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imagem: Sansão e Dalila -
Anthony van Dyck, c. 1618-20
Havia no vale de Sorec uma linda filistéia chamada Dalila. Seu nome,
de graciosa sonoridade, significava “flerte”, ou “delicadeza”, e condizia bem
com o seu aspecto misteriosamente dúbio, em que uma sensualidade natural
convivia harmonicamente com uma inesperada delicadeza. Tudo em seu corpo
era um convite irresistível – e ao mesmo tempo, sedutoramente austero –,
desde os seus lábios rubros e sempre úmidos até os dedos bem cuidados dos
seus pés atraentes. Dotada de uma pele morena, Dalila andava sempre envolta
em túnicas de linho negro que se ajustavam ao seu corpo como uma segunda
pele escura e sedutora, como a das panteras.
Dalila, no entanto, não era, nem de longe, uma mulher vulgar. Apesar de
sua vida amorosa ser um tecido de romances clandestinos – afinal, era a
mulher mais cobiçada de toda a Filistéia –, pouco tinha, porém, da cortesã
fatal. Ela não era um modelo de virtudes, mas tinha classe. Não era confiável,
mas atraía.
Atração e traição. Certo ou errado, Dalila era ambos.
Porém, de sua vida pregressa nada se sabia, até o instante em que passa
a dividir a cena com o seu novo e robusto amante.
– Sansão, estar em seus braços é como estar espremida entre as duas
colunas que sustentam o mundo! – dizia ela, perfeitamente à vontade sem a sua
segunda pele, nos raríssimos instantes em que se permitia elogiar, sem cálculo,
a um homem.
Isto porque o dinheiro de um homem bem situado era o único meio que
possuía uma mulher – que ambicionava ser mais do que uma mera escrava de
um macho sisudo – de não ser ultrajada diariamente por sua condição servil de
mulher.
Para Sansão, por sua vez, ter em seus braços rijos aquela serpente
dotada de braços e de pernas era, ao mesmo tempo, um revigorante exercício
de virilidade que envolvia um risco vagamente mortal.
Mas o que era, afinal, o desejo, sem o menor traço do risco?,
perguntava-se ele, mesmo já tendo provado da falsidade que podia provir de
uma mulher – e pior, ainda, de uma mulher idólatra, que servia
voluntariamente a um deus de abominações.
O desejo tinha de ter algo de ameaça. Um beijo envolvia sempre um
risco, ou então não era nada. Assim pensavam os dois, e por isto permaneciam
tanto tempo juntos, durante os seus encontros furtivos, procurando extrair
daquela espécie de duelo sensual o maior número de situações deliciosas e
perigosas.
– Às vezes, em seus braços, sinto a volúpia da morte, uma outra morte
que não sei explicar – dizia ela, depois de cessados os jogos amorosos. – Uma
morte de tudo quanto há de aborrecido neste mundo, e dentro de mim mesma!
Sansão também sentia o mesmo, pois ele também transgredia. Ambos
trangrediam, pois o amor de um israelita e de uma filistéia só podia ser mal
visto por ambos os lados, entregues a uma disputa permanente e mortal.
Mas cessados os prazeres – durante os quais Sansão perdia a cabeça–,
Dalila voltava a ser a mesma de antes de sua subida ao leito. Submetida às
injunções de um mundo implacável, assim que tocava o primeiro dedo do seu
pé sobre o frágil tapete, ela colocava a cabeça de volta no seu devido lugar e
punha-se a raciocinar.
Isto ela fez com maior intensidade quando recebeu, certo dia, a visita
de uma comissão de chefes filisteus – príncipes que governavam cada uma das
cidades que compunham a confederação da chamada Filistéia – para lhe fazer
uma gravíssima imposição.
– Dalila, sabemos que você mantém um romance, que imagina secreto,
com o líder supremo de nossos inimigos – disse o líder do grupo, um velho
filisteu de barbas brancas que trazia um segundo e inconfesso interesse
naquela embaixada.
A bela filistéia, que recém havia se levantado do leito, tentou esconder
o que estava à vista de todos.
– Não perca seu tempo tentando negar, pois será pior – disse o velho,
que parecia verdadeiramente enciumado.
Dalila sabia reconhecer quando a situação lhe era irremediavelmente
desfavorável. Nesses instantes, o princípio da realidade assomava em si,
soberano. “Agora estou a sós com meus inimigos”, pensou, repetindo as
palavras que sempre lhe acudiam à mente em situações parecidas.
Dalila, como todos os destemidos, capitulou apenas com o olhar.
– Queremos que descubra de onde Sansão retira sua força prodigiosa –
disse o velho. – Pagaremos, por isto, mil e cem siclos de prata.
Dalila ficou paralisada. Todo e qualquer escrúpulo que lhe viera à
mente diante das primeiras palavras do velho desaparecera diante da segunda
parte de sua fala.
“Mil e cem siclos de prata!”, pensou, perdendo novamente a cabeça.
Então o escrúpulo inicial cedeu passo ao cálculo, expediente mental
infinitamente mais útil e necessário a uma mulher que não deseja servir a
ninguém. “Cedo ou tarde, Sansão me abandonará”, pensou ela.
Aquele foi um subterfúgio pouco nobre. Mas quem disse que ela amava
a nobreza? Tudo o que Dalila queria era fugir da pobreza. Além do mais, mil e
cem siclos de prata valiam cerca de 275 vezes o preço de um escravo.
“Duzentas e setenta e cinco vezes liberta!”, pensou ela, inebriada por
aquela exorbitância de liberdade. Sim, aquilo era o bastante para fazê-la
esquecer que seu gesto implicava não só uma traição, como também a possível
morte do homem com o qual ela dividira apaixonadamente seu leito nos
últimos meses.
“Sansão é homem, e esta é uma briga de homens”, pensou novamente.
“Além do mais, ninguém ama uma prostituta, senão o prazer que ela dá.”
Com este pensamento esquivo, Dalila lançou a última pá de cal sobre
os restos agonizantes de sua dignidade moral – pois se havia uma coisa de que
estava inteiramente convicta era a de que num mundo material o que realmente
importava era a dignidade material.
O velho não julgou necessário revelar a alternativa que restaria a
Dalila, caso recusasse aquela estonteante oferta. Ela própria sabia que só
tinha, agora, diante de si, a opção entre o luxo desonroso e o martírio moral.
Dalila não tinha vocação alguma para mártir e fechou ali mesmo o negócio.
Naquela mesma noite ela recebeu Sansão novamente em seu leito, e
depois de renovadas as carícias, pediu que ele revelasse a origem de sua força
descomunal.
Sansão respondeu com novos afagos e um sorriso enigmático. Dalila
enroscou, então, suas pernas na cintura do amante, voltando à carga.
– Que corda seria forte o bastante para segurá-lo? – disse ela, colando
sua boca à dele.
Sansão gostou do brinquedo e resolveu também brincar.
– Se me amarrassem com sete cordas de arco novas e não curtidas eu
estaria solidamente aprisionado – disse ele, num tom de voz convincente.
No outro dia, os filisteus conseguiram para ela as tais cordas, com as
quais Dalila amarrou o gigante, como se aquilo fizesse parte de um novo jogo
de amor.
– Agora está bem preso? – perguntou ela, depois de atar firmemente os
nós.
– Preso para sempre! – disse ele, num tom deliciosamente dúbio.
Então, para testar sua sinceridade, ela fingiu escutar um ruído às suas
costas.
– Depressa, meu amor, os filisteus estão vindo!
No mesmo instante, Sansão pôs-se de pé, esfarelando as sete cordas
que envolviam seu tórax como se fossem sete teias de aranha.
– Seu mentiroso! – disse Dalila, terrivelmente amuada. – Por que me
fez de boba?
Sansão abriu um grande sorriso, tomando-a nos braços.
Mas Dalila não desistia, e por isto renovou seu pedido, depois das mais
ardentes carícias.
– Diga-me, agora, qual o segredo de sua força! – disse ela, quase
desfalecida, fazendo deslizar por seus dedos uma das sete longas tranças do
amante.–
Está bem, sua teimosa, direi a você! – ele falou, e fez uma pausa.–
Amarre-me com sete cordas novas e grossas e estarei solidamente
aprisionado.
Na noite seguinte, ela fez como ele dissera, mas outra vez o pretenso
segredo revelou-se um novo ardil.
Com os olhos rasos de água, Dalila correu até ele e esmurrou contra o
seu peito maciço os seus frágeis punhos de prostituta.
– Seu falso! Seu falso! – gritava, sinceramente ofendida.
Dalila sabia que cada insucesso seu aumentava-lhe o risco de ver não
só desaparecerem os seus mil e cem siclos de prata, como também a sua linda
cabeça.–
Muito bem, desta vez direi a verdade – disse ele, dizendo uma nova
mentira. – Se tecer as sete tranças de minha cabeleira com a urdidura de um
tear e fixá-las num único pino, estarei privado de toda a minha força.
Na noite seguinte, Dalila fez como ele dissera, até ver as sete tranças
presas pelo pino que julgava fatal. Então repetiu seu estratagema de alertá-lo
subitamente.
Sansão ergueu-se e arrancou o pino, liberando suas tranças.
Então Dalila compreendeu que teria de recorrer ao mais eficaz de todos
os recursos, privando-o daquilo que ele tanto necessitava.
– Não provará mais do meu corpo até que tenha me revelado o seu
segredo – disse a filistéia, de maneira taxativa.
Durante uma infinidade de noites Sansão ficou sem provar do corpo de
Dalila, tendo, ao mesmo tempo, de escutar as suas lamúrias, até que perdeu
finalmente a sua capacidade de resistência.
– Por que quer saber tanto o meu segredo? – perguntou Sansão, num
último lampejo de bom senso antes do desastre final.
– Só acredito no amor de um homem que confia plenamente em mim –
disse ela, vencendo o homem mais forte do mundo com uma simples frase de
efeito.
Sansão, enfarado de tantas e húmidas indagações, revelou, então, o seu
segredo:
– Minha força está nas minhas sete tranças – disse ele. – Sou
consagrado ao Senhor desde meu nascimento, e a navalha não pode cortar
jamais os meus cabelos.
Dalila sentiu que aquela resposta era sincera, e por isto avisou aos
filisteus que na noite seguinte Sansão estaria em suas mãos.
Assim que ela teve o amante outra vez em seus braços, esperou que ele
adormecesse para fazer um sinal ao barbeiro que cuidava dos seus próprios
cabelos para que avançasse.
No mesmo instante, um anão surgiu por detrás de uma espessa cortina,
trazendo em suas duas mãozinhas bojudas uma enorme tesoura de jardineiro –
pois, esperto, não deixara de prever que os cabelos de um homem forte
deveriam ser igualmente resistentes – e foi pé ante pé até onde estava o gigante
hebreu adormecido.
Um sorriso matreiro enrugou ainda mais a pequena e repulsiva face do
pequeno ser quando ele aproximou as duas lâminas da primeira trança.
A tesoura cortou na raiz a primeira trança, que foi cair ao solo como
uma cobra d’água sem vida.
Um risinho fungado acompanhou a queda da serpente capilar
esmorecida.
Logo em seguida, o anão – depois, é claro, de verificar se o gigante
ainda dormia – aproximou as duas lâminas da segunda trança e começou a
cortá-la.
E a tesoura deitou abaixo a segunda trança, sob o som silvado do riso
nasal que escapava do nariz esborrachado do anão.
E assim foi até que a enorme tesoura houvesse extirpado a última das
sete tranças de Sansão. Concluído o serviço, o anão retirou-se com tamanha
empáfia que pareceu até haver aumentado alguns centímetros, enquanto Dalila
preparava-se para despertar seu amado para o pesadelo que o esperava.
De repente, porém, viu irromperem de todos os lados os filisteus
escondidos, decididos a não esperar mais nada para pôr suas mãos sobre o
adversário odiado.
– Sansão, depressa, são os filisteus! – disse ela, com uma secreta
esperança de que ele ainda possuísse força bastante para livrar-se dos seus
agressores.
Mas não foi assim. Sansão, livrou-se dos primeiros, mas sentiu que a
força maior que até então o sustentara em seus combates o havia abandonado
miseravelmente.
Agarrado por uma centena de braços, Sansão teve seus membros
imobilizados, e antes que pudesse ver qualquer outra coisa sentiu que lhe
agarravam a cabeça. A seguir, foi tudo tão rápido como se um raio cegante o
houvesse atingido. Um dos filisteus havia vazado seus olhos com a lâmina
ardente de sua espada, tornando-o cego para sempre.
Dalila retirara-se no mesmo instante em que os inimigos de Sansão
haviam entrado no recinto e não chegou a ver a barbárie que praticaram contra
seu ex-amante.
Na verdade, Dalila nunca mais pôs os olhos sobre o homem que
desgraçara, pois não queria ver empanado, de jeito nenhum, o brilho das suas
mil e cem moedas de prata – a passagem definitiva para a sua tão sonhada
independência.
Sansão foi amarrado com duas pesadas correntes de bronze e conduzido
até Gaza, debaixo de açoites, sem enxergar nenhum dos vilipêndios que lhe
faziam, embora os sentisse perfeitamente em sua pele martirizada. Ao cruzar
pela porta que alguns dias antes ele próprio arrancara dos gonzos, alguém lhe
disse sardonicamente:
– Aí está a porta, gigante careca! Arranca-a, agora, se ainda tem força!
Um coro de risos estrugiu na escuridão, enquanto bofetadas traiçoeiras
estalavam em sua face ensangüentada.
Levado até um moinho, Sansão, com as vestes em tiras, escutou outra
voz dizer:
– Desatrelem o burro!
Um ruído rascante de arreios sendo retirados antecedeu um golpe
violento nas suas costas, que o impeliu para diante.
– Vamos, assuma o seu lugar! – disse a mesma voz, golpeando-lhe
novamente o flanco ensangüentado.

imagem: Sansão no Moinho - Frederic Leighton, 1881
Sansão sentiu as grossas tiras de couro serem amarradas em sua cintura,
enquanto suas mãos eram colocadas violentamente sobre a barra que deveria
empurrar, no lugar do asno. Uma violenta chicotada foi o sinal para que
começasse a realizar sua aviltante tarefa.
Um novo e repugnante coro de risos preencheu a escuridão do cérebro
do gigante, que, ainda assim, encontrou forças para dar graças ao seu deus por
não poder ver os sorrisos hediondos que podia perfeitamente imaginar
desenhados nas faces dos seus inimigos.
“Graças ao Senhor que nada vejo”, pensou, buscando ânimo justamente
na sua maior desdita.
Durante meses Sansão, preso aos arreios permanentemente melados do
seu próprio sangue e suor, arrastou de sol a sol a pesada mó do moinho, tendo
por alimento o mesmo pasto que mantivera em pé o seu pobre antecessor.
Algum tempo depois, realizaram-se os festejos em homenagem a Dagon,
um dos mais importantes deuses dos filisteus. Reunidos em seu majestoso
templo, os devotos de Dagon entregaram-se a toda espécie de festejos, com
muita comida, bebida e danças – que era, naturalmente, a parte mais apreciada
da homenagem.
Mas apesar de tudo isto, ainda houve quem se sentisse entediado.
– Ora, mas que chatice! – disse um figurão enfastiado, que não por
acaso era também o sacerdote oficiante do culto ao deus filisteu.
Então, antes que chegasse a hora dos ritos repetitivos e das homilias e
das pregações e das cantorias das filhas santíssimas de Dagon, teve ele a
iluminada idéia de animar os festejos com uma boa cena de humilhação
pública. “Por que não desfeitear uma vez mais o maldito hebreu?”, pensou ele,
animando-se um pouco.
Dando voz imediata ao seu pensamento, o sacerdote de Dagon, o deus
magnífico, mandou que trouxessem Sansão do moinho.
Quando o prisioneiro surgiu, entretanto, não era nem sombra daquele
ser assustadoramente forte que havia feito seus inimigos tremerem diante de
sua simples aparição. Sansão, além de ter emagrecido espantosamente por
força do severo regime a que fora submetido, parecia ter também diminuído de
tamanho, devido ao hábito constante de andar em círculos e encurvado aos
arreios. Um silêncio involuntariamente constrangido desceu sobre o templo
quando Sansão surgiu trazendo apenas um trapo rasgado pendido de sua
cintura, detalhe que aumentava ainda mais a afronta dirigida à sua antiga
dignidade de ex-juiz de Israel.
O sacerdote enfastiado que ordenara a vinda de Sansão enfureceu-se,
entretanto, diante daquele silêncio, que parecia mais uma homenagem do que
um vilipêndio ao maior dos inimigos da sua nação.
– Por que o silêncio, cretinos? – rugiu ele, espalhando perdigotos para
todos os lados. – Vamos, riam...! Riam todos...!
Um dos algozes de Sansão deu um forte tapa na cabeça do prisioneiro e
isto foi o estopim para que um rastilho de gargalhadas explodisse por todo o
templo.
– Isto, riam, desgraçados! Riam mais, muito mais! – disse o sacerdote
entediado, a rinchar uma paródia grotesca do riso humano, já que ele próprio,
um impotente da alegria, era incapaz sequer de sorrir, quanto mais de rir.
Sansão, imobilizado na sua humilhação, permanecia, no entanto, com a
cabeça erguida. Seus olhos vazados, cegos para tudo o mais, só tinham agora
uma única coisa a enxergar: o velho deus de Abraão e de Jacó, que tantas
vezes o engrandecera diante daquela malta de idólatras – o deus que ele
seguidamente afrontara ao insistir em se envolver com as pérfidas mulheres da
Filistéia amaldiçoada.
Nem por um único instante Sansão se preocupou em saber se Dalila, a
amante que o atraiçoara de maneira tão vil, ali se encontrava. Ela
simplesmente não existia mais em seu pensamento – nada mais existia a não
ser o deus de Israel.
– Silêncio, imbecis! – disse o filisteu, autor da humilhação. – Quero
ouvir o que o escravo hebreu está cantarolando.
Novo e opressivo silêncio desceu sobre as paredes jaspeadas do antigo
templo. Entre os ruídos esparsos e ignóbeis de alguns arrotos e outras
expulsões ainda mais torpes, escutou-se a voz grossa de Sansão entoar
algumas palavras desconexas, que os ouvidos embriagados dos convidados
tomaram por uma pequena canção.
– Vejam, o escravo canta! – disse uma voz em falsete, procurando
imitar os resmungos desconexos do gigante.
Logo outros começaram a imitar os salmos que Sansão cantava, numa
imitação vil da sua oração entristecida.
– Por que não dança para nós? – disse outra voz perdida no meio da
chusma.A idéia pareceu tão magnificamente original ao grão-sacerdote que ele
não pôde evitar de esconder-se alguns instantes sob a mesa para dar vazão à
sua frustração, mordendo a mão de despeito.
“Morrerá ainda hoje”, pensou o figurão vaidoso, ao erguer-se outra vez,
antes de repetir a mesma idéia do outro, porém num tom autoritário que
chamava imediatamente para si a sua autoria.
– Ponham-no para dançar! Que cante e dance para nós!
Nova onda de aplausos ergueu-se entre a massa, fazendo com que o
plagiário fosse ovacionado muito mais do que o verdadeiro autor.
“Ainda assim morrerá”, pensou o sacerdote, habituado a perdoar
profissionalmente – ou seja, a só perdoar as ofensas que não lhe diziam
respeito.
Sansão, recebendo nos rins os golpes violentos dos bastões dos seus
algozes, viu-se obrigado a ensaiar os passos de uma dança esquisita – que aos
olhos dos idólatras não passavam de grosseiras contrafações das suas danças
promíscuas, mas que, na verdade, nada mais eram do que uma espécie de
premonição dos passos extasiados que Davi, o futuro rei de Israel, repetiria
um dia pelas ruas de Israel.
Nova remessa de risos subiu até a cúpula côncava do templo, descendo
de maneira ampliada até o ponto onde as cabeças agitavam-se, exibindo o
aspecto lamentável de suas bocas arreganhadas, onde negrejavam alguns
restos de dentes podres e gengivas escuras, como que besuntadas de carvão.
O sacerdote enfarado, vendo, entretanto, o adiantado da hora, esperou
que o último riso se extinguisse para declarar encerrados os festejos. Além do
mais, ele tinha um certo compromisso secreto para logo mais, que o obrigava a
passar de uma vez para a parte séria da homenagem.
– Basta! – disse ele, cerrando os olhos e dando um novo tom à
homenagem.
Enquanto isto, Sansão foi deixado abandonado ao centro do templo.
Tateando, ele procurava algo no qual se escorar, quando sentiu sua mão tocar
numa pilastra. Com a outra mão ele apalpou o ar até encontrar a outra pilastra
gêmea.
Então, subitamente, sua mente se iluminou. Ajeitando-se melhor entre as
duas colunas, disse ao carcereiro que estava prestes a conduzi-lo de volta aos
arreios da sua detestável prisão:
– Permita que eu me apóie a estas colunas, um pouco, para descansar.
O carcereiro franziu o canto inferior do lábio direito, mas acabou
concordando.
– Só um instante! – disse ele, vibrando novo golpe nos rins do escravo,
só para não perder de todo a autoridade.
Então, com os dois braços abertos e apoiados frouxamente nas duas
colunas, Sansão começou a orar fervorosamente ao seu deus.
“Senhor Deus, não me abandone! Hoje sei que toda a minha força não
era minha, na verdade, e que tudo quanto obrei foi por tua única e exclusiva
vontade! Se hoje estou mais fraco do que jamais estive, minha fé está mais
robustecida do que jamais esteve. Faz com que sua força desça somente mais
uma vez sobre mim para que eu possa vingar todas as afrontas que me foram
feitas, punindo-os pela perda de meus dois olhos!”
Os músculos das pernas e dos braços de Sansão, apesar do regime de
fome a que estivera submetido, não encontraram dificuldade para retesarem-se
uma vez mais, já que os empregava todos os dias no movimento da mó do
moinho. Logo ele todo inteiriçou-se de tal maneira entre os dois sólidos
pilares, com os braços inteiramente esticados, que parecia estar
verdadeiramente crucificado a eles.
O esforço hercúleo que despendeu de seus músculos fez com que a
frágil proteção de pano que recobria seus rins se desprendesse, deixando-o
inteiramente nu diante da multidão, que a princípio não percebera suas reais
motivações. Logo, contudo, alguns dedos apontaram na sua direção e outras
vozes cochichadas exclamaram, como que abismadas, diante do que o gigante
nu estaria pretendendo fazer.
Mas de repente todas as atenções desviaram-se da arenga que o
sacerdote-mor pronunciava, e isto porque um estalo seco partira de uma das
colunas. Um grito de terror varou o silêncio que se seguiu.
– Ele está derrubando os pilares!
Um uivo único subiu das gargantas filistéias quando todos perceberam
o que estava prestes a acontecer. Sansão tinha os músculos do peito
distendidos a tal ponto que os ossos lhe rompiam para fora da pele fazendo
pequenas listras de sangue escorrerem pelo corpo, alcançando as pernas,
também distendidas.
Logo outros dois ruídos pavorosos e quase simultâneos deram início à
catástrofe final. Sansão finalmente conseguira romper as duas pilastras, que se
partiram em quatro ou cinco pedaços, e suas partes desencaixadas rebolaram
por alguns segundos aterrorizantes antes de ruir com um fragoroso estrépito.
Num segundo o teto côncavo do templo veio abaixo como uma
prodigiosa tigela invertida de pedra e granito, indo cair bem ao centro do
templo, onde estava a frágil estatueta do deus poderoso. Os destroços da
cúpula, depois de caírem sobre o solo, esmagando centenas de devotos,
saltaram novamente para cima, iniciando nova queda.
O sacerdote-mor, que durante a primeira fração de segundo julgara-se
milagrosamente posto a salvo, teve de mudar seus prognósticos quando viu
descer novamente do alto um enorme pedaço redondo de pedra manchado de
sangue, como uma grande pedra de moinho, bem na sua direção. Ele deu dois
passos para trás, erguendo o braço, mas nem que desse dez outros teria
escapado ao seu destino fatal, pois a pedra colossal lhe caiu inteiramente por
cima, esmagando instantaneamente a sua cabeça e o seu corpo, indo depois
saltar alegremente noutra direção.
Ninguém houve que se salvasse na catástrofe, incluindo o próprio
Sansão, o qual conseguiu, no entanto, vingar o ultraje de que fora vítima,
graças ao poder que o deus de Israel lhe infundira.
Ignora-se se a suave Dalila esteve no templo naquele dia. Tudo quanto
se disser a este respeito não passará jamais de especulação, razão pela qual o
leitor estará sempre livre para imaginar o desfecho que melhor lhe convenha:
Dalila esmagada sobre os pedregulhos ou a gozar ainda, por longos anos, dos
mil e cem siclos de prata tão arduamente conquistados.
FIM
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SANSÃO E DALILA
-texto integral-
in 'As 100 melhores histórias da Bíblia'
Carmen Seganfredo & Ademilson Franchini
Porto Alegre | L&PM, 2011.
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