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Três cavalheiros cegos, envergando
os uniformes do Instituto Quinze-Vingts, são conduzidos por crianças nas
ruas de Paris | gravura séc. XIX
Sob diversos aspectos a situação era bem diferente para os cegos, principalmente
para aqueles que viviam na França durante o século XIII, por exemplo. Já ao
final do século XI e início do século XII, em Rouen, em Chálons e perto da
cidade de Orléans, havia abrigos que aceitavam os cegos mais pobres. Também na
cidade de Chartres havia um recurso para atendimento aos cegos. Era uma
verdadeira comunidade criada por Renaud Barroult e conhecida como "Les
Six-Vingts".
Sob o reinado de Luís IX (1214 a 1270), conhecido como São Luís de França, foi
criado um novo abrigo chamado "Hospice des Quinze-Vingts", por iniciativa direta
do rei no ano de 1260. Sua criação chegou a beneficiar fortemente uma confraria
pobre de cegos cujos membros, à falta de outro local, reuniam-se no Bosque de
Garenne, em Paris. Quando o local foi descoberto pela coroa e pelo povo em
geral, ficou conhecido pelo apelido de "Champovri", de uma corruptela para as
palavras "Champ des Pauvres" (Campo dos Pobres).
Qual teria sido o interesse direto de Luís IX para dedicar tempo e dinheiro na
criação de uma organização dispendiosa só para cegos?
Segundo consta, quando
Luís IX foi aprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada, trezentos
de seus soldados tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por ordem direta do
sultão, à base de vinte por dia durante quinze dias, enquanto aguardava os
resultados da demorada negociação para pagamento do pesado resgate exigido para
libertação do rei da França. Quando de sua volta São Luís dedicou-se com
seriedade e muito empenho ao problema do abrigo dos cegos e mandou construir a
famosa entidade para dar assistência de morada e alimentação pelo menos a 300
cegos.
Entretanto, o incidente alegado para justificar o interesse de Luís IX nos cegos
não é confirmado por vários de seus biógrafos.
O rei foi muito atacado ainda durante sua vida por ter dedicado tanto esforço
oficial aos cegos. Rutebeuf, trovador e satirista francês do século XIII,
cantava ironicamente pelas ruas de Paris: "Eu não sei porque o rei juntou
trezentos cegos em uma casa, só para eles saírem às ruas de Paris, o dia
inteiro, pedindo esmolas incessantemente. Eles dão encontrões uns com os outros,
machucando-se, pois, não há nenhum deles que os lidere" (Apud French).
Entre os reinados de Luiz IX e Luiz XVI os cegos emanciparam-se e receberam
privilégios tanto de reis quanto de bispos da Igreja Católica, chegando mesmo a
acumular riquezas enormes e a vestir-se de veludo, um dos tecidos mais
dispendiosos da época.
A Igreja ajudou significativamente dando-lhes permissão expressa e exclusiva
para esmolar nas escadarias e nas portas das igrejas. Tinham também autorização
eventual para vender grinaldas e flores dentro de suas naves.
Não é difícil imaginar que idéias de emancipação dos cegos nesses 500 anos da
História Francesa fossem tidas como uma espécie de questionamento da autoridade
da poderosa Igreja Cristã, ou talvez um sacrilégio. Os primeiros bispos que
deram as famosas autorizações exclusivas tanto para mendigar nas portas das
igrejas quanto para comercializar flores foram o de Paris e o de Chartres. Não
foram autorizações individuais, mas dirigidas às corporações dos cegos.
A organização dos cegos em corporações, confrarias ou associações não ocorria
apenas na França. No ano de 1337 surgia em Pádua, na Itália, a Congregação de
Santa Maria dos Cegos. Uniam-se esses cegos sob a liderança de um mestre,
observando regras próprias e muito severas, por eles estabelecidas, como, por
exemplo, a proibição de dizer palavrões e blasfêmias...
FIM
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in A EPOPÉIA IGNORADA
-A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje-
Autor: Otto Marques da Silva
São Paulo - CEDAS, 1987
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