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-excerto-

Após cerca de meia hora de caminhada, encontrei um homem muito alto e
esfarrapado que caminhava a passos rápidos, apesar de tatear o chão com uma
bengala. Era completamente cego e me disse que era catequista, o que deveria ter
me tranquilizado. Mas não gostei do rosto dele; parecia sombrio, temerário e
misterioso; e, na verdade, quando começámos a caminhar lado a lado, vi a coronha
de aço de uma pistola aparecendo por baixo da aba do bolso de sua jaqueta.
Carregar aquilo implicava uma multa de quinze libras esterlinas, na primeira
infração, e deportação para as colónias, em caso de reincidência. Eu não era
capaz de entender os motivos para um pregador religioso estar armado, nem
tampouco o que um cego poderia estar fazendo com uma arma.
Contei-lhe sobre o meu guia e o que acontecera comigo, pois sentia-me
orgulhoso do que fizera e, naquele momento, a minha vaidade foi mais forte do
que minha prudência. À menção dos cinco xelins, ele soltou uma exclamação tão
alta que decidi não lhe dizer nada quanto aos outros dois e fiquei feliz por ele
não ter me visto enrubescer.
— Ofereci muito? — perguntei-lhe, gaguejando um pouco.
— Claro que foi muito! — exclamou ele. — Ora, posso guiá-lo até Torosay por
um copo de conhaque. Além disso, você terá o grande prazer de desfrutar de minha
companhia, pois sou um homem de certa cultura.
Disse-lhe que não entendia como um cego poderia servir de guia; mas, ao
ouvir-me, ele começou a rir, dizendo que a sua bengala tinha olhos dignos de uma
águia.
— Pelo menos na ilha de Mull — continuou —, onde conheço de cor cada rocha e
moita de urze. Veja só — acrescentou, golpeando à esquerda e à direita com a
bengala, como para ter certeza —, há um riacho correndo lá embaixo e, na sua
nascente, fica uma pequena colina com um grande rochedo que se inclina até o
topo. No sopé dessa colina, estende-se a estrada que vai para Torosay, ao passo
que esse caminho que pegamos, feito para o gado, é bastante movimentado e só se
mostra mais cheio de mato quando atravessa a urze.
Tive de admitir que ele estava certo em tudo o que dissera e expressei meu
espanto.
— Ah — disse —, isso não é nada. Você acreditaria em mim se eu dissesse que
antes da publicação do Disarming Act (Lei de proibição de porte de armas por
cidadãos escoceses, promulgado em 1715), quando ainda havia armas neste país, eu
era capaz de atirar? E era bom! —exclamou e então, olhando de soslaio,
acrescentou: — Se você tivesse uma pistola consigo, ou algo parecido, eu lhe
mostraria como sou bom.
Disse-lhe que não tinha nenhuma arma comigo e afastei-me um pouco dele. Mal
sabia ele que a sua pistola estava visivelmente saindo de seu bolso e que eu
podia ver o sol refletindo no aço da coronha. Mas, felizmente para mim, ele não
havia percebido e acreditava que a sua arma estivesse oculta e que poderia
mentir à vontade.
Começou então a interrogar-me, cheio de astúcia. Ele queria saber de onde eu
vinha, se era rico, se poderia lhe trocar uma moeda de cinco xelins – que
afirmava ter em sua bolsa de couro — e, o tempo todo, tentava aproximar-se de
mim, ao passo que eu continuava a afastar-me dele. Estávamos agora numa espécie
de trilha gramada para o gado, que atravessava as colinas em direção a Torosay,
e mudávamos constantemente de lado, como se estivéssemos dançando uma quadrilha.
Eu me considerava tão superior a ele que meu humor melhorou muito, e comecei a
me divertir, como se estivesse brincando de cabra-cega. Mas o catequista foi
ficando cada vez mais furioso, até que, por fim, desatou a praguejar em gaélico
e a bater-me nas pernas com a bengala.
Disse-lhe então que, como ele, também tinha uma arma no bolso e que se ele
não fosse para o outro lado da colina, rumo sul, eu estouraria os seus miolos.

"Amaldiçoou-me novamente em gaélico e partiu". (cap. XV)
Imediatamente, ele se tornou muito educado e, depois de tentar me acalmar por
algum tempo sem sucesso, amaldiçoou-me novamente em gaélico e partiu.
Vigiei-o
enquanto ele caminhava pelos pântanos e arbustos, tateando com sua bengala, até
chegar ao sopé de uma colina e desaparecer no vale que a seguia. Então retomei
minha marcha para Torosay muito mais feliz por ir sozinho do que acompanhado por
aquele homem culto. Fora um dia miserável, e aqueles dois sujeitos de que me
livrara sucessivamente foram os piores homens que já conheci nas Terras Altas.
Em Torosay, sobre o estreito de Mull e com vista para as terras de Morven,
havia uma estalagem com um hospedeiro – aparentemente do clã Maclean, uma
família muito digna, já que os estalajadeiros têm uma reputação muito melhor nas
Terras Altas do que entre nós, talvez por trabalharem com hospitalidade ou por
lidarem com desocupados e bêbados. Ele falava muito bem inglês e, imaginando que
eu fosse um estudante, dirigiu-se a mim primeiro em francês – levando a melhor
com facilidade – e, depois, em latim, e, desta vez, não sei dizer quem obteve
vantagem. Essa divertida rivalidade nos colocou imediatamente em termos
amigáveis, e sentei-me para tomar um ponche com ele – ou, para ser mais exato,
sentei e observei-o beber –, até ele ficar tão bêbado que começou a chorar no
meu ombro.
Mostrei-lhe, casualmente, o botão de Alan. Mas era evidente que ele nunca o
tinha visto ou ouvido falar dele. Na verdade, ele guardava um certo rancor
contra a família e os amigos de Ardshiel e, antes de se embriagar, leu para mim
uma sátira – em excelente latim, mas com péssimas intenções – que havia composto
em versos elegíacos contra um membro daquela família.
Quando lhe contei sobre o catequista, ele balançou a cabeça e disse que
tivera sorte de me livrar dele.
— Trata-se de um homem muito perigoso — disse. — Seu nome é Duncan Mackiegh,
e ele pode atirar de ouvido a vários metros de distância. Foi acusado inúmeras
vezes de roubo nas estradas e, em certa ocasião, denunciaram-no por assassinato.
— O engraçado — respondi — é que ele se diz catequista.
— E por que não deveria dizê-lo já que, de fato, o é? — respondeu ele. — Foi
Maclean, de Duart, quem o nomeou catequista, por ser cego. Mas talvez tenha sido
um erro — acrescentou meu estalajadeiro —, pois ele está sempre nas estradas,
indo de um lugar para outro para ouvir as crianças recitarem o catecismo e, sem
sombra de dúvida, o pobre homem encontra muitas tentações pelo caminho.
Por fim, quando meu estalajadeiro não podia mais beber, ele me indicou uma
cama, e deitei-me muito satisfeito por ter percorrido a maior parte daquela
vasta e tortuosa ilha de Mull, de Erraid a Torosay, oitenta quilômetros em linha
reta – quase cem, se contar as vezes em que me perdi naquelas estradas – em
quatro dias, e sem me cansar muito. Realmente me sentia muito melhor, de
espírito e de saúde, no final dessa longa caminhada, do que quando a começara.
FIM do excerto

Illustrações de Louis John Rhead
Robert Louis Stevenson
(Edimburgh, 1850 – Samoa, 1894) foi um escritor, poeta e ensaísta escocês,
conhecido pela publicação de grandes clássicos da literatura como O Estranho
Caso de Dr. Jekyll e de Mr. Hyde, também conhecido como O Médico e o Monstro,
além de outros títulos de peso, como A Ilha do Tesouro, Capitão Coragem e
Raptado ou As Aventuras de David Balfour. Formou-se advogado, sem nunca, contudo, ter exercido a profissão. Após concluir os seus estudos, o autor mudou-se para Londres, onde passou a frequentar salões literários e a dedicar-se totalmente à Literatura. Em virtude da tuberculose que o acometia, Stevenson mudou-se para os Estados Unidos da América e posteriormente para as ilhas Samoa, aonde viria a falecer cinco anos depois. O final do século XX testemunhou uma gradual reavaliação do papel de Stevenson como um escritor de grande importância e de grande visão, um teórico da Literatura, um ensaísta e um crítico social, além de ser considerado como um dos grandes escritores e testemunha da história colonial das ilhas do Pacífico Sul. Nos dias de hoje é visto como um antecessor dos escritores Joseph Conrad e Henry James. Não se restringindo à análise académica, Stevenson permanece popular por todo o mundo, sendo um dos autores mais lidos e traduzidos da língua inglesa.
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RAPTADO
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excerto do cap. XV -
Autor:
Robert Louis Stevenson
Título original: KIDNAPPED
Tradução: Otavio Albano
Editora Lafonte, 2023
São Paulo, Brasil
11.Set.2025
Publicado por
MJA
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