o amor. Ninguém teria imaginado que esses lábios
severos, essas mãos poderosas, tinham passado a noite anterior fazendo que uma
mulher se estremecesse uma e outra vez.
— Senhor?
Para ouvir umas rodas de ferro rodando pelo
tapete Gabriel se deu a volta. Ninguém teria reconhecido ao homem que estava
sentado na cadeira de rodas como o mendigo gasto que tinha encontrado sob a
chuva fazia quase um mês e meio. Seus lábios tinham perdido seu tom azulado, e
seu peito e suas bochechas tinham engordado. Com uma caligrafia excelente e
cabeça para os números, Martin Worth tinha resultado ser o melhor secretário que
Gabriel tinha tido nunca.
Confiava plenamente no antigo guarda marinha para
que administrasse sua casa enquanto ele estava no mar.
Gabriel se apressou a rechaçar a efusiva gratidão
do Martin. Se não tivesse sido por um capricho do destino podia ter sido ele
quem estivesse ali sentado com a metade de suas pernas, condenado a passar o
resto de sua vida em uma cadeira de rodas.
Apartando uma brilhante mecha de cabelo dos
olhos, Martin disse: — Aqui há alguém que quer lhe ver, senhor. — antes que ao
Gabriel desse um tombo o coração acrescentou — O senhor Beckwith e a senhora
Philpot.
Gabriel franziu o cenho, incapaz de imaginar que
recado urgente poderia ter tirado os fiéis criados do Fairchild Park. Depois de
percorrer os bairros baixos da cidade com o Gabriel para procurar a Samantha,
Beckwith jurou que não voltaria a pisar em Londres.
— Obrigado, Martin. Faça-lhes passar.
Um criado tirou o Martin enquanto Beckwith e a
senhora Philpot entravam correndo no estudo. Depois de lhe saudar afetuosamente
se sentaram em um sofá com brocados, fazendo um grande esforço para manter uma
distância respeitável entre eles. Gabriel ficou diante da chaminé.
A senhora Philpot se tirou as luvas.
— Não sabíamos se devíamos lhe incomodar por este
assunto...
—… mas você nos disse que lhe mantivéramos
informado se encontrávamos algo estranho na habitação da senhorita Wickersham —
concluiu Beckwith.
A senhorita Wickersham.
Esse nome se cravou como uma agulha no coração de
Gabriel. Juntou as mãos detrás de suas costas sentindo como lhe esticava a
mandíbula.
— Ia dizer lhes que podiam queimar suas coisas. É
evidente que não tem nenhuma intenção de voltar às buscar.
Beckwith e a senhora Philpot intercambiaram um
olhar consternado.
— Se isso for o que deseja, senhor — disse
Beckwith com tom vacilante — mas acredito que antes deveria jogar uma olhada a
isto. — Tirou um papel dobrado do bolso de seu colete — O encontraram Hannah e
Elsie quando estavam dando a volta ao colchão na habitação da senhorita
Wickersham.
Gabriel tentou não recordar a noite que tinha
compartilhado esse colchão tão estreito com ela, que lhes tinha obrigado a
pregar seus quentes corpos como duas colheres em uma gaveta.
Olhou o papel que tinha Beckwith na mão sem
vontades de examiná-lo.
— Não acredito que me deixasse outra nota. A
primeira era bastante eloqüente. Não necessitava nenhum adorno.
Beckwith moveu a cabeça de um lado a outro.
— Por isso nos pareceu tão estranho, senhor. Não
é uma carta para você. É uma carta dela.
Franzindo mais o cenho, Gabriel aceitou a carta
dobrada de mãos do Beckwith. No papel de cor marfim havia ainda peças de cera
antiga.
Estava mais desgastada ainda que as cartas que
ele tinha levado junto a seu coração. Parecia que tinha sido acariciada
freqüentemente e com carinho por uns dedos suaves.
Gabriel a desdobrou e reconheceu sobressaltado
sua própria letra, suas atrevidas palavras.
-
Querida Cecily,
Esta será a última missiva que receberá durante muito tempo. Embora
não possa as enviar, deve saber que lhe escreverei palavras de amor
em meu coração todas as noites que estejamos separados para poder
ler-lhe quando voltar a reunimos.
-
Agora que segui seu conselho e
pus minha vã e inútil vida ao serviço de Sua Majestade, espero que
não ria e me acuse de me embarcar só para demonstrar a minha
alfaiate quão elegante posso estar com uniforme.
-
Durante os largos meses nos
que estaremos separados tentarei me converter em um homem digno de
seus afetos. Nunca ocultei minha afeição ao jogo. Agora estou
jogando para ganhar o prêmio mais prezado de todos: seu coração e
sua mão em matrimônio. Rogo-lhe que me espere e saiba que voltarei
assim que possa. Levo suas cartas e todas minhas esperanças para
nosso futuro junto a meu coração.
-
Sempre dele
-
Gabriel
Gabriel baixou devagar a carta, surpreso ao
descobrir que lhe tremiam as mãos.
— De onde tiraram isto? Encontraram-no em algum
lugar desta casa?
Ambos piscaram como se tivesse perdido o
julgamento.
— Não, senhor — disse a senhora Philpot lançando
ao Beckwith um olhar preocupado — O encontramos exatamente onde lhe havemos
dito. Debaixo do colchão da senhorita Wickersham.
— Mas como é possível que estivesse em seu poder?
Não compreendo...
Mas de repente o compreendeu.
Tudo.
Fechando os olhos para conter uma quebra de onda
de emoções, sussurrou: — Não há maior cego que o que não quer ver.
Quando os abriu tudo em sua vida estava claro de
repente.
Colocando a carta dentro de sua jaqueta, junto a
seu coração, olhou ao Beckwith furiosamente.
— Me diga, Beckwith, quando vais converter à
senhora Philpot em uma mulher honesta?
Embora lhes dava medo olhar-se, os dois criados
começaram a ruborizar-se e gaguejar.
Beckwith tirou um lenço do bolso de seu colete e
se secou a frente.
— Sabe?
— Desde quando? — perguntou a senhora Philpot
fazendo uma bola com suas luvas.
Gabriel pôs os olhos em branco.
— Desde que tinha uns doze anos e lhes vi
beijando-se entre as macieiras. Estive a ponto de cair da árvore e me romper o
pescoço.
— Podemos manter nossos postos? — perguntou
Beckwith atrevendo-se a agarrar a mão tremente da senhora Philpot.
Gabriel sopesou um momento a pergunta.
— Só se se casam imediatamente. Não posso lhes
ter vivendo em pecado sob meu teto corrompendo a moral de meus filhos.
— Mas senhor… você não tem filhos — assinalou a
senhora Philpot.
— Se me desculparem, vou remediar isso. — Gabriel
foi para a porta decidido a não perder nem um minuto mais.
— Aonde vai? — disse Beckwith detrás dele mais
desconcertado que de costume.
Gabriel se deu a volta sorrindo-lhes.
— Tenho que agarrar um navio.
Cecily estava fora do carro incluso antes que
deixasse de mover-se.
— Corre, Cecily! Corre como o vento! — gritou
Estelle enquanto se levantava a saia e descia pela estreita rua que conduzia aos
moles.
Estava nevando com mais força, mas ela logo que
sentia as pontadas dos flocos. Tinha deixado a capa na carruagem pensando que
poderia mover-se melhor sem suas dobras.
Enquanto seus pés voavam sobre as pranchas do
mole viu os mastros dos navios que estavam esperando para zarpar e rezou para
que o Defiance estivesse entre eles.
Passou correndo por diante de um grupo de homens
que estavam descarregando a mercadoria de um cargueiro. Ao rodear um montão de
caixas se chocou contra um marinheiro com um peito enorme.
— Tome cuidado, moça! — vociferou lhe agarrando o
cotovelo para sujeitá-la. Seus olhos azuis não eram desagradáveis.
Cecily se agarrou a seu braço quase a ponto de
chorar.
— O Defiance, por favor! Pode me dizer onde posso
encontrá-lo?
— Naturalmente. — Ao sorrir mostrou uma boca
cheia de dentes dourados e negros — Aí está, levando a batalha as cores de Sua
Majestade.
Com o coração acelerado já, Cecily se voltou
devagar para olhar fazia onde estava assinalando. Um navio a toda vela se
deslizava para o horizonte com seus majestosos mastros quase ocultos pelas
rajadas de neve.
— Obrigado, senhor — murmurou enquanto o
marinheiro se tirava a boina em um gesto de cortesia, jogava-se uma caixa grande
ao ombro e se ia.
Ela se desabou em um barril com os pés e o
coração intumescidos enquanto via como o Defiance — e todas suas esperanças para
seu futuro — desapareciam no horizonte.
— Procura a alguém, senhorita March?
Ao dá-la volta Cecily viu o Gabriel no mole uns
passos detrás dela com o cabelo solto movido pelo vento. Seu coração deu um
salto de alegria. Era o único que podia fazer para não correr a seus braços.
Ele arqueou uma escura sobrancelha.
— Ou prefere que a chame senhorita Wickersham?
Capítulo 25
-
Querida Cecily,
Meus braços sempre estarão abertos para você, ao igual que meu coração...
Enquanto Cecily olhava os frios olhos verdes de
Gabriel seu corpo se estremeceu. Então lhe deu as costas e se abraçou para
conter um calafrio.
— Se quer pode me chamar Cecily, agora que já não
estou a seu serviço.
Ouviu seus passos aproximando-se dela. Logo lhe
pôs a jaqueta sobre os ombros, envolvendo-a com seu calor perfumado de zimbro.
— Espero que não me peça uma carta de referência.
— Pois não sei. — Cecily se encolheu de ombros —
Eu acredito que cumpri com minhas obrigações com um entusiasmo admirável.
— Pode que seja certo, mas não quero que o faça
para ninguém mais.
Para ouvir o tom possessivo de sua voz Cecily se
deu a volta para lhe olhar com o coração acelerado.
— Como sabia que estaria aqui?
— Não sabia. Vim para informar a meus
companheiros de que tinha renunciado a meu cargo. Pode ficar com a jaqueta. Não
a necessitarei.
Ela se agasalhou com o objeto com medo a
perguntar e esperar nada.
— Mas me alegro de te haver encontrado, porque
acredito que tenho algo que te pertence. — Gabriel colocou a mão em sua jaqueta,
lhe roçando os seios com o dorso dos dedos ao tirar um papel dobrado.
Cecily agarrou a folha familiar de cor marfim
levantando seus olhos desconcertados.
— De onde tiraste isto?
— Encontraram-no os criados debaixo de seu
colchão no Fairchild Park. Beckwith e a senhora Philpot me trouxeram isso esta
manhã.
Quando te dava minhas cartas para que as
guardasse não suspeitei que você também escondia algo.
— Deveu-se cair da cinta a noite que veio a minha
habitação. Suponho que não deveria as haver levado ao Fairchild Park, mas não
podia suportar a idéia das deixar. —Moveu a cabeça sem poder acreditar-lhe Não
tinha nem idéia. Pensava que tinha metido a pata ao me entregar a última noite.
— É claro que sim que te entregou — com um olhar
de cumplicidade em seus olhos e um timbre escuro em sua voz, de repente tudo o
que tinha havido entre eles essa noite estava ali de novo — E eu estava disposto
a me aproveitar de sua generosidade. Mas não foi a última noite quando se
danificou sua absurda mascarada.
Cecily levantou o queixo com ar desafiante.
— Eu não acredito que fosse tão absurda.
Enganei-te, verdade? O único problema é que também me enganei mesma. Pensei que
podia expiar tudo o que tinha feito te ajudando a te adaptar a sua cegueira. —
Olhou-lhe sem tentar ocultar o desejo em seus olhos — Mas o certo é que me teria
arriscado a algo, inclusive a que me odiasse, por estar perto de ti.
Uma velha dor escureceu os olhos de Gabriel.
— Se tanto desejava estar perto de mim, por que
foi correndo do hospital? Tão abominável te pareci?
Ela levantou uma mão e lhe tocou brandamente a
cicatriz.
— Não fugi de ti porque me horrorizasse verte.
Fugi porque me horrorizava o que te tinha obrigado a fazer, tudo por uma
fantasia infantil.
Queria que conquistasse meu coração lutando
contra um dragão. Não me dava conta de que no mundo real revistam ganhar os
dragões.
Horrorizava-me o que te havia flanco. Culpava-me
por sua cicatriz e sua cegueira. Não acreditava que pudesse me perdoar.
— Por que? Por querer que fora um homem melhor?
— Por não querer o suficiente ao homem que foi. —
Deixou cair sua mão — Voltei para hospital ao dia seguinte. Mas já te tinha ido.
Gabriel olhou sua cabeça inclinada e a suave
queda de seus cachos dourados. Nesse momento era Cecily, a jovem a que tinha
amado. E Samantha, a mulher que lhe tinha amado a ele.
— Tinha razão — disse — Não te queria. Você o
disse. Não te conhecia realmente. Só foi um sonho.
Para ouvir essas palavras Cecily sentiu que o
coração lhe partia em dois como um bloco de gelo. Voltou a cara para que não
visse suas lágrimas.
Mas Gabriel levantou seu queixo e lhe obrigou a
lhe olhar.
— Mas agora te conheço. Sei o valente e obstinada
que é. Sei que é mais inteligente que eu. Sei que roncas como um ursinho. Sei
que tem mau gênio e uma língua afiada e que pode dar algumas das melhores
refutações que ouvi nunca. Sei o que faz o amor como um anjo e que sem ti minha
vida é um inferno. — Rodeou-lhe a bochecha com a mão com um brilho de ternura em
seus olhos — Antes só foi um sonho.
Agora é um sonho feito realidade.
Enquanto aproximava os lábios dos seus Cecily
sentiu que uma doçura vertiginosa lhe percorria as veias. Logo pôs seus braços a
seu redor e respondeu a seu beijo com um ardor que os deixou tremendo.
Gabriel se apartou.
— Só tenho uma pergunta mais.
Ela recuperou sua cautela.
— Sim?
Ele a olhou com o cenho franzido.
— É verdade que viu a muitos homens sem camisa?
Cecily riu através de suas lágrimas.
— Só a ti.
— Bem. Vamos manter o assim, vale?
Logo a agarrou em seus braços como uma menina.
Enquanto os largos passos de Gabriel lhes levavam
para a rua Cecily apoiou a cabeça em seu ombro, sentindo-se como se tivesse
chegado por fim a casa.
— Antes de continuar devo insistir em que
esclareça suas intenções. Está-me oferecendo um posto como enfermeira ou como
amante?
Ele beijou com ternura seu nariz, suas bochechas
e seus lábios entreabertos.
— Estou-te oferecendo um posto como esposa,
amante, condessa e mãe de meus filhos.
Cecily suspirou acomodando-se ainda mais em seus
braços.
— Então aceito. Mas espero que me dê de presente
algumas quinquilharias extravagantes de vez em quando.
Gabriel a olhou utilizando sua cicatriz
diabolicamente.
— Só se quiser.
De repente ficou tensa em seus braços e abriu os
olhos horrorizada.
— Oh, não! Acabo de me dar conta de algo. O que
vai dizer sua mãe?
Gabriel sorriu enquanto a neve caía sobre eles.
— Por que não vamos averiguar. — ficou sério —
Isto não é um sonho, verdade? Seguirá estando aqui quando despertar pela manhã?
Cecily lhe acariciou a bochecha carinhosamente,
sorrindo-lhe através de um véu de lágrimas de alegria.
— Todos os dias, meu amor. O resto de nossas
vidas.
Epílogo
15 de dezembro de 1809
-
Querido lorde Sheffield,
-
Em nosso terceiro
aniversário como marido e mulher me sinto obrigada a te dizer
que segue sendo tão impertinente, insofrível e arrogante como
sempre, possivelmente ainda mais agora que anda te pavoneando
pela mansão com sua filha sobre seu ombro. Apesar de meu
desacordo e o de minha mais fiel aliada, sua querida mãe,
insistiu em chamá-la «Samantha», te assegurando de que ela e o
cão fossem correndo para ouvir seu nome. Durante um tempo não
tinhas sabor de qual dos dois encontraria babando e mordendo
suas botas. Suas maneiras na mesa são muito parecidos com os que
tinha seu pai faz tempo. Rechaça a colher e o garfo e lança o
mingau a seu redor com um entusiasmo que faz que Beckwith e a
senhora Beckwith se estremeçam de horror.
-
Também te escrevo para te
informar que graças a suas esmeradas e freqüentes cuidados estou
de novo grávida. Pode que esta vez te dê um filho com olhos
verdes e cachos dourados que dará ordens aos empregados com a
arrogância própria de um Fairchild.
-
Sua adorada, Cecily
16 de dezembro de 1809
-
Querida lady
Sheffield,
-
Devo assinalar que
nosso pequeno querubim também tem muitos rasgos em comum com
sua mãe. Normalmente gosta de fingir que é outra pessoa (ou
coisa), já seja uma fada ou um sapo.
-
Também tem uma
tendência a desaparecer quando mais a necessita. Ontem
mesmo, enquanto estava esperando a que meu novo valete,
Phillip, atasse-me o lenço para ir à igreja, encontrei-a
dormida em meu vestidor debaixo de um montão de chapéus.
-
Assim agora tem a
intenção de me dar um filho, né? Sem dúvida alguma será tão
molesto e tão insuportável como sua mãe e sua irmã.
-
Faz tempo me perguntou
se te seguiria querendo quando seus lábios estejam franzidos
pela idade e seus olhos apagados. Posso te assegurar que te
seguirei querendo quando só ficarem forças (e poucos dentes)
para mordiscar esses lábios. Quererei-te quando seus ossos
estejam o bastante afiados para cravar-se em meu corpo.
Quererei-te quando a luz de meus olhos se apague para sempre
e sua doce cara seja quão último veja. Porque sou e sempre
serei...
-
Seu fiel marido,
Gabriel
FIM
ϟ
Teresa Medeiros escreveu o seu primeiro romance aos 21 anos e desde então conquistou o coração de leitores e críticos. Todos os seus livros foram êxitos de vendas e integraram as listas de best-sellers do New York Times, USA Today e Publishers Weekly. A autora conta já com 10 milhões de livros impressos e é publicada em mais de 18 idiomas.
Foi finalista do prémio RITA (Romance Writers of America) por oito ocasiões, venceu duas vezes o prémio PRISM e uma vez o Prémio Waldenbooks para ficção mais vendida. Teresa vive no Kentucky, nos Estados Unidos, com o marido, de quem herdou o apelido português.

TUA ATÉ AO AMANHECER
título original: Yours Until Dawn
autora: Teresa Medeiros
Avon Books, 2004
fonte: GRH - Grupo de Romances Históricos
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