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excerto
Tinha treze anos quando Severo del Valle me ofereceu uma máquina fotográfica
moderna que utilizava papel em vez das placas antigas e que deve ter sido das
primeiras a chegar ao Chile. O meu pai morrera há pouco tempo e os pesadelos
afligiam-me tanto que não queria deitar-me e, à noite, deambulava como um
espectro pela casa, seguida de perto pelo pobre Caramelo, que foi sempre um cão
tonto e preguiçoso, até a minha avó Paulina se compadecer de nós e nos receber
na sua enorme cama dourada. Ocupava metade da cama com o seu corpo grande,
morno, perfumado, e eu aninhava-me no canto oposto, tremendo de medo, com
Caramelo aos pés, "O que vou fazer com vocês dois?", suspirava a minha avó meio
adormecida. Era uma pergunta retórica, porque nem o cão nem eu tínhamos futuro,
existia consenso geral na família de que eu "ia acabar mal", Nessa altura,
licenciara-se a primeira médica chilena e outras mulheres tinham entrado na
universidade. Isso deu a Nívea a ideia de que eu poderia fazer outro tanto, nem
que fosse apenas para desafiar a família e a sociedade, mas era evidente que eu
não tinha a menor apetência para os estudos. Apareceu então Severo del Valle com
a máquina fotográfica e colocou-ma na saia. Era uma bonita Kodak, preciosista
nos pormenores de cada parafuso, elegante, suave, perfeita, feita para mãos de
artista. Ainda a utilizo; nunca falha. Nenhuma rapariga da minha idade tinha um
brinquedo assim.
Peguei nela com reverência e fiquei a olhá-la sem fazer ideia de como se usava.
"Vamos ver se consegues fotografar as trevas dos teus pesadelos", disse-me
Severo del Valle a brincar, sem suspeitar que esse seria o meu único objectivo
durante meses e no empenho de esclarecer esse pesadelo acabaria apaixonada pelo
mundo. A minha avó levou-me à Plaza de Armas, ao estúdio de dom Juan Ribero, o
melhor fotógrafo de Santiago, na aparência um homem seco como pão duro, mas
generoso e sentimental por dentro.
- Aqui lhe trago a minha neta como aprendiz - disse a minha avó, colocando sobre
a secretária do artista um cheque, enquanto eu me aferrava ao seu vestido com
uma mão e com a outra abraçava a minha nova máquina fotográfica.
Dom Juan Ribero, que media menos meia cabeça e tinha metade do peso da minha
avó, endireitou os óculos no nariz, leu cuidadosamente o montante escrito no
cheque e depois devolveu-o, olhando-a dos pés à cabeça com um desprezo infinito.
- O montante não é problema... Diga você o preço - vacilou a minha avó.
- Não é uma questão de preço mas de talento, senhora - replicou conduzindo
Paulina del Valle até à porta.
Entretanto eu tivera oportunidade de dar uma vista de olhos à minha volta. O
trabalho dele cobria as paredes: centenas de retratos de gente de todas as
idades. Ribero era o favorito da classe alta, o fotógrafo das colunas sociais,
mas quem olhava para mim das paredes do seu estúdio não eram perucas
empertigadas nem belas debutantes, mas índios, mineiros, pescadores, lavadeiras,
crianças pobres, velhos, muitas mulheres como aquelas a quem a minha avó
socorria com os seus empréstimos do Clube de Damas. Ali estava representado o
rosto multifacetado e atormentado do Chile.
Aquelas caras nos retratos abanaram-me por dentro, quis conhecer a história de
cada uma dessas pessoas, senti uma opressão no peito, como um soco, e uma
vontade irreprimível de chorar, mas engoli a emoção e segui a minha avó com a
cabeça levantada. Na carruagem ela tentou consolar-me: não devia preocupar-me,
disse, arranjaríamos outra pessoa que me ensinasse a usar a máquina fotográfica,
fotógrafos havia para dar e vender; o que julgava aquele pelintra malnascido,
para falar naquele tom arrogante com ela, nada menos do que Paulina del Valle. E
continuou discursando, mas eu já não a ouvia porque tinha decidido que só dom
Juan Ribero seria o meu professor. No dia seguinte saí de casa antes de a minha
avó se levantar, pedi ao cocheiro que me levasse ao estúdio e instalei-me na rua
disposta a esperar para sempre. Dom Juan Ribero chegou por volta das onze da
manhã, viu-me diante da sua porta e mandou-me voltar para casa. Eu era tímida
nessa altura - ainda sou - e muito orgulhosa, não estava habituada a pedir
porque desde que nasci me mimaram como a uma rainha, mas a minha determinação
devia ser muito forte. Não me afastei da porta.
Algumas horas mais tarde o fotógrafo saiu, olhou-me furioso e pôs-se a andar
pela rua abaixo. Quando voltou do almoço encontrou-me ainda ali pregada, com a
minha máquina fotográfica apertada contra o peito. "Está bem", murmurou vencido,
"mas aviso-a, jovenzinha, que não terei qualquer consideração especial por si.
Aqui obedece-se calada e aprende-se rapidamente, entendido?". Concordei abanando
a cabeça, porque a voz não me saiu. A minha avó, habituada a negociar, aceitou a
minha paixão pela fotografia desde que eu investisse o mesmo número de horas nos
ramos escolares habituais nos colégios de homens, incluindo latim e teologia,
porque segundo ela não era capacidade mental o que me faltava, mas rigor.
- Por que não me manda para uma escola pública? - pedi-lhe, entusiasmada pelos
rumores sobre a educação laica para raparigas, que provocava pavor entre as
minhas tias.
- Isso é para gente de outra classe, jamais o permitirei - determinou a minha
avó.
De modo que desfilaram novamente preceptores pela minha casa, vários dos quais
eram padres dispostos a instruir-me a troco das dádivas suculentas da minha avó
às suas respectivas congregações.
Tive sorte, em geral trataram-me com indulgência, porque não esperavam que o meu
cérebro aprendesse como o de um varão. Dom Juan Ribero, pelo contrário,
exigia-me muito mais porque defendia que uma mulher deve esforçar-se muito mais
do que um homem para conseguir o respeito intelectual ou artístico. Ensinou-me
tudo o que sei sobre fotografia, desde a escolha de uma lente até ao laborioso
processo da revelação; nunca tive outro professor.
Quando abandonei o seu estúdio dois anos mais tarde, éramos amigos. Agora tem
setenta e quatro anos e há vários que não trabalha, porque está cego, mas ainda
guia os meus passos vacilantes e ajuda-me. Seriedade é o seu lema. A vida
apaixona-o e a cegueira não foi um impedimento para continuar a olhar para o
mundo. Desenvolveu uma forma de clarividência. Tal como outros cegos têm gente
que lhes lê, ele tem gente que observa e lhe conta. Os seus alunos, os seus
amigos e os seus filhos visitam-no diariamente e fazem turnos para lhe
descreverem o que viram: uma paisagem, uma cena, um rosto, um efeito de luz. Têm
de aprender a observar com muito cuidado para suportarem o interrogatório
exaustivo de dom Juan Ribero; dessa forma, as suas vidas mudam, já não podem
andar pelo mundo com a leviandade habitual porque têm de ver com os olhos do
mestre. Eu também o visito com frequência.
Recebe-me na penumbra eterna do seu apartamento na Rua Monjitas, sentado na sua
poltrona diante da janela, com o gato nos joelhos, sempre hospitaleiro e sábio.
Mantenho-o informado sobre os avanços da técnica no âmbito da fotografia,
descrevo-lhe em pormenor cada uma das imagens dos livros que encomendo a Nova
Iorque e Paris, consulto-o sobre as minhas dúvidas. Está a par de tudo o que
acontece nesta profissão, entusiasma-se com as diversas tendências e teorias,
conhece os nomes dos mestres mais importantes da Europa e dos Estados Unidos.
Sempre se opôs ferozmente às poses artificiais, às cenas estudadas em estúdio,
às impressões grosseiras feitas com vários negativos sobrepostos, tão na moda há
alguns anos. Acredita na fotografia como testemunho pessoal: uma maneira de ver
o mundo e que essa maneira deve ser honesta, usando a tecnologia como meio para
captar a realidade, não para distorcê-la. Quando passei por uma fase em que me
deu para fotografar raparigas em enormes recipientes de vidro, perguntou-me para
quê com um desprezo tal, que não continuei por esse caminho, mas quando lhe
descrevi o retrato que tirei de uma família de artistas de um circo pobre, nus e
vulneráveis, interessou-se imediatamente.
Eu tinha tirado várias fotografias dessa família, posando diante de uma carroça
maltratada que lhes servia de transporte e de casa, quando saiu do veículo uma
menina de quatro ou cinco anos, completamente nua. Nessa altura ocorreu-me
pedir-lhes que tirassem a roupa. Fizeram-no sem malícia e posaram com a mesma
intensa concentração com que o tinham feito quando estavam vestidos. Era uma das
minhas melhores fotografias, uma das poucas que ganhou prémios. Depressa se
tornou evidente que me atraíam mais as pessoas do que os objectos ou as
paisagens. Ao tirar um retrato estabelece-se uma relação com o modelo que, ainda
que breve, sempre é uma ligação. A placa revela não apenas a imagem, mas os
sentimentos que fluem entre ambos. Dom Juan Ribero gostava dos meus retratos,
muito diferentes dos seus. "Você sente empatia pelos seus modelos, Aurora, não
tenta dominá-los mas compreendê-los, por isso consegue expor as suas almas",
dizia. Incitava-me a deixar as paredes seguras do estúdio e sair para a rua,
deslocando-me com a máquina, olhando com os olhos bem abertos, ultrapassando a
minha timidez, perdendo o medo, aproximando-me das pessoas. Apercebi-me que em
geral me recebiam bem e posavam com toda a seriedade, apesar de eu não passar de
uma fedelha: a máquina fotográfica inspirava respeito e confiança, as pessoas
abriam-se, entregavam-se. Estava limitada pela minha pouca idade, durante muitos
anos não pude viajar pelo país, meter-me nas minas, nas greves, nos hospitais,
nos casebres dos pobres, nas pequenas escolas miseráveis, nas pensões de
tuta-e-meia, nas praças empoeiradas onde definhavam os reformados, nos campos e
nas aldeias de pescadores. "A luz é a linguagem da fotografia, a alma do mundo.
Não existe luz sem sombra, tal como não existe alegria sem dor", disse-me dom
Juan Ribero há dezassete anos, na aula que me deu naquele primeiro dia no seu
estúdio da Plaza de Armas. Não me esqueci. Mas não posso adiantar-me. Propus-me
contar esta história passo a passo, palavra a palavra, como deve ser.
ϟ

Retrato a Sépia
-excerto-
Isabel Allende
Título original: Retrato en Sepia (2000)
Porto Editora, 2013
14.Jan.2024
Publicado por
MJA
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