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The End of Autumn or The
Blind ― Eugene Laermans, 1899
Eu havia terminado um conto sombrio como os breves e tristes
dias de inverno, que então pesava sobre meu país. Deixei cair a pena
e comecei a passear pela casa.
Era noite. Lá fora prenunciava-se uma tormenta. A neve caía em
flocos espessos. A rua estava deserta, e, encostando-me à vidraça,
eu via apenas uma lanterna pendurada a uma porta, do outro lado da
rua, e agitada pelo vento. Aquele espetáculo era tão profundamente
desolador que, afastando-me da janela, apaguei a lâmpada e fui
deitar-me.
Então, na escuridão que invadia todo o meu quarto, os sons da
noite se fizeram mais nítidos. O relógio contava os segundos, mas por
vezes o zumbir da neve, lá fora, afogava seu rumor. Em vão. O tiquetaque
apressado, incansável, voltava a dominar os murmúrios do
inverno; e aquele tique-taque seco, monótono e teimoso, em sua
marcha para a eternidade, impunha-se ao meu cérebro, ressoava
dentro dele.
Não podendo dormir, pensava nas páginas que acabara de
escrever. Era uma narração muito simples: a história de dois velhos
tímidos e meigos, dois abandonados pelo destino. Ele, cego; ela, sua
esposa, humilde e fiel.
Uma madrugada, na véspera de Natal, saíram de seu sórdido
abrigo e foram mendigar pelo casario da vizinhança, para ver se
obtinham algo com que comprar um pouco de alegria e conforto para o
dia mais santo de todos.
Movidos por essa esperança, percorreram os arredores, crentes
de que poderiam voltar, à hora da missa do galo, com os bolsos
cheios de dádivas feitas em nome do Senhor. Mas foram tão escassas
as esmolas que nem sequer compensaram a caminhada, e já era
muito tarde quando o triste casal compreendeu que tinha de voltar ao
seu casebre sem fogo para se aquecer e apenas com o indispensável
para não passar fome.
Retomaram, pois, o caminho de seu abrigo, ela adiante, ele com a
mão apoiada à sua cintura. Vinham lentamente, na escuridão da noite.
As nuvens encapotavam o céu; o vento dançava com a neve, e o
caminho parecia cada vez mais longo. É que a velha se deixava iludir
pela alvura sempre igual do solo e, em vez de tomar o atalho correto,
seguira ao longo do vale.
O velho irritava-se.
― Ainda não chegamos? Estou vendo que não chegaremos antes
da meia-noite.
Ela respondia que estavam perto. Sabia que tinham se perdido e
queria ocultar-lhe o fato. Mas tanto andou em vão que teve de
confessar com um tom melancólico na voz:
― Em nome de Cristo, perdoe-me. Eu me enganei, tomei outro
caminho... E o pior é que agora não sei onde estamos. Vamos parar
um pouco para repousar.
― Mas vamos ficar gelados...
― Que importa!... Nossa vida não é tão doce que dê pena de
perdê-la. Preciso descansar um pouco.
O velho cedeu, suspirando.
Sentaram-se na neve, encostados um contra o outro, e ficaram
imóveis, como duas trouxas de farrapos. A neve, que caía incansável,
começou a cobri-los, e a mulher, menos agasalhada que o marido, não
tardou a se sentir tomada por um sono irresistível.
Sentindo que ela se apoiava mais fortemente sobre seus ombros,
o homem assustou-se:
― Minha velha, não durma: olhe que vai ficar gelada.
Porém, ela já adormecera, e balbuciava coisas incompreensíveis,
sem despertar.
O velho voltou-se e tentou erguê-la, repetindo seus alarmados
conselhos. Como não o conseguisse, ergueu os braços e bradou por
socorro. Ninguém o ouviu, mas os sinos, ao longe, começaram a
repicar.
― Minha velha ― insistiu o cego, sacudindo os ombros de sua pobre
companheira -, os sinos já estão tocando para a missa. Levante-se...
Olhe que vamos chegar tarde...
Mas a mulher mantinha-se imóvel.
Então, resignado, sentindo-se também invadido pela sonolência
mortal, o cego sentou-se de novo ao lado de "sua velha", e uma última
súplica passou por seus lábios:
― Senhor! Acolhe a alma de teus servos. Ambos somos
pecadores, mas confiamos em tua misericórdia.
Recordando essa história, sorri, contente comigo mesmo, certo de
que ela enterneceria meus leitores. E, embalado pelo tique-taque do
relógio, comecei a cochilar.
E então, sem saber ao certo se estava dormindo ou acordado, vi
a claridade vaga da janela aumentar, tomar um tom azul e
fosforescente, ampliar-se, formando um quadro imenso, e aí surgirem
pouco a pouco alguns vultos, a princípio confusos, inconsistentes. Mas
logo seus contornos foram se acentuando e desenhando formas
familiares aos meus olhos.
Eram crianças, mulheres, velhos... todos miseráveis e tristes.
― De onde vêm essas sombras e que representam? ― perguntei a
mim mesmo, tentando em vão emergir dos abismos do sono.
Uma voz perguntou por sua vez:
― Não nos reconhece?
Procurei distinguir no meio daquela multidão lamentável. Vi então
um grupo que, com passo vacilante, tomava a dianteira de todas as
sombras. Era um velho cego, apoiado à cintura de uma mulher
também já idosa, que me fitava com ar de censura.
― Não nos reconhece? ― repetiu ela com voz severa. ― Nós somos
os heróis dos contos que você passa a vida escrevendo; somos os
tristes e desgraçados filhos da sua imaginação... Ali estão os dois
meninos que você fez morrer de frio, diante das janelas de uma casa
onde fulgia, magnífica e opulenta, uma árvore de Natal. Aquela mulher
ali é a desgraçada que você fez morrer sob as rodas de um trem,
quando corria pela rua, ansiosa por levar aos filhos um presente de
Natal. Aquele ancião...
Eu ouvia, contemplando, pálido de horror, as sombras lúgubres e
silenciosas que desfilavam sem cessar ante meus olhos.
Por que vinham todas elas me alucinar nessa noite? Que queriam
de mim? Que pretendiam?
― Responda você mesmo a essas perguntas ― bradou a velha,
lendo o meu pensamento. ― Por que escreveu essas coisas? Para que
vive inventando essas desgraças, essas tristezas? Que pretende com
isso? Desfazer o que resta de fé e esperança no coração dos
homens? Tirar-lhes a confiança na redenção, mostrando-lhes somente
o mal? Aniquilar o desejo de viver, apresentando a existência como um
suplício sem fim e sem remédio?
Eu estava consternado... Seria mesmo assim tão culpado? O que
faço não é o que fazem todos os escritores? Especialmente nos
contos de Natal, procuramos todos imaginar cenas bem tristes, bem
tocantes, para despertar em nossos leitores sentimentos
compassivos, abrir os corações à piedade...
― É mentira! ― bradou a velha. ― Mentira ingénua e ridícula. Então
pretende, com dores e misérias, despertar bons sentimentos nos
corações acostumados a desgraças reais? Idiota! Pensa enternecer,
com suas pobres fantasias, os homens que não se comovem ante a
realidade miserável de todos os dias?...
O resto do sonho foi uma confusão que não consigo recompor;
mas pela manhã, quando despertei, meu primeiro movimento foi correr
à mesa onde deixara as tiras de papel escritas na véspera.
Rasguei-as sem tornar a lê-las; atirei os pedaços pela janela, e
eles esvoaçaram no ar claro como mariposas.
FIM
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Máximo Gorki | Escritor russo, de seu verdadeiro nome
Alexei Maximovitch Peshkov, nascido 28 de março de 1868, em Nizhni Novgorod, e
falecido a 14 de junho de 1936. Poderoso ficcionista, aplaudido como o expoente
da literatura proletária, celebrizou-se por contar histórias de párias e de
vagabundos.
Descreveu o movimento revolucionário russo na obra A Mãe (1906), e nesse mesmo
ano partiu para o exílio. Atingiria o cume da sua produção literária com uma
trilogia autobiográfica, composta por A Minha Infância (1913-1914), Ganhando o
meu Pão (1915-1916) e As Minhas Universidades (1923).

SONHO DE UMA NOITE DE NATAL
Máximo Gorki
in
Os Melhores Contos Russos
LeBooks,
1ª. Edição
Coleção Melhores Contos
São Paulo – 2018
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