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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


Por Trás da Escuridão

Chirlei Wandekoken

-excerto-

L'Aveugle - Victor Vasarely, 1946

 

Sinopse | Uma publicitária desempregada aceita um trabalho longe de casa, como leitora de uma idosa cega, e muda toda a sua história. Ana Solevade é uma jovem viúva sem perspectivas, que parte rumo ao desconhecido, indo encontrar-se com uma mulher misteriosa, altiva, cruel e completamente cega.


– Bom dia, Ana Solevade. Vejo que já encontrou a minha biblioteca – disse uma voz grave e imperiosa.

Ana assustou-se com a interrupção brusca e o livro caiu. Ela abaixou-se e o apanhou.

Desculpe-me. Bom dia, dona Maria Helena – Ana não tinha dúvidas de que se tratava da dona da casa. – Perdão pela invasão à sua biblioteca, não resisti a tantos livros maravilhosos e raros. A senhora tem uma excelente coleção.

Nervosa, Ana falava e gesticulava. Entretanto, a face à sua frente era como a de uma carranca. Os olhos cegos transmitiam ódio e os lábios pendiam para baixo, sinal de anos de amargura.

– Espero que não tenha mudado nenhum exemplar de lugar – Maria Helena não fazia nenhum esforço para mostrar-se simpática. Ana estava apavorada. – Contratei um bibliotecário para organizar as fileiras e detestaria não encontrar o que procuro. Da forma que estava, até uma cega como eu acharia o exemplar que quisesse, se é que me entende?

– Lógico que entendo. Não alterei em nada a organização. Peço desculpas mais uma vez pela intromissão. Isso não vai mais acontecer.

O constrangimento de Ana era desmedido. Estava arrependida pela invasão à biblioteca alheia. Houve um silêncio e só se ouvia a respiração das três, pois Antônia estava sempre por perto, como um cão de guarda, naquele momento atrás da idosa, em contraste com ela, se mostrava ainda mais magra e pálida. Ana lembrou-se do que Rodrigo havia dito no café da manhã e lastimou ter ficado com raiva pela forma com que ele se referiu à mãe. A mulher não parecia cega. Os olhos eram de um azul-brilhante e perfeitos. O cabelo curto, impecavelmente escovado e penteado. Estava maquiada e se portava como a real dona daquela casa. Mesmo na cadeira de rodas, a sua altivez era perceptível.

Não era magra. Contudo, também, não era obesa. Estava um pouco acima do peso, só isso.  Ana levou outro susto quando Maria Helena chamou por Antônia.

– Antônia – a idosa murmurou alguma coisa à empregada e ela começou a movimentar a cadeira na direção da porta.

Ana ficou sozinha sem saber se deveria acompanhá-las ou ficar. Sem ação, optou por ficar a cometer mais alguma gafe. Esperou por uns minutos, imóvel, até que a arrogante Antônia viesse chamá-la.

– Dona Maria Helena deseja vê-la. Venha comigo - disse Antônia, polida. Desde o primeiro momento Ana antipatizara com ela. Era uma mulher descortês. Começou a pensar que a vida naquele casarão deixava as pessoas daquela forma. Lembrou-se de Rodrigo, ainda tão jovem, porém sisudo, como um velho amargo. Quanto à Maria Helena, santo Deus! O que a havia deixado tão azeda?

Entretanto, existia Linda e esta era doce. Ah! Havia também Tião Serra e Polaco. Entregando-se a estas reminiscências, atraentes à lembrança, Ana suspirou aliviada, nem tudo estava perdido! Com essa resolução, caminhou atrás de Antônia e entraram na melhor sala da casa na opinião de Ana.

Dona Maria Helena não estava mais na cadeira de rodas e sim na poltrona macia e confortável que Ana vira minutos antes. Apesar do conforto, parecia tensa.

– Sente-se – ordenou a matriarca. Ana obedeceu e sentou-se numa poltrona o mais distante dela possível.

– Antônia disse-me que você é muito bonita.

Ana nem acreditou. Estaria Maria Helena tentando ser simpática?

– Oh! Muito obrigada! Bondade de Antônia – Ana sorriu olhando para Antônia, que se mantinha ereta rente à porta. Segundos depois, como se incomodada com o sorriso da outra, Antônia, sem ao menos mover um músculo da face, retirou-se.

– Antônia não é dada a sentimentalismos, minha cara. Muito menos teve a intenção de fazer-lhe nenhum tipo de elogio, apenas alertar-me para um problema iminente – a voz de Maria Helena era em tom de admoestação.

Ana, cujos lábios tinham esboçado há pouco um sorriso, passara deste para uma estranha expressão de horror e perplexidade. Ao mesmo tempo, ficara aliviada por Antônia ter-se retirado e não presenciar a cena patética que se desenvolvia. Maria Helena talvez esperasse alguma resposta por parte de sua nova acompanhante, todavia, Ana não esperava por aquilo e sua mente, antes grata pelo elogio, custava a acreditar no que se passava.

– Vou ser bastante clara – o brado da idosa martelava. – Se pretende trabalhar para mim, tem que seguir as regras da casa. De forma alguma permitirei qualquer tipo de envolvimento de empregados com o patrão. Fui clara?

Descerrando os dedos, Ana aquiesceu com a cabeça. O silêncio e o olhar cego lancinante fizeram-na lembrar-se da cegueira.

– Refere-se ao doutor Rodrigo?

– A quem mais estaria me referindo? – Maria Helena falou isso de forma irônica, com uma frieza empedernida que fez o sangue de Ana ferver, trazendo com ímpeto uma ira que ela tentava controlar.

– Dona Maria Helena – disse pausadamente. – Muito me espanta a sua atitude. Afinal, a senhora mesma me disse que tem o hábito de investigar quem coloca dentro de sua casa. Então, deveria saber qual seria a minha conduta em situações semelhantes. Eu só tenho uma forma de tranquilizá-la, por isso serei clara. O seu filho não é o meu tipo de homem e não tenho o péssimo hábito de sair por aí envolvendo-me com estranhos. Sou viúva, tenho dois filhos adolescentes para criar e um nome a zelar. Aliás, nada disso é novidade para a senhora – ponderou, não escondendo a sua indignação. Desconfiava que poderia ser despedida em seguida, mas antes iria limpar a sua honra.

– Foi bastante clara, minha cara – observou Maria Helena, calmamente, para  assombro de Ana, entretanto não esboçou nenhum pedido de desculpas. – Agora que nos entendemos nesse ponto, vamos aos outros. Iniciaremos as leituras hoje depois do almoço. Às quatorze horas, nesta mesma sala. Eu a aprecio. É menor que as outras e tem boa acústica. Já que estamos conversando, vamos acertar seus horários de trabalho. Você lerá para mim das quatorze às dezoito horas, todos os dias, incluindo os fins de semana. Acredito que estou sendo justa já que trabalhará somente quatro horas por dia. O que fará com a outra parte do dia não é problema meu. Ana concordou. Não estava em condições de refutar.

– Você terá uma folga por mês, no último fim de semana de cada mês. Caso queira se ausentar nesse período, não me incomodarei. Caso queira ficar, da mesma forma.

Ana foi tomada pela surpresa. Embora tivesse sido desrespeitosa e insolente com a dona da casa, ela ainda estava contratada. Mal acreditava. Maria Helena lhe fez outra pergunta tirando-a de sua meditação:

– O seu quarto está a contento?

– Oh! Sim. É muito espaçoso. Obrigada – respondeu. Como Maria Helena nada falou, Ana continuou: – Dona Maria Helena, não seria mais adequado se eu ficasse com os demais empregados? Não acho justo eu ocupar um quarto tão confortável na casa enquanto os demais moram...

– O que você acha, não me importa. Prefiro que fique por perto – bradou novamente a mulher. Ana compreendeu que se quisesse permanecer no emprego teria que se acostumar aos rompantes emocionais da dona da casa. A velha ora assoprava, ora mordia. Conviver com ela seria uma gangorra. Ana teve pena de Rodrigo.

– Vamos almoçar – Ana teve um sobressalto quando uma campainha tilintou ensurdecendo-a. Maria Helena a chacoalhava com raiva. Imediatamente, Antônia apareceu como se estivesse por perto. Ana fez menção de levantar-se, mas foi impedida por Antônia com um gesto ríspido. A empregada já amparava a idosa e a colocava na cadeira de rodas afastando-se lentamente. Ana foi caminhando atrás das duas em direção à sala de jantar na qual o almoço era servido.

Logo que entrou no aposento, observou que duas negras que ela ainda não tinha visto na casa ajeitavam a mesa. Mais tarde ficaria sabendo que se tratava de Conceição, chamada por todos de Ceiça, e Efigênia. Dona Maria Helena entrou e foi logo dizendo:

– Conceição e Efigênia, saiam.

Ana levou outro susto. Preciso me acostumar, a vida nessa casa será repleta de sobressaltos. Intrigada, olhou para as duas mulheres que pareciam não se incomodar com a patroa insolente e se retiraram calmamente. Como ela sabia que as duas estavam aqui se não enxerga? Ela, certamente, não é totalmente cega. Pode não enxergar com clareza, mas, por certo, vê alguma coisa. Como se lesse os pensamentos de Ana, a velha resmungou:

– Meus outros sentidos são apuradíssimos já que perdi a visão. Senti o cheiro de cebola.

Ana se negava a acreditar no que acabara de ouvir. Ela não podia se referir às negras daquela forma, contudo era aquilo mesmo, pois dona Maria Helena não se abatia com o constrangimento que causava: – As duas têm que se limitar à cozinha. Quem cuida da casa são Linda e Antônia. Eu já disse isso centenas de vezes, mas nessa casa ninguém obedece às ordens de uma velha cega.

Por um momento um silêncio embaraçoso manteve tudo estático. Ana tentou imaginar aquela casa há alguns anos. Se hoje os negros eram tratados daquela forma, imagine na época da escravidão? Um estalido na porta da frente chamou a atenção de Ana e dos demais. Era Rodrigo que voltava para o almoço.

– Boa tarde – disse ele, olhando para Ana que respondeu ao cumprimento com um aceno quase imperceptível. Ela ainda estava em estado de choque. Como que percebendo a tensão no ar, Rodrigo aproximou-se dela e ficou ao seu lado.

– Você em casa para o almoço? – perguntou a mãe com um quê de desconfiança na voz.

– Estava aqui por perto – respondeu, sem nenhuma delicadeza para com a mãe. Rodrigo fez sinal para que Ana se sentasse ao seu lado e para que Antônia encaminhasse a mãe ao seu lugar à mesa.

Imediatamente após cumprir a ordem de Rodrigo, Antônia começou a servir o prato de Maria Helena. Rodrigo, contudo, a interpelou.

–  Depois pegue uma garrafa de vinho tinto para nós, Antônia, por favor.

Ana notou que ele tratava os empregados de forma gentil.

– Vai beber no almoço? – retrucou a mãe.

– Já sou maior de idade, mamãe – Rodrigo deu uma piscadela para Ana e um leve sorriso.

– Aceita uma taça de vinho, Ana?

– Não. Muito obrigada, doutor Rodrigo – Ana frisou o doutor e ele levantou as sobrancelhas como se não compreendesse o porquê do tratamento formal por parte dela. Ainda naquela manhã ele havia recomendado que ela não o chamasse de doutor. No entanto, para conforto de Ana, ele nada falou.

– E você dona Maria Helena, aceita?

– Sim – respondeu a velha e complementou: – Você parece de bom humor hoje. O que houve?

– Ora. Fiz bons negócios. Por que mais seria?

Antônia chegou com o vinho e pôs a garrafa sobre a mesa à frente do patrão. Em seguida, Linda chegou com as taças.

– É exatamente por isso que eu estou querendo saber, pois nunca está bem-humorado – disse Maria Helena, levando a taça com o vinho servido por Rodrigo às narinas, sentindo o seu aroma suave.

– Bom?

Ela balançou a cabeça afirmativamente. Só depois ele se serviu, explicando à pasma Ana, que se esforçava para entender aquela relação mãe e filho.

– Ela conhece bem os vinhos desta casa...

Maria Helena mantinha-se calada e Ana, da mesma forma. Apesar da cegueira, a mulher manuseava bem os talheres e tinha percepção do seu espaço. Ninguém diria que aquela senhora sentada elegantemente à mesa fosse cega. Ana sentia-se constantemente intimidada na sua presença. Sabia que as pessoas que, por algum motivo, eram privadas de um sentido, a visão como no caso de Maria Helena, tinham, de fato, os demais sentidos mais aguçados. Entretanto, a matriarca a assustava, pois parecia tudo, menos cega. E se fosse um embuste? Lembrou-se da batida em seu quarto e olhou para a mulher com desconfiança. O que ela pretendia com aquele teatro? Chamar atenção para si? A mente de Ana fervilhava e ela mal tocara na comida. A voz de Rodrigo a trouxe de volta de seu devaneio.

– Sei que não é uma hora própria para isso, mamãe. No entanto, fiquei sabendo que o seu médico, doutor Justino, teve uma parada cardíaca hoje e foi hospitalizado. Levaram-no para a capital, pois lá eles têm mais recursos. Ele está na UTI. O velho está muito mal. Quem assumiu o seu lugar foi Eduardo Olegário Nunes Mariano, o filho do velho Olegário.

De novo aquele nome? Seria o mesmo doutor Eduardo mencionado por Polaco? O garotinho havia dito que ele morava ‘logo ali na fazenda Legário’, mas ele comia certas letras. Podia ser fazenda Olegário.

A informação dada por Rodrigo caiu como uma bomba à mesa. Ana não sabia se era por causa do problema de saúde do médico, o doutor Justino, ou devido à família citada por Rodrigo. De uma coisa Ana teve certeza, algo na informação afetara, e muito, a velha senhora.

Maria Helena teve uma forte crise de tosse e foi retirada da mesa por Antônia. Por mais absurdo que aquilo parecesse a Ana, Rodrigo parecia se divertir com o sofrimento da mãe. Nada fizera para ajudá-la, se manteve onde estava, aparentando tranquilidade. Ana não sabia como proceder. Entretanto, sentia-se na responsabilidade de perguntar:

– Ela está bem?

– Sim. Vai ficar tudo bem.

Como ele não disse mais nada e o silêncio pesava entre eles como chumbo, Ana ousou perguntar:

– A cegueira de dona Maria Helena é adquirida?

– Sim. Há três anos – ele respondeu fixando o seu olhar no dela.

– Deve ser muito difícil para ela... – mesmo não acreditando na farsa, Ana resolveu entrar naquele engodo.

– Para todos nós. Mas, ela procurou por isso – disse ele, baixo. Ana pareceu notar um quê de raiva em sua voz, porém, sutil.

– Eu não compreendi. Como assim, ela procurou?

– Há muita coisa que você não sabe, Ana. Dessa forma, não pode mesmo compreender. Mas, garanto que é melhor não ficar sabendo – uma fina linha se formou ao lado da boca dele. Ana podia jurar que a voz de Rodrigo deixava transparecer amargura e que seus olhos brilhavam mais naquele momento.

– Tenho um compromisso de trabalho numa cidade vizinha. Eu nem podia estar aqui. Preciso ir – disse ele, levantando-se da mesa. – Eu só queria mesmo te apoiar nesse primeiro encontro com dona Maria Helena. Eu sabia que não seria fácil para você – complementou, encarando-a.

Como Ana ficou sem ação, ele se retirou caminhando apressadamente em direção à escada. Subiu-a de dois em dois degraus. Devia estar mesmo com muita pressa.

Sozinha, ela ficou pensativa. Não tivera a chance de agradecê-lo. Manteve-se por mais algum tempo à mesa, mas não estava com fome. Linda apareceu e ofereceu a sobremesa, que foi rejeitada. Minutos depois, ela também subia as escadas em direção ao seu quarto, com a sensação estranha de que passara mais tempo ali do que realmente havia transcorrido.

FIM
 

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Por Trás da Escuridão por [Wandekoken, Chirlei]


excerto de
Por Trás da Escuridão
Chirlei Wandekoken
Editora Pedrazul, 2016

 


 

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20.Jul.2019
Maria José Alegre