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António Lobo Antunes

imagem: Os Sapateiros | Poty
Lazzarotto, 1944
Quando me perguntam quais foram as pessoas que me marcaram na vida esqueço-me
sempre, imperdoavelmente, de Frutuoso França. Há quem admire Eisenstein, quem se
extasie diante de Napoleão, quem adore Velázquez, Tolstoi ou Matateu, quem
coleccione fotografias de James Dean, quem visite em passinhos de igreja a casa
de Camilo, quem recite versos de Camões a torto e a direito: eu julgo ser a
única criatura do mundo que adora Frutuoso França e esta crónica é um acto de
homenagem e justiça.
Não sei se Frutuoso França é gordo ou magro, alto ou baixo, bonito ou feio,
careca ou cabeludo. Não sei se prefere pipis ou passarinhos, anéis de pedra
encarnada ou preta, gravatas de ramagens prateadas ou douradas, sapatos de
verniz ou botas de carne ira, porque nunca o vi.
Quando eu tinha nove anos havia na Travessa dos Arneiros, ao lado dos meus pais,
a oficina de sapateiro do senhor Florindo, esconso minúsculo, negríssimo, a
cheirar a cola e a vomitado, com um aparelho de rádio numa prateleira alta, onde
o senhor Florindo, de cigarro apagado no canto da boca, martelava protectores
rodeado de cegos de óculos escuros, sentados em banquinhos de pau, partilhando
entre si um garrafão de vinho.
De volta da escola eu pousava o livro da quarta classe nos joelhos, acocorava-me
como um mocho no degrau da entrada e ficava a ouvir, fascinado, as conversas dos
cegos acerca do tempo em que não usavam óculos escuros e trabalhavam na fábrica
de malhas que ao meio-dia e às cinco da tarde soltava operários e arrepiava os
plátanos de Benfica com o mugido da sereia. Nisto, o senhor Florindo parava de
martelar, erguia a mão suja, prevenia-me
— O menino escute que isto tem muita moral
os cegos calavam-se num silêncio respeitoso, da prateleira alta sons de guitarra
agitavam-se num susto de pássaros, uma voz severa anunciava
— Frutuoso França em Mafalda
e eu aprendia, arredondado de pasmo, que
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Mafalda era a mais linda rapariga
Do curso de enfermeiras da cidade
Não tinha uma rival uma inimiga
Para todos era amor era bondade.
Mal o fado terminava, com a morte trágica de Mafalda
(Aquele a quem salvou e deu a vida Mais tarde a própria vida lhe roubou)
o senhor Florindo recomeçava a martelar comovido, esclarecendo-me
— Deviam ensinar-lhe copias assim em vez da merda dos rios
um dos cegos que procurava fósforos no bolso para esconder a comoção
acrescentava
— Para a moral e para a lágrima não há como o Frutuoso França
e de novo o martelo do senhor Florindo no ar, a mão suja, os cegos petrificados
de atenção, o locutor
— Frutuoso França em O Drama Da Praia De Chelas
o senhor Florindo
— Atenção que é melhor que o outro filigrana de guitarras a costurarem a
penumbra da oficina e, logo a seguir
-
Numa praia de banhos atraente
Contente se banhava um rapazito
E o pai contemplava alegremente
A graça esfuziante do filhito
O pequeno sorria entusiasmado
Mas nisto ouviu-se um grito lancinante
Ele afastou-se um pouco e foi levado
Pelas ondas da corrente apavorante
o cego, a quem a máquina da fábrica comera o braço esquerdo
— Caramba
o senhor Florindo, inclinado para o rádio como um girassol
— Caluda
e Frutuoso França, a carregar na moral
-
Aos gritos aflitivos do pequeno
E ao ver dum pai estremoso a dor tão forte
Um velho pescador bravo e sereno
Arrancou a criança ao seio da morte
Para recompensar o generoso salvador
O pai rapa dois contos da carteira
(indignação do maneta, entredentes — Os ricos sempre foram sovinas)
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Porém eis que o velho pescador
Assim lhe respondeu desta maneira.
Além destes, lembro-me da Desventura Da Mulher Que Deu À Luz Um Monstro,
do Fado
De Caryl Chessman
(Eu nunca fui o bandido Da tal lanterna vermelha)
da Maldita Seja A Rússia Comunista,
do Castigo Do Padre Que Foi Pecar A Almeirim
e da Desgraça Da Menina A Quem O Padrinho Violou No Beato.
Ao começar a escurecer eu abandonava a sapataria a contragosto.
Na casa dos meus pais a cozinheira, indiferente à mulher que deu à luz
um monstro, metia lenha no fogão. A minha mãe lia o Match no andar de
cima. Os meus irmãos brincavam no quarto. A cascata do quintal, com um
peixe de calcário gorgolejando água, resplandecia conchas e pratinhos de
loiça. As fotografias dos avós mortos olhavam-me da cómoda. Ninguém
parecia preocupar-se com a Rússia comunista, com a pobre Mafalda, com a
menina a quem o padrinho violou no Beato. Ninguém conhecia Frutuoso
França.
Notei com horror que a minha família era uma família sem moral. De modo que
agarrei no sobretudo e na caixa dos bichos-da-seda resolvido a pedir asilo
político ao senhor Florindo, e estou convencido que se não me tivessem chamado
para o jantar e eu não gostasse tanto de fatias recheadas estaria hoje num
esconso minúsculo, negríssimo, a cheirar a cola e a vomitado, rodeado de cegos
de óculos escuros, erguendo o martelo para um garoto qualquer e prevenindo
— O menino escute que isto tem muita moral
sempre que o aparelho de rádio, a sacudir-se na prateleira alta, anunciasse o
Drama Da Praia De Chelas num estridor de harpejos.
FIM
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Reparação e Elogio de Frutuoso França
de
António Lobo Antunes
in Livro de Crónicas
Publicações Dom Quixote
1.ª edição, 1998
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