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Mia Couto
-excerto-

imagem: fotografia de Nadia Prigoda-Lee, 2005
Foi então que, naquela penumbra ponteada de lamparinas, surgiu uma mulher
acompanhada de um cão de dimensões. Antoninho me sussurrou: aquela era Juliana
Bastiana, a prostituta cega. Olhei a dita enquanto o silêncio regressava àquele
lugar fumarento. Shetani chamou Abacar e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido. Os
dois se riram, alto e mau som. A cega abria caminho entre as mesas. A mão dela,
ao de leve, tocava o dorso do animal: assim se guiava.
— Estou a ouvir o cheiro de um homem de fora. Quem sabe me trazem notícia do meu
brigadeiro...
Suspirava saudades que nem convinham a uma mulher sabida e cursada em
contrabandalheiras. Seu modo de ser cega fazia que não parecesse uma dessas
trampalhonas, virabazucas. Ela se chegou, me cheirou. A saia dela se apertava no
corpo, o rabo quase nem devia respirar.
— Não tenhas medo do cão. Ele é mais bondoso que muitos desses, disse apontando
para a multidão.
Me pediu ser paga, juntou logo três copos. Mandou o cão para fora, o bicho que
esperasse por ela. Obediente o cachorro meteu as pernas entre o rabo e saiu.
Olhei em redor, a conversa embaretecera, risos rolando em risos. Nem parecia ter
havido o tiroteiro, há segundos. Não parecia mesmo haver lá fora, tudo se
resumindo àquele barzito. A cega pareceu adivinhar meus pensamentos.
— Graças a Deus sou cega. Lá fora, o mundo está pior. Por causa essa guerra, já
ninguém se compaixona por ninguém.
Ela então contou sua razão de suspirar: aguardava o brigadeiro Silvério Damião,
seu amante muito militar, exercendo patentes no exército colonial. Juliana
historiava: que o brigadeiro tinha saído em missão recente contra os turras, na
defesa da lusitana terra. A cega misturava os tempos, fazia do passado um tempo
vigente. De um brusco gesto, meteu todo um braço dentro de sua saca e retirou um
molho de envelopes.
— Tudo isso são cartas dele, não passa nenhuma semana que não escreva. Queres
ler, estrangeiro?
Segurei as cartas, hesitante. Não li nenhuma. Aproveitei o momento para lhe
explicar o motivo da minha presença naquele bar. Quem sabe ela me poderia
apontar alguém capaz de me acompanhar em procuras no mato. Juliana Bastiana
permaneceu sem resposta, parecia nem lhe chegara meu pedido. Pensei que deveria
abrir um pouco dos motivos, lhe devia uma explicação. Mas ela me interrompeu:
— Há um motivo de amor?
— Sim, há.
— Então, não preciso saber mais.
Sorri, agradecido. Mantinha as cartas na mão, com delicado respeito, como se ela
me pudesse ver. Devagar fui pousando os envelopes sobre a mesa. Os homens me
olhavam, desdenhosos. Eu, um de fora, gozava a companhia de Bastiana. Baixei a
voz e o gesto para não criar caso. As caras em volta eram de nenhuns amigos.
Antoninho, só então reparei, já tinha saído do bar. Juliana me pareceu adivinhar
o sentimento:
— Não tenha medo. Esses gajos é que têm razão para terem medo.
Só o brigadeiro Silvério, seu distante amante, era um homem muito inteiro, sem
minhufas de ninguém. Era por isso que os outros sempre se irritavam quando ela
anunciava o breve regresso do militar.
Voltei ao assunto da minha pergunta. Adiantei que se tratava de procurar uma
criança há muito abandonada. Juliana lançou um terrível pressentimento: se fora
há muito tempo, então esse miúdo devia andar com os bandos, patifaristando pelos
matos, feito semeador de infernos.
— Mesmo assim lhe quero encontrar, respondi.
Eu queria ganhar tempo, entreter a prostituta a ver se ela se inclinava a deixar
cair o nome de alguém que me servisse de guia.
— Tens arma, estrangeiro? Não tens? É muita pena: porque era bom que ensinasses
a esse menino maneiras de matar, bons métodos de roubar.
Da bolsa retirou um cigarro e, sem acender, o ajeitou entre os lábios. É só para
os outros verem, nem tu sabes quanta inveja vale uma coisa dessas, disse ela
abanando o cigarro.
— Encontras o miúdo, mas ficas proibido de lhe dar caneta ou enxada. Isso não dá
vida para ninguém. Vale a pena uma arma, estrangeiro. Nestes dias, uma arma é
que faz a vida. Rápida e boa.
Do cigarro apagado ela arrancava invisíveis fumaças. Foi rodando a cabeça,
espreitando as vozes. Sacudiu a cadeira, para me chamar a atenção. Apontou a
mesa ao lado onde estava Shetani.
— Tu não sabes o meu perigo de sentar aqui, sozinha consigo.
Não demorei entender. No fundo do bar, Shetani chamou Bastiana. Usava os modos
de espalhador de brasas.
— Anda-te aqui. Quero mostrar-lhe uma coisa.
Bastiana levantou-se com ar grave, apalpando as vozes, seus cinzentos. Ainda
quis ajudar. Mas ela rejeitou o meu braço e ordenou que me afastasse. Avançou
sem chocar em nada, postou-se diante de Shetani.
— O que é?
— Dá a tua mão, quero oferecer-lhe um presente.
— Vai para o mato, o seu lugar é lá.
— Estou-te a dizer, Bastiana. É um presente, uma encomenda que foi dada por um
brigadeiro colonial.
A prostituta estremeceu, seus olhos sorriram, vagaluminosos. Deu um passo em
frente, seu corpo se firmava como um credo. Shetani afastou a mesa, ergueu-se
com vagares. Segurou a mão de Juliana Bastiana, abriu-lhe os dedos com força.
— Toma, Juliana Bastiana.
Colocou-lhe nas mãos uma qualquer coisa, ninguém percebeu o que era. Conforme
apalpou a oferenda, o rosto dela foi abrandando o sorriso e, aos poucos, se
fechou em mágoa. Até que gritou um arregalado lamento e chorou. Veio até à minha
mesa, desta vez chocando-se nas demais cadeiras, cambaleoa.
— O que é, Juliana? Que te fizeram, conta-me.
Ajudei a se sentasse, seu corpo estava tenso, parecia ter tomado o freio nos
nervos. Em seu rosto se desprendiam gotas de grossa tristeza, ensopando o
pó-de-arroz. Voltei a pedir que me explicasse o que sucedera.
— Olha, vê o que fizeram com meu cão.
E abriu as mãos. Nelas estavam duas orelhas cortadas, ainda sangrando, inundando
de vermelho a concha de seus dedos. Eu nem me pensei. Empurrei a cadeira,
avancei sobre o milícia. Mas no caminho o braço da prostituta me travou, em
aflição.
— Onde vais?
— Ele tem que aprender, Juliana. Alguém deve...
— Fica quieto, seu burro.
Juliana gritara aquelas palavras. Levantou os braços no ar, balburdiando gestos,
palavras de arder. Me puxou para o assento com força, os desempregados olhos
confirmavam sua cega decisão de me reter. Por fim, vendo-me vencido, soprou
aliviada como se escapassem reticências de sua alma.
— Ele não fez por mal, estrangeiro.
— Como não fez por mal?
— Tu não entendes. Fui eu que pedi a Shetani para ele fazer isso. O bicho estava
doente, eu que não tinha coragem...
Desandei, incapaz de ouvir. Saí até à porta para apanhar fresco. Passei por
Shetani. Uma outra prostituta se nichara, entretanto, sobre as suas pernas dava
ternuras merecidas pelos vencedores. Juliana permanecia sentada, bebendo em
silêncio.
As horas se foram dissolvendo, a espuma desceu nos copos. A noite, às tantas,
recebeu as despedidas, na cervejaria foram crescendo as cadeiras. Juliana
Bastiana insistiu em pagar, retirou o dinheiro das roupas íntimas. Depois, os
trocos voltaram ao sutiã. As moedinhas tilintintaram, pareciam rir com cócegas
dos seios. Fui último a sair. Demorei a contar os pés, quantos os legítimos
meus. Sem dar conta eu tinha ultrapassado os meus níveis.
Inspirei o ar da noite. Lá fora a multidão se desapinhava. Alguém puxava o
Quintino pelos braços. Depositaram-lhe no passeio, ele estava destinado a dormir
sob o lençol das estrelas. Um braço me repuxou, era Juliana Bastiana.
Arrastou-me para ela, me cochichou:
— Esse que está aí, todo entornado no passeio.
— Esse o quê?
— É ele que entende do mato, pode andar lá mais à vontadinha que os bichos.
— Quintino?
— O próprio. Ele é que lhe pode conduzir onde você quer.
A cega afastou-se, mão dada com uma outra prostituta. Todos se haviam ido, me
deixando só com o bêbado. Longe, um rádio ainda machucava o silêncio. Sentei
para esperar uma pausa na inconsciência do homem. Estávamos só nós, eu e o
embriagado Quintino, relentando-nos no cacimbo da noite. Uma saudade de Farida
me inundou. Voltaria a ver aquela mulher? Ou jamais me poderia servir daquela
formosura? Afinal, em meio da vida sempre se faz a inexistente conta: temos mais
ontens ou mais amanhãs? O que eu desejava era que o tempo se adiasse, parado
como o barco naufragado.
FIM
'Terra Sonâmbula' ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos (1995) e foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX por um júri criado pela Feira do Livro do Zimbábue.
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Terra Sonâmbula
(excerto)
Mia Couto
Companhia das Letras
Editorial Caminho, SA, Lisboa
1992
18.Set.2017
Publicado por
MJA
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