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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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Poirot e os Quatro Relógios

Agatha Christie

Old blind lady

RESUMO | Colin Lamb é um agente do serviço secreto que, ao visitar o condomínio Wilbraham Crescent, na cidadezinha de Crowdean, acaba envolvido na investigação de um estranho assassinato ocorrido naquele lugar: um desconhecido foi encontrado apunhalado na casa n.º 19, cuja proprietária é uma senhora cega.
Na cena do crime são encontrados quatro relógios que marcam todos a mesma hora, 4h13, mas que não pertencem à dona da casa. Quem descobriu o corpo foi a estenógrafa, que tinha recebido ordem para se apresentar em casa da cliente cega, só que esta não tinha solicitado nenhum serviço de estenografia.
O caso parece complexo e Colin Lamb decide desafiar o amigo Hercule Poirot a desvendá-lo sem se levantar da sua poltrona. E somente com as informações recebidas de Lamb, Poirot consegue sugerir uma hipótese viável para a solução do enigma.

 

PRÓLOGO

A tarde do dia 9 de Setembro foi exactamente igual a qualquer outra tarde. Nenhuma das pessoas que viriam a estar relacionadas com os acontecimentos desse dia poderia alegar que tivera uma premonição de tragédia. (Com excepção, evidentemente, de Mrs. Packer, de Wilbraham Crescent, 47, a qual era especializada em premonições e, depois, descreveu sempre, com grande minúcia de pormenores, os estranhos pressentimentos e as tremuras que tivera. Mas Mrs. Packer estava, no 47, tão distante do 19, e o que neste número se passou relacionou-se tão pouco com ela, que lhe pareceu absolutamente desnecessário ter uma premonição.)

No Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigido por Miss K. Martindale, no dia 9 de Setembro fora um dia igual a tantos outros, um dia rotineiro. O telefone tocara, as máquinas de escrever tinham matraqueado como de costume e o nível de trabalho fora médio, nem acima nem abaixo do habitual.

O género também fora o costumado, sem interesse especial. Até às duas e trinta e cinco da tarde, o dia 9 de Setembro não teve nada a distingui-lo de outro dia qualquer.

Às duas e trinta e cinco, a extensão de Miss Martindale deu sinal e Edna Brent, que trabalhava no escritório contíguo, atendeu-a com a voz ofegante e um nadinha nasalada do costume, enquanto empurrava um caramelo para um dos lados da boca.

- Que deseja, Miss Martindale?

- Já lhe disse que não deve falar assim quando atende o telefone, Edna! Pronuncie as palavras com clareza e domine a respiração.

- Desculpe, Miss Martindale.

- Já foi melhor. Se tentar, consegue. Mande-me a Sheila Webb.

- Ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.

- Ah! - Miss Martindale viu que eram duas horas e trinta e seis minutos, o que significava que Sheila estava exactamente seis minutos atrasada. - Mande-ma assim que chegar - acrescentou, a pensar que, nos últimos tempos, Sheila Webb se desmazelava um pouco.

- Sim, Miss Martindale.

Edna passou de novo o caramelo para o meio da língua e, a chupar prazenteiramente, recomeçou a dactilografar o romance Amor Nu, de Armand Levine.

O erotismo forçado da obra deixava-a indiferente - como, aliás, à maioria dos leitores de Mr. Levine, não obstante os seus esforços. Armand Levine era uma prova convincente de que nada pode ser mais enfadonho do que a pornografia enfadonha. Apesar das capas sinistras e dos títulos provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de serviços dactilográficos já lhe fora apresentada três vezes, em vão.

A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, um bocadinho ofegante.

- A Sandy Cat * chamou-te - informou Edna.

* Gata Loura. (N. da T.)

- Já é preciso ter azar! - exclamou Sheila, a fazer uma careta. - No único dia em que chego atrasada!

Passou a mão pelo cabelo, pegou num lápis e num livro de apontamentos e bateu à porta da directora.

Miss Martindale levantou a cabeça. Era uma mulher de quarenta e tal anos, que respirava actividade e eficiência e devia a alcunha de Sandy Cat ao seu cabelo ruivo-claro e ao seu nome próprio de Katherine.

- Chegou atrasada, Miss Webb.

- Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento de trânsito...

- Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia.

Devia contar com isso e sair de casa mais cedo. - Consultou a sua agenda e prosseguiu: - Telefonou uma tal Miss Pebmarsh, que precisa de uma estenógrafa para as três horas e se mostrou particularmente interessada em que fosse você. Já trabalhou alguma vez para ela?

- Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não trabalhei.

- A morada é Wilbraham Crescent, dezanove...

- Calou-se, com um ar interrogador, mas Sheila Webb abanou a cabeça.

- Não me lembro de lá ter ido.

Miss Martindale consultou o relógio.

- Três horas... Consegue lá chegar a tempo. Tem outros compromissos, para esta tarde? - Passou os olhos pela agenda, que tinha a seu lado. - Professor Purdy, Curlew Hotel, às cinco horas. Deve chegar antes disso, mas se não chegar mandarei a Janet.

Mandou-a embora, com um aceno de cabeça, e Sheila voltou para o escritório.

- Alguma coisa interessante, Sheila?

- Ora, mais um daqueles dias chatos... Uma velhota qualquer de Wilbraham Crescent e, às cinco horas, o professor Purdy... e todos aqueles horríveis nomes arqueológicos! Como desejaria que, de vez em quando, acontecesse alguma coisa emocionante, para variar!

A porta de Miss Martindale abriu-se e a directora avisou:

- Esqueci-me de um pormenor, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver, quando chegar, entre, pois a porta não estará fechada. Entre para a sala que fica à direita do vestíbulo e espere. Não se esquece ou prefere que escreva num papel?

- Não me esquecerei, Miss Martindale.

A directora voltou para o seu santuário.

Edna Brent tirou debaixo da cadeira um sapato um bocado espampanante, cujo salto altíssimo e muito fino se despregara.

- Como diabo regressarei a casa? - perguntou, tristemente.

- Deixa-te de lamúrias, alguma coisa se há-de arranjar - respondeu-lhe uma das outras raparigas, quase sem deixar de martelar as teclas.

Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel. 'O desejo dominava-o. Com dedos frenéticos rasgou o tecido finíssimo que lhe cobria os seios e empurrou-a para a sopa'...

- Bolas! - resmungou Edna, a procurar a borracha, ao ver que escrevera "a sopa" em vez de "o sofá".

Sheila pegou na malinha de mão e saiu.

Wilbraham Crescent era uma fantasia criada por um construtor de 1880, mais ou menos, e constava de uma meia-lua de duas fileiras de casas com os jardins de permeio, traseiras com traseiras. Este conceito arquitectónico causava constantes dificuldades às pessoas que não conheciam o lugar. As que chegavam ao lado exterior da meia-lua tinham dificuldade em encontrar os números mais baixos, e as que chegavam ao lado interior viam-se às aranhas para descobrir os mais altos.

As casas eram limpas, afectadas, com varandas artísticas e um ar muitíssimo respeitável. O modernismo mal lhes tocara ainda, pelo menos exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as primeiras divisões a sofrer as consequências das mudanças.

Não havia nada de especial no número 19. Tinha cortinas impecáveis e um puxador muito reluzente, na porta principal. De ambos os lados do caminho que conduzia à entrada erguiam-se roseiras.

Sheila Webb abriu a cancela, encaminhou-se para a porta principal e tocou à campainha. Aguardou um ou dois minutos e, como não lhe respondessem, obedeceu às instruções recebidas. Girou o puxador, a porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do vestíbulo estava entreaberta. Sheila bateu, aguardou um momento e entrou também.

Encontrou-se numa vulgar e aconchegada sala de estar, talvez um pouco atravancada para o gosto moderno. A única coisa extraordinária que lhe chamou a atenção foi a abundância de relógios: um relógio de pé, a um canto; um relógio de porcelana de Dresden, na chaminé; um relógio de prata, na secretária; um pequeno relógio dourado de fantasia, numa papeleira, e numa mesa, junto da janela, um velho relógio de viagem, com uma caixa de cabedal, desbotado e o nome ROSEMARY * em letras douradas e já um pouco apagadas, a um canto.

* Rosemary significa alecrim, em inglês, mas também é tomado na acepção de "recordação". (N. da T.).

Sheila olhou, um pouco surpreendida, para o relógio da secretária, segundo o qual já passava das quatro e dez. Olhou para o da chaminé e verificou que se encontrava nas mesmas circunstâncias.

Estremeceu violentamente, ao ouvir um estalido, por cima da cabeça, e ao ver sair um cuco de um relógio de parede, de maneira esculpida. O passaroco anunciou, em tom audível e firme, quase ameaçador: cu, cu! cu, cu! cu, cu! Depois desapareceu e a portinha fechou-se.

Sheila Webb esboçou um sorriso e contornou a ponta do sofá. De repente, porém, estacou, petrificada.

Estiraçado no chão estava o corpo de um homem, de olhos semicerrados e sem vida e com uma mancha escura e húmida na frente do fato cinzento-escuro.

A jovem baixou-se, quase maquinalmente, e tocou-lhe na cara e numa das mãos. Estavam ambas frias. Depois tocou na mancha húmida e retirou bruscamente a mão, de olhos desorbitados de horror.

No mesmo instante ouviu abrir a cancela e olhou, quase sem dar por isso, para a janela. Uma figura de mulher subia o carreiro, apressada. Sheila engoliu a custo a saliva, pois tinha a garganta ressequida. Sentia-se pregada ao chão, incapaz de se mexer ou gritar, de olhos fixos em frente.

A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de compras. Tinha cabelos grisalhos ondulados, penteados para trás, e olhos muito grandes e de um azul muito bonito, olhos que fitaram Sheila, mas não a viram.

A jovem soltou uma espécie de gemido abafado, os olhos azuis fitaram-na de novo e a mulher perguntou, vivamente:

- Está aí alguém?

- Es... está - gaguejou Sheila, enquanto a mulher se aproximava, depressa, das costas do sofá.

Depois gritou:

- Não... não! Pisa-o... pisa-o e ele está morto!

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Para falar em termos policiais: às 2.59 h da tarde de 9 de Setembro, passava por Wilbraham Crescent, na direcção oeste. Era a primeira vez que por ali passava e confesso francamente que Wilbraham Crescent me intrigava.

Obedecia a um pressentimento com uma persistência que se tornava cada dia mais obstinada, ao mesmo tempo que o pressentimento parecia cada vez mais inconsistente e com menos probabilidades de dar qualquer resultado positivo. Eu sou assim.

O número que me interessava era o 61, mas nunca mais o encontrava.

Seguira cuidadosamente os números de 1 a 35, mas ao chegar aí Wilbraham Crescent parecera terminar. Uma artéria com o nome vulgar de Albany Road barrava-me o caminho. Retrocedi. Do lado norte não havia casas; apenas um muro atrás do qual se erguiam quarteirões de prédios altos e modernos, cujas entradas deviam ficar noutra estrada.

Olhei para os números por onde passava: 24, 23, 22, 21... Diana Lodge (provavelmente o número 20, com um gato amarelado no poste da cancela, a lavar o focinho), 19...

A porta do número 19 estava aberta e uma jovem saiu e correu pelo carreiro abaixo com o que me pareceu a velocidade de uma bomba.

Acentuavam a semelhança os gritos que ela soltava, gritos altos, agudos, quase desumanos. A pequena transpôs a cancela e chocou comigo com tal força que por pouco não me atirava para fora do passeio. Como se isso não bastasse, agarrou-se a mim num frenesi desesperado.

- Calma! - aconselhei, a sacudi-la um bocadinho, depois de recuperar o equilíbrio. - Vamos calma...

Continuou a agarrar-me, mas deixou de gritar e começou a ofegar, em arquejos profundos e trémulos como soluços.

Não posso dizer que tenha reagido brilhantemente à situação...

Perguntei-lhe se acontecera alguma coisa, compreendi que a pergunta era redundante e emendei:

- Que aconteceu?

A pequena respirou fundo, antes de responder, a apontar para trás:

- Ali!

- Ali o quê?

- Está um homem no chão... morto... Ela ia-lhe passar por cima...

- Quem? Porquê?

- Creio que... que é cega. Ele está sujo de sangue... - Levantou uma das mãos que me seguravam e acrescentou: - E eu também. E eu também estou suja de sangue!

Examinei as manchas da manga do meu casaco e observei:

- E, agora, também eu estou sujo de sangue. Parece-me melhor levar-me lá e mostrar-me.

- Não posso! - afirmou, a tremer violentamente. - Não posso! Não voltarei a entrar lá!

- Talvez tenha razão.

Olhei à minha volta, mas não encontrei nenhum lugar adequado para depositar uma jovem quase desmaiada. Acabei por a sentar no passeio, encostada ao gradeamento de ferro.

- Deixe-se ficar aqui até eu voltar. Não me demorarei. Se se sentir mal, incline-se para a frente e meta a cabeça entre os joelhos.

- Creio... creio que já estou bem.

Não parecia muito convencida, mas eu não perdi tempo a argumentar. Dei-lhe uma palmadinha tranquilizadora no ombro e meti pelo carreiro acima, apressadamente. Entrei, hesitei um momento no vestíbulo, espreitei no aposento da esquerda, que era uma sala de jantar deserta, atravessei o vestíbulo e entrei na sala da direita.

A primeira coisa que vi foi uma mulher idosa, de cabelo grisalho, sentada numa cadeira. Virou bruscamente a cabeça, ao sentir-me entrar, e perguntou:

- Quem é?

Percebi logo que era cega. Os seus olhos, embora virados para mim, estavam fixos num ponto atrás do meu ouvido esquerdo.

- Uma jovem chocou comigo, na rua, e disse que estava aqui um homem morto - expliquei, sem rodeios.

Acto contínuo, tive consciência do absurdo das minhas palavras. Não parecia possível que estivesse um homem morto naquela sala arrumada, com aquela mulher calma sentada numa cadeira, de mãos entrelaçadas.

Mas ela redarguiu-me, sem hesitar:

- Atrás do sofá.

Contornei o sofá e vi os braços abertos, os olhos vítreos e a mancha de sangue coagulado, no peito.

- Como foi?

- Não sei.

- Mas... Quem é?

- Não faço a mínima ideia.

- Temos de chamar a Polícia. - Olhei à minha volta e indaguei: - Onde está o telefone?

- Não tenho telefone.

Observei-a com mais atenção.

- A senhora mora aqui? Esta é a sua casa?

- Sim.

- Pode-me dizer o que sucedeu?

- Sem dúvida. Vim das compras - reparei no saco das compras, abandonado em cima de uma cadeira, à entrada - e entrei aqui. Percebi imediatamente que estava alguém na sala. São coisas que sentimos com facilidade, quando somos cegos. Perguntei quem era e só ouvi o barulho da respiração acelerada de alguém.

Encaminhei-me na direcção do som e então quem quer que era começou a gritar que estava um homem morto e eu ia pisá-lo. Depois essa pessoa passou por mim a correr e saiu da sala.

Acenei com a cabeça. As histórias condiziam.

- Que fez, então?

- Tacteei o caminho, com cuidado, até o meu pé encontrar um obstáculo.

- E depois?

- Ajoelhei e toquei em qualquer coisa... na mão de um homem.

Estava fria, não se sentia o pulso...

Levantei-me e sentei-me aqui, à espera. Estava convencida de que alguém apareceria, de que a jovem, quem quer que fosse, daria o alarme. Achei melhor não sair de casa.

Impressionou-me a calma da criatura. Não gritara nem saíra, aos tropeções e cheia de pânico, da casa onde se encontrava um morto.

Limitara-se a sentar-se calmamente, à espera. Era a única maneira sensata de proceder, mas exigia coragem.

- Quem é o senhor?

- Chamo-me Colin Lamb e ia a passar.

- Onde está a jovem?

- Deixei-a encostada à cancela. Encontra-se em estado de choque.

Onde fica o telefone mais próximo?

- Há uma cabina a cerca de cinquenta metros, pouco antes de chegar à esquina.

- Tem razão, lembro-me de passar por lá. Vou telefonar à Polícia. A senhora...

Hesitei, sem saber se deveria perguntar se ficaria onde estava ou se ficaria bem.

Ela poupou-me a escolha:

- Acho melhor trazer a jovem cá para dentro.

- Não sei se quererá vir... - redargui, duvidoso.

- Não virá para esta sala, claro. Leve-a para a casa de jantar, que fica do lado oposto do vestíbulo, e diga-lhe que vou fazer chá.

Levantou-se e encaminhou-se para mim.

- Mas... a senhora poderá...

Esboçou um leve e breve sorriso.

- Meu caro jovem, preparo as minhas refeições, na minha cozinha, desde que vim morar para esta casa, há catorze anos. Ser cega não é forçosamente ser inválida.

- Desculpe, fui estúpido. Talvez não se importe de me dizer o seu nome?

- Millicent Pebmarsh... Miss. Saí e desci o carreiro. A pequena levantou a cabeça e começou a erguer-se.

- Creio... creio que já estou mais ou menos bem.

- Óptimo! - redargui, enquanto a ajudava a levantar-se.

- Estava... estava lá um homem morto, não estava?

- Claro que estava. Vou lá abaixo, à cabina, avisar a Polícia. No seu lugar, esperaria dentro de casa.Levantei a voz, para abafar os seus protestos imediatos e veementes: - Vá para a sala de jantar, que fica à esquerda do vestíbulo. Miss Pebmarsh está a fazer uma chávena de chá para si.

- Ela é, então, Miss Pebmarsh? E é cega?

- É. Também foi um grande choque para ela, evidentemente, mas está a proceder com muita sensatez.

Venha, eu levo-a. Uma chávena de chá far-lhe-á bem, enquanto espera pela Polícia.

Passei-lhe um braço pelos ombros, conduzi-a pelo carreiro acima, instalei-a à mesa da sala de jantar e saí a correr, para telefonar.

- Posto da Polícia de Crowdean - anunciou uma voz calma.

- Posso falar com o detective-inspector Hardcastle?

- Não sei se está... - respondeu a voz, cautelosa. - Quem fala?

- Diga-lhe que é Colin Lamb.

- Um momento, por favor.

Pouco depois, ouvi a voz de Hardcastle:

- Colin? Não esperava que telefonasse tão cedo.

Onde está?

- Crowdean... ou melhor, estou em Wilbraham Crescent. Está um homem morto no número dezanove, creio que apunhalado. Deve estar morto há meia hora, aproximadamente.

- Quem o encontrou? Você?

- Não. Ia a passar, inocentemente, quando uma pessoa saiu de casa, como se o Diabo a perseguisse, e quase me derrubou. Disse-me que estava um homem morto e uma mulher cega o pisara.

- Não está a mangar comigo, pois não?

- Admito que parece fantástico, mas creio que os factos são os que expus. A cega é Miss Millicent Pebmarsh, que mora na referida casa.

- Mas ela pisou o morto?

- Não no sentido em que pensa. Parece que, em virtude de ser cega, não sabia que ele lá se encontrava.

- Vou pôr a engrenagem em acção. Espere lá por mim. Que fez à pequena?

- Miss Pebmarsh está a preparar-lhe uma chávena de chá.

Dick observou que parecia tudo muito aconchegadinho.

A engrenagem da Lei trabalhava a todo o vapor em Wilbraham Crescent,19. Estavam presentes um cirurgião e um fotógrafo da Polícia e os peritos em impressões digitais. Trabalhavam com eficiência, cada um deles entregue à sua própria tarefa.

Por fim chegou o detective-inspector Hardcastle, um homem alto e impassível, de sobrancelhas expressivas e ar autoritário. Queria-se certificar de que estavam a fazer tudo quanto ordenara, e de que o estavam a fazer como deviam. Lançou um último olhar ao cadáver, trocou algumas palavras com o médico da Polícia e depois dirigiu-se à sala de jantar, onde se encontravam três pessoas diante de chávenas vazias:

Miss Pebmarsh, Colin Lamb e uma rapariga alta, de cabelos castanhos anelados e grandes olhos cheios de medo.

"Muito bonita", pensou o inspector, para consigo, e apresentou-se a Miss Pebmarsh:

- Detective-inspector Hardcastle.

Sabia algumas coisas acerca de Miss Pebmarsh, embora os seus caminhos nunca se tivessem cruzado, profissionalmente. Vira-a diversas vezes e sabia que se tratava de uma ex-professora e que tinha um emprego relacionado com o ensino de braille no Instituto Aaronberg de Crianças Deficientes. Parecia inacreditável que encontrassem um homem assassinado na sua casa impecável e austera, mas o inacreditável acontecia mais vezes do que se supunha.

- Foi terrível o que aconteceu, Miss Pebmarsh, e deve tê-la abalado muito. Preciso que me descrevam, com toda a clareza, o que sucedeu.

Estou informado de que foi Miss... - olhou para o livro de apontamentos que um agente lhe entregara - ... Sheila Webb quem descobriu o cadáver. Se me autorizar a utilizar a sua cozinha, Miss Pebmarsh, levarei para lá Miss Webb, a fim de podermos conversar calmamente.

Abriu a porta de comunicação com a cozinha e aguardou que a jovem passasse. Um polícia novo, à paisana, já lá se encontrava instalado a escrever, sentado à mesa de tampo de fórmica.

- Esta cadeira parece confortável...

Hardcastle puxou uma cadeira e Sheila Webb sentou-se nervosamente, a fitá-lo com os grandes olhos assustados.

O inspector teve vontade de lhe dizer que não a comeria, mas conteve-se e limitou-se a declarar:

- Não precisa de estar preocupada; queremos apenas fazer uma ideia clara do que se passou. Chama-se Sheila Webb e mora?...

- Palmerston Road, catorze, a seguir à fábrica de gás...

- Bem sei. Suponho que é empregada - Sou estenodactilógrafa e trabalho no Gabinete de Secretariado de Miss Martindale.

- Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish. É este o nome completo, não é?

- Exactamente.

- Há quanto tempo lá trabalha?

- Há cerca de um ano... isto é, há dez meses certos.

- Agora explique-me, por palavras suas, como veio parar a Wilbraham Crescent, dezanove.

- Foi assim.. - Sheila Webb já falava com maior segurança. - Miss Pebmarsh telefonou para o escritório e pediu que lhe mandassem uma secretária, às três horas. Por isso, quando regressei do almoço, Miss Martindale mandou-me cá.

- Isso passou-se tudo de acordo com a rotina, não é verdade? Quero dizer, você era a primeira da lista, ou lá como fazem essas coisas...

- Desta vez, não. Miss Pebmarsh pediu especificamente que me mandassem a mim.

- Miss Pebmarsh pediu especificamente que a mandassem a si... - repetiu Hardcastle, de sobrancelhas arqueadas. - Compreendo... Por já ter trabalhado anteriormente para ela, suponho?

- Mas eu nunca trabalhei para ela! - apressou-se Sheila a esclarecer.

- Não? Tem a certeza disso?

- Absoluta! Não é uma daquelas pessoas fáceis de esquecer. É isso que me parece tão estranho...

- Bem, deixemos esse pormenor por agora. A que horas chegou?

- Devia faltar pouco para as três horas, pois o relógio de cuco... - Calou-se, bruscamente, de olhos muito abertos. - Que estranho! Na altura não reparei...

- Não reparou, em quê, Miss Webb?

- Nos relógios.

- Que têm os relógios?

- O relógio de cuco deu as três horas, mas todos os outros estavam cerca de uma hora adiantados. Que esquisito!

- É, sem dúvida, muito esquisito - concordou o inspector. - Quando deu pela presença do cadáver?

- Só quando contornei o sofá... Foi... foi horrível!

- Concordo. Reconheceu o homem? Tratava-se de alguém que já tivesse visto?

- Oh, não!

- Tem a certeza absoluta? Podia parecer diferente do seu aspecto habitual... Pense bem. Tem a certeza absoluta de que nunca o vira?

- Tenho.

- Muito bem. E que fez?

- Que fiz?

- Sim.

- Bem... nada, absolutamente nada! Não fui capaz.

- Compreendo. Não lhe tocou?

- Sim, toquei. Para ver se... quero dizer, só para ver... Mas ele estava frio e... e... fiquei com a mão suja de sangue... de sangue espesso e viscoso.

Começou a tremer e Hardcastle tranquilizou-a, em tom paternal:

- Então, então, acalme-se. Já acabou tudo, não pense no sangue. Conte o que sucedeu a seguir.

- Não sei... Ah, sim, ela chegou.

- Refere-se a Miss Pebmarsh?

- Sim... mas eu não pensei que fosse Miss Pebmarsh.

Entrou com um saco de compras. - Sublinhou o "saco de compras", como se fosse algo incongruente e relevante.

- E que lhe disse você?

- Não creio que lhe tenha dito alguma coisa...

Tentei, mas não pude. Senti-me abafada aqui... - levou a mão à garganta.

O inspector acenou afirmativamente e Sheila Webb prosseguiu:

- E depois ela... ela perguntou: "Quem está aí?" Começou a contornar o sofá, pela retaguarda, e eu pensei... pensei que o ia pisar. Gritei... e o mal foi começar. Não consegui conter os gritos, saí, não sei como, pela porta fora...

... Como se o Diabo a perseguisse - murmurou o inspector, ao recordar-se das palavras de Colin.

Sheila Webb fitou-o, muito triste e assustada, e disse, inesperadamente:

- Peço desculpa.

- Não tem de que pedir desculpa, pois contou a sua história muito bem. Agora não precisa de pensar mais no assunto. Só uma coisa: por que motivo se encontrava na sala?

- Porquê? - indagou, intrigada.

- Sim. Suponho que chegou alguns minutos mais cedo e tocou à campainha. Mas se ninguém atendeu, porque entrou?

- Porque ela disse que entrasse.

- Quem?

- Miss Pebmarsh.

- Mas eu pensei que não tinha falado com ela...

- E não falei. Foi Miss Martindale que o disse...

Que entrasse e esperasse na sala da direita do vestíbulo.

- Ah! - exclamou Hardcastle, pensativo.

- Deseja mais alguma coisa? - perguntou Sheila Webb, timidamente.

- Creio que não. Mas gostaria que aguardasse mais uns dez minutos, pois pode surgir alguma coisa acerca da qual a deseje interrogar. Depois disso, mandarei um carro levá-la a casa. É verdade, e a sua família? Tem família?

- Os meus pais morreram. Vivo com uma tia.

- Como se chama ela?

- Mistress Lawton.

O inspector levantou-se e estendeu a mão.

- Muito obrigado, Miss Webb. Tente repousar bem, esta noite. Precisa disso, depois do que lhe aconteceu.

Ela sorriu-lhe, tímida, e voltou para a sala de jantar.

- Colin, olhe por Miss Webb - recomendou o inspector. - Miss Pebmarsh, quer fazer o favor de vir cá?

Hardcastle começou a estender a mão para a guiar, mas ela passou resolutamente por ele, estendeu as pontas dos dedos para uma cadeira que estava encostada à parede, puxou-a um pouco para a frente e sentou-se.

Hardcastle fechou a porta, mas Millicent Pebmarsh não lhe deu tempo para falar e perguntou:

- Quem é aquele jovem?

- Chama-se Colin Lamb.

- Isso já ele me disse. Mas quem é? Porque veio cá?

Hardcastle olhou-a, um pouco surpreendido.

- Ia a passar por acaso quando Miss Webb saiu a correr e a gritar como uma desalmada. Depois de entrar e de verificar o que sucedera, telefonou-nos e nós convidámo-lo a acompanhar-nos e a esperar.

- O senhor tratou-o por Colin.

- É muito observadora, Miss Pebmarsh...(Observadora? Parecia uma palavra pouco adequada e, todavia, nenhuma outra se ajustava.) - Colin Lamb é meu amigo embora eu já não o visse havia algum tempo. É biólogo marítimo.

- Ah, compreendo!

- Miss Pebmarsh, ficar-lhe-ia grato se me pudesse dizer alguma coisa acerca deste surpreendente acontecimento.

- Da melhor vontade... mas há muito pouco que dizer.

- Suponho que mora aqui há algum tempo?

- Desde mil novecentos e cinquenta. Sou... fui, professora. Quando me informaram de que não podiam fazer nada pela minha visão deficiente e de que não tardaria a cegar, empreguei todos os meus esforços para me especializar em braille e em várias outras técnicas de auxílio aos cegos. Sou empregada no Instituto Aaronberg de Crianças Cegas e Deficientes.

- Obrigado. Falemos dos assuntos desta tarde.

Esperava alguma visita?

- Não.

- Vou-lhe ler uma descrição do morto, para ver se lhe recorda alguém em especial. Altura entre um metro e setenta e dois e um metro e setenta e cinco, cerca de sessenta anos, cabelo escuro a começar a embranquecer, olhos castanhos, cara rapada e magra e queixo firme. Aspecto de pessoa bem alimentada, mas sem ser gordo, fato cinzento-escuro e mãos bem tratadas. Podia tratar-se de um empregado bancário, de um contabilista, de um advogado ou de homem com qualquer profissão liberal. Esta descrição lembra-lhe alguém conhecido?

Millicent Pebmarsh pensou um bocado, antes de responder:

- Não posso dizer que lembre... Trata-se, evidentemente, de uma descrição muito generalizada e que se coadunaria com um grande número de pessoas. Poder-se-á tratar de alguém que vi ou conheci em qualquer ocasião, mas não se trata, com certeza, de alguém que conhecesse bem.

- Nos últimos tempos não recebeu nenhuma carta de qualquer pessoa que se propusesse visitá-la?

- Não.

- Muito bem. A senhora telefonou ao Gabinete de Secretariado Cavendish, solicitou os serviços de uma estenógrafa e...

- Desculpe - interrompeu-o a cega. - Não fiz semelhante coisa.

- Não telefonou ao Gabinete de Secretariado Cavendish a pedir?...

- Nem tenho telefone em casa.

- Há uma cabina ao fundo da rua - lembrou o inspector.

- Há, de facto. Mas afirmo-lhe, inspector Hardcastle, que não precisei dos serviços de nenhuma estenógrafa e não, repito: não telefonei a esse tal Gabinete, a fazer semelhante pedido.

- Não pediu, especificamente, que lhe mandassem Miss Sheila Webb?

- Nunca ouvira, sequer, falar desse nome.

Hardcastle fitou-a, estupefacto.

- Deixou a porta da frente apenas no fecho...lembrou.

- Deixo-a assim com muita frequência, de dia.

- Qualquer pessoa poderia entrar...

- Parece que foi isso que sucedeu, neste caso - comentou secamente a cega.

- Miss Pebmarsh, segundo a opinião do médico, o homem morreu aproximadamente entre a uma e meia e as duas e quarenta e cinco da tarde. Onde estava nessa altura?

Miss Pebmarsh pensou, de novo, antes de responder:

- Creio que saí de casa cerca da uma e meia. Precisava de fazer umas compras.

- Sabe-me dizer exactamente aonde foi?

- Deixe ver... Fui aos Correios da Albany Road expedir uma encomenda e comprar alguns selos; depois comprei umas coisas para a casa, botões e alfinetes de segurança, na capelista Field & Wren. A seguir regressei... Posso-lhe dizer exactamente que horas eram: o meu relógio de cuco estava a dar as três horas quando transpus a cancela. Consigo ouvi-lo da estrada.

- E quanto aos seus outros relógios?

- Como?

- Os seus outros relógios parecem estar todos adiantados cerca de uma hora.

- Adiantados? Refere-se ao relógio de pé, do canto?

- Não apenas a esse. A todos os outros relógios da sala.

- Não compreendo o que quer dizer com "os outros relógios". Não existem outros relógios na sala.

 - Essa agora, Miss Pebmarsh! Que me diz do belo relógio de porcelana de Dresda, que tem na prateleira da chaminé? E do bonito relógio dourado francês? E do relógio de prata? E... sim, e do relógio que tem o nome de "Rosemary" gravado a um canto?

- Um de nós deve estar doido, inspector. Garanto-lhe que não tenho nenhum relógio de porcelana de Dresda, nenhum relógio com o nome... - como disse? - ... com o nome de "Rosemary" gravado, nenhum relógio dourado francês... e qual era o outro?

- Um relógio de prata.

- Nem nenhum relógio de prata. Se não acredita em mim, pode perguntar à mulher que vem fazer a limpeza. Chama-se Mistress Curtin.

O detective-inspector Hardcastle estava perplexo.

Miss Pebmarsh falava em tom de grande segurança e firmeza, convictamente. Meditou, alguns momentos, e depois levantou-se.

- Miss Pebmarsh, importa-se de me acompanhar à sala?

- Às suas ordens. Para lhe ser franca, eu própria gostaria de ver esses relógios.

- Ver? - repetiu Hardcastle, surpreendido.

- Examinar seria um termo mais adequado - concordou Miss Pebmarsh -, mas até as pessoas cegas usam modos convencionais de linguagem que não se aplicam exactamente às suas capacidades. Quando disse que gostaria de ver esses relógios, queria dizer que gostaria de os examinar e sentir com os meus dedos.

Hardcastle saiu da cozinha, atravessou o pequeno vestíbulo e entrou na sala, seguido por Miss Pebmarsh. O perito das impressões digitais levantou a cabeça e anunciou:

- Estou quase a acabar, inspector. Pode mexer no que quiser.

Hardcastle acenou afirmativamente e pegou no pequeno relógio de viagem, com a palavra "Rosemary" gravada a um canto. Entregou-a a Miss Pebmarsh, que o apalpou cuidadosamente.

- Parece um vulgar relógio de viagem, com estojo de cabedal que se fecha. Não é meu, inspector, e tenho praticamente a certeza de que não se encontrava nesta sala quando eu saí, à uma e meia.

- Obrigado.

O inspector aceitou o relógio de viagem e tirou o de porcelana da prateleira da chaminé.

- Tenha cuidado com este - recomendou, ao entregá-lo à cega. - É frágil.

Millicent Pebmarsh tacteou o relógio, com dedos delicados e cuidadosos, e abanou a cabeça.

- Deve ser um relógio encantador, mas não é meu. Onde disse que estava?

- Do lado direito da prateleira da chaminé.

- Aí devia estar um castiçal de porcelana.

- Está, de facto, mas foi puxado para a porta.

- Disse que havia ainda outro relógio, não disse?

- Há mais dois.

Hardcastle arrumou o relógio de porcelana de Dresda e entregou a Miss Pebmarsh o pequeno relógio dourado francês. Ela examinou-o depressa e devolveu-o.

- Também não é meu.

Foi a vez do de prata, que ela devolveu igualmente e afirmou não lhe pertencer.

- Os únicos relógios que deviam estar nesta sala são um relógio de pé, naquele canto junto da janela...

- Exactamente.

... e um relógio de cuco, na parede, próximo da porta.

Hardcastle não soube ao certo que dizer.

Observou perscrutadoramente a mulher que tinha à sua frente, tranquilo por ela não saber que estava a ser observada.

Miss Pebmarsh tinha a testa um pouco franzida, numa expressão de perplexidade.

- Não compreendo - afirmou, irritada. - Não consigo compreender.

Estendeu uma das mãos, com perfeito conhecimento do ponto da sala onde se encontrava, e sentou-se. Hardcastle olhou para o homem das impressões digitais, que se encontrava de pé, à porta.

- Examinou estes relógios?

- Examinei tudo, inspector. Não há quaisquer impressões no relógio dourado, nem seria de esperar que as houvesse, pois a superfície não as retém. Acontece o mesmo com o de porcelana. No entanto, o de viagem e o de prata também as não têm, e isso já parece um pouco esquisito.

Normalmente, deviam ter impressões digitais. A propósito, nenhum deles tem corda e estão todos parados à mesma hora: quatro horas e treze minutos.

- E quanto ao resto da sala?

- Há três ou quatro jogos diferentes de impressões digitais, suponho que todas de mulheres. O conteúdo das algibeiras da vítima está em cima da mesa.

Indicou com a cabeça um montinho de coisas e Hardcastle aproximou-se e observou. Encontrou uma carteira com sete libras e dez xelins; algumas moedas; um lenço de seda, de bolso, sem qualquer inicial; uma caixa de pastilhas digestivas; e um cartão impresso, que o inspector se inclinou para ler.

MR. R. H. CURRY.
Metropolis and Provincial Insurance Company, Ltd.
Denvers Street, 7 Londres, W. 2.

O inspector voltou ao sofá onde Miss Pebmarsh se sentara e perguntou-lhe:

- Aguardava a visita de alguém de uma companhia de seguros?

- De uma companhia de seguros? Não, não aguardava.

- Da Metropolis and Provincial Insurance Company...

- Nunca ouvi falar dela - afirmou Miss Pebmarsh, a abanar a cabeça.

- Não tencionava fazer nenhum seguro?

- Não. Estou segura contra incêndio e roubo na Jove Insurance Company, que tem aqui uma sucursal.

Não tenho nenhum seguro pessoal; como não tenho família nem parentes chegados, não acho necessário fazer um seguro de vida.

- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa? Mister R. H. Curry*?

* Curry significa caril, em inglês. Daí a associação de ideias da mulher. (N. da T. ).

O inspector observava-a atentamente, mas não notou nenhuma reacção.

- Curry... - repetiu, e abanou a cabeça. - É um nome pouco vulgar, não é? Mas não, não me lembro de o ter ouvido nem de conhecer alguém com esse nome. Era assim que se chamava o homem que mataram?

- Parece que sim.

Miss Pebmarsh hesitou um momento, antes de perguntar:

- Deseja que eu... que eu toque...

O inspector compreendeu-a imediatamente.

- Importava-se, Miss Pebmarsh? Não é exigir-lhe demasiado?

Percebo pouco destes assuntos, mas suponho que os seus dedos lhe dirão mais exactamente o aspecto de uma pessoa do que qualquer descrição.

- Sem dúvida. Confesso que a ideia não é muito agradável, mas estou disposta a fazê-lo, se pensa que o poderá ajudar.

- Obrigado. Se me deixar conduzi-la...

Levou-a atrás do sofá, pediu-lhe que se ajoelhasse e depois, suavemente, aproximou-lhe as mãos do morto. Ela parecia muito calma e não denunciava qualquer emoção. Os seus dedos percorreram o cabelo, as orelhas - demoraram-se um momento atrás da orelha esquerda -, a linha do nariz, da boca e do queixo. Depois abanou a cabeça e levantou-se.

- Faço uma ideia clara do seu aspecto, mas tenho a certeza de que não é ninguém que conheça ou haja visto.

O perito das impressões digitais, que arrumara a sua maleta e saíra da sala, apareceu à porta e anunciou, a apontar o cadáver:

- Vêm buscá-lo. Podem levá-lo?

- Podem. Miss Pebmarsh, venha sentar-se aqui, sim?

Instalou-a numa cadeira, a um canto, enquanto dois homens entravam e removiam, com rapidez e eficiência, o corpo do falecido Mr. Curry.

Hardcastle acompanhou-o à cancela e depois voltou à sala e sentou-se perto de Miss Pebmarsh.

- Este caso é muito estranho, Miss Pebmarsh.

Preciso de passar em revista, consigo, os pontos principais, para ter a certeza de que percebi tudo bem.

Corrija-me, se me enganar. A senhora não esperava nenhuma visita, não fez consultas acerca de qualquer espécie de seguros e não recebeu nenhuma carta a informá-la de que receberia, hoje, a visita de um representante de uma companhia de seguros. Está certo?

- Está.

- Não precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa e não telefonou ao Gabinete Cavendish nem pediu que lhe mandassem alguém às três horas.

- Continua a estar certo.

- Quando saiu de casa, cerca da uma e meia, nesta sala só havia dois relógios, o de cuco e o de pé. Mais nenhum.

Miss Pebmarsh ia a responder imediatamente, mas hesitou um momento.

- Para responder com toda a verdade, não posso jurar, a esse respeito.

Em virtude de me encontrar privada da visão, não notaria a ausência de qualquer objecto, nem a presença de quaisquer outros que não costumassem estar nesta sala. Só tenho a certeza do que estava nesta sala quando limpei o pó, de manhã cedo. Nessa altura, estava tudo no seu lugar. Geralmente sou eu que limpo esta sala, pois as mulheres-a-dias são um bocado descuidadas com os ornamentos.

- De manhã saiu de casa?

- Saí. Como de costume, às dez horas fui ao Instituto Aaronberg, onde dou aulas até ao meio-dia e um quarto. Regressei a casa cerca do meio-dia e quarenta e cinco, preparei uns ovos mexidos e uma chávena de chá, na cozinha, e voltei a sair, como já disse, cerca da uma e meia. A propósito, almocei na cozinha e não vim a esta sala.

- Portanto, embora possa afirmar que às dez horas da manhã não estavam relógios a mais nesta sala, admite que os podiam cá ter posto durante a manhã.

- A esse respeito, talvez seja conveniente interrogar a minha mulher-a-dias, Mistress Curtin. Costuma vir por volta das dez horas e partir cerca do meio-dia. Mora na Dipper Street, dezassete.

- Obrigado, Miss Pebmarsh. Restam-nos, agora, os factos que vou enumerar e acerca dos quais gostaria que me apresentasse algumas sugestões ou ideias que porventura lhe ocorram. A certa altura do dia de hoje, foram introduzidos nesta casa quatro relógios; todos esses relógios estavam parados às quatro horas e treze minutos. Esta hora sugere-lhe alguma coisa?

- Quatro horas e treze minutos... Não, nada.

- Passemos agora dos relógios para o morto. Parece improvável que a sua mulher-a-dias o recebesse e deixasse cá ficar à espera, a não ser que a senhora lhe dissesse que o esperava. Mas a esse respeito interrogá-la-emos a ela. Ele veio presumivelmente para falar consigo acerca de qualquer coisa, quer pessoal, quer de negócios. Entre a uma e meia e as duas e quarenta e cinco foi apunhalado e morto. Se ele veio por ter sido chamado, a senhora afirma nada saber acerca disso. É provável que ele estivesse relacionado com seguros, mas a esse respeito, a senhora também não nos pode ajudar. Como a porta estava apenas no fecho, ele podia ter entrado e ficado à sua espera. Mas porquê?

- Parece-me tudo muito estúpido - declarou a cega, impacientemente. - O senhor pensa, então, que esse... esse Curry trouxe os relógios?

- Não encontrámos nenhuma embalagem e ele dificilmente poderia trazer quatro relógios nas algibeiras. Pense bem, Miss Pebmarsh. Não lhe acode ao espírito nada que se possa relacionar com relógios ou, se não com relógios, digamos, por exemplo, com tempo? Quatro horas e treze minutos?.

Millicent Pebmarsh abanou "a cabeça.

- Tenho estado a dizer para comigo que se trata de obra de um louco ou que alguém se enganou na casa, mas nem mesmo isso explica o que se passou. Não, inspector, não o posso ajudar.

Um jovem polícia chegou à porta e Hardcastle foi ter com ele e acompanhou-o até à cancela, onde se demoraram alguns minutos a conversar.

- Agora pode levar a pequena a casa - disse-lhe, por fim. - Mora na Palmerston Road, catorze.

Retrocedeu e entrou na casa de jantar. Pela porta aberta, viu Miss Pebmarsh a fazer qualquer coisa, no lava-louça.

- Preciso de levar os relógios, Miss Pebmarsh. Deixar-lhe-ei um recibo.

- Pode levá-los à vontade, inspector. Não me pertencem...

Hardcastle virou-se para Sheila Webb e informou-a:

- Pode ir para casa, Miss Webb. O carro da Polícia levá-la-á.

A jovem e Colin levantaram-se ao mesmo tempo.

- Acompanhe-a ao carro, sim, Colin? - pediu Hardcastle, ao mesmo tempo que chegava uma cadeira para a mesa e se sentava a passar um recibo.

Colin e Sheila saíram. No carreiro, Sheila parou, de súbito:

- As minhas luvas! Deixei-as...

- Vou buscá-las.

- Não... Sei exactamente onde as pus. Não me importo de lá voltar, agora... agora que o levaram.

Retrocedeu a correr e voltou um ou dois minutos depois.

- Peço desculpa de ter sido tão pateta... antes.

- Qualquer pessoa procederia do mesmo modo.

Hardcastle alcançou-os, quando Sheila entrava no automóvel, deixou o carro arrancar e disse ao jovem polícia:

- Quero os relógios da sala acondicionados com cuidado. Todos menos o relógio de cuco, da parede, e o relógio de pé.

Deu mais algumas instruções e depois voltou-se para o amigo:

- Vou a uns lados. Quer vir?

- Porque não? - respondeu Colin.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

- Aonde vamos? - perguntei a Dick Hardcastle.

- Gabinete de Secretariado Cavendish - respondeu, mas a dirigir-se ao motorista. - Fica na Palace Street, perto do Esplanade, à direita.

- Sim, inspector.

O carro arrancou. Entretanto, juntara-se uma pequena multidão de mirones, cheia de curiosidade.

O gato amarelo continuava empoleirado no pilar da cancela da Diana Lodge, ao lado do número 19. Agora já não lavava o focinho. Estava sentado muito direito, a abanar um pouco a cauda e a olhar por cima da cabeça dos curiosos, com o absoluto desdém pela espécie humana que é prerrogativa especial de gatos e camelos.

- Primeiro o Gabinete de Secretariado e depois a mulher-a-dias - acrescentou Hardcastle, a olhar para o relógio. - O tempo urge; já passa das quatro. Fez uma pausa prolongada, antes de perguntar: Uma pequena muito atraente, não acha?

- Muito - concordei.

- Mas contou uma história extraordinária e, por isso, quanto mais cedo a confirmarmos, melhor.

- Não pensa que ela...

- Interessam-me sempre as pessoas que encontram cadáveres - interrompeu-me o inspector.

- Mas a pequena estava meio louca de medo! Se a ouvisse gritar...

Lançou-me um dos seus olhares irónicos e repetiu que ela era muito atraente.

- A propósito, Colin, que andava você a fazer em Wilbraham Crescent? A admirar a nobre arquitectura vitoriana? Ou tinha algum objectivo?

- Tinha um objectivo. Procurava o número sessenta e um e não o conseguia encontrar. Possivelmente não existe...

- Existe, sim. Suponho que a numeração vai até oitenta e oito.

- Mas quando cheguei ao vinte e oito, Wilbraham Crescent acabou-se!

- É um pormenor que intriga sempre as pessoas que não são daqui. Se tivesse virado à direita, pela Albany Road, e depois novamente à direita, encontrar-se-ia na outra metade de Wilbraham Crescent. As casas foram construídas aos pares, mas traseiras com traseiras, com os jardins de permeio.

- Ah, compreendo! Como aqueles largos e jardins de Londres, não é? Onslow Square... ou Cadogan.

Começamos a descer um lado de um largo e ele transforma-se, de súbito, numa praça ou num jardim. Às vezes até os motoristas de táxis ficam às aranhas. Mas o que interessa é que o número sessenta e um existe.

Faz alguma ideia de quem lá mora?

- No sessenta e um? Deixe ver... Sim, deve ser Bland, o construtor civil.

- Ora bolas! - resmunguei. - É pena. - Não lhe interessa um construtor?

- Não, não me interessa um construtor para nada. A não ser... Talvez se tenha instalado cá recentemente?

- Creio que o Bland nasceu aqui. É, pelo menos, homem destes sítios, estabelecido há anos.

- Decepcionante.

- É um péssimo construtor, por sinal, utiliza materiais muito fracos.

Constrói aquele tipo de casas que parecem mais ou menos bem até lá vivermos. Depois começa tudo a cair ou a funcionar mal. É esperto, mas arrisca-se e algum dia quina.

- Não vale a pena tentar-me, Dick. O homem que procuro deve, quase com certeza, ser a rectidão personificada.

- Bland herdou uma quantidade de dinheiro há cerca de um ano... ou melhor, quem herdou foi a mulher. Ela é canadiana, veio para cá durante a guerra e conheceu Bland. A família não queria que ela casasse com ele e pô-la mais ou menos à margem, depois do casamento. O ano passado, porém, faleceu um tio-avô cujo filho morrera num desastre de aviação.

Devido às baixas provocadas pela guerra e a outras circunstâncias, verificou-se que Mistress Bland era a única pessoa que restava da família e por isso o dinheiro foi para ela. Creio que Bland escapou da falência por um triz.

- Parece muito bem informado acerca de Mister Bland.

- Bem, o serviço de impostos está sempre interessado quando um homem enriquece da noite para o dia. Desconfia se não terá havido tramóia nas declarações, se o tipo não terá posto uns dinheiros de parte, e manda investigar. Desta vez investigou-se e estava tudo em ordem.

- Aliás, não estou interessado num homem que enriqueceu de súbito. Não é isso que procuro.

- Não? Mas já lhe tem aparecido, não tem?

Acenei afirmativamente.

- Esta história é complicada - expliquei, evasivo. - Jantamos juntos, como estava combinado, ou temos de mudar de planos, em virtude do que sucedeu?

- Não, o combinado mantém-se. Neste momento, a primeira coisa a fazer é pôr a engrenagem em funcionamento. Precisamos de descobrir tudo quanto seja possível acerca de Mister Curry. É muito provável que, quando soubermos quem era e o que fazia, tenhamos uma ideia mais ou menos aproximada de quem o desejava afastar do caminho. - Olhou pela janela e informou: - Chegámos.

O Gabinete de Secretariado e Dactilografia estava situado na principal rua comercial, pomposamente denominada Palace Street. Tratava-se, como muitos outros estabelecimentos daquela artéria, de uma casa vitoriana, adaptada às necessidades actuais. À direita, uma casa semelhante ostentava uma tabuleta a anunciar: "Edwin Glen, fotógrafo artístico. Especializado em fotografias de crianças, de casamentos, etc." Como a provar a afirmação, a montra estava cheia de ampliações de fotografias de crianças de todos os tamanhos e idades, de bebés e adolescentes de 16 anos. A intenção era, provavelmente, tentar as mamãs enlevadas. Viam-se também algumas fotografias de noivos: jovens tímidos e moças sorridentes. Do outro lado do Gabinete Cavendish ficavam os escritórios de uma antiga e antiquada firma de comerciantes de carvão.

A seguir, as casas antigas tinham sido deitadas abaixo e dado lugar a um cintilante edifício de três andares, em cuja tabuleta se lia o título imponente de "Café-Restaurante Oriente".

Hardcastle e eu subimos os quatro degraus, transpusemos a porta da rua e, obedientes ao letreiro de uma porta da direita, que dizia "Faça Favor de Entrar", entrámos. Encontrámo-nos num aposento de boas dimensões, onde três jovens estavam sentadas a escrever à máquina. Duas delas continuaram a martelar as teclas, sem ligar importância nenhuma à nossa chegada, e a terceira, instalada numa mesa que tinha um telefone e ficava defronte da porta, levantou a cabeça e olhou-nos, de modo interrogador. Parecia estar a chupar uma guloseima qualquer, que empurrou para um dos lados da boca.

- Em que lhes posso ser útil? - perguntou, em tom levemente adenoidal.

- Miss Martindale? - inquiriu Hardcastle.

- Creio que, neste momento, está a telefonar...

Ao mesmo tempo ouviu-se um clique e a jovem levantou o auscultador do telefone, mexeu numa cavilha e anunciou:

- Estão aqui dois cavalheiros que desejam falar consigo, Miss Martindale... - Olhou para nós e perguntou: - Como se chamam, por favor?

- Hardcastle.

- Mister Hardcastle, Miss Martindale. - Repôs o auscultador no descanso e levantou-se. - Por aqui, se fazem favor. - Conduziu-nos a uma porta que tinha o nome de "Miss Martindale" numa chapa de metal, abriu-a, chegou-se para um lado para passarmos e fechou-a.

Miss Martindale estava sentada a uma grande secretária. Era uma mulher de aspecto eficiente, cerca de cinquenta anos, cabelo ruivo-claro e olhar vivo.

Olhou de um para o outro e perguntou:

- Mister Hardcastle?

Dick tirou um dos seus cartões oficiais e estendeu-lho, enquanto eu tentava passar despercebido e me sentava numa cadeira de espaldar direito, junto da porta.

As sobrancelhas arruivadas de Miss Martindale arquearam-se, numa expressão de surpresa e certo desagrado.

- Detective-inspector Hardcastle? Em que lhe posso ser útil?

- Vim pedir-lhe uma pequena informação, Miss Martindale, e creio que ma poderá dar.

Pelo tom da sua voz, deduzi que Dick ia usar de rodeios e recorrer ao seu encanto. Pessoalmente, duvidei que Miss Martindale fosse vulnerável ao encanto. Pertencia àquele tipo que os Franceses qualificam sagazmente de 'femme formidable'. Entretanto, fui observando o ambiente. Nas paredes, por cima da secretária de Miss Martindale, estavam diversas fotografias autografadas.

Reconheci numa delas Mrs. Ariadne Oliver, uma escritora policial que conhecia superficialmente e que escrevera a um canto da fotografia, em letras firmes e grandes: Com consideração, Ariadne Oliver. Noutra, de um escritor de suspense morto havia cerca de dezasseis anos, lia-se: Com gratidão, Garry Gregson. Miriam Hogg, especialista em romances amorosos, autografara a sua fotografia com um Sempre sua, Miriam, e o género literário que explorava o sexo também lá tinha o seu representante, um homenzinho careca e tímido, que escrevera, em letras miudinhas: Com a gratidão de Armand Levine. Havia certas constantes naqueles troféus: os homens, na sua maioria, seguravam cachimbos... e vestiam casacos de tweed, e as mulheres tinham um ar muito sério e uma tendência para parecerem afogadas em peles.

Enquanto eu me servia dos olhos, Hardcastle interrogava:

- Creio que tem ao seu serviço uma jovem chamada Sheila Webb?

- Tenho. Mas, neste momento, ela não está. Pelo menos...

Premiu um botão e falou com o escritório contíguo:

- Edna, a Sheila já voltou?

- Ainda não, Miss Martindale.

- Foi fazer um trabalho, ao princípio da tarde - explicou a directora. - Calculei que já tivesse acabado... mas é provável que tenha seguido para o Curlew Hotel, onde tinha outro trabalho marcado para as cinco horas.

- Compreendo. Sabe-me dizer alguma coisa acerca de Miss Sheila Webb?

- Receio não lhe saber dizer muito... Ela está cá... deixe ver... sim, creio que é nossa empregada há cerca de um ano. O seu trabalho tem sido satisfatório.

- Sabe onde trabalhava antes de vir para cá?

- Acho que poderei procurar, se tem interesse especial nessa informação, inspector Hardcastle. As referências dela estão arquivadas.

Que me lembre, assim de repente, esteve empregada em Londres e os patrões deram muito boas informações a seu respeito. Creio, embora não tenha a certeza, que se tratava de uma firma de agentes de propriedades.

- E a senhora diz que ela é boa empregada?

- É competente - respondeu Miss Martindale, que não devia ser pessoa para grandes elogios.

- Mas não de primeira categoria?

- Não, isso não. Estenografa a uma velocidade regular e é razoavelmente instruída. Como dactilógrafa, é cuidadosa e certa.

- Conhece-a pessoalmente, além de como empregada?

- Não. Suponho que vive com uma tia. - Miss Martindale hesitou um momento. - Posso saber porque me faz todas estas perguntas, inspector Hardcastle? A pequena meteu-se nalgúm sarilho?

- Suponho que não, Miss Martindale. Conhece uma tal Miss Millicent Pebmarsh?

- Pebmarsh... - repetiu a directora, com as sobrancelhas arruivadas franzidas. - Onde... Ah, já me lembro! Foi Miss Pebmarsh que chamou Sheila, esta tarde. O encontro era para as três horas.

- Como foi marcada a entrevista?

- Pelo telefone. Miss Pebmarsh telefonou e disse que precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa e se lhe podia mandar Miss Webb.

- Ela pediu, especificamente, Sheila Weeb?

- Pediu.

- A que horas foi feito o telefonema?

Miss Martindale pensou um momento, antes de responder:

- O telefonema foi feito directamente para mim... o que significa que foi na hora do almoço. Suponho que faltariam uns dez minutos para as duas. Antes das duas foi, com certeza. Espere, lembro-me de que tomei nota na minha agenda... Cá está: uma hora e quarenta e nove minutos, precisamente.

- Foi a própria Miss Pebmarsh que lhe falou?

Miss Martindale pareceu um pouco surpreendida.

- Presumo que sim.

- Não lhe reconheceu a voz? Não a conhece pessoalmente?

- Não, não a conheço. Disse que era Miss Millicent Pebmarsh e indicou-me o seu nome e a sua morada, em Wilbraham Crescent. Depois, como já disse, pediu que lhe mandasse Sheila Webb às três horas, se estivesse livre.

Pensei que Miss Martindale daria uma excelente testemunha, pois as suas declarações eram claras e firmes.

- E se fizesse o favor de me dizer acerca de que vem tudo isto? - perguntou, com certa impaciência.

- Sabe, Miss Martindale, Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante telefonema.

- Deveras? Mas é extraordinário!

- Pelo seu lado, a senhora declara que o telefonema foi feito, mas não pode afirmar que tenha sido Miss Pebmarsh quem telefonou.

- Claro que não posso afirmar, pois não conheço a criatura. No entanto, não compreendo porque faria alguém tal coisa... Tratou-se de alguma partida?

- Foi muito mais do que isso. Miss Pebmarsh, ou quem quer que telefonou em nome dela, explicou por que motivo desejava especificamente Miss Sheila Webb?

- Creio que disse que Sheila Webb já trabalhara para ela, antes.

- E isso é verdade?

- Sheila declarou-me não se lembrar de ter feito qualquer trabalho para Miss Pebmarsh... mas isso não quer dizer nada. As pequenas saem tantas vezes, trabalham para tanta gente e em sítios tão diferentes, que é natural não se lembrarem, passados alguns meses.

Aliás, Sheila não foi muito peremptória a esse respeito. Disse apenas não se lembrar de lá ter ido. Mas, inspector, mesmo que se tenha tratado de uma partida, não compreendo o seu interesse...

- Já lhe explico. Quando Miss Webb chegou a Wilbraham Crescent, dezanove, entrou na habitação e dirigiu-se para a sala. Disse-me que tinham sido essas as instruções que recebera. É verdade?

- É, sim. Miss Pebmarsh disse que talvez chegasse um bocadinho atrasada e que, nesse caso, Sheila podia entrar e esperar.

- Quando Miss Webb entrou na sala, encontrou um homem morto, caído no chão.

Miss Martindale fitou o inspector e, por momentos, pareceu incapaz de falar.

- Disse um homem morto, inspector?

- Um homem assassinado. Apunhalado.

- Oh, meu Deus, a pequena deve ter sofrido um grande abalo!

- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa, Miss Martindale? Mister R.H. Curry?

- Não, suponho que não.

- Mister Curry, da Metropolis and Provincial Insurance Company?

A directora continuou a abanar a cabeça.

- Compreende o meu dilema, Miss Martindale: a senhora diz que Miss Pebmarsh lhe telefonou e pediu que mandasse Sheila Webb a sua casa, às três horas; Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante telefonema. Sheila Webb obedeceu às instruções que lhe deram e quando chegou encontrou um homem morto.

O inspector aguardou, mas Miss Martindale olhou-o inexpressivamente.

- Tudo isso me parece estranho e inacreditável - limitou-se a declarar, desaprovadora.

Dick Hardcastle suspirou e levantou-se.

- Tem uma bela casa - elogiou, delicadamente.Já está estabelecida há algum tempo, não está?

- Há quinze anos. Temos tido sorte. Começamos modestamente, mas fomo-nos expandindo e agora quase não chegamos para as encomendas. Tenho oito empregadas e elas nunca param.

- Vejo que se dedicam muito a trabalho literário - bservou Hardcastle, a olhar para as fotografias da parede.

- Sim, ao princípio especializei-me em trabalhar para escritores. Fui secretária do famoso ficcionista Garry Gregson, durante muitos anos... e, por sinal, foi graças a um legado dele que fundei o Gabinete. Conhecia muitos escritores e eles recomendaram-me. Os conhecimentos especializados que adquirira junto de Mister Gregson foram-me muito úteis e agora estou apta a prestar um serviço importante, no capítulo de datas, citações, pormenores jurídicos, procedimento policial, certas propriedades de venenos, coisas assim...

Nomes estrangeiros, moradas e nomes de restaurantes, quando os autores situam os seus romances em países estrangeiros... Noutros tempos, o público não ligava muita importância à exactidão, mas hoje em dia os leitores não deixam escapar nenhuma oportunidade de escrever aos autores sempre que encontram qualquer falha.

- Estou certo de que tem motivos para se sentir contente - declarou Hardcastle, muito delicado.

Encaminhou-se para a porta e eu abri-lha.

No escritório, as três raparigas preparavam-se para sair e já tinham tapado as máquinas de escrever. Edna, a recepcionista, estava de pé, com um ar muito triste, a segurar numa das mãos um sapato e na outra um salto alto e fino.

- Só os comprei há um mês - lamentava-se.E foram caros! A culpa foi daquele maldito ralo da esquina, junto da pastelaria. O salto prendeu-se lá e soltou-se. não pude continuar a andar, tive de descalçar os dois sapatos e voltar para o escritório, com dois bolos para me servirem de almoço.

Palavra que não sei como hei-de chegar à paragem do autocarro e de seguir para casa!

Nesse momento Edna deu pela nossa presença e apressou-se a esconder o sapato, ao mesmo tempo que lançava a Miss Martindale um olhar apreensivo. A directora, que calçava sapatos práticos, de meio-salto, não devia apreciar saltos daqueles.

- Obrigado, Miss Martindale - agradeceu Hardcastle. - Lamento ter-lhe roubado tanto tempo. Se se lembrar de alguma coisa...

- Com certeza - cortou a mulher, com certa brusquidão.

Quando entrámos no automóvel, observei:

- Afinal, apesar das suas suspeitas, a história de Sheila Webb é verdadeira.

- Está bem, está bem, ganhou!

***

 - Mãe! - gritou Ernie Curtin e desistiu momentaneamente de movimentar um pequeno brinquedo metálico pelo vidro da janela acima e abaixo, ao mesmo tempo que emitia um "zumeee" que pretendia reproduzir o silvo de uma astronave a caminho de Vénus... - Que lhe parece, mãe?

Mrs. Curtin, uma mulher de rosto severo que estava ocupada a lavar a louça, não respondeu.

- Mãe, parou um carro da Polícia defronte da nossa casa!

- Não digas mais mentiras, Ernie! - advertiu Mrs. Curtin, enquanto punha as chávenas e pires a escorrer. - Não te esqueças do que te disse a esse respeito.

- Não esqueço! - garantiu Ernie, virtuosamente. - É mesmo um carro da Polícia e estão a sair dois homens.

Mrs. Curtin virou-se, ameaçadora, para o rebento.

- Que fizeste tu agora? Alguma vergonha, não?

- Claro que não! Não fiz nada.

- Tudo por andares com aquele Alf e o seu bando. Bandos, imaginem! Tanto eu como o teu pai já te dissemos que um bando não é uma coisa respeitável. Dá sempre sarilho! Primeiro é o tribunal de menores e, mais cedo ou mais tarde, a casa da correcção. Não consentirei semelhante coisa, ouviste?

- Dirigem-se para a porta da rua - anunciou Ernie.

Mrs. Curtin afastou-se do lava-louça e juntou-se ao filho, à janela.

Nesse momento bateram à porta e Mrs. Curtin limpou as mãos a uma rodilha e apressou-se a ir abrir, ao corredor. Olhou, entre desconfiada e provocadora, para os dois homens parados no limiar.

- Mrs. Curtin? - perguntou delicadamente o mais alto.

- Exactamente.

- Dá-me licença que entre um momento? Sou o detective-inspector Hardcastle.

Mrs. Curtin recuou, contrariada, abriu a porta e fez sinal ao inspector para entrar. Era uma saleta muito arrumada e limpa, que dava a impressão de ser pouco usada, o que era verdade.

Curioso, Ernie aproximou-se, vindo da cozinha, e esgueirou-se para dentro da sala.

- Seu filho? - perguntou o inspector.

- Sim - respondeu a mulher, e acrescentou, agressiva: - É bom rapaz, diga o senhor o que disser!

- Estou certo de que é - concordou Hardcastle, delicadamente, e o rosto de Mrs. Curtin tornou-se menos desafiador. - Desejo fazer-lhe algumas perguntas acerca de Wilbraham Crescent, dezanove. Sei que trabalha lá...

- Nunca disse que não trabalhava - replicou a mulher, incapaz, apesar de tudo, de vencer a agressividade inicial.

- Trabalha para Miss Millicent Pebmarsh...

- Sim, trabalho para Miss Pebmarsh. Uma senhora muito simpática. - Cega...

- Sim, coitadinha. Mas nem parece! É extraordinária a maneira como estende a mão para as coisas e anda por todo o lado! Sai de casa, atravessa ruas... Não se atrapalha, como certas pessoas que conheço.

- A senhora trabalha lá de manhã?

- Trabalho. Entro entre as nove e meia e as dez horas e saio ao meio-dia ou quando acabo o serviço.De súbito perguntou, vivamente: - Não veio dizer que roubaram alguma coisa, pois não?

- Pelo contrário - respondeu o inspector, a pensar nos quatro relógios.

Mrs. Curtin olhou-o sem compreender e indagou:

- Que se passa?

- Esta tarde, foi encontrado um homem morto na sala da casa de Wilbraham Crescent, dezanove.

Mrs. Curtin arregalou os olhos. Ernie encolheu-se todo, num êxtase, abriu a boca para exclamar "Oh!", achou melhor não chamar a atenção para a sua pessoa e fechou outra vez a boca.

- Morto? - perguntou a mulher, incrédula, e acrescentou, com maior incredulidade ainda: - Na sala?

- Sim. Fora apunhalado.

- Quer dizer que foi... assassínio?

- Sim, foi assassínio.

- Quem o assassinou?

- Lamento, mas ainda não sabemos. Pensamos que talvez a senhora nos pudesse ajudar.

- Não sei nada de assassínios! - afirmou Mrs. Curtin, categórica.

- Evidentemente. Mas surgiram alguns pormenores que talvez nos possa esclarecer. Por exemplo, esta manhã foi lá algum homem?

- Que me lembre, não. Hoje não foi. Que espécie de homem era ele?

- Idoso, talvez dos seus sessenta anos, respeitavelmente vestido de escuro... É provável que se apresentasse como agente de seguros.

- Não o deixaria entrar. Não deixaria entrar agentes de seguros nem vendedores de aspiradores ou de edições da Enciclopédia Britânica. Nada desse género. Miss Pebmarsh não compra nada à porta e eu também não.

- O nome do indivíduo, segundo um cartão que trazia com ele, era Mister Curry. Alguma vez ouviu esse nome?

- Curry?... - Mrs. Curtin abanou a cabeça.Soa-me a indiano... - acrescentou, desconfiada.

- Oh, não, não era indiano!

- Quem o encontrou? Miss Pebmarsh?

- Uma jovem estenodactilógrafa. Foi lá a casa devido a um malentendido, convencida de que Miss Pebmarsh a chamara, para lhe fazer um trabalho. Miss Pebmarsh regressou quase ao mesmo tempo.

Mrs. Curtin soltou um suspiro fundo e exclamou:

- Que complicação! Que complicação!

- É possível que tenhamos de lhe pedir que veja o cadáver, a fim de nos dizer se alguma vez o viu em Wilbraham Crescent ou se ele lá foi a casa. Miss Pebmarsh tem a certeza de que nunca foi... Agora desejava que me esclarecesse alguns pormenores. Lembra-se, assim de repente, quantos relógios há na sala?

Mrs. Curtin nem precisou de pensar:

- Há o relógio grande, ao canto, e o relógio de cuco, na parede. Sai um passarinho por uma portinhola e diz cu, cu! cu, cu! As vezes prega-me cada susto! - Apressou-se a acrescentar: - Não toquei em nenhum, nunca lhes mexo. Miss Pebmarsh gosta de ser ela a dar-lhes corda.

- Não aconteceu nada aos relógios - tranquilizou-a o inspector. - Tem a certeza de que esses dois eram os únicos relógios que estavam na sala, esta manhã?

- Pois tenho! Não podiam lá estar outros.

- Não estavam lá, por exemplo, um pequeno relógio quadrado, de prata, ou um relógio dourado? Um relógio de porcelana, com flores, ou um relógio com um estojo de cabedal e o nome de "Rosemary" gravado a um canto?

- Claro que não!

- Teria reparado neles se lá estivessem?

- Com certeza que teria.

- Qualquer destes quatro relógios marcava uma hora e tal a mais do que o relógio grande e o de cuco.

- Deviam ser estrangeiros. Eu e o meu marido fomos, uma vez, numa excursão, à Suíça e à Itália e lá era uma hora mais tarde. Deve ser qualquer coisa relacionada com o Mercado Comum. Eu não quero nada com o Mercado Comum e o meu homem também não; a Inglaterra serve-me muito bem.

O inspector Hardcastle não se deixou arrastar para o campo político e perguntou:

- Sabe-me dizer que horas eram, ao certo, quando saiu de casa de Miss Pebmarsh, esta manhã?

- Mais ou menos meio-dia e um quarto.

- Miss Pebmarsh estava em casa?

- Não, ainda não regressara. Geralmente regressa entre o meio-dia e o meio-dia e meia hora, mas varia.

- A que horas saíra ela?

- Antes de eu chegar. Entro às dez.

- Obrigado, Mistress Curtin.

- Isso dos relógios parece estranho. Talvez Miss Pebmarsh tenha ido a alguns saldos... Não eram antigos? Pelo menos é o que me parecem, pelo modo como os descreveu.

- Miss Pebmarsh costuma ir a saldos?

- Há uns quatro meses comprou uma carpete em muito bom estado, num saldo. Muito barata, segundo me disse. Também comprou uns cortinados de veludo. Foi preciso cortá-los um bocadinho, mas pareciam novos.

- Mas ela não costuma comprar bricabraque, coisas assim como quadros, porcelanas?...

- Que eu saiba, não. Mas nos saldos nunca se sabe, não é? Quero dizer, deixamo-nos arrastar pela tentação. Quando chegamos a casa, perguntamo-nos:

"Mas, afinal, para que quero isto?" Uma vez, comprei seis boiões de compota, que eu própria podia ter feito mais barata.

Outra, foram chávenas e pires, que compraria mais baratos no mercado das quartas-feiras...

Abanou a cabeça, tristemente, e o inspector compreendeu que, de momento, não conseguiria saber mais nada e despediu-se. Ernie soltou, então, a frase que se esforçara por conter:

- Assassínio! Ena!

Momentaneamente, a conquista do espaço exterior deu lugar, no seu espírito, a um assunto actual e emocionante.

- Miss Pebmarsh não o podia ter morto, pois não? - sugeriu, ansioso.

- Não digas tolices! - ralhou a mãe, e murmurou, ao acudir-lhe um pensamento: - Pergunto a mim mesma se lhe deveria ter dito...

- Se lhe deveria ter dito o quê, mãe?

- Não tens nada com isso. Não foi nada de importância, de resto...

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Depois de nos deliciarmos com dois bons bifes mal passados, regados com cerveja de barril, Dick Hardcastle soltou um suspiro de agradável saciedade, afirmou que se sentia melhor e exclamou:

- Ao diabo com os agentes de seguros assassinados, com os relógios de fantasia e com as raparigas a gritar! Fale-me de si, Colin. Julgava que já não tinha nada a fazer por estas bandas e ei-lo a vaguear pelas ruas secundárias de Crowdean! Garanto-lhe que em Crowdean não há futuro para um biólogo marítimo.

- Não troce da biologia marítima, Dick, pois trata-se de uma matéria muito útil. A sua simples menção enfada tanto as pessoas, elas têm tanto medo de que falemos do assunto, que nunca temos oportunidade de explicar de que se trata.

- Assim, não corre o risco de se denunciar, hem?

- Esquece-se de que sou biólogo marítimo - observei, friamente. - Formei-me em Cantabrígia. A classificação não foi muito elevada, mas formei-me. É um trabalho muito interessante e, um dia, voltarei a dedicar-me a ele.

- Claro que sei em que tem andado a trabalhar, e felicito-o. O julgamento do Larkin é no próximo mês, não é?

- É.

- É espantoso como ele conseguiu passar informações durante tanto tempo! Seria de supor que alguém desconfiasse...

- Mas ninguém desconfiou. Quando se mete na cabeça de uma pessoa que determinado indivíduo é um tipo excelente, não lhe passa pelo espírito que ele possa não o ser.

- Deve ter procedido com muita inteligência.

- Francamente, não creio. Estou convencido de que ele procedeu como lhe mandaram proceder. Tinha acesso a documentos muito importantes, saía com eles, fotografavam-nos, devolviam-lhos e ele repunha-os no seu lugar, no mesmo dia. Boa organização, apenas. Ele tinha o hábito de almoçar em lugares diferentes, todos os dias, e nós cremos que pendurava o sobretudo onde havia sempre outro exactamente igual ao seu, embora o homem que o usava não fosse todos os dias o mesmo. Os sobretudos eram trocados, mas o homem que os trocava nunca falava com Larkin nem este com ele.

Gostaríamos de saber muito mais coisas acerca da mecânica do caso... Era tudo muito bem planeado, com uma sincronização perfeita, por alguém que tinha miolos.

- É por isso que continua nas imediações da Estação Naval de Portlebury?

- É. Conhecemos o papel da Estação e o papel de Londres, sabemos quando e onde Larkin recebia, e como. Mas há uma lacuna, entre uma coisa e outra existe uma obra-prima de organização. Era acerca dessa parte que gostaríamos de saber mais alguma coisa, pois é aí que estão os miolos.

Algures, existe um bom quartel-general onde se fazem planos excelentes que deixam uma pista que se torna confusa não uma vez, mas provavelmente sete ou oito vezes.

- Porque procedia o Larkin desse modo? - perguntou Hardcastle, curioso. - Por idealismo político? Para lisonjear o seu ego? Ou por simples dinheiro?

- Ele não tem nada de idealista. Creio que lhe interessava apenas o dinheiro.

- Não o podiam ter descoberto mais cedo, por esse motivo? Quero dizer, ele gastava o dinheiro, não gastava? Não o juntava.

- Oh, não, ele desbaratava-o! Na realidade, desconfiámos dele mais cedo do que dizemos.

Hardcastle acenou com a cabeça, compreensivo.

- Estou a perceber. Descobriram o jogo e depois serviram-se dele durante uns tempos. Foi isso?

- Mais ou menos. O tipo transmitira valiosas informações, antes de descobrirmos o que se passava, e por isso deixámo-lo transmitir mais algumas, aparentemente valiosas, também. No Serviço a que pertenço temos de nos resignar e de parecer idiotas, de vez em quando.

- Não creio que gostasse do seu trabalho, Colin observou Hardcastle, pensativo.

- Não é tão emocionante como as pessoas julgam. Na realidade, a maioria das vezes é muitíssimo enfadonho. Mas há mais alguma coisa, para além disso. Hoje em dia, temos a sensação de que nada é realmente secreto.

Nós sabemos os segredos deles e eles sabem os nossos... os nossos agentes são muitas vezes agentes deles, também, e os agentes deles nossos agentes... No fim, descobrir quem anda a atraiçoar quem transforma-se quase num pesadelo. Às vezes, penso que todos sabem os segredos uns dos outros e participam numa espécie de conspiração para fingir que não sabem.

- Compreendo o que quer dizer... - Dick fitou-me, cheio de curiosidade, e acrescentou: - Percebo por que motivo ainda permanece nas imediações de Portlebury, mas Crowdean fica a mais de dezasseis quilómetros de distância!

- O que na realidade procuro são crescentes. - Crescentes? - repetiu o inspector, intrigado.

- Sim. Ou, então, luas. Luas novas, quartos crescentes, etc. Comecei a investigar em Portlebury, onde há um bar chamado Quarto Crescente, e perdi muito tempo. Parecia ideal... Seguiram-se A Lua e as Estrelas, A Lua Nascente, O Alegre Crescente, A Cruz e o Crescente, este numa terreola chamada Seamede. Nada feito. Desisti das luas e concentrei-me nos crescentes propriamente ditos. Há vários em Portlebury: Crescente de Lansbury, Crescente de Aldridge, Crescente de Livermead, Crescente de Vitória...

Reparei na cara espantada de Dick e desatei a rir.

- Não faça essa cara de espanto, homem! Eu tinha algo tangível em que me basear.

Puxei da carteira, tirei uma folha de papel e estendi-lha. Tratava-se de uma simples folha de papel de carta de um hotel, na qual alguém fizera um desenho tosco. Hotel Pmrington Erners Strero Londres 61M.

- Um tipo chamado Hanbury tinha isso na carteira. Hanbury trabalhou muito no Caso Larkin e era bom... muito bom. Foi atropelado em Londres, por um automóvel que não parou. Ninguém viu o número. Não sei o que isso significa, mas é qualquer coisa que Hanbury desenhou ou copiou, por julgar que era importante. Alguma ideia que teve? Algo que vira ou ouvira? Fosse o que fosse, estava relacionado com a Lua ou o crescente, o número sessenta e um e a inicial M. Substituí-o, depois da sua morte. Ainda não sei o que procuro, mas tenho a certeza de que existe alguma coisa para encontrar. Não sei o que significa o sessenta e um nem o M. Tenho estado a trabalhar numa área que tem Portlebury como centro, parti daí para o exterior. Três semanas de trabalho intensivo e inútil. Crowdean fica no meu caminho e é por isso que estou cá. Para ser franco, nunca tive muitas esperanças em Crowdean, onde só há um crescente: Wilbraham Crescent. Tencionava passear por Wilbraham Crescent e ver o que pensava do número sessenta e um, antes de lhe perguntar se sabia alguma coisa que me pudesse ajudar. Era o que estava a fazer esta tarde, mas sem conseguir encontrar o número que me interessava.

- Como já lhe disse, no sessenta e um mora um construtor civil.

- E não é isso que procuro. Têm alguém estrangeiro ao seu serviço?

- É possível. Hoje em dia, muita gente tem criadas estrangeiras. Se tiverem alguma, ela estará registada. Amanhã averiguarei isso.

- Obrigado, Dick.

- Amanhã efectuarei investigações de rotina nas duas casas que ladeiam o número dezanove, para saber se viram alguém entrar, etc. Talvez investigue também nas que ficam directamente atrás do número dezanove, cujos jardins são contíguos. Tenho até a impressão de que o número sessenta e um fica atrás do dezanove. Se quiser ir comigo, posso-o levar.

Aceitei a oferta sem hesitar.

- Serei o seu "sargento Lamb" e tomarei apontamentos em estenografia.

Ficou combinado que me encontraria na esquadra da Polícia às nove e meia da manhã seguinte.

Cheguei pontualmente e encontrei o meu amigo a ferver de raiva.

Quando despediu um subordinado cabisbaixo, perguntei, com todas as cautelas, o que sucedera.

Ao princípio, Hardcastle pareceu incapaz de falar. Depois explodiu:

- Os malditos relógios!

- Outra vez os relógios? Que sucedeu agora?

- Um deles desapareceu.

- Desapareceu? Qual?

- O de viagem, com estojo de cabedal e o nome de "Rosemary" gravado a um canto.

Soltei um assobio.

- Mas isso parece muito estranho! Como aconteceu?

- Os grandíssimos idiotas... - Dick, que era um homem muito honesto, hesitou um momento e admitiu: - Suponho que também o sou.

Um homem tem de pôr todos os pontos nos is senão corre tudo mal.

Bem, os relógios estavam na sala, ontem, e eu pedi a Miss Pebmarsh que os examinasse com os dedos, a fim de saber se lhe eram familiares. Não eram. Depois chegaram para remover o cadáver...

- E então?

- Acompanhei-os até à cancela, para dirigir as operações, e depois regressei à moradia e falei com Miss Pebmarsh, que estava na cozinha. Disse-lhe que teria de trazer os relógios e lhe daria um recibo.

- Lembro-me perfeitamente, pois ouvi-o. - Depois disse à pequena que a levaria a casa num dos nossos carros e você acompanhou-a ao automóvel, a meu pedido.

- Exactamente.

- Passei o recibo a Miss Pebmarsh, embora ela dissesse que não era preciso, pois os relógios não lhe pertenciam, e fui ter consigo. Disse ao Edwards que queria os relógios da sala cuidadosamente acondicionados e trazidos para cá. Todos, excepto, claro, o de pé e o de cuco. E foi aí que fiz asneira. Devia ter dito, especificamente, os quatro relógios. Edwards diz que foi logo à sala e cumpriu as minhas ordens, mas teima que só lá estavam três relógios, além dos dois que não eram para trazer.

- Não houve muito tempo para agir - observei. Parece...

- Miss Pebmarsh podia ter pegado no relógio, assim que eu saí da sala, e ido para a cozinha com ele.

- Claro. Mas porquê?

- Precisamos de saber tantas coisas! Mais alguém teria a mesma possibilidade? Teria sido a pequena?

- Não creio. Eu... - calei-me, de repente, ao recordar uma coisa.

- Afinal, podia ter sido ela! - exclamou Hardcastle, perante a minha hesitação. - Continue. Quando foi?

- Saíramos e dirigíamo-nos para o carro da Polícia - expliquei, muito triste. - Ela lembrou-se de que se esquecera das luvas e eu disse-lhe: "Vou buscá-las." Mas ela redarguiu: "Não... Sei exactamente onde as pus. Não me importo de lá voltar, agora... agora que o levaram." E voltou para trás, a correr. Só se demorou um minuto...

- Quando regressou, trazia as luvas calçadas ou na mão?

Hesitei.

- Sim... creio que as trazia...

- É evidente que não as trazia, pois se trouxesse você não hesitaria.

- Provavelmente meteu-as na mala.

- O mal é que você se deixou prender pela moça - resmungou Hardcastle, acusadoramente.

- Não seja idiota! - protestei, com veemência.Via-a ontem à tarde pela primeira vez, e não se tratou de uma apresentação nada romântica.

- Não estou muito de acordo com isso. Não é todos os dias que caem nos braços de homens novos como você pequenas a gritar por socorro, no bom estilo vitoriano. Um tipo sente-se um herói e um defensor galante do sexo fraco... Mas tem de deixar de a defender, meu amigo. Nada nos garante que ela não esteja metida até ao pescoço no assassínio.

- Pretende dizer que aquela criatura cravou uma faca num homem, a escondeu tão bem que nenhum dos seus cães foi capaz de a encontrar e depois saiu de casa e improvisou aquela cena de gritos, quando me caiu nos braços?

- Ficaria surpreendido se soubesse o que tenho visto, durante a minha vida.

- Não se lembra de que a minha vida também tem estado cheia de belas espias de todas as nacionalidades? Espias com estatísticas vitais tão impressionantes que fariam o mais esperto detective particular americano esquecer-se da eterna garrafa de uísque na gaveta da secretária. Estou imunizado contra todos os encantos femininos.

- Toda a gente acaba por ter o seu Waterloo. Depende tudo do tipo... e Sheila Webb parece ser o seu tipo.

- Seja como for, não compreendo porque está tão empenhado em lhe atribuir as culpas.

Hardcastle suspirou.

- Não lhe estou a atribuir culpas nenhumas, mas preciso de começar por qualquer lado. O corpo foi encontrado na casa de Miss Pebmarsh e esse facto envolve automaticamente a cega no assunto. O corpo foi encontrado por Miss Webb... e eu não preciso de lhe dizer que, muito frequentemente, a primeira pessoa a encontrar um cadáver foi a última a ver o indivíduo vivo. Portanto, enquanto não descobrirmos novos factos, não podemos ignorar o papel destas duas mulheres.

- Quando entrei na sala, pouco depois das três horas, o indivíduo morrera havia pelo menos meia hora. Ou mais, provavelmente. Que me diz a isto?

- Sheila Webb foi almoçar da uma e meia às duas e meia.

Fitei-o, desesperado, e perguntei:

- Que descobriu acerca de Curry?

- Nada! - replicou o inspector, com inesperado azedume.

- Nada? Que quer dizer?

- Quero dizer que não existe, que não há semelhante pessoa.

- Que diz a Metropolis Insurance Company?

- Não diz nada, porque também não existe. A Metropolis and Provincial Insurante Company não existe. Quanto a Mister Curry, da Denvers Street, não existe nenhum Mister Curry, nem nenhuma Denvers Street, nem nenhum número sete ou qualquer outro.

- Interessante! Quer dizer que o tipo mandou imprimir alguns cartões falsos, com um nome falso e a menção de uma companhia de seguros falsa?

- Assim parece.

- E qual seria a grande ideia?

Hardcastle encolheu os ombros.

- Por enquanto, só podemos conjecturar. Talvez ele cobrasse prémios falsos, para não destoar do resto... Ou talvez fosse uma maneira de se introduzir na casa das pessoas e praticar qualquer vigarice. Tanto podia ser um vigarista como um aldrabão, um gatuno de bagatelas como um investigador particular... Não sabemos.

- Mas descobrirão?

- Oh, sim, acabaremos por descobrir! Recolhemos as suas impressões digitais, para sabermos se tem cadastro de qualquer espécie. Se tiver, será um grande passo em frente. Se não tiver, será mais difícil.

- Um investigador particular... - murmurei, pensativo. - Agrada-me essa hipótese. Apresenta... possibilidades.

- Possibilidades é tudo quanto temos, até agora.

- Quando é o inquérito?

- Depois de amanhã. Será puramente formal e haverá um adiamento.

- Qual foi o relatório médico?

- Apunhalado com um instrumento aguçado. Qualquer coisa do género de uma faca de vegetais.

- Isso a bem dizer iliba Miss Pebmarsh, não lhe parece? Seria muito difícil a uma cega apunhalar um homem. Suponho que ela é realmente cega?

- Sim, é realmente cega. Investigámos isso. Disse a verdade. Foi professora de matemática numa escola do Norte, perdeu a vista há cerca de dezasseis anos, aprendeu braille, etc., e, finalmente, arranjou emprego no Instituto Aaronberg.

- Não terá qualquer tara?

- A mania dos relógios e dos agentes de seguros?

- É, de facto, tudo muito fantástico. - Não pude deixar de acrescentar, com certo entusiasmo: - Como Ariadne Oliver nos seus piores momentos, ou o defunto Garry Gregson no auge da sua forma...

- Divirta-se à vontade! Não é o desgraçado do detective-inspector a quem compete investigar o caso! Não tem de prestar contas a um superintendente nem a um chefe de Polícia e a todos os outros!

- Anime-se! Talvez a vizinhança nos diga alguma coisa útil.

- Duvido - resmungou Hardcastle, pessimista.Se o tipo tivesse sido apunhalado no jardim da frente e dois mascarados o levassem para dentro de casa, ninguém teria visto nada. Por azar, não estamos numa aldeia.

Wilbraham Crescent é uma artéria residencial burguesa. A uma hora, as mulheres-a-dias, que poderiam ver alguma coisa, deixam o trabalho e regressam a sua casa. Nem sequer se vê ninguém a empurrar um carrinho de bebé na rua!

- Não há nenhum doente idoso, que passe o dia junto da janela?

- Isso era o que nos convinha, mas não é a realidade.

- E a respeito das casas números dezoito e vinte?

- No número dezoito moram Mister Waterhouse, gerente da firma de solicitadores Gainsford & Swettenham, e a sua irmã, que se entretém a geri-lo a ele nas horas vagas... Quanto ao número vinte, só sei que mora lá uma mulher que tem cerca de duas dezenas de gatos. Não gosto de gatos...

Disse-lhe que a vida de polícia era muito dura e pusemo-nos a caminho.

***

Mr. Waterhouse, que se encontrava, hesitante, no degrau da casa número 18 de Wilbraham Crescent, olhou nervosamente para trás, para a irmã.

- Tens a certeza de que ficas bem? - perguntou.

Miss Waterhouse replicou, indignada:

- Confesso que não compreendo o que queres dizer, James!

Mr. Waterhouse mostrou um ar contrito. Tinha de se mostrar contrito com tanta frequência que tal expressão se tornara, praticamente, constante.

- Bem, minha querida, se pensarmos no que sucedeu ontem, aqui ao lado...

Mr. Waterhouse preparava-se para seguir para o escritório onde trabalhava. Era um homem grisalho e imaculado, de ombros ligeiramente curvados e rosto mais cinzento do que rosado, embora sem aspecto doentio.

Miss Waterhouse era uma mulher alta e angulosa, pouco dada a contra-sensos e sem tolerância nenhuma pelos contra-sensos dos outros.

- O facto de, ontem, terem assassinado alguém aqui ao lado será razão para me assassinarem, hoje, a mim?

- Bem, Edith, depende muito da pessoa que cometeu o assassínio, não achas?

- Pensas, então, que anda alguém por Wilbraham Crescent, a escolher uma vítima em cada casa? Francamente, James, isso é quase blasfemo!

- Blasfemo, Edith? - perguntou Mr. Waterhouse, muito surpreendido, pois jamais lhe ocorreria que o seu comentário merecesse tal comparação.

- Reminiscente da Páscoa dos Judeus*, à qual, deixa-me que te lembre, a Bíblia se refere.

* A Páscoa dos Judeus comemora a passagem do mar Vermelho e, também - e daí a alusão acima -, a passagem do anjo exterminador, que matou todos os primogénitos dos Egípcios, na noite da partida dos Judeus, e poupou as casas dos Israelitas, assinaladas pelo sangue do cordeiro.(N. de T.).

- Creio que a comparação é um bocadinho descabida, Edith...

- Sempre queria ver alguém vir aqui e tentar matar-me! - exclamou Miss aterhouse, muito decidida.

O irmão pensou que, de facto, seria muito pouco provável. Ele próprio, se quisesse escolher uma vítima, jamais escolheria a irmã. Se alguém se lembrasse de tal cometimento, acabaria provavelmente, por ser posto xo com um atiçador ou a tranca da porta, e entregue à Polícia sujo de sangue e humilhado.

- Só queria dizer que... - murmurou, com um ar mais contrito do que nunca - ... enfim, que andam por aí pessoas muito indesejáveis.

- Pouco sabemos, ainda, acerca do que sucedeu. Por enquanto, só há boatos. Mistress Head contou alguns extraordinários, esta manhã...

- Acredito, acredito...

Mr. Waterhouse olhou para o relógio. Não tinha vontade nenhuma de ouvir repetir os boatos contados pela sua tagarela mulher-a-dias. A irmã apressava-se sempre a reduzir às devidas proporções esses disparatados voos da imaginação, mas, no entanto, gostava de os ouvir...

- Já há quem diga que a vítima era o tesoureiro ou um administrador do Instituto Aaronberg, e que veio interrogar Miss Pebmarsh, em virtude de haver qualquer coisa errada nas contas.

- E Miss Pebmarsh assassinou-o? - perguntou Mr. Waterhouse, surpreendido. - Uma cega? Certamente...

- Passou-lhe um bocado de arame pelo pescoço e estrangulou-o. Ele estava desprevenido, compreendes?

Qualquer pessoa estaria, na presença de um cego...

Claro que eu não acredito - apressou-se a afirmar. Estou certa de que Miss Pebmarsh é uma senhora de excelente carácter. Posso não estar de acordo com ela a certos respeitos, mas isso não significa que a considere criminosa. Considero apenas que tem opiniões intolerantes e extravagantes. No fim de contas, há outras coisas além da instrução. Todos esses estranhos liceus que hoje constroem, praticamente de vidro... Até parecem estufas para pepinos ou tomates! Tenho a certeza de que são prejudiciais para as crianças, nos meses de Verão. Mistress Head, por exemplo, disse-me que a sua Susan não gosta das novas salas de aula: as janelas são tantas que a tentação de olhar constantemente para a rua não lhe permite prestar atenção às lições.

- Meu Deus, vou chegar muito atrasado! - exclamou Mr. Waterhouse, a olhar de novo para o relógio. - Até logo, minha querida. Tem cuidado.

Talvez seja melhor manter a corrente na porta...

Miss Waterhouse soltou um rosnido e fechou a porta. No entanto, antes de subir para o andar de cima, parou um instante, pensativa, e depois foi ao saco de golfe buscar um niblick*, que colocou estrategicamente, junto da porta principal.

*Taco de golfe com uma cabeça grande, redonda e pesada, próprio para tirar bolas dos obstáculos constituídos por depressões arenosas. (N. da T.).

Sorriu, satisfeita. Claro que James só dissera tolices, mas não perdia nada em estar prevenida. Na sua opinião, a maneira como, hoje em dia, davam alta aos doentes mentais e os incitavam a levar uma vida normal, era um perigo para as pessoas inocentes.

Miss Waterhouse estava no seu quarto quando Mrs. Head subiu a escada, numa grande agitação.

Mrs. Head era baixinha, roliça e muito semelhante a uma bola de borracha, e deliciava-se praticamente com tudo quanto sucedia.

- Dois cavalheiros desejam falar-lhe - anunciou, toda eufórica. - Bem, não são realmente cavalheiros... São polícias.

Estendeu um cartão, que Miss Waterhouse leu.

- Detective-inspector Hardcastle... Mandou-os entrar para a sala?

- Não. Levei-os para a casa de jantar. Já tinha levantado a mesa do pequeno-almoço e pensei que seria um lugar mais adequado, atendendo a que não passam de polícias.

Miss Waterhouse não compreendeu bem o raciocínio da empregada, mas limitou-se a responder-lhe:

- Desço já.

- Naturalmente querem interrogá-la acerca de Miss Pebmarsh, perguntar-lhe se notou algo estranho no seu comportamento... Parece que, às vezes, estas manias surgem de repente, sem ninguém dar por isso. Mas há sempre qualquer coisa, uma maneira especial de falar... Dizem, também, que se percebe pelos olhos... mas no caso de uma cega não deve ser assim.

Miss Waterhouse desceu a escada e entrou na sala de jantar com uma certa e agradável curiosidade, disfarçada pelo seu habitual ar de beligerância.

- Detective-inspector Hardcastle?

- Bons dias, Miss Waterhouse.

Hardcastle levantara-se. Acompanhava-o um homem novo, alto e moreno, que Miss aterhouse não se deu ao trabalho de cumprimentar, embora o inspector lho apresentasse como o "sargento Lamb".

- Espero não ter vindo muito cedo e suponho que sabe de que se trata, pois deve ter ouvido contar o que sucedeu na casa ao lado, ontem à tarde.

- Um assassínio na casa do vizinho do lado não costuma passar despercebido - redarguiu Miss Waterhouse. - Até tive de correr com um ou dois repórteres, que me vieram perguntar se vira alguma coisa.

- Correu com eles?

- Naturalmente.

- Fez muito bem. Tentam infiltrar-se em toda a parte, mas eu estou certo de que a senhora é muito capaz de fazer frente a situações dessas.

Miss Waterhouse dignou-se demonstar uma leve reacção de prazer ao cumprimento.

- Espero que não leve a mal se lhe fizermos o mesmo género de perguntas - prosseguiu o inspector.Se viu alguma coisa de susceptível de nos interessar, creia que ficaremos muito gratos se nos informar. Suponho que estava aqui, em sua casa, quando cometeram o crime?

- Não sei quando foi cometido o crime.

- Calculamos que foi entre a uma e meia e as duas e meia da tarde.

- Nesse caso, estava, com certeza.

- E o seu irmão?

- Não vem almoçar a casa. Mas afinal, quem assassinaram? Não esclarecem esse ponto, na breve notícia publicada no jornal desta manhã.

- Ainda não sabemos quem era.

- Um desconhecido?

- Assim parece.

- Não quer dizer que era, também, um desconhecido para Miss Pebmarsh?

- Miss Pebmarsh garantiu-nos que não esperava a visita do indivíduo e que não fazia ideia nenhuma de quem se tratava.

- Ela não pode ter a certeza a esse respeito, em virtude de não ver.

- Descrevemos-lhe com a maior minúcia.

- De que género de homem se tratava?

Hardcastle tirou uma fotografia de um sobrescrito e mostrou-lha.

- Aqui o tem. Faz alguma ideia de quem poderá ser?

- Não. Não... Tenho a certeza de que nunca o vi. Meu Deus, parece um homem respeitável!

- Tinha, de facto, um aspecto muito respeitável, concordou o inspector. - Parecia um advogado, ou um homem de negócios...

- Tem razão. A fotografia não impressiona nada, ele parece que está apenas a dormir.

Hardcastle não lhe explicou que das várias fotografias tiradas ao cadáver escolhera aquela precisamente por ser a menos perturbadora.

- A morte, às vezes, traduz-se em paz. Não creio que este homem esperasse morrer quando morreu.

- Que diz Miss Pebmarsh acerca do assunto?

- Não sabe que dizer.

- Extraordinário!

- Pode-nos ajudar de alguma maneira, Miss Waterhouse? Tente recordar o dia de ontem. Lembra-se de ter olhado pela janela, ou de ter ido ao jardim entre, digamos, o meio-dia e meia hora e as três horas?

Miss Waterhouse pensou, uns momentos.

- Sim, estive no jardim... Deixe-me ver... deve ter sido antes da uma hora. Quando vim para dentro faltavam uns dez minutos para a uma, lavei as mãos e sentei-me a almoçar.

- Viu Miss Pebmarsh entrar ou sair de casa?

- Creio que ela entrou... Ouvi a cancela ranger depois do meio-dia e meia hora.

- Não falou com ela?

- Oh, não! Levantei apenas a cabeça, ao ouvir a cancela ranger.

Costuma regressar mais ou menos àquela hora, quando acaba as suas aulas. Ensina crianças deficientes, como provavelmente já sabe.

- Segundo declarou, Miss Pebmarsh voltou a sair, cerca da uma e meia. Pode confirmá-lo?

- Bem, não posso dizer a hora certa, mas lembro-me de ela passar pela cancela.

- Perdão, Miss Waterhouse, disse "passar pela cancela"...

- Com certeza. Estava na sala, que dá para a rua, ao passo que a casa de jantar, onde estamos agora, dá para o quintal das traseiras, como pode verificar. Levei o café para a sala, depois de almoçar, e sentei-me numa cadeira, junto da janela, a bebê-lo e a dar uma vista de olhos pelo Times. Creio que foi ao virar uma página que reparei em Miss Pebmarsh, que ia a passar pela cancela da frente. Há alguma coisa de extraordinário nisso, inspector?

- Não, não há nada de extraordinário - respondeu Hardcastle, a sorrir.

- Consta-me, no entanto, que Miss Pebmarsh saiu para fazer umas compras e ir aos Correios, e estava convencido de que o caminho mais curto para as lojas e para os Correios era o oposto.

- Depende das lojas a que se vá. Claro que há lojas mais perto desse lado e um posto dos Correios na Albany Road...

- Talvez Miss Pebmarsh costume passar pela sua cancela mais ou menos a essa hora?

- Não sei, francamente, a que horas Miss Pebmarsh costuma passar nem em que direcção vai, pois não tenho o hábito de espiar os meus vizinhos, inspector. Sou uma mulher atarefada e tenho muito com que me entreter. Certas pessoas que conheço passam o tempo todo a espreitar pela janela e a ver quem passa e quem vai visitar este ou aquele. Considero isso um hábito de doentes ou de quem não tem mais que fazer do que bisbilhotar a vida dos vizinhos e mexericar.

Miss Waterhouse falou em tom tão acerbo que o inspector teve a certeza de que ela se referia a alguém em especial.

- Tem razão - declarou. - Tem toda a razão. Visto Miss Pebmarsh ter passado pela sua cancela, talvez tivesse ido telefonar, não? A cabina pública fica para esse lado...

- Sim, fica defronte do número quinze.

- A pergunta importante que tenho de lhe fazer, Miss Waterhouse, é esta: viu chegar o homem em questão, o homem misterioso, conforme os jornais matutinos lhe chamam?

Miss Waterhouse abanou a cabeça, sem hesitar:

- Não, não o vi chegar a ele nem a outro visitante.

- Que esteve a fazer entre a uma e meia e as três horas?

- Passei cerca de meia hora a fazer as palavras cruzadas do Times, pelo menos até onde fui capaz... e depois fui para a cozinha lavar a louça do almoço. Deixe ver... Escrevi duas cartas, passei uns cheques para pagamento de umas contas e a seguir fui lá acima escolher umas coisas que precisava de mandar para a tinturaria. Creio que foi da janela do meu quarto que reparei ter-se passado qualquer coisa na casa do lado. Ouvi gritar e, naturalmente, fui à janela. Estavam um homem novo e uma pequena à cancela. Ele parecia estar a abraçá-la.

O "sargento Lamb" mudou de posição, mas Miss Waterhouse não estava a olhar para ele e era evidente que não fazia a mínima ideia de que ele fora o "homem novo" em questão.

- Só vi a nuca do homem, que parecia estar a dizer qualquer coisa à jovem. Por fim sentou-a junto do pilar da cancela, o que me pareceu muito estranho, meteu pelo carreiro e entrou na casa ao lado.

- A senhora não dera por Miss Pebmarsh ter regressado a casa pouco antes?

- Não. Creio que só espreitei pela janela quando ouvi gritar. No entanto, confesso que não liguei muita importância. Os jovens estão sempre a fazer coisas tão extraordinárias, a gritar, a empurrarem-se, a rir..., que não me passou pela cabeça que tivesse acontecido algo sério. Só quando chegaram carros da Polícia compreendi que devia ter sucedido qualquer coisa fora do vulgar.

- Que fez, então?

- Saí de casa, naturalmente. Parei nos degraus e depois dei a volta e fui ao quintal das traseiras. Estava intrigada, mas não vi nada de especial.

Quando voltei, juntara-se uma pequena multidão e uma pessoa disse-me que tinha havido um assassínio. Pareceu-me muito extraordinário! - exclamou, em tom de grande desaprovação.

- Não se lembra de mais nada?

- Infelizmente, não.

- Ultimamente alguém lhe escreveu a oferecer um seguro, ou alguém a visitou ou lhe sugeriu uma visita?

- Não, não aconteceu nada desse género. Tanto James como eu estamos seguros pela Mutual Help Assurance Society. Claro que estão sempre a chegar circulares e anúncios diversos, mas não me lembro de ter recebido nada desse género, ultimamente.

- Nem cartas assinadas com o nome de Curry?

- Curry? Não, tenho a certeza de que não.

- O nome de Curry não lhe diz nada, em sentido nenhum?

- Não. Deveria dizer?

- Não, creio que não - respondeu Hardcastle, a sorrir. - Trata-se apenas do nome que o homem assassinado usava.

- Mas não era o seu verdadeiro nome?

- Temos razões para supor que não.

- Uma espécie de vigarista, não?

- Não o poderemos afirmar enquanto não tivermos provas disso.

- Claro, claro. Precisam de ser cuidadosos, bem sei. Não acontece o mesmo com certas pessoas daqui, que dizem tudo quanto lhes vem à cabeça. Até me admira que não estejam sempre a ser acusadas de calúnias.

- Difamação - corrigiu o "sargento Lamb", que falava pela primeira vez.

Miss Waterhouse olhou-o, surpreendida, como se só então tivesse consciência de que ele era uma entidade independente e não, apenas, um apêndice necessário do inspector Hardcastle.

- Lamento não o poder ajudar - disse a mulher ao inspector.

- Também eu. Uma pessoa com a sua inteligência e o seu poder de observação seria uma testemunha muito útil.

- Gostava de ter visto alguma coisa! - confessou Miss Waterhouse, e por momentos o tom da sua voz pareceu triste como o de uma rapariguinha.

- E o seu irmão, Mister James Waterhouse?

- James não sabe de nada - afirmou a interpelada, com desdém. - Nunca sabe coisa nenhuma. Além disso, estava na firma Gainsford & Swettenhams, na High Street. Não, o James não o poderia ajudar. Como já disse, não vem a casa almoçar.

- Onde costuma almoçar?

- Geralmente come sanduíches e bebe café nas Três Penas, uma casa muito asseada e respeitável, especializada em almoços rápidos.

- Muito obrigado, Miss Waterhouse. Não lhe roubaremos mais tempo.

O inspector levantou-se e dirigiu-se para o vestíbulo, seguido por Miss Waterhouse e pelo "sargento Lamb". Este pegou no taco de golfe, que estava ao pé da porta, e comentou, enquanto o sopesava:

- Belo taco, com muito peso na cabeça. Vejo que está preparada para qualquer eventualidade...

Miss Waterhouse pareceu um bocadinho atrapalhada e declarou:

- Não sei francamente, como foi aí parar.

Arrancou-lho da mão e meteu-o no saco.

- Era uma precaução muito sensata - observou Hardcastle.

Miss Waterhouse abriu a porta e os dois homens saíram.

- Bem, não conseguimos muito dela, apesar de você lhe dar uma graxa danada - murmurou Colin Lamb, a suspirar. - É esse o seu método invariável?

- Às vezes dá bons resultados, com pessoas como ela. Os duros reagem sempre à lisonja.

- Sim, ela ronronou como um gato a que dessem um pires de leite...

Infelizmente, não revelou nada de interesse.

- Não?

Colin olhou-o, atento, e perguntou:

- Em que está a pensar?

- Num pormenor muito pequeno e possivelmente sem importância.

Miss Pebmarsh saiu para ir aos Correios e às compras e virou para a esquerda, em vez de virar para a direita... e o telefonema, segundo declarou Miss Martindale, foi feito cerca das duas menos dez.

- Continua a pensar que, apesar da sua negação, ela telefonou? Foi muito positiva...

- Pois foi, foi muito positiva - concordou o inspector, inexpressivamente.

- Mas, se foi ela que telefonou, porquê? - Oh, são tudo porquês! - resmungou Hardcastle, impaciente. - Porquê? Porquê toda esta história?

Se Miss Pebmarsh fez o telefonema, para que precisava da pequena?

Se foi outra pessoa que telefonou, para que quis envolver Miss Pebmarsh no assunto?

Ainda não sabemos nada. Se a Martindale conhecesse Miss Pebmarsh pessoalmente, saberia se fora a voz dela ou não ou, pelo menos, se era parecida... Enfim, não conseguimos muito no número dezoito.

Vejamos se temos mais sorte no número vinte.

Além do número 20, a morada tinha um nome: Diana Lodge. A cancela tinha arames no interior, para impedir a entrada de intrusos, e havia loureiros mal aparados, que dificultavam igualmente a passagem.

- Se jamais houve uma casa que merecesse o nome de Loureiros, foi esta - observou Colin Lamb.Por que diabo se chamará Diana Lodge?

Olhou à sua volta, com interesse. Diana Lodge não primava pelo asseio nem tinha canteiros de flores. Imperavam os arbustos densos e mal tratados e um cheiro forte a amoníaco... A casa parecia em muito mau estado, precisava de reparações, o que contrastava com a porta da frente, recentemente pintada de um azul muito forte, que realçava ainda mais o abandono a que tinham sido votados a habitação e o jardim. Em vez de campainha eléctrica havia uma espécie de manípulo, visivelmente destinado a ser puxado. O inspector puxou-o e ouviu-se um tilintar abafado e distante.

Passados momentos, ouviram sons no interior. Sons curiosos, aliás.

Uma espécie de lengalenga, meio cantada, meio falada.

- Que demónio... - começou Hardcastle.

À medida que a pessoa se aproximava da porta, as palavras tornavam-se mais inteligíveis.

- Não querida, queridinha. Ali, meu amor. Cuidado com o rabinho, Xá-Xá-Mimi, Cleo... Cleópatra... Ai os mauzões!

Fecharam-se portas e, finalmente, a da frente abriu-se. Diante dos dois homens apareceu uma senhora de vestido de veludo verde-musgo muito coçado, com o cabelo branco, esfarripado, subido num penteado que estivera em moda uns trinta anos atrás.

Usava à roda do pescoço uma gola de pele cor de laranja.

- Mistress Hemming? - perguntou o inspector, duvidoso.

- Sim, sou Mistress Hemming... Devagarinho, Raio de Sol, devagarinho...

Só então o inspector compreendeu que a gola de pele era, na realidade... um gato. Mas não era o único. Apareceram outros três, no vestíbulo, dois deles a miar. Não tardaram a ocupar o seu lugar à roda das saias da dona, enquanto olhavam para os visitantes.

Ao mesmo tempo, um cheiro forte, a gatos, atormentou as narinas dos dois homens.

- Sou o detective-inspector Hardcastle...

- Suponho que me vem visitar por causa daquele homem antipático da Liga Protectora dos Animais. Que vergonha! Escrevi uma carta a fazer queixa dele.

Dizer que os meus gatos viviam de maneira prejudicial à sua saúde e felicidade! Eu vivo para os meus bichanos, inspector, eles são a minha única alegria, o meu único prazer na vida! Faço tudo por eles! Aí não, Xá-Xá-Mimi!

Mas Xá-Xá-Mimi não quis saber da mão estendida da dona e saltou para a mesinha do vestíbulo, a lavar o focinho e a observar os desconhecidos.

- Entrem - convidou Mrs. Hemming. - Oh, não, para aí, não!

Esquecera-me...

Abriu uma porta, à esquerda. A atmosfera ainda era mais penetrante...

- Entrem, meus lindos, entrem...

No aposento, espalhados por cadeiras e mesas, encontravam-se vários pentes e escovas, com pêlos de gato. Viam-se diversas almofadas desbotadas e sujas e, pelo menos, mais seis bichanos.

- Vivo para os meus queridos - afirmou Mrs. Hemming. - Eles compreendem todas as minhas palavras.

O inspector Hardcastle entrou, corajosamente. Por pouca sorte, era uma daquelas pessoas alérgicas aos gatos e, como acontece em tais circunstâncias, os bichanos dirigiram-se logo para ele. Um saltou-lhe para os joelhos e outro roçou-se-lhe afectuosamente pelas calças. Mas o inspector Hardcastle, que era um homem valente, cerrou os lábios e resignou-se.

- Desejava fazer-lhe, algumas perguntas acerca...

- Pergunte o que quiser - interrompeu-o a velhota. - Não tenho nada que esconder. Posso mostrar-lhes a comida dos gatos e as suas caminhas, cinco no meu quarto e sete aqui... Só lhes dou o peixe mais fresco que existe, cozinhado por mim própria.

- O assunto não tem nada a ver com os gatos - esclareceu Hardcastle, em voz mais forte. - Vim por causa do infeliz acontecimento da casa ao lado. Provavelmente já ouviu falar...

- Da casa ao lado? Refere-se ao cão de Mister Josaiah?

- Não. Refiro-me ao número dezanove, onde ontem foi encontrado um homem assassinado.

- Sim? - perguntou Mrs. Hemming, mas apenas por delicadeza; os seus olhos não se afastavam da gataria.

- Permite que lhe pergunte se ontem à tarde esteve em casa? Entre a uma e meia e as três e meia?

- Estive, sim. Geralmente faço as compras de manhã cedo, para ter tempo de preparar o almoço dos meus amorzinhos e de os escovar e arranjar.

- Não notou nenhuma actividade aqui ao lado? Carros da Polícia, ambulância?...

- Bem, não estive à janela da frente. Estive no quintal das traseiras, porque a Arabela desaparecera. E uma gatinha nova e trepara para uma das árvores, e eu receava que não fosse capaz de descer. Experimentei tentá-la com um prato de peixe, mas ela estava assustada, coitadinha! Acabei por desistir e voltar para dentro. Imaginem que, mal entrei, desceu da árvore e entrou atrás de mim! Até custa a acreditar! - Olhou de um homem para o outro, como se avaliasse a sua credulidade.

- Não me custa nada a acreditar - afirmou Colin, incapaz de continuar calado mais tempo.

- Como? - perguntou Mrs. Hemming, a fitá-lo um pouco assustada.

- Gosto muito de gatos e tenho estudado a sua natureza. O que a senhora disse ilustra perfeitamente o padrão do comportamento dos gatos e as regras que para si próprios estabeleceram. Pelo mesmo motivo, os seus gatos estão todos reunidos à volta do meu amigo, que não gosta, francamente, de bichanos, e não me ligam importância nenhuma a mim, nem ligarão por muito que os afague.

Se Mrs. Hemming pensou que Colin não estava a falar como um sargento da Polícia, o seu rosto não o denunciou. Limitou-se a murmurar, vagamente:

- Eles sabem sempre, os amorzinhos, não sabem?

Um belo gato persa cinzento apoiou duas patas nos joelhos do inspector Hardcastle, fitou-o extasiado de prazer e cravou as garras, como se Hardcastle fosse uma almofada de espetar alfmetes. Incapaz de suportar aquele tormento durante mais tempo, o inspector levantou-se.

- Posso ver o seu quintal das traseiras, minha senhora? Colin sorriu.

- Oh, com certeza! Tudo quanto quiser.

Mrs. Hemming levantou-se e o gato cor de laranja saltou-lhe do pescoço e ela substituiu-o, distraidamente, pelo persa cinzento. Saiu da sala, seguida pelos dois homens.

- Já nos víramos - disse Colin ao gato alaranjado. - E tu és uma beleza, não és? - perguntou a outro persa cinzento, que estava em cima de uma mesa, ao lado de um candeeiro chinês, a dar ao rabo. Colin fez-lhe cócegas atrás das orelhas e ele condescendeu em ronronar.

- Façam o favor de fechar a porta, quando saírem - pediu Mrs. Hemming, do vestíbulo. - Hoje está vento e eu não quero que os meus lindos se constipem. Além disso, há aqueles horríveis rapazes... Não é seguro deixar os queridinhos andar à solta no quintal.

Encaminhou-se para o fundo do vestíbulo e abriu uma porta lateral.

- A que rapazes horríveis se referiu? - perguntou Hardcastle.

- Aos dois filhos de Mistress Ramsay. Moram na parte sul do crescente e as traseiras dos nossos quintais são mais ou menos contíguas. São dois jovens rufiões! Têm uma fisga... ou tinham. Insisti para que lha confiscassem, mas tenho as minhas dúvidas... Fazem emboscadas, escondem-se, no Verão atiram maças...

- Vergonhoso - sentenciou Colin.

O quintal era como o jardim, mas pior. Tinha alguma relva que crescia em inteira liberdade, arbustos virgens de tesoura e amontoados, quase pegados uns aos outros, e mais loureiros. Na opinião de Colin, estavam ali a perder tempo. Através daquela sólida barreira de loureiros, árvores e arbustos não se podia ver nada do quintal de Miss Pebmarsh. Diana Lodge era uma casa absolutamente isolada. Do ponto de vista dos seus habitantes, era como se não tivesse vizinhos.

- Falou do número dezanove, não foi? - perguntou Mrs. Hemming, parada, hesitante, no meio do quintal. - Julgava que só lá vivia uma pessoa, uma mulher cega...

- O homem assassinado não morava lá em casa - explicou o inspector.

- Ah, compreendo! - exclamou a velhota, distraidamente. - Foi lá para ser assassinado. Que estranho!

"Eis uma excelentíssima definição", pensou Colin para consigo.

Meteram-se no automóvel, percorreram Wilbraham Crescent, viraram à direita, subiram a Albany Road, viraram de novo à direita e encontraram-se na continuação de Wilbraham Crescent.

- É, na realidade, simples - comentou Hardcastle.

- Depois de se saber - admitiu Colin.

- O sessenta e um dá para as traseiras da casa de Mistress Hemming, mas como uma esquina toca no dezanove, podemos tentar. Você terá, assim, oportunidade de ver o seu Mister Bland. A propósito, ele não tem nenhuma empregada estrangeira.

- Lá se vai uma bonita teoria.

O carro parou e os dois homens apearam-se.

- Bonito jardim, sim senhor! - elogiou Colin.

Tratava-se, de facto, de um modelo de perfeição suburbana, embora em pequena escala. Havia canteiros de gerânios, com bordaduras de lobélias, grandes begónias carnudas e uma abundância de ornamentos de jardim: rãs, cogumelos, gnomos cómicos e elfos.

- Estou certo de que Mister Bland deve ser um homem muito simpático e muito digno - comentou Colin, a fingir um calafrio. - Não teria estas horríveis ideias se o não fosse. - E acrescentou, quando Hardcastle tocou à campainha: - Espera que ele esteja em casa a esta hora?

- Telefonei-lhe a perguntar se podíamos vir.

Nesse instante, chegou um carro pequeno e elegante, que entrou na garagem, a qual era, sem dúvida, uma adição recente à moradia. Mr. Josaiah Bland apeou-se, bateu com a porta e foi ao encontro dos dois visitantes. Era um homem de estatura mediana, cabeça calva e olhos azuis muito pequenos. Tinha um ar muito cordial.

- Inspector Hardcastle? Façam favor de entrar.

Conduziu-os à sala, que evidenciava várias provas de prosperidade. Candeeiros caros e muito cheios de adornos; uma escrivaninha Império; um jogo de ornamentos coruscantemente dourados, na prateleira da chaminé; um armário marchetado, e uma floreira ornamental, cheia de flores, na janela. As poltronas eram modernas e ricamente estofadas.

- Sentem-se - convidou, cordial, Mr. Bland.Um cigarro? Ou não podem fumar quando estão de serviço?

- Não, obrigado - redarguiu Hardcastle.

- Suponho que também não bebem? Bem, talvez seja melhor para todos. De que se trata? Daquela história do número dezanove, creio? As esquinas dos nossos quintais tocam-se, mas não vemos muito do quintal desse número, a não ser das janelas do andar de cima. Extraordinário acontecimento, pelo menos a julgar pelo que li no jornal da manhã. Fiquei encantado quando me telefonou, pois assim teria ensejo de falar com alguém que estava dentro do assunto. Não faz ideia dos boatos que correm por aí! A minha mulher ficou muito nervosa, ao saber que andava um assassino à solta. É um perigo darem alta a todos esses chalados dos manicómios, como fazem hoje em dia. Mandam-nos para casa condicionalmente, ou lá como lhe chamam, depois os tipos fazem qualquer asneira e apanham-nos outra vez... Mas voltando aos boatos. Ficariam surpreendidos se ouvissem o que disseram a nossa mulher-a-dias, o leiteiro, o rapaz dos jornais... Uns dizem que o estrangularam com um arame, outros que foi apunhalado, outros ainda que lhe deram uma pancada na cabeça... O que é certo, segundo parece, é que a vítima foi um homem, não foi? Quero dizer, não foi a velhota que liquidaram, pois não? Os jornais referem-se a um homem desconhecido.

Mr. Bland calou-se, finalmente.

Hardcastle sorriu e disse, em tom um pouco desdenhoso:

- Bem, quanto a ser um desconhecido, ele tinha na algibeira um cartão com um endereço.

- Portanto, esse aspecto está resolvido - sentenciou Bland. - Palavra que não sei como as pessoas conseguem inventar tantas coisas!

- Já que estamos a falar da vítima, talvez não se importe de ver isto - disse Hardcastle, e mostrou novamente a fotografia tirada pela Polícia.

- É ele, hem? Parece um tipo absolutamente vulgar, não parece? Quero dizer, vulgar como o senhor e eu, por exemplo. Suponho que não devo perguntar se havia algum motivo especial para o assassinarem?

- Ainda é cedo para falar nisso. O que me interessa saber, Mister Bland, é se alguma vez viu esse homem.

- Não, tenho a certeza que não vi. Sou muito previsto, como se costuma dizer. Quando vejo uma cara, não a esqueço.

- Ele não lhe bateu à porta com qualquer intenção? Angariar seguros, vender aspiradores, máquinas de lavar, qualquer coisa desse género?

- Não, estou certo que não.

- Talvez fosse melhor perguntarmos à sua mulher. No fim de contas, se ele batesse à porta, seria a sua mulher que o atenderia.

- Sim, isso é verdade. No entanto, não sei... Valerie não está bem de saúde e eu não gostaria de a perturbar. Enfim, sempre é uma fotografia tirada com ele morto, não é?

- É, mas não tem nada de impressionante.

- Não tem, realmente, trata-se de um bom trabalho. O tipo parece que está a dormir.

- Estavas a falar de mim, Josaiah?

Uma porta de comunicação abriu-se e entrou na sala uma mulher de meia-idade. Hardcastle teve a certeza de que ela estivera a escutar à porta com toda a atenção.

- Julguei que estivesses a descansar, minha querida. Minha mulher, o detective- inspector Hardcastle.

- Aquele horrível assassínio - murmurou Mrs. Bland. - Arrepio-me toda, só de pensar...

Sentou-se no sofá e soltou um suspirozinho.

- Levanta os pés, querida, para descansares melhor.

Mrs. Bland obedeceu. Era uma mulher de cabelo alourado e voz fraca e lamurienta. Parecia anémica e tinha todo o ar de uma doente crónica, que aceita a sua invalidez com certa dose de prazer. O inspector teve a impressão de que ela lhe lembrava alguém conhecido, mas não foi capaz de saber quem, por muito que pensasse. " A voz lamurienta prosseguiu:

- Como não sou muito saudável, o meu marido tenta, naturalmente, evitar-me abalos e preocupações. Sou muito sensível... Estavam a falar de uma fotografia do... do assassinado. Meu Deus, que horror! Não sei se terei coragem para a ver...

"Mas estás mortinha por a ver", pensou Hardcastle, que redarguiu, com certa malícia:

- Nesse caso, talvez seja melhor não lhe pedir que a veja, Mistress Bland. Pensei apenas que nos poderia ajudar, se acaso o homem tivesse batido alguma vez à sua porta.

- Devo cumprir o meu dever, não devo? - perguntou Mrs. Bland, de mão estendida e com um leve sorriso corajoso.

- Não compreendes que te transtornará, Val!

- Não sejas pateta, Josaiah. Claro que devo ver a fotografia.

Observou-a com muito interesse e, na opinião do inspector, um bocadinho decepcionada.

- Parece... quero dizer, nem parece morto! Não tem nada o ar de ter sido assassinado! Foi... não pode ter sido estrangulado, pois não?

- Foi apunhalado - esclareceu o inspector.

Mrs. Bland fechou os olhos e estremeceu.

- Meu Deus, que horror!

- Acha que o terá visto alguma vez, Mistress Bland?

- Não - respondeu a interpelada, com evidente relutância. - Não, não.

Era desses homens que andam de porta em porta, a vender coisas?

- Parece que era agente de seguros - respondeu Hardcastle, cauteloso.

- Compreendo. Tenho a certeza de que não nos bateu à porta nenhuma pessoa dessas. Não te lembras de eu mencionar nada do género, pois não, Josaiah?

- Não, não me lembro.

- Era algum parente ou conhecido de Miss Pebmarsh?

- Não, Mistress Bland. Era um perfeito desconhecido para ela.

- Muito estranho.

- A senhora conhece Miss Pebmarsh?

- Oh, sim! Quero dizer, conhecemo-la como vizinha. Às vezes pede conselhos ao meu marido, acerca do jardim.

- É um jardineiro muito entusiasta, suponho? perguntou o inspector.

- Nem por isso, nem por isso - respondeu Bland, modestamente. - Falta-me tempo, compreende? Claro que percebo do assunto, mas não tenho tempo, como disse. Vem aí um tipo excelente, duas vezes por semana, para manter tudo limpo e em ordem. Creio que nenhum jardim das imediações leva a palma ao nosso, mas não sou um desses jardineiros fanáticos como o meu vizinho.

- Mister Ramsay? - perguntou Hardcastle, um pouco surpreendido.

- Não, não. O do sessenta e três, Mister McNaughton. Esse só vive para o jardim. Passa lá o dia inteiro e tem a mania do adubo composto. Por sinal é um grande maçador, quando começa a falar de adubo... Mas não creio que tenha sido para falar destas coisas que o inspector nos visitou.

- Não, de facto. Pensei apenas se alguém cá de casa, o senhor ou a sua esposa, por exemplo, teria estado no jardim, ontem. No fim de contas, como o senhor disse, as traseiras do seu jardim tocam na esquina do de Miss Pebmarsh, e talvez tivessem visto ou ouvido algo interessante...

- Foi ao meio-dia, não foi? Quero dizer, quando se deu o crime?

- O espaço de tempo importante vai da uma às três horas da tarde.

- Nesse caso, não podíamos ter visto nada. Estava em casa, com minha mulher, mas estávamos a almoçar, e a nossa sala de jantar dá para o lado da rua. Não podíamos ver nada que se passasse no jardim.

- A que horas almoçam?

- Cerca da uma hora. Às vezes à uma e meia.

- E depois não foram ao jardim?

Bland abanou a cabeça.

- A minha mulher vai sempre descansar lá para cima, depois de almoçar, e eu, se não tenho muito que fazer, também passo pelas brasas, ali naquela cadeira.

Calculo que saí de casa por volta... das duas e quarenta e cinco, talvez. Mas, infelizmente, não fui ao jardim.

- Paciência - murmurou Hardcastle, a suspirar. - Temos de perguntar a toda a gente.

- Evidentemente. Lamento não ter podido ajudar mais.

- Tem uma bonita casa - elogiou o inspector.Não se poupou a despesas, se me permite que o diga.

Bland riu-se, jovial.

- Oh, gostamos de coisas bonitas! Minha mulher tem muito gosto e, o ano passado, tivemos uma sorte inesperada: ela herdou algum dinheiro de um tio que não via há vinte e cinco anos! Foi uma grande surpresa, claro, e garanto-lhe que fez muito jeito. Podemos viver melhor e estou a pensar em irmos num desses cruzeiros, lá mais para o fim do ano. Suponho que são muito instrutivos. Grécia e tudo o mais... Vão muitos professores, que fazem conferências. Não escondo que sou um autodidacta, que devo a mim próprio o que sou e não tenho tido muito tempo para me instruir, mas essas coisas interessam-me. O tipo que descobriu as ruínas de Tróia era merceeiro, segundo me parece. Muito romântico. Confesso que gosto muito de ir ao estrangeiro, embora por enquanto só me tenha sido possível passar um ou outro fim-de-semana na alegre Paris. Ando a pensar em vender tudo aqui e ir viver em Espanha, ou Portugal, ou até nas Índias Ocidentais, como tantos outros. Os impostos são menores e tudo o mais. Mas a ideia não agrada à minha mulher.

- Gosto de viajar, mas não desejaria viver fora da Inglaterra - declarou Mrs. Bland. - Temos cá todos os nossos amigos... a minha irmã vive aqui e toda a gente nos conhece. Se fôssemos para o estrangeiro, seríamos autênticos desconhecidos. Além disso, temos um excelente médico, que compreende o meu estado de saúde. Não gostaria de ter um médico estrangeiro, não teria confiança nele...

- Veremos - disse Mr. Bland, alegremente.Faremos o nosso cruzeiro... e talvez te apaixones por uma ilha grega.

Mrs. Bland fez uma cara de quem achava a possibilidade muito remota.

- Suponho que haverá a bordo um médico inglês decente? - perguntou, duvidosa.

- Oh, com certeza! - garantiu-lhe o marido.

Acompanhou Hardcastle e Colin à porta e repetiu lamentar não lhes poder ser mais útil.

- Que pensa dele? - perguntou o inspector ao amigo, quando se encontraram sós.

- Não o encarregaria de construir uma casa para mim... Mas não é um pequeno construtor civil aldrabão que procuro; o que me interessa é um homem dedicado a uma causa. Quanto ao seu assassino, também não se ajusta ao tipo. Se Bland desse arsénico à mulher ou a empurrasse para o Egeu a fim de herdar o seu dinheiro e casar com uma loura espampanante, seria outra ordem de ideias...

- Trataremos disso quando acontecer, temos de investigar este assassínio.

***

No número 62 de Wilbraham Crescent, Mrs. Ramsay dizia para consigo, encorajadoramente: "Só mais dois dias... Só mais dois dias..." Afastou uma madeixa de cabelo húmido da testa. No mesmo instante, soou na cozinha um grande estrondo. Mrs. Ramsay sentiu-se muito pouco inclinada a ir ver o que se passava. Se ao menos pudesse fmgir que não houvera estrondo nenhum... Ora, eram só mais dois dias! Atravessou o vestíbulo, abriu a porta da cozinha e perguntou, em tom muito menos agressivo do que teria usado três semanas antes:

- Que fizeram vocês agora?

- Desculpe, mãe - redarguiu Bill. - Estávamos a jogar bowling com estas latas e, não sei como, chocaram com o fundo do armário da louça.

- Nós não atirámos de propósito - afirmou Ted, o mais novo.

- Bem, apanhem essas coisas, arrumem-nas no armário, varram os cacos do que se partiu e deitem-nos na lata do lixo.

- Oh, mãe, agora não!

- Agora sim.

- Então o Ted que trate disso.

- Pois, tenho de ser sempre eu! Não apanharei nada se não apanhares também.

- Aposto que apanhas.

- Aposto que não apanho.

- Obrigo-te.

- Ai!

Os dois rapazes desataram à pancada, furiosamente, Ted chocou com a mesa da cozinha e uma taça de ovos estremeceu, perigosamente...

- Saiam da cozinha! - Mrs. Ramsay empurrou os dois rapazes pela porta fora, fechou-a e começou a apanhar as latas e a varrer os cacos.

"Daqui a dois dias estarão de novo na escola!", pensou. "Que maravilhoso, que celestial pensamento para uma mãe!" Recordou vagamente um comentário cínico de uma jornalista qualquer: Para uma mulher, só há seis dias felizes no ano: os primeiros e os últimos dias das férias.

"Nunca se disse nada tão certo", pensou Mrs. Ramsay, enquanto varria os cacos de uma parte do seu melhor serviço de jantar. Com que prazer, com que alegria, aguardara a vinda dos seus filhos, havia apenas cinco semanas! E agora? "Amanhã", repetiu mentalmente, "amanhã o Bill e o Ted voltarão para a escola.

Até me custa a acreditar! Mal posso esperar!" Como se sentira feliz quando os fora esperar à estação, havia cinco semanas! Que alegria lhe causara o modo tempestuoso e terno como eles tinham corrido para ela, o alvoroço com que tinham percorrido a casa toda e o jardim! Um bolo especial, para o chá... E agora... Que desejava ela agora? Um dia de paz completa! Não ter de preparar refeições colossais, de andar sempre a arrumar o que eles desarrumavam...

Claro que gostava dos seus filhos. Eles eram excelentes rapazes, não lhe restavam dúvidas nenhumas a esse respeito, e causavam-lhe orgulho. Mas também eram extenuantes. O seu apetite, a sua vitalidade, o barulho que faziam... Uma grande gritaria fê-la virar a cabeça, assustada. Não havia novidade, tinham ido apenas para o jardim. Assim era melhor, no jardim tinham muito mais espaço. Provavelmente, no entanto, aborreceriam a vizinhança. Oxalá deixassem os gatos de Mrs. Hemming em paz! Não pelos gatos em si, a verdade acima de tudo, mas porque a cerca de arame que protegia o quintal de Mrs. Hemming lhes rasgaria os calções. Lançou um olhar rápido à farmácia portátil, que estava à mão.

Claro que não a preocupavam muito os acidentes naturais resultantes das brincadeiras de rapazes vigorosos... Na realidade, a primeira coisa que costumava dizer era: "Não te disse centenas de vezes que não viesses a sangrar para a sala? Quando acontecer uma coisa destas, vai direito à cozinha, pois o sangue limpa-se bem do linóleo." Um grande grito, vindo do exterior, pareceu morrer a meio. Seguiuse um silêncio tão profundo que Mrs. Ramsay sentiu uma ferroada de medo no coração.

Aquele silêncio não era natural... Parou, hesitante, com a pá cheia de cacos na mão. A porta da cozinha abriu-se e Bill estacou à entrada, com uma expressão extasiada, muito rara no seu rosto vivo de saudável rapaz de onze anos.

- Mãe, está aqui um detective-inspector e mais outro homem.

- Que deseja ele, querido? - perguntou Mrs. Ramsay, aliviada.

- Perguntou por si, mas creio que deve ser por causa do assassínio.

Daquilo que se passou ontem em casa de Miss Pebmarsh, lembra-se?

- Não compreendo por que motivo precisará de falar comigo...

A vida só era feita de complicações, umas atrás das outras. Como havia de preparar as batatas para o guisado se um detective-inspector se lembrava de a visitar a hora tão imprópria?

- Bem, parece-me melhor ir ver o que se passa - resignou-se, a suspirar.

Deitou os cacos na lata do lixo, lavou as mãos, endireitou maquinalmente o cabelo e seguiu Bill, que dizia, impaciente:

- Despache-se, mãe!

Mrs. Ramsay entrou na sala, seguida de perto por Bill, e encontrou lá dois homens, de pé. Ted, o mais novo dos filhos, observava-os de olhos muito abertos.

- Mistress Ramsay?

- Bons dias.

- Espero que os seus homenzinhos lhe tenham dito que sou o detective-inspector Hardcastle.

- Vem a uma hora muito má, muito má - protestou Mrs. Ramsay. - Tenho tanto que fazer esta manhã! Demorará muito tempo?

- Quase nenhum - tranquilizou-a o inspector.Podemo-nos sentar?

- Claro, façam favor.

Mrs. Ramsay sentou-se numa cadeira de espaldar direito e olhou-os cheia de impaciência. Desconfiava que não ia levar tão pouco tempo como isso...

- Vocês não precisam de ficar - disse Hardcastle, a sorrir.

- Não nos vamos embora - afirmou Bill.

- Não nos vamos embora - repetiu Ted.

- Queremos ouvir tudo.

- Claro, tudo.

- Havia muito sangue? - quis saber Bill.

- Era um ladrão? - perguntou Ted.

- Calem-se, meninos - ordenou Mrs. Ramsay.Não ouviram Mister... Mister Hardcastle dizer que não os queria aqui?

- Não saímos - afirmou Bill. - Queremos ouvir tudo.

Hardcastle foi abrir a porta, olhou para os rapazes e disse:

- Saiam.

Foi uma palavra apenas, dita calmamente, mas com autoridade. Os miúdos levantaram-se, sem tugir nem mugir, e saíram a arrastar os pés.

"Que maravilha!", pensou Mrs. Ramsay, encantada. "Porque não consigo eu ser assim?" Era a mãe deles, claro... Sabia, pelo que ouvia dizer, que as crianças, quando saíam, se portavam de modo muito diferente do adoptado em casa. As mães é que tinham sempre de suportar o pior. Mas talvez fosse preferível assim. Seria pior, muito pior, se, em casa, fossem sossegados e corteses e, fora de casa, se portassem como verdadeiros rufiões e causassem má impressão. Lembrou-se do que pretendiam dela quando o inspector voltou a sentar-se.

- Se veio por causa do que se passou no número dezanove, creio que não lhe posso dizer nada, inspector - declarou nervosamente. - Não sei nada, nem sequer conheço as pessoas que lá moram.

- Mora lá apenas Miss Pebmarsh, uma senhora cega que trabalha no Instituto Aaronberg.

- Ah! Não conheço praticamente ninguém do outro lado do crescente.

- Esteve em casa, ontem, entre o meio-dia e meia e as três horas?

- Estive, sim. Tinha de adiantar o jantar e tudo o mais... No entanto, saí antes das três horas. Levei os pequenos ao cinema.

O inspector tirou a fotografia da algibeira e estendeu-lha.

- Agradecia que me dissesse se alguma vez viu este homem.

Mrs. Ramsay observou a fotografia com um bocadinho mais de interesse.

- Creio que não. No entanto, não garanto que me lembrasse, se o tivesse visto.

- Ele nunca lhe bateu à porta, a tentar angariar seguros ou vender qualquer coisa?

Mrs. Ramsay abanou a cabeça, com maior segurança.

- Não, disso tenho a certeza.

- Supomos que o seu nome é Curry, Mister R. Curry.

O inspector olhou-a interrogadoramente, mas Mrs. Ramsay voltou a abanar a cabeça.

- Sinto muito, mas praticamente não tenho tempo para reparar em nada, durante as férias.

- É sempre um período muito atarefado, não é?

Tem ali dois mocetões, cheios de vitalidade... Às vezes, até, de excessiva vitalidade, suponho?

Mrs. Ramsay sorriu pela primeira vez.

- Sim, às vezes tornam-se um bocadinho cansativos... Mas são bons rapazes.

- Evidentemente. Devem ser muito inteligentes... Se não se importar, conversarei um bocadinho com eles, antes de partir. As crianças reparam em coisas que passam despercebidas às outras pessoas.

- Não vejo como possam ter reparado nalguma coisa. As casas não ficam ao lado uma da outra...

- Mas as traseiras dos jardins dão uma para a outra.

- É verdade, embora haja muito espaço a separá-las.

- Conhece Mistress Hemming, do número vinte?

- Bem, de certo modo, conheço. Por causa dos gatos e de outras pequenas coisas.

- Gosta de gatos?

- Oh, não, não se trata disso! Geralmente há queixas...

- Compreendo, queixas... Acerca de quê?

Mrs. Ramsay corou.

- Quando as pessoas têm gatos naquela quantidade catorze, nem menos!, perdem por completo a cabeça acerca deles. É tudo uma grande tolice. Gosto de gatos e nós próprios até tivemos um gato, um tigre que era excelente caçador de ratos. Mas a maneira como aquela mulher procede, meu Deus! Cozinha peixe especial, não deixa os pobres bichanos sair para levarem a sua vida... Claro que os animais estão sempre a tentar fugir... eu faria o mesmo, se fosse um dos gatos dela! Os meus filhos são bons rapazes, incapazes de atormentar um gato seja em que sentido for... Os gatos sabem muito bem olhar por eles, são animais inteligentes... desde que os tratem como deve ser, evidentemente.

- Tem toda a razão. Deve ter muito trabalho para manter os seus filhos bem alimentados e distraídos, durante as férias.

Quando voltam eles para a escola?

- Depois de amanhã.

- Desejo que possa descansar, então.

- Tenciono preguiçar o mais que puder!

O outro homem, que tomara notas, em silêncio, quase a assustou, ao dizer inesperadamente:

- Devia arranjar uma daquelas raparigas estrangeiras. Creio que lhes chamam au pair... Dão uma ajuda, em troca de lhes ensinarem inglês.

- Talvez ainda experimente qualquer coisa desse género... embora tenha a impressão de que deve ser difícil aturar pessoas estrangeiras. O meu marido ri-se de mim, mas é natural. Não tenho viajado tanto pelo estrangeiro como ele.

- Ele agora está ausente, não está? - perguntou Hardcastle.

- Está. Teve de ir à Suécia, no princípio de Agosto. É engenheiro de construções. Foi uma pena ter de partir logo no princípio das férias, pois tem muita paciência com os pequenos. Gosta mais de brincar com comboios eléctricos do que eles! Às vezes, as linhas e as estações enchem o vestíbulo e chegam a entrar pelas outras casas! - Abanou a cabeça e acrescentou, indulgente: - Os homens são tão crianças!

- Quando espera que ele volte, Mistress Ramsay?

- Nunca sei - respondeu, a suspirar. - Assim ainda é mais difícil. - Colin reparou na tremura da sua voz e olhou-a com atenção.

- Não lhe roubamos mais tempo, Mistress Ramsay - disse Hardcastle, ao mesmo tempo que se levantava. - Talvez os seus pequenos não se importem de nos mostrar o jardim...

Bill e Ted, que esperavam no vestíbulo, não deixaram escapar a oportunidade.

- Não é um jardim muito grande... - disse Bill, como quem se desculpa.

Notava-se que tinham feito alguns esforços para manter o jardim de Wilbraham Crescent, 62, num estado razoável. A um dos lados havia uma bordadura de dálias e margaridas e, a seguir, um pequeno relvado, a precisar de tesoura. Os caminhos precisavam de ser mondados e viam-se aviões, astronaves e outros testemunhos da ciência moderna espalhados por toda a parte e num estado um pouco lamentável. Ao fundo do jardim havia uma macieira, carregada de tentadoras maçãs vermelhas, e ao lado uma pereira. - Foi ali - disse Ted, a apontar para o espaço entre a macieira e a pereira, através do qual se viam perfeitamente as traseiras da casa de Miss Pebmarsh.Aquele é o número dezanove, onde cometeram o assassínio.

- Vêem bem a casa, hem? - perguntou o inspector. - Suponho que ainda a devem ver melhor das janelas do primeiro andar.

- Pois vemos - concordou Bill. - Se ontem lá tivéssemos estado, talvez víssemos alguma coisa, mas não estivemos.

- Fomos ao cinema - explicou Ted.

- Encontraram impressões digitais? - perguntou Bill.

- Encontrámos, mas não ajudaram muito. Ontem estiveram no jardim?

- Sim, de vez em quando... Olhe, estivemos toda a manhã. Mas não ouvimos nem vimos nada.

- Se cá tivéssemos estado de tarde - acrescentou Ted, pesaroso -, talvez ouvíssemos gritos...

- Conhecem, de vista, Miss Pebmarsh, a senhora que lá mora?

Os rapazes entreolharam-se e acenaram afirmativamente.

- É cega, mas anda muito bem pelo jardim, disse Ted. - Não precisa de andar com uma bengala nem nada dessas coisas. Uma vez, devolveu-nos uma bola que caiu lá. Foi muito simpática.

- Ontem não a viram?

Abanaram os dois a cabeça e Bill explicou:

- Nunca a vimos de manhã, porque sai todos os dias. Geralmente vem para o jardim depois do chá.

Colin observava uma mangueira que estava ligada a uma torneira, dentro de casa, e ia ter a um canto, perto da pereira.

- Nunca me constou que as pereiras necessitassem de ser regadas - comentou.

- Hum... - murmurou Bill, um bocadinho em baraçado.

- Por outro lado - prosseguiu Colin -, se trepassem a esta árvore... - olhou para os rapazes e sorriu, de súbito - ... poderiam ver um belo esguicho de água a banhar um gato, não poderiam?

Os dois miúdos começaram a raspar o saibro, com os pés, e olharam para todos os lados menos para Colin.

- É o que vocês fazem, não é? - perguntou.

- Bem, não os aleija... - murmurou Bill, e acrescentou, com um ar muito virtuoso: - Não é como uma fisga.

- Creio que, em certa altura, se serviram de uma fisga...

- Mal e porcamente, pois nunca conseguíamos acertar em nada - desabafou Ted.

- Seja como for, divertem-se com a mangueira e, por isso, Mistress Hemming queixa-se.

- Ela está sempre a queixar-se - resmungou Bill.

- Alguma vez transpuseram a vedação?

- Nunca passámos aqui pelo arame - apressou-se a responder Ted, desprevenido.

- Mas às vezes entram no jardim dela, não entram? Como o conseguem?

- Bem, podemos passar pela cerca que dá para o jardim de Miss Pebmarsh... e depois, mais abaixo, à direita, entrar no jardim de Mistress Hemming. O arame tem um buraco.

- Não te sabes calar, idiota? - perguntou Bill.

- Desconfio que têm andado a procurar pistas, desde que souberam do assassínio... - insinuou Hardcastle.

Os rapazes entreolharam-se.

- Aposto que, quando regressaram do cinema e souberam o que acontecera, passaram pela cerca para o jardim do número dezanove e se divertiram à grande, a procurar...

- Bem... - Bill calou-se, cauteloso.

- Não me admiraria se tivessem encontrado alguma coisa que nos escapou a nós - acrescentou o inspector, muito sério. - Se encontraram alguma coisa, ficaria muito agradecido se ma mostrassem.

Bill decidiu-se:

- Vai buscá-las.

Ted partiu, a correr.

- Não temos nada de especial... - confessou Bill. - Só... fingimos.

Olhou ansiosamente para Hardcastle, que declarou:

- Compreendo muito bem. A maior parte do trabalho policial também é assim. Temos muitas decepções.

Bill pareceu aliviado.

Ted voltou, também a correr, e entregou um lenço sujo e atado, cujo conteúdo tilintava. Hardcastle desatou-o, com um miúdo de cada lado, e estudou os achados...

Encontrou a asa de uma chávena, um fragmento de porcelana com um desenho de salgueiros, um sacho partido, um garfo ferrugento, uma moeda, uma mola de roupa, um bocado de vidro colorido e metade de uma tesoura.

- Interessante colecção - comentou, gravemente.

Depois compadeceu-se das caras ávidas dos miúdos e pegou no bocado de vidro.

- Levo isto. Talvez se relacione com qualquer coisa.

Colin pegou na moeda e examinou-a.

- Não é inglesa - disse Ted.

- Pois não, não é inglesa. - Colin olhou inspector e acrescentou: - Talvez seja melhor também.

- Não digam uma palavra a ninguém, a este respeito - recomendou Hardcastle, em tom confidente.

- Ramsay... - murmurou Colin, pensativo.

- Que tem ele de especial?

- Agrada-me, apenas. Parte para o estrangeiro, de um momento para o outro... A mulher diz que é engenheiro de construções, mas parece não saber mais nada a seu respeito.

- É uma mulher simpática.

- Pois é... e pouco feliz.

- Cansada, apenas. Os miúdos são cansativos.

- Há mais do que isso, suponho.

- O tipo de pessoa que procura não estaria, com certeza, sobrecarregado com mulher e dois filhoslembrou Hardcastle, céptico.

- Nunca se sabe. Ficaria surpreendido se soubesse o que alguns tipos inventam, como disfarce. Uma viúva sem recursos e com dois filhos podia muito bem estar disposta a fazer um acordo...

- Não me deu a impressão de ser uma mulher dessas - resmungou Hardcastle, muito puritano.

- Não me referia a viver em pecado, meu caro. Queria somente dizer que ela aceitaria ser Mistress Ramsay, a fim de lhe proporcionar um passado. Naturalmente ele ter-lhe-ia impingido uma história convincente: tinha um trabalho de espionagem para o nosso lado, tudo muito patriótico...

Hardcastle abanou a cabeça.

- Vocês vivem num mundo estranho, Colin.

- Pois vivemos. Creio que, um dia, terei de o abandonar... A certa altura começamos a esquecer como são as coisas e as pessoas. Metade daquela gente trabalha para os dois lados e, no fim, nem sabe de que lado está, na realidade. Perde-se a noção dos valores...

Bem, mas continuemos a trabalhar.

- Parece-me melhor tentarmos também os McNaughton - decidiu Hardcastle, parado junto da cancela do 63. - Uma parte do jardim deles toca no do dezanove, como o dos Bland.

- Que sabe acerca dos McNaughton?

- Pouco. Vieram para cá há cerca de um ano e são idosos. Creio que ele é professor reformado e se entretém a trabalhar no jardim.

O jardim da frente tinha roseiras e um canteiro de açafrão outonal, debaixo das janelas. Uma jovem alegre, de bata florida, abriu-lhes a porta e perguntou:

- Que desejam?

- A empregada estrangeira, finalmente! - murmurou Hardcastle, e mostrou o seu cartão.

- Polícia! - exclamou a jovem e recuou alguns passos, a olhar para o inspector como se ele fosse um demónio em pessoa.

- Mistress McNaughton? - perguntou Hardcastle.

- Mistress McNaughton mora aqui.

A rapariga levou-os para a sala, que dava para o jardim das traseiras e estava deserta.

- Deve estar lá em cima - murmurou a empregada, já sem alegria, enquanto ia ao vestíbulo e chamava: - Mistress McNaughton... Mistress McNaughton...

- Que se passa, Gretel? - perguntou uma voz que a distância abafava.

- É a Polícia... Dois polícias. Levei-os para a sala.

Ouviu-se um ruído de passos, no andar de cima, e as palavras:

- Meu Deus, que mais teremos?

Soaram passos na escada e, passados instantes, Mrs. McNaughton entrou na sala, com um ar preocupado. Hardcastle não tardaria a notar que Mrs. McNaughton apresentava quase sempre esse ar de preocupação.

- Meu Deus, meu Deus... - repetiu. - Inspector... ah, sim, Hardcastle.

Porque nos veio visitar? Não sabemos nada do assunto. Suponho que se trata do assassínio... Não é por causa da licença do televisor, pois não?

Hardcastle tranquilizou-a a esse respeito.

- Parece tudo tão extraordinário! - exclamou a dona da casa, mais animada. - E logo por volta do meio-dia! Uma hora muito esquisita para entrar na residência alheia, pois as pessoas costumam estar em casa para o almoço... Mas, nos tempos que correm, os jornais andam cheios de coisas horrorosas desse género, que acontecem em pleno dia. Uns amigos nossos saíram para almoçar fora, chegou uma camioneta de mudanças, os homens arrombaram a porta e levaram a mobília toda! A rua inteira assistiu, mas, naturalmente, não pensou que fosse um roubo. Ontem tive a impressão de ouvir alguém gritar, mas o meu marido, Angus, disse que deviam ser aqueles insuportáveis pequenos de Mistress Ramsay. Correm pelo jardim a fazer ruídos como astronaves, foguetões, bombas atómicas... Às vezes metem medo.

Hardcastle voltou a mostrar a fotografia:

- Alguma vez viu este homem, Mistress McNaughton?

A mulher observou-a, com avidez.

- Tenho quase a certeza de que vi. Sim, sim, tenho praticamente a certeza. Ora deixe ver onde foi... Terá sido o homem que veio perguntar se queria comprar uma enciclopédia nova, em catorze volumes? Ou o que veio com um novo modelo de aspirador? Despachei-o, mas ele foi atormentar o meu marido, no jardim da frente. Angus estava a plantar uns bolbos e não queria que o interrompessem, mas o homem começou a explicar as coisas que o aparelho fazia, como limpava cortinados, degraus, almofadas, etc. Contou a história toda, toda! No fim, Angus levantou a cabeça e perguntou: "Serve para plantar bolbos?" Não pude conter o riso, pois o homem ficou aparvalhado e foi-se logo embora.

- E parece-lhe que esse homem era o desta fotografia?

- Não, creio que não. Agora me lembro que era muito mais novo. No entanto, tenho a impressão de já ter visto esta cara... Sim, quanto mais olho para a fotografia, mais me convenço de que esse homem veio cá tentar vender-me qualquer coisa.

- Angariar seguros, talvez?

- Não, seguros não. Isso é o meu marido que atende. Temos todos os seguros devidos. Mas quanto mais olho para a fotografia...

Hardcastle não se mostrou muito entusiasmado. A sua experiência permitia-lhe colocar Mrs. McNaughton na categoria de pessoas desejosas de terem visto alguém relacionado com um assassínio. Quanto mais olhasse para a fotografia, mais se convenceria de que se lembrava de alguém parecido.

Suspirou, desanimado, mas a interlocutora prosseguiu:

- Creio que conduzia uma furgoneta, mas não me consigo lembrar quando foi. Uma furgoneta de padeiro, suponho.

- Não o viu ontem, pois não, Mistress McNaughton?

O rosto da mulher entristeceu um pouco e ela afastou da testa o cabelo grisalho, ondulado e um pouco rebelde.

- Não, ontem não o vi. Pelo menos... pelo menos creio que não. - Animou-se um bocadinho e acrescentou: - Talvez o meu marido se lembre!

- Ele está em casa?

- Está lá fora, no jardim. - Apontou para a janela e o inspector viu um homem idoso a empurrar um carrinho de mão.

- Vamos até lá falar com ele.

Mrs. McNaughton levou-os ao jardim por uma porta lateral. O marido estava todo suado.

- Estes senhores são da Polícia, Angus - anunciou a mulher, ofegante.

- Vieram por causa do assassínio verificado em casa de Miss Pebmarsh e trazem uma fotografia da vítima. Sabes, tenho a impressão de já o ter visto em qualquer lado... Não será o que veio cá a semana passada, perguntar se tínhamos antiguidades para vender?

- Deixe-me ver - pediu Mr. McNaughton ao inspector. - Mas segure o senhor na fotografia, pois eu tenho as mãos todas sujas de terra.

Lançou-lhe um olhar breve e afirmou:

- Nunca o vi na minha vida.

- Disseram-me que gostava muito de jardinagem - observou Hardcastle.

- Quem? Não foi, com certeza, Mistress Ramsay?

- Não. Foi Mister Bland.

- Bland não sabe o que é jardinagem - rosnou o velho. - Só sabe fazer canteiros. Plantar begónias e gerânios e bordaduras de lobélias. Não é a isso que eu chamo jardinagem. Lembra-me um jardim público... Interessa-se por arbustos, inspector? Claro que a época do ano não é apropriada, mas tenho aqui um ou dois arbustos que o surpreenderão. Dizem que só se dão no Devon e na Cornualha...

- Infelizmente, não posso dizer que perceba de jardinagem...

McNaughton olhou-o, como um artista olha para uma pessoa que diz não perceber nada de arte, mas saber do que gosta.

- Trouxe-me cá um assunto muito menos agradável - prosseguiu o inspector.

- Sem dúvida, essa história de ontem. Eu estava no jardim, quando aconteceu.

- Sim?

- Quero dizer, estava aqui quando a pequena desatou aos gritos.

- Que fez?

- Bem... não fiz nada - confessou Mr. McNaughton, um pouco envergonhado. - Pensei que fossem aqueles malditos fedelhos dos Ramsay, que passam a vida a gritar como danados.

- Mas os gritos não vinham da mesma direcção...

- Isso teria algum significado se os tratantes não saíssem do seu jardim, mas eles saem, passam pelas vedações dos outros... Perseguem os estupores dos gatos de Mistress Hemming por todo o lado. O mal é não terem ninguém com mão firme para os dominar. A mãe é fraca como água... Quando não há um homem em casa, as crianças tornam-se indisciplinadas...

- Consta-me que Mister Ramsay passa muito tempo no estrangeiro.

- Sim, ouvi dizer que é engenheiro - concordou o velho, vagamente. - Está sempre a ausentar-se. Parece que constrói represas... ou oleodutos, ou lá o que é. Não sei ao certo. Há um mês, teve de partir de repente para a Suécia. A mãe dos pequenos ficou cheia de trabalho, coitada. Cozinhar, fazer a lida da casa, mais isto e mais aquilo... Claro, eles apanharam-se à solta e parecem dois demónios. Não são maus pequenos, note, mas precisam de disciplina.

- O senhor não viu nada? Só ouviu os gritos? A propósito, quando foi isso?

- Não faço ideia. Tiro sempre o relógio, quando venho cá para fora.

Outro dia molhei-o, com a mangueira, e depois foi um sarilho para o consertar.Voltou-se para a mulher e perguntou-lhe: - Que horas eram, minha querida? Tu também ouviste, não ouviste?

- Talvez fossem umas duas e meia... Pelo menos foi meia hora depois de acabarmos de almoçar.

- A que horas almoçam?

- À uma e meia... se estamos em maré de sorte - respondeu Mr. McNaughton. - A nossa empregada dinamarquesa não tem noção nenhuma do tempo.

- E depois do almoço, costuma dormir uma sesta?

- Às vezes. Ontem não dormi; queria acabar o que estava a fazer. Precisava de arrancar umas coisas, para pôr no monte de adubo composto...

- É uma coisa maravilhosa, o adubo composto - sentenciou Hardcastle.

- Não há nada que se lhe compare! - concordou o velhote, entusiasmado. - Não imagina a quantidade de pessoas que tenho convertido! Usavam aqueles adubos químicos, que são um verdadeiro suicídio! Venha cá, eu mostro-lhe.

Puxou o inspector por um braço e, ao mesmo tempo que empurrava o carrinho de mão, levou-o junto da cerca que separava o seu jardim do do número dezanove.

O monte de adubo composto lá estava em toda a sua glória, no meio de uma moita de lilases. Mr. McNaughton meteu o carro num pequeno barracão, onde tinha diversas ferramentas bem arrumadas.

- Tem tudo muito ordenado - elogiou o inspector.

- Devemos cuidar bem das nossas ferramentas.

Hardcastle olhou pensativamente para o número 19. Do outro lado da cerca havia uma pérgola de roseiras, que seguia até um dos lados da casa.

- Não viu ninguém no jardim do número dezanove, nem a espreitar pela janela, ou qualquer coisa desse género, enquanto esteve a trabalhar no adubo?

- Não vi absolutamente nada. Lamento não o poder ajudar, inspector.

- Sabes, Angus, tenho a impressão de que vi um vulto, no jardim do dezanove...

- Não creio que tenhas visto, minha querida - afirmou o marido, com firmeza. - Eu também não vi.

- Aquela mulher seria capaz de dizer que viu tudo! - resmungou Hardcastle, quando voltaram para o automóvel.

- Não acredita que ela tenha reconhecido a fotografia?

- Duvido muito. Só quer pensar que viu o tipo. Conheço bem de mais, por meu mal, este género de testemunhas. Quando insisti, não foi capaz de dar meia para a caixa, pois não?

- Não.

- Claro que pode ter viajado defronte dele num autocarro ou coisa parecida. Até aí, admito. Mas, se quer a minha opinião franca, não passa tudo de fantasia, do que ela desejava que fosse. E você, que pensa?

- O mesmo.

- Não obtivemos grandes resultados. - Hardcastle suspirou. - Há, evidentemente, pormenores que se afiguram esquisitos... Por exemplo, parece quase impossível que Mistress Hemming, apesar da sua obsessão pelos gatos, saiba tão pouco acerca da vizinha, Miss Pebmarsh, como diz. Igualmente me pareceu estranho que ela se mostrasse tão vaga e tão desinteressada pelo assassínio.

- Ela é uma mulher vaga.

- Ausente - resmungou o inspector. - Quando se encontra uma mulher assim, podem haver incêndios, roubos e assassínios à sua volta sem elas darem por isso.

- Está muito protegida com todas aquelas cercas de arame e os arbustos vitorianos não deixam ver grande coisa.

Chegaram à esquadra. Hardcastle sorriu ao amigo e disse-lhe:

- Bem, sargento Lamb, por hoje dispenso-o do serviço.

- Não há mais visitas a fazer?

- De momento, não. Talvez faça outra, mais tarde, mas não o levarei.

- Bem, obrigado pela boleia da manhã. Pode mandar dactilografar estes apontamentos que tomei? - Estendeu a agenda ao inspector e perguntou: - O inquérito sempre é depois de amanhã, como disse? A que horas?

- Às onze.

- Voltarei a tempo.

- Vai-se embora?

- Tenho de ir a Londres amanhã, apresentar o meu relatório.

- Calculo a quem.

- Não devia calcular.

- Dê saudades minhas ao velhote - pediu Hardcastle, a rir.

- Talvez vá, também, consultar um especialista.

- Um especialista? De quê? Há alguma coisa que não funciona bem?

- A cabeça: estupidez pura e simples. Não me referia a especialistas médicos e, sim, a um especialista da sua profissão.

- Scotland Yard?

- Não. Um detective particular, amigo do meu pai e meu. Esta sua fantástica história será um pratinho para ele! Adorará e sentir-se-á mais animado... e eu tenho a impressão de que ele precisa de que o animem.

- Como se chama?

- Hercule Poirot.

- Já tenho ouvido falar dele, mas pensava que morrera.

- Não morreu, mas tenho a impressão de que se sente entediado, o que é pior do que estar morto.

Hardcastle olhou-o, com curiosidade, e comentou:

- Você é um tipo esquisito, Colin. Arranja amigos tão estranhos!

- Incluindo você - respondeu Colin, a sorrir.

Depois de se despedir de Colin, o inspector Hardcastle olhou para a morada escrita na sua agenda e acenou com a cabeça. Guardou a agenda e começou a despachar os vários assuntos rotineiros que se tinham acumulado.

Foi um dia muito atarefado para ele. Mandou vir café e sanduíches e recebeu relatórios do sargento Cray: não surgira nenhuma pista relevante.

Ninguém reconhecera a fotografia de Mr. Curry na estação de caminhos-de-ferro nem na dos autocarros, e os relatórios do laboratório também não ajudavam nada. O fato fora feito por um bom alfaiate, mas a etiqueta com o seu nome tinha sido tirada. Desejo de anonimato da parte de Mr. Curry? Ou da parte do seu assassino? Foram enviados pormenores acerca dos seus dentes a diversos lados e talvez se encontrassem aí as melhores pistas. Era uma coisa que demorava um bocadinho, mas costumava dar resultado. A não ser, claro, que Mr. Curry fosse estrangeiro... O inspector Hardcastle encarou tal possibilidade. Talvez o morto fosse francês... No entanto, o seu vestuário não tinha nada de francês. Por enquanto, também não tinham encontrado marcas de lavandaria. Hardcastle não estava, porém, impaciente. A identificação costumava ser uma tarefa demorada, mas no fim aparecia sempre alguém que resolvia o problema. Uma lavandaria, um dentista, um médico, uma pessoa de família, geralmente a mulher ou a mãe, ou uma senhoria. A fotografia do morto seria distribuída pelas esquadras e publicada nos jornais. Mais cedo ou mais tarde, conhecer-se-ia a verdadeira identidade de Mr. Curry.

Entretanto, era preciso trabalhar, e não apenas no caso Curry. Hardcastle trabalhou sem descanso até às cinco e meia. A essa hora olhou para o relógio e achou que chegara o momento de fazer a visita que tinha em mente.

O sargento Cray informara-o de que Sheila Webb recomeçara a trabalhar no gabinete Cavendish e às cinco horas iria ao Curlew Hotel estenografar uns apontamentos do professor Purdy. O mais provável seria não se despachar antes das seis horas.

Como se chamava a tia da pequena?... Lawton, Mrs. Lawton. A morada era Palmerston Road, 14. Em vez de pedir um carro da Polícia, Hardcastle preferiu percorrer a pé a curta distância.

Palmerston Road era uma rua sombria que, como se costuma dizer, conhecera melhores dias. Hardcastle notou que as casas tinham sido quase todas convertidas em apartamentos. Quando o inspector dobrou a esquina, uma rapariga que caminhava na sua direcção hesitou momentaneamente.

Distraído, o inspector julgou que ela lhe ia perguntar o caminho para qualquer lado, mas se era essa a sua intenção desistiu e passou por ele sem parar. Hardcastle perguntou a si mesmo por que motivo lhe teria acudido ao espírito, inesperadamente, a ideia de sapatos. Sapatos... Não, um sapato.

A cara da jovem era-lhe, também, familiar...

Quem seria? Alguém que vira ultimamente? Talvez ela o tivesse reconhecido, também, e hesitasse sem saber se lhe deveria falar.

Parou e olhou para trás. A rapariga ia a andar muito depressa. A dificuldade residia no facto de ela ter um daqueles rostos indistintos e difíceis de reconhecer, a não ser que existisse alguma razão especial.

Olhos azuis, pele clara, boca ligeiramente aberta... Boca. Isso também lhe recordava qualquer coisa. Qualquer coisa que a vira fazer com a boca? Falar? Pintar os lábios? Não. Sentiu-se um bocadinho irritado consigo próprio. Hardcastle gabava-se de ser previsto, de fixar rostos.

Costumava dizer que nunca esquecia uma cara que visse no banco dos réus ou no das testemunhas... Mas, no fim de contas, havia outros lugares para ver pessoas. Não reconheceria, por exemplo, as inúmeras criadas de restaurantes que o tinham servido. Nem as condutoras de autocarros...

Afastou o assunto do pensamento. Chegou ao número 14. A porta estava entreaberta e havia quatro botões de campainha, com os nomes dos respectivos inquilinos em baixo.

Mrs. Lawton morava no rés-do-chão. Entrou na escada e tocou à campainha da porta do lado esquerdo do vestíbulo. Só passados momentos ouviu passos, dentro de casa.

Abriu-lhe, finalmente, a porta uma mulher alta, de cabelo escuro despenteado e avental. Estava um pouco ofegante. Do interior, sem dúvida da cozinha, vinha um cheiro acentuado a cebolas.

- Mistress Lawton?

- Sim - respondeu, desconfiada e um bocadinho aborrecida.

O inspector calculou que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos e achou-lhe um aspecto vagamente aciganado.

- Que deseja?

- Ficar-lhe-ia grato se me pudesse dispensar uns minutos.

- Para quê? Neste momento estou muito atarefada. - E perguntou, irritada: - Não é repórter, pois não?

- Calculo que tenham sido muito incomodadas pelos repórteres - observou Hardcastle, em tom compreensivo.

- Se temos! Todo o dia a baterem à porta, a tocarem à campainha e a fazerem as perguntas mais estúpidas que se possa imaginar!

- Concordo que é muito aborrecido e desejaria poder poupar-lhe todas essas maçadas, Mistress Lawton. Sou o detective-inspector Hardcastle e estou encarregado de investigar o caso acerca do qual os repórteres a têm atormentado. Se pudéssemos, teríamos evitado esses contratempos, mas como sabe não podemos. A imprensa tem os seus direitos...

- É uma vergonha incomodarem particulares da maneira que incomodam, a pretexto de que precisam de notícias para dar ao público!

Quanto a mim, a única coisa que tenho notado nas notícias que publicam é que são uma teia de mentiras, do princípio ao fim. São capazes de inventar tudo! Mas queira entrar.

A mulher desviou-se para o lado e o inspector entrou e fechou a porta. Mrs. Lawton baixou-se para apanhar umas cartas que tinham caído no tapete, mas, delicadamente, Hardcastle adiantou-se-lhe e apanhou-as.

Os seus olhos ercorreram-nas durante meio segundo, enquanto as entregava, com os endereços para cima.

- Obrigada. - Mrs. Lawton colocou-as em cima da mesa do vestíbulo.

- Entre para a sala, sim? É por essa porta. Tem de me dar licença por um momento, pois parece-me que está qualquer coisa a ferver.

Mrs. Lawton correu para a cozinha e o inspector lançou um último olhar deliberado às cartas. Uma estava dirigida a Mrs. Lawton e as outras duas a Miss R. S. Webb. Entrou, então, no aposento indicado. Era uma sala pequena e desarrumada, pobremente mobilada, mas aqui e ali tinha uma mancha de cor ou algum objecto fora do vulgar. Uma bonita, e provavelmente cara, peça de vidro veneziano, de cores suaves e forma abstracta; duas almofadas de veludo de cores vivas; uma travessa de cerâmica estrangeira, com conchas... Ou a tia ou a sobrinha tinham uma certa tendência para a originalidade.

Mrs. Lawton voltou, um pouco mais ofegante do que anteriormente.

- Creio que podemos conversar, agora - declarou, embora em tom pouco convincente.

- Peço desculpa de ter vindo a uma hora inconveniente, mas encontrava-me perto e precisava de averiguar mais alguns pormenores acerca deste caso em que a sua sobrinha teve a pouca sorte de ser envolvida. Espero que ela já se tenha refeito do grande abalo que sofreu. ..

- Sim, Sheila chegou a casa num estado lastimoso. Mas esta manhã já estava boa e voltou para o trabalho.

- Bem sei. Disseram-me, no entanto, que ela se encontrava com um cliente, em qualquer lado, e como não quis interferir no seu trabalho pensei que seria melhor vir até cá e falar-lhe na sua própria casa. Mas, pelo que vejo, ainda não regressou, pois não?

- Provavelmente regressará tarde. Foi trabalhar para um tal professor Purdy e, segundo Sheila diz, ele é um homem que não tem a mínima noção do tempo.

Está sempre a dizer: "Como isto não levará mais do que dez minutos, parece-me melhor irmos até ao fim." Mas os dez minutos arrastam-se quase sempre e transformam-se em três quartos de hora ou uma hora. No entanto, é uma pessoa muito simpática e correcta. Uma vez ou duas insistiu em que ela ficasse para jantar com ele e pareceu muito preocupado por a ter retido muito mais tempo do que supusera. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer, inspector? Sheila pode-se demorar muito...

- Não creio... Claro que, no outro dia, só tomámos nota dos principais pormenores e eu nem sei se correctamente. - Consultou, de modo ostensivo, o livro de apontamentos. - Ora deixe ver. Miss Sheila Webb. É este o seu nome completo ou tem outro nome próprio? Como sabe, precisamos de todos estes pormenores muito certos, para as actas do inquérito.

- O inquérito é depois de amanhã, não é? Ela recebeu uma convocação...

- Sim, mas escusa de se preocupar com isso. Terá apenas de explicar como encontrou o corpo.

- Ainda não sabem quem era o homem?

- Não. Ainda é cedo para isso. Ele tinha um cartão na algibeira e nós pensámos, ao princípio, que se tratasse de um agente de seguros. Parece, agora, mais provável que o cartão lhe tenha sido dado por alguém. Talvez ele próprio tencionasse fazer algum seguro.

- Compreendo - murmurou Mrs. Lawton, vagamente interessada.

- Vamos, então, confirmar os nomes... Creio que escrevi Miss Sheila Webb ou Miss Sheila R. Webb, mas não me lembro a que se refere o "R". É Rosalie?

- Rosemary. O seu nome de baptismo é Rosemary Sheila, mas ela achou sempre o Rosemary piroso e diz chamar-se apenas Sheila.

- Compreendo.

Nada, no tom de voz de Hardcastle, demonstrava o seu contentamento por uma das suas suspeitas ter batido certo. Reparou também numa coisa: o nome de Rosemary não impressionava nada Mrs. Lawton. Para ela, Rosemary era apenas um nome próprio que a sua sobrinha não usava.

- Agora já está certo - continuou o inspector, a sorrir. - Suponho que a sua sobrinha veio de Londres e trabalha no Gabinete Cavendish há cerca de dez meses. Creio que não se lembra da data exacta?

- Sim, não me lembro. Sei que foi em Novembro passado, para o fim do mês...

- Muito bem, não tem importância. Ela não morava consigo, aqui, antes de aceitar emprego no Gabinete Cavendish?

- Não. Residia em Londres.

- Tem a sua morada em Londres?

- Tenho-a aí em qualquer lado... - Mrs. Lawton olhou à sua volta, com a expressão vaga das pessoas habitualmente desarrumadas. - Tenho uma memória péssima. Era qualquer coisa como Allington Grove, para os lados de Fulham... Compartilhava um apartamento com duas outras pequenas. Os quartos para raparigas são muito caros, em Londres.

- Lembra-se do nome da firma onde ela trabalhava?

- Lembro, sim. Hopgood & Trent. Eram agentes de propriedades na Fulham Road.

- Obrigado. Bem, tudo isto parece muito claro. Creio que Miss Webb é órfã? - É. - Mrs. Lawton mexeu-se, pouco à vontade, e olhou na direcção da porta. - Importa-se que vá de novo à cozinha?

- Faça favor.

O inspector abriu a porta e ela saiu. Seria impressão sua, ou a última pergunta que fizera perturbara Mrs. Lawton? Até então respondera rapidamente, sem hesitar... Pensou no assunto até Mrs. Lawton regressar.

- Desculpe, mas cozinhar tem que se lhe diga... Agora está tudo a andar bem. Deseja perguntar-me mais alguma coisa? A propósito, lembrei-me de que a morada não era Allington Grove. Era Carrington Grove, dezassete.

- Obrigado. Creio que lhe estava a perguntar se Miss Webb era órfã.

- É, sim. Os pais morreram.

- Há muito tempo?

- Quando ela era pequena.

Adivinhava-se no tom da sua voz uma espécie de desafio quase imperceptível.

- Era filha de uma irmã sua ou de um irmão?

- De uma irmã.

- Qual era a profissão de Mister Webb?

Mrs. Lawton pensou um momento, a morder os lábios, e por fim respondeu:

- Não sei.

- Não sabe?

- Quero dizer, não me lembro. Foi há tanto tempo...

Hardcastle aguardou, pois sabia que ela voltaria a falar. Não se enganou.

- Posso perguntar que tem tudo isto a ver com o caso? Quero dizer, que interessa quem eram os pais da minha sobrinha, o que fazia o pai dela, etc.?

- Suponho que, na realidade, uma coisa não tem nada a ver com a outra, do seu ponto de vista. Mas as circunstâncias são muito invulgares, compreende?

- As circunstâncias são muito invulgares? Que quer dizer?

- Temos motivos para crer que Miss Webb foi àquela casa porque a requisitaram especificamente, pelo nome, ao Gabinete Cavendish. Parece, portanto, que alguém arranjou as coisas de propósito, para que ela lá estivesse. Alguém, talvez... enfim, com qualquer ressentimento contra ela.

- Não acredito que alguém possa ter qualquer ressentimento contra Sheila. É uma jóia de rapariga, simpática e dada...

- Sim, também foi essa a impressão que me causou.

- Não me agrada ouvir insinuar o contrárioafirmou Mrs. Lawton, com certa agressividade.

- Decerto. - Hardcastle continuou a sorrir, apaziguador. - Mas deve compreender, Mistress Lawton, que tudo indica ter a sua sobrinha sido deliberadamente escolhida como vítima. Meteram-na de propósito em sarilhos, como dizem nos filmes. Alguém arranjou maneira de ela entrar numa casa onde estava um morto, um morto que fora assassinado havia pouco tempo. Parece, pois, que se trata de um acto maldoso.

- Quer dizer... quer dizer que alguém tentou dar a impressão de que foi Sheila que o matou? Oh, não, não posso acreditar!

- É, de facto, difícil de acreditar - concordou o inspector. - Mas precisamos de esclarecer tudo, de ter a certeza. Haverá, por exemplo, algum jovem, algum rapaz que se tenha apaixonado pela sua sobrinha e de quem ela não goste? Os rapazes novos fazem, às vezes, coisas muito cruéis e vingativas, sobretudo se são desequilibrados.

- Não creio que se trate de nada desse género -murmurou Mrs. Lawton, de olhos semicerrados e testa franzida, a pensar. - Sheila tem-se dado com um ou dois rapazes, mas não é nada de sério.

- Talvez se tenha passado alguma coisa enquanto ela viveu em Londres - sugeriu o inspector.É possível que a senhora não esteja muito bem informada acerca dos amigos que ela lá teve.

- Sim, é possível... Mas a esse respeito terá de a interrogar a ela própria, inspector Hardcastle. No entanto, nunca me constou que tivesse qualquer aborrecimento dessa espécie.

- Também se poderá tratar de alguma rapariga... Não será possível que uma das jovens com quem ela compartilhou o apartamento a invejasse ou tivesse ciúmes dela?

- Não me admiraria que existisse uma rapariga que desejasse pregar-lhe uma partida, mas certamente não iria ao ponto de envolver assassínio.

A observação era sensata e Hardcastle compreendeu que Mrs. Lawton não tinha nada de tola. Apressou-se a dizer:

- Sei que parece muito improvável, mas a verdade é que todo este caso é incrível.

- Deve ter sido algum doido...

- Mesmo na loucura há uma ideia definida a motivar as acções, qualquer coisa que lhes dá origem. Foi por isso que lhe fiz perguntas acerca do pai e da mãe de Sheila Webb. Ficaria surpreendida se soubesse como é frequente os motivos terem raízes no passado. Como os pais de Miss Webb morreram quando era pequena, ela não me saberá, naturalmente, dizer nada acerca deles. Por isso recorri à senhora.

- Compreendo... sim, compreendo. Mas... bem...

O inspector notou que a perturbação e a incerteza tinham voltado à sua voz.

- Eles morreram ao mesmo tempo, num acidente ou em qualquer coisa desse género?

- Não, não houve nenhum acidente.

- Morreram ambos de causas naturais?

- Eu... bem, sim... quero dizer, não sei, francamente.

- Penso que deve saber um pouco mais do que diz, Mistress Lawton.

Eram divorciados, estavam separados?

- Não, não eram divorciados.

- Ora vamos, Mistress Lawton! Deve saber de que morreu a sua irmã.

- Não compreendo que... quero dizer, é muito difícil... É muito melhor não remexer no passado...

Os seus olhos exprimiam uma perplexidade desesperada.

O inspector fitou-a, com atenção, e depois perguntou, docemente:

- Sheila Webb será... uma filha ilegítima?

No rosto de Mrs. Lawton estampou-se, imediatamente, um misto de consternação e alívio.

- Ela não é minha filha.

- É filha ilegítima da sua irmã?

- É... mas ignora-o. Nunca lho disse. Disse-lhe que os pais morreram novos e é por isso que... enfim, compreende.. .

- Compreendo, sim. E garanto-lhe que, a não ser que desse lado surja qualquer necessidade imperiosa de investigação, não interrogarei Miss Webb a tal respeito.

- Não precisará de lhe dizer?

- Só se tiver alguma importância para a solução do caso, o que, confesso, me parece improvável. Mas preciso de tomar conhecimento de todos os factos que a senhora sabe, embora prometendo-lhe que farei o possível para que fique apenas entre nós o que me disser.

- Não é uma coisa agradável e eu confesso que fiquei muito transtornada. A minha irmã fora sempre a mais inteligente da família, era professora e muito respeitada. Enfim, a última pessoa que se julgaria capaz de...

- Isso acontece muitas vezes - interrompeu o inspector, com tacto. - Ela conheceu esse homem, esse Webb...

- Nunca sequer soube como ele se chamava - interveio Mrs. Lawton.

- Nunca o conheci. Mas ela procurou-me e disse-me o que sucedera, que esperava um filho e que o homem não podia, ou não queria, nunca soube ao certo, casar com ela. Minha irmã era ambiciosa e, se se descobrisse a verdade, teria de desistir do seu trabalho. Por isso, naturalmente, eu... eu disse que estava disposta a ajudar.

- Onde está agora a sua irmã, Mistress Lawton?

- Não faço a mínima ideia - declarou, com ênfase. - Absolutamente nenhuma ideia.

- Mas vive?

- Suponho que sim.

- Não se mantiveram em contacto?

- Ela não quis. Achou melhor para a criança e para ela haver uma separação total. Tínhamos ambas um pequeno rendimento, que a nossa mãe nos deixara. Ann passou a sua parte para o meu nome, para a manutenção da filha. Disse que continuaria a desempenhar a sua profissão, mas mudaria de escola. Suponho que tinha um plano qualquer de substituir um professor no estrangeiro, durante um ano. Na Austrália ou em qualquer outro lado. É tudo quanto sei, inspector Hardcastle, e tudo quanto lhe posso dizer.

Hardcastle fitou-a, pensativo. Seria, realmente, tudo quanto ela sabia? Era difícil ter a certeza. O que era certo era não tencionar dizer-lhe mais nada. No entanto, talvez não soubesse, de facto, mais do que dissera.

As poucas referências que fizera à irmã tinham bastado para dar a impressão de que se tratava de uma personalidade imperiosa, severa e implacável, de uma mulher decidida a não permitir que um erro lhe estragasse a vida. Friamente, insensivelmente, providenciara para a manutenção e presumível felicidade da filha, e a partir desse momento afastara-se de vez, para recomeçar a vida sozinha. Era admissível que sentisse assim em relação à filha. Mas e a irmã? - Parece estranho que ela não tenha, ao menos, comunicado consigo por carta, que não tenha querido saber como se desenvolvia a filha...

- Se conhecesse Ann não se admiraria. Foi sempre muito firme nas suas decisões. Além disso, não éramos muito unidas. Eu era muito mais nova... doze anos... Repito, nunca fomos muito unidas.

- Que pensou o seu marido da adopção?

- Eu era viúva. Casei nova e o meu marido foi morto na guerra. Nessa altura, tinha uma pequena loja onde vendia doces.

- Onde foi isso? Não foi aqui em Crowdean, pois não?

- Não. Vivíamos no Lincolnshire. Vim aqui passar umas férias, uma vez, e gostei tanto que trespassei a loja e mudei-me para cá. Mais tarde, quando Sheila entrou para a escola, empreguei-me na firma Roscoe & West, a grande loja de fanqueiro da terra. Ainda lá trabalho. São pessoas muito simpáticas.

- Muito obrigado pela sua franqueza, Mistress Lawton - agradeceu Hardcastle, enquanto se levantava.

- Não dirá nada a Sheila?

- Só se for indispensável, e só será indispensável se verificarmos que certas circunstâncias do passado têm qualquer relação com este assassínio de Wilbraham Crescent, dezanove. Parece-me improvável, como já lhe disse. - Tirou da algibeira a fotografia que já mostrara a tanta gente e estendeu-a a Mrs. Lawton.Não faz nenhuma ideia de quem possa ser este homem?

- Já me mostraram a fotografia - respondeu a mulher, mas pegou-lhe e observou-a com atenção.Não, tenho a certeza de que nunca o vi. Não creio que seja destes lados, pois de contrário talvez me lembrasse de o ter visto por aí. Claro... - Olhou de novo, atentamente, antes de acrescentar, de modo inesperado: - Parece uma pessoa decente. Um cavalheiro, não acha?

Era uma expressão ligeiramente fora de moda, no âmbito da experiência do inspector, mas não pareceu deslocada nos lábios de Mrs. Lawton. "Criada na província...", disse para consigo. "Ainda pensam assim." Olhou por sua vez para a fotografia e verificou, surpreendido, que pessoalmente não pensara no morto dessa maneira. Seria um homem decente? Era singular, mas presumira exactamente o contrário. Presumira-o inconscientemente, talvez, ou talvez influenciado pelo facto de o indivíduo ter na algibeira um cartão com um nome e uma morada que tudo indicava serem falsos. Era possível que a explicação que dera a Mrs. Lawton, pouco antes, fosse verdadeira, que o cartão pertencesse a algum falso agente de seguros e que este o tivesse dado ao morto... Isso tornaria tudo ainda mais complicado. Aborrecido, viu as horas.

- Não a quero afastar por mais tempo dos seus cozinhados. Como a sua sobrinha ainda não chegou...

Mrs. Lawton olhou também para o relógio da chaminé. "Graças a Deus só há um relógio nesta sala!", pensou o inspector.

- Sim, ela está atrasada... muito atrasada. Ainda bem que a Edna não esperou.

Ao ver a expressão um pouco intrigada do inspector, exglicou:

- É uma das pequenas do escritório. Veio cá, para conversar com a Sheila, mas depois de esperar um bocado disse que não se podia demorar mais e foi-se embora, pois tinha um encontro qualquer. Acrescentou que falaria com a minha sobrinha amanhã ou qualquer outro dia.

Fez-se luz no espírito do inspector: a rapariga que se cruzara com ele na rua! Já sabia por que motivo ela o fizera pensar em sapatos. Claro! Era a jovem que o atendera, no Gabinete Cavendish, e que, quando ele saía, segurava um sapato com o salto partido e perguntava às colegas como havia de se arranjar para chegar a casa. Lembrava-se agora de que era uma pequena banal, pouco atraente e que chupava uma guloseima qualquer, enquanto falava. Ela reconhecera-o, ao encontrá-lo na rua, e hesitara, como se pretendesse falar-lhe. Que lhe teria querido dizer? Pretenderia explicarlhe porque visitara Sheila Webb ou pensaria que ele esperava que lhe dissesse alguma coisa?

- É uma grande amiga da sua sobrinha?

- Nem por isso. Quero dizer, trabalham no mesmo escritório, mas Edna é uma pequena enfadonha, pouco inteligente, e não são grandes amigas. Por sinal, até me admirei de mostrar tanto interesse em falar com Sheila esta noite. Disse-me que se tratava de uma coisa que não compreendia e acerca da qual queria falar com a minha sobrinha.

- Mas não lhe explicou o que era?

- Não. Disse que podia esperar e que não tinha importância.

- Bem, vou andando.

- Admira-me a Sheila não ter telefonado... Geralmente telefona, quando está atrasada, tanto mais que, às vezes, o professor a convida para jantar. Enfim, deve chegar de um momento para o outro. As bichas para os autocarros são enormes, a esta hora, e o Curlew Hotel ainda fica longe. Não deseja deixar nenhum recado para ela?

- Suponho que não...

Quando ia a sair, perguntou:

- Já agora, diga-me uma coisa: quem escolheu os nomes próprios da sua sobrinha, Rosemary e Sheila? A sua irmã ou a senhora?

- Sheila era o nome da nossa mãe. Rosemary foi escolha da minha irmã. Confesso que me admirou. Trata-se de um nome romanesco e a minha irmã não era nada romanesca nem sentimental.

- Bem, boas noites.

Quando chegou à rua, o inspector ia a pensar:

"Rosemary... hum... Terá escolhido Rosemary como recordação romântica e perfumada... ou por qualquer outro motivo diferente?"

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Subi a Charing Cross Road e virei para o labirinto de ruas que abrem sinuosamente caminho entre a New Oxford Street e Covent Garden. Havia ali toda a sorte de estabelecimentos insuspeitos: lojas de antiguidades, um hospital de bonecas, uma loja de sapatilhas de ballet, charcutarias de especialidades estrangeiras, etc.

Resisti à tentação do hospital de bonecas, com os seus vários pares de olhos de vidro azul e castanho, e cheguei, finalmente, ao meu destino: uma livrariazinha modesta, numa transversal que não ficava muito longe do Museu Britânico. No exterior, encontravam-se as habituais prateleiras de livros: romances antigos, velhos livros de estudo, todo o género de leituras com etiquetas de 3 d., 6 d.,1 x., e até alguns "aristocratas" com as páginas quase todas e, ocasionalmente, as encadernações intactas.

Esgueirei-me pela porta dentro. Tive mesmo de me esgueirar, pois a quantidade de livros, em equilíbrio precário, roubava cada vez mais espaço.

No interior, havia-os por toda a parte, como se crescessem e se multiplicassem num desenfreamento, sem a mão forte de alguém a dominá-los. O espaço entre as estantes era tão pequeno que só com grande dificuldade se conseguia passar. Havia rimas de livros em todas as prateleiras e em todas as mesas. Sentado num banco, a um canto, verdadeiramente emoldurado por livros, estava um velho de barrete e cara larga e inexpressiva como um peixe embalsamado. Tinha o ar de quem desistira de uma luta desigual. Tentara dominar os livros, mas era evidente que os livros o tinham dominado a ele. Era uma espécie de rei Canuto do mundo dos livros, a retirar perante o avanço da maré livreira... Se lhe ordenasse que parasse, seria com a certeza absoluta e desesperada de não ser obedecido. Tratava-se de Mr. Soloman, proprietário da loja. Quando me reconheceu, acenou com a cabeça e o seu olhar de peixe suavizou-se um momento.

- Tem alguma coisa da minha especialidade?

- Terá de ir ver lá acima, Mister Lamb. Continua interessado nas algas e coisas parecidas?

- Continuo.

- Bem, sabe onde estão. Biologia marinha, fósseis, Antárctica: segundo andar. Recebi uma encomenda nova, anteontem. Comecei a desembrulhá-los, mas não acabei. Encontrá-los-á a um canto, lá em cima.

Acenei com a cabeça e continuei a esgueirar-me até ao fundo da loja, donde partia uma escada pequena, pouco segura e muito suja. O primeiro andar era reservado ao Oriente, a livros de arte e medicina e a clássicos franceses. A sala tinha um canto muito interessante, separado por uma cortina e desconhecido do público em geral, mas acessível aos peritos, onde se encontravam os volumes chamados "estranhos" ou "curiosos".

Segui o meu caminho para o segundo andar.

Aí se encontravam, muito inadequadamente separados por categorias, livros sobre arqueologia, história natural e outras matérias respeitáveis. Abri caminho por entre estudantes, coronéis idosos e sacerdotes, contornei o ângulo de uma estante, passei por cima de vários embrulhos de livros, que se encontravam no chão e tinham começado a ser abertos, e vi o meu progresso impedido por dois estudantes de sexos opostos, perdidos para o mundo num abraço muito apertado.

Balançavam-se de um lado para o outro, muito agarrados. "Com licença", pedi e, firmemente, afastei-os para o lado, levantei uma cortina que encobria uma porta, tirei uma chave da algibeira, introduzi-a na fechadura e entrei. Encontrei-me, incongruentemente, numa espécie de vestíbulo de paredes caiadas e limpas, das quais pendiam gravuras de gado escocês. Dirigi-me a uma porta que tinha uma aldrava reluzente, bati devagarinho e apareceu uma mulher idosa, de cabelo grisalho, óculos de modelo muito antigo, saia preta e uma camisola às riscas verdes, que não podia destoar mais do conjunto do que destoava.

- É você? - murmurou, sem qualquer outra forma de cumprimento. - Ele perguntou por si, ontem. Não estava satisfeito. - Abanou a cabeça, como uma velha ama a ralhar com uma criança decepcionante, e acrescentou: - Tem de se esforçar para obter melhores resultados.

- Deixe-se disso, ama.

- Não me trate por ama! É preciso atrevimento! Já lhe tenho dito...

- A culpa é sua. Não deve falar comigo como se eu fosse um rapazinho.

- Já era tempo de crescer, já... É melhor entrar e despachar-se. - Carregou num botão, levantou o auscultador do telefone e anunciou: - Mister Colin... Sim, vou mandá-lo entrar. - Repôs o auscultador e acenou-me com a cabeça.

Transpus uma porta do fundo da sala e entrei noutro aposento, tão cheio de fumo de charuto que quase não se via nada. Quando os meus olhos, a arder, se habituaram ao ambiente, distingui as volumosas proporções do meu chefe, recostado numa velha poltrona junto da qual se encontrava uma mesinha assente numa base giratória.

O coronel Beck tirou os óculos, afastou a mesinha, em cima da qual estava um grosso volume, e olhou-me de modo desaprovador.

- É você, finalmente?

- Sou, sim.

- Soube alguma coisa?

- Não, senhor.

- Ah! Bem, Colin, assim não vale. Assim não vale, ouviu?

Crescentes!

- Continuo a pensar o mesmo.

- Está bem, continua a pensar. Mas nós não podemos esperar eternamente, enquanto você pensa.

- Admito que foi apenas um pressentimento...

- Não há mal nenhum nisso.

O coronel Beck era um homem cheio de contradições.

- Os melhores trabalhos que fiz foram inspirados por pressentimentos, mas este seu pressentimento parece que não está a dar resultado. Já acabou com os bares?

- Já. Como lhe disse, comecei por crescentes... quero dizer, casas em crescentes...

- Também não supus que se referisse a padarias especializadas em croissants... embora, afinal, não fosse nada de extraordinário. Alguns desses estabelecimentos fazem ponto de honra em fabricar croissants franceses que não são nada franceses. Congelam-nos, como a tudo o mais, hoje em dia. É por isso que nada sabe, já, a nada.

Esperei que o velhote desenvolvesse o tópico, que era um dos seus favoritos, mas ele percebeu e dominou-se.

- Já percorreu tudo?

- Quase tudo. Ainda falta um bocadinho.

- Quer mais tempo, não é?

- É, quero mais tempo. Mas, de momento, não estou interessado em mudar de terra. Houve uma espécie de coincidência e pode, pode apenas, significar alguma coisa.

- Não esteja com rodeios... Apresente-me factos.

- Local de investigação: Wilbraham Crescent.

- E falhou! Ou não?

- Não tenho a certeza.

- Esclareça, rapaz, esclareça.

- A coincidência reside no facto de terem assassinado um homem em Wilbraham Crescent.

- Quem foi assassinado?

- Ainda não se sabe. Tinha na algibeira um cartão com um nome e uma morada, mas era falso.

- Hum... é sugestivo. Tem alguma relação com o resto?

- Se tem ainda não a encontrei, mas, mesmo assim...

- Bem sei, bem sei. Mesmo assim... Mas, afinal, que veio cá fazer?

Pedir autorização para continuar a farejar em Wilbraham Crescent... onde quer que isso seja?

- Fica numa terra chamada Crowdean, a dezasseis quilómetros de Portlebury.

- Sim, sim, uma localidade muito boa. Mas para que está você aqui? Não costuma pedir autorização, faz o que a sua cabeça teimosa lhe dita, não é?

- Creio que é...

- Então de que se trata?

- Há umas pessoas que desejaria fossem investigadas.

O coronel Beck suspirou, puxou de novo a mesinha, tirou uma esferográfica da algibeira e fitou-me.

- Então?

- Uma casa chamada Diana Lodge, Wilbraham Crescent, vinte. Vive lá uma mulher, uma tal Mistress Hemming, e uns dezoito gatos.

- Diana? Hum... Deusa da Lua! Diana Lodge. Que faz essa Mistress Hemming?

- Nada. Vive absorvida nos seus gatos.

- Excelente disfarce - comentou o coronel. Podia ser, pelo menos. Mais nada?

- Há, também, um homem chamado Ramsay, que mora em Wilbraham Crescent, sessenta e dois. Diz ser engenheiro de construções, não sei bem o que seja... e viaja muito pelo estrangeiro.

- Esse agrada-me... agrada-me mesmo muito. Quer saber coisas acerca dele, não é verdade? Muito bem.

- Tem mulher, uma senhora simpática, e dois barulhentíssimos rapazes.

- Não me espanta. Há precedentes. Lembra-se do Pendleton?

Também tinha mulher e filhos. Uma mulher simpática e a mais estúpida que jamais conheci. Nunca lhe passou pela cabeça que o marido não fosse um pilar de respeitabilidade, um honrado negociante de livros orientais.

Agora que penso no assunto, o Pendleton também tinha uma mulher alemã e duas filhas... assim como uma mulher suíça, na Suíça. Francamente, não sei o que elas representavam, se excessos íntimos, se camuflagem, apenas.

Claro que ele diria que eram camuflagem... Mas, muito bem, você quer saber coisas acerca de Mister Ramsay. Mais alguma coisa?

- Não sei bem... Há um casal no número sessenta e três. Ele é professor reformado, chama-se McNaughton, é escocês e idoso. Passa o tempo a trabalhar no jardim. Não há motivo nenhum para desconfiar dele e da mulher, mas...

- Está bem, verificaremos. Passá-lo-emos pela máquina, para termos a certeza. A propósito, que é toda esta gente?

- São pessoas cujos jardins são contíguos ou tocam no da casa onde se deu o assassínio.

- Parece um jogo francês: Onde está o cadáver do meu tio? No jardim do primo da minha tia... E a respeito do número dezanove?

- Mora lá uma mulher cega, antiga professora. Presentemente trabalha num instituto para cegos e deficientes e está a ser investigada pela Polícia.

- Vive sozinha?

- Vive.

- E qual é a sua ideia a respeito das outras pessoas?

- A minha ideia é que se uma dessas pessoas cometesse um assassínio em qualquer dessas casas, seria fácil, embora arriscado, transferir o cadáver para o número dezanove, a uma hora apropriada. Não passa de uma simples possibilidade, claro. Já agora, gostaria de lhe mostrar... isto.

- Um haller checo. Onde o achou?

- Não fui eu que o achei. Mas estava no jardim das traseiras do número dezanove.

- Interessante. Afinal, talvez essa sua persistente ideia fixa das luas e quartos crescentes tenha alguma razão de ser... Há um bar chamado Quarto Crescente na rua a seguir a esta. Porque não vai lá tentar a sorte?

- Já lá fui.

- Tem resposta para tudo, não tem? Quer um charuto?

- Obrigado, mas hoje não tenho tempo.

- Volta para Crowdean?

- Volto. Há o inquérito.

- Será adiado, apenas. Tem a certeza de que não anda atrás de nenhuma pequena, em Crowdean?

- Claro que tenho a certeza! - repliquei, secamente, e o coronel Beck desatou a rir.

- Tenha cuidado, meu filho! O sexo a empinar a sua hedionda cabeça, como de costume... Há quanto tempo a conhece?

- Não há nenhuma... Quero dizer, foi uma rapariga que descobriu o cadáver.

- Que fez ela, quando o descobriu?

- Gritou.

- Muito apropriado. Correu para si, chorou no seu ombro e contou-lhe tudo, não foi?

- Não sei de que está a falar - redargui, friamente. - Dê uma vista de olhos a isto.

Estendi-lhe um jogo de fotografias.

- Quem é?

- O morto.

- Dez contra um em como essa rapariga que tanto lhe interessa o matou! Toda essa história me parece muito suspeita...

- Como, se ainda não lha contei?

- Não preciso que ma conte. Vá ao seu inquérito, meu rapaz, e tenha cuidado com essa pequena. Ela chama-se Diana, ou Ártemis, ou qualquer coisa relacionada com luas ou crescentes?

- Não.

- Bem, não se esqueça de que pode haver sempre qualquer relação.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Havia muito tempo que não visitava Whitehaven Mansions. Alguns anos atrás, fora um prédio imponente, de apartamentos modernos. Agora erguiam-se de ambos os lados muitos outros ainda mais modernos e imponentes. Notei que, no interior, sofrera reparações recentes e estava pintado de tons suaves de amarelo e verde.

Subi no elevador e toquei à campainha do número 203. Abriu a porta o impecável George, cujo rosto se iluminou num sorriso de boas-vindas.

- Mister Colin! Há quanto tempo não o víamos!

- É verdade. Como está, George?

- Estou bem de saúde, felizmente, senhor.

- E ele? - perguntei, mais baixo.

George baixou também a voz, embora não fosse praticamente necessário, pois desde o princípio da nossa conversa que falava em tom muito discreto.

- Creio que, às vezes, se sente um pouco deprimido.

Acenei com a cabeça, compreensivamente.

George pegou no meu chapéu e convidou:

- Por aqui, Mister Colin...

- Anuncie-me como Mister Colin Lamb, por favor.

- Muito bem. - Abriu uma porta e anunciou, em voz clara: - Mister Colin Lamb deseja vê-lo. Recuou, para me deixar passar, e eu entrei no aposento.

O meu amigo Hercule Poirot estava sentado na sua habitual poltrona quadrada, defronte da lareira. Reparei que um dos elementos do irradiador eléctrico rectangular estava ligado. Setembro ainda ia no princípio e estava calor, mas Poirot era um dos primeiros homens a sentir o fresco do Outono e precaver-se contra ele. No chão, de ambos os lados da poltrona, estavam diversos livros, bem empilhados, e havia mais livros na mesa, à sua esquerda. A sua direita encontrava-se uma chávena fumegante. Uma tisana, supus. Gostava de tisanas e, às vezes, insistia comigo para que as tomasse, também. Tinham um gosto enjoativo e um cheiro forte.

- Não se levante - pedi, mas Poirot já avançava para mim, de mãos estendidas e sapatos de verniz a rebrilhar.

- Ah, é você, é você, meu amigo! O meu jovem amigo Colin! Mas porque disse que se chamava Lamb*? Deixe-me pensar... Há um provérbio qualquer, do carneiro vestido com a pele do cordeiro... Não, isso é o que se costuma dizer das velhotas que querem passar por mais novas do que são.

* Lamb, em inglês, significa cordeiro. (N. da T.).

Claro que não se aplica a si. Ah, já sei! É um lobo com pele de cordeiro, não é?

- Não. Pensei apenas que, na minha profissão, o meu verdadeiro apelido podia ser prejudicial, podia ser facilmente relacionado com o do meu pai. Por isso escolhi o de Lamb. Curto, simples, fácil de lembrar... e, digo-o sem modéstia, de acordo com a minha personalidade.

- Oh, a esse respeito, não juraria! Como está o meu bom amigo e seu pai?

- O velhote está óptimo. Muito atarefado com as suas malvas-rosas... ou serão crisântemos? As estações passam tão depressa que nunca sei qual é a flor do momento.

- Ele entretém-se, então, com a horticultura?

- Parece que toda a gente opta por isso, no fim.

- Eu não! Uma vez dediquei-me às abóboras, mas não voltei! Se uma pessoa deseja ter as flores mais bonitas, porque não vai a uma florista?

Julguei que o bom superintendente fosse escrever as suas memórias.

- Ele começou, mas eram tantas as coisas que não podia contar que chegou à conclusão de que o resto não valia a pena ser contado.

- É necessário ser discreto... É uma pena, pois o seu pai podia contar algumas coisas muito interessantes. Admiro-o muito, sempre admirei.

Achava os seus métodos muito interessantes, sabe? Era uma pessoa que avançava resolutamente em frente, que sabia utilizar o óbvio como mais ninguém... Preparava uma armadilha, a armadilha mais óbvia possível, e as pessoas que queria apanhar diziam: "É muito evidente, não pode ser verdade..." E, zás, caíam nela!

Ri-me.

- Bem, hoje não é moda os filhos admirarem os pais. Muitos sentamse, enchem as canetas de veneno, recordam todas as coisas desagradáveis e feias e escrevem tudo com grande satisfação. Mas eu, pessoalmente, tenho um enorme respeito pelo meu velhote. Só desejo vir a ser tão bom como ele foi... embora não tenha exactamente a mesma profissão.

- Mas a que tem está estritamente relacionada com a dele, embora você tenha de trabalhar nos bastidores de modo diferente do dele. - Tossiu delicadamente. - Creio que o devo felicitar pelo seu recente e espectacular êxito. O caso Larkin...

- Já se sabe muito, mas eu gostaria de saber muito mais, para arredondar bem as contas... Não foi, no entanto, para falar disso que vim.

- Claro que não, claro que não... - Poirot indicou-me uma cadeira e ofereceu-me uma tisana, que recusei imediatamente.

George entrou muito a propósito, com uma garrafa de uísque, um copo e um sifão, que colocou junto de mim.

- E o senhor, que faz? - Olhei para os vários livros que o cercavam e acrescentei: - Parece que se dedica a qualquer espécie de pesquisa...

- Pode chamar-lhe assim - admitiu Poirot, a suspirar. - Sim, talvez, em certo sentido, seja isso. Ultimamente tenho sentido uma grande necessidade de um problema qualquer. Disse para comigo que não interessava a natureza do problema, que podia ser como o do bom Sherlock Holmes: a que profundidade se enterrara a salsa na manteiga? O que importava era que existisse um problema. Compreende, não são os músculos que preciso exercitar e, sim, as células cerebrais.

- Compreendo. É tudo uma questão de se manter em forma.

- Exactamente. - Poirot suspirou de novo. Mas, mon cher, os problemas não são fáceis de encontrar. É verdade que, na quinta-feira passada, se me apresentou um: o indevido aparecimento de três bocados de casca de laranja seca no receptáculo dos chapéus-de-chuva. Como tinham lá ido parar? Como podiam lá ter ido parar? Eu não como laranjas e o George jamais poria cascas de laranja no receptáculo dos chapéus-de-chuva.

Também era pouco provável que uma visita trouxesse três bocados de casca de laranja seca. Um problema complicado!

- Resolveu-o?

- Resolvi. - Explicou, com mais melancolia do que orgulho: - No fim, nem sequer foi muito interessante. Um caso de substituição da habitual mulher-a-dias. A substituta trouxe com ela, em absoluta desobediência às ordens dadas, um dos seus filhos. Embora não pareça interessante, a verdade é que exigiu uma firme penetração numa rede de mentiras, disfarces e tudo o mais. Digamos que foi satisfatório, mas não importante.

- Decepcionante - sugeri.

- Enfin, eu sou modesto... Mas ninguém precisa de utilizar um florete para cortar o cordel de um embrulho.

Abanei a cabeça, com um ar muito solene, e Poirot prosseguiu:

- Ultimamente, tenho-me entretido a ler vários mistérios da vida real, que nunca foram decifrados. Aplico-lhes as minhas soluções.

- Refere-se a casos como o do Bravo, de Adelaide Bartlett e todos os demais?

- Exactamente. Mas, em certo sentido, foi demasiado fácil. Não restam quaisquer dúvidas no meu espírito quanto a quem assassinou Charles Bravo. A dama de companhia talvez estivesse implicada, mas não foi, com certeza, a alma danada do caso. Temos, também, o caso daquela infeliz adolescente, Constance Kent. O verdadeiro motivo que a levou a estrangular o irmãozinho, a quem sem dúvida amava, constituiu sempre um quebra-cabeças. Mas deixou de o ser para mim assim que li a história.

Quanto a Lizzie Borden, só desejaria poder fazer certas perguntas essenciais a várias pessoas. Tenho mais ou menos a certeza de quais seriam as respostas. Mas, infelizmente, essas pessoas já devem ter morrido todas.

Pensei para comigo, como já me sucedera tantas vezes, que a modéstia não era o forte de Hercule Poirot...

- E que fiz a seguir? - Calculei que não devia ter tido muito com quem falar, nos últimos tempos, e que estava a gostar de ouvir a sua própria voz. - Da vida real passei para a ficção. Como vê, tenho à minha esquerda e à minha direita vários exemplos de ficção policial. Tenho estado a trabalhar de trás para a frente... Olhe... - pegou no livro que pusera no braço da poltrona, quando eu entrara - meu caro Colin, aqui tem 'O Caso Leavenworth'.

- Deve ter recuado muito... Creio que o meu pai disse ter lido este livro, quando era rapaz, e suponho que eu próprio também o li. Deve parecer muito fora de moda, agora.

- É admirável! Uma pessoa saboreia a sua atmosfera coeva, o seu melodrama estudado e deliberado, as deliciosas e exuberantes descrições da beleza dourada de Eleanor e da beleza prateada de Mary...

- Tenho de o reler! Já não me lembro das passagens acerca de raparigas bonitas.

- Há ainda aquela criada, Hannah, muito bem vista, e o assassino, que constitui um excelente estudo psicológico.

Compreendi que me esperava um sermão e preparei-me para escutar.

- Temos, também, As Aventuras de Arsène Lupin. Quanta fantasia, quanta irrealidade e, contudo, quanto vigor, quanta vitalidade, quanta vida São absurdas, mas têm panache! E humor, também.

Largou As Aventuras de Arsène Lupin e pegou noutro livro.

- O Mistério do Quarto Amarelo... Este, ah, este é um verdadeiro clássico! Merece a minha aprovação do princípio ao fim. Tão lógico! Lembro-me de que algumas críticas o acusaram de desleal, meu caro Colin.

Não, não! Quase, talvez, mas quase, apenas. Tem a sua diferença. Há verdade em todo ele, uma verdade porventura oculta pela cuidadosa e inteligente escolha das palavras... Tudo devia estar perfeitamente claro no momento supremo em que os homens se encontram no ângulo dos três corredores. - Largou o livro, com reverência. - Uma verdadeira obra-prima... e, suponho, quase esquecido, presentemente.

Poirot saltou por cima de cerca de vinte anos e começou a falar de autores mais recentes.

- Também li algumas das primeiras obras de Mistress Ariadne Oliver.

Ela é uma pessoa minha amiga, e suponho que sua, mas eu não aprovo inteiramente os seus trabalhos. Os acontecimentos descritos são muito improváveis, usa e abusa da coincidência... e, em virtude de ser muito jovem quando começou, cometeu a tolice de escolher um finlandês para detective. Ora é evidente que ela não sabe nada acerca dos Finlandeses nem da Finlândia, a não ser, talvez, as obras de Sibélius. No entanto, possui uma mentalidade original, por vezes apresenta deduções inteligentes, e nos últimos anos aprendeu muito acerca de coisas que anteriormente desconhecia, como, por exemplo, o modo de agir da Polícia. Agora também merece mais confiança no capítulo das armas de fogo e, essa necessidade ainda se fazia sentir mais!, provavelmente arranjou um amigo solicitador ou advogado que a esclareceu acerca de certos pormenores jurídicos.

Pôs de parte Ariadne Oliver e pegou noutro livro.

- Mister Cyril Quain. Ah, Mister Quain é um mestre na arte do álibi!

- Se a memória não me atraiçoa, é um escritor muito enfadonho.

- É verdade que não acontece nos seus livros nada muito emocionante... - admitiu Poirot. - Há um cadáver, evidentemente, e, de vez em quando, até mais do que um... Mas o principal é sempre o álibi, o horário dos comboios, o trajecto dos autocarros, o traçado das estradas.

Confesso que aprecio este intrincado emprego do álibi... e gosto de tentar apanhar Mister Cyril Quain em falta.

- E, provavelmente, consegue-o sempre.

Poirot foi sincero:

- Nem sempre. Não, nem sempre... Claro que, ao fim de certo tempo, compreendemos que um livro dele é quase igual a todos os outros... Os álibis assemelham-se, embora não sejam exactamente os mesmos. Sabe, mon cher Colin, imagino Cyril Quain sentado na sua sala, a fumar cachimbo, como aparece nas fotografias, e rodeado pelo A. B. C., pelo Bradshaw continental, por brochuras das companhias de aviação, por horários de todas as espécies... Até por pautas dos movimentos dos transatlânticos! Diga-se o que se disser, Colin, há ordem e método em Mister Cyril Quain.

Largou o livro de Mr. Quain e pegou noutro.

- Agora temos aqui Mister Garry Gregson, um fecundíssimo autor de romances policiais. Creio que escreveu pelo menos sessenta e quatro... É quase o oposto perfeito de Mister Quain. Nos livros de Mister Quain acontecem poucas coisas; nos de Garry Gregson acontecem demasiadas e de modo implausível e confuso. E é tudo muito colorido, melodrama bem explorado... Sangue, cadáveres, pistas, emoções, amontoa-se tudo numa grande superabundância, é tudo muito sinistro e muito diferente da realidade. Não é dos meus preferidos... Lembra um desses cocktails americanos do tipo mais obscuro, cujos ingredientes são muito suspeitos.

Poirot fez uma pausa, antes de reatar a prelecção:

- Voltemo-nos agora para a América. - Pegou num livro da pilha da esquerda. - Florence Elks. Aqui há ordem e método, muito colorido, mas também muito acerto, alegria e vivacidade. Esta senhora tem talento, embora, como acontece a tantos escritores americanos, pareça um pouco obcecada pela bebida.

Eu sou, como sabe, um connaisseur de vinho. Agrada-me sempre encontrar numa história um clarete ou um borgonha, com a vintage e a data devidamente autenticadas. Mas a quantidade exacta de uísque e Bourbon consumida em todas as páginas pelo detective de um policial americano não me interessa nada. O facto de ele beber um litro ou meio litro não me parece afectar de modo nenhum a acção da história. Este motivo do álcool nos livros americanos assemelha-se muito ao que a cabeça do rei Carlos foi para o pobre Mister Dick, quando tentou escrever as suas memórias. É impossível afastá-lo.

- E quanto à escola dos duros?

Poirot afastou a escola dos duros com um gesto de mão, como se afastasse um mosquito importuno.

- A violência pelo amor da violência? Desde quando é isso interessante? Vi muita violência, nos meus primeiros tempos de oficial da Polícia. Mais vale ler um livro de estudo de medicina! Tout de même, dou à ficção policial americana, no seu conjunto, uma nota muito elevada.

Creio que é mais engenhosa, mais imaginativa do que a inglesa. É menos atmosférica e menos sobrecarregada de ambiente do que a maioria da ficção francesa. Veja Louisa O'Malley, por exemplo.Pegou noutro livro. - O seu estilo literário é modelar e erudito, mas quantas emoções, quanta apreensão crescente desperta nos leitores! Aquelas mansões de arenito de Nova Iorque... Enfin, eu nunca soube o que era uma mansão de arenito... Aqueles apartamentos luxuosos, aquele pretensiosismo aristocrata... e, no fundo, filões insuspeitos de crime seguem os seus caminhos imprevistos. Podia acontecer assim... e acontece assim. Louisa O'Malley é uma boa escritora, muito boa, mesmo.

Suspirou, recostou-se na poltrona, abanou a cabeça e bebeu o resto da tisana.

- E, depois, há sempre os antigos favoritos...Mais outro livro... - As Aventuras de Sherlock Holmesmurmurou, docemente, e acrescentou, cheio de reverência: - Maître!

- Sherlock Holmes?

- Ah, non, non! É o autor, Sir Arthur Conan Doyle, que saúdo, e não Sherlock Holmes. Na realidade, estas histórias de Sherlock Holmes são muito artificiais, estão cheias de sofismas e são muito forçadas. Mas a arte de escrever... ah, isso é absolutamente diferente! O prazer da linguagem, a criação, sobretudo, da magnífica personagem que é o doutor Watson... Ah, isso foi, deveras, um triunfo!

Voltou a suspirar e a abanar a cabeça, e murmurou, inspirado, sem dúvida, por uma natural associação de ideias:

- Há muito tempo que não tenho notícias do cher Hastings de quem me tem ouvido falar tantas vezes. Foi uma ideia tão absurda ir-se enterrar na América do Sul, onde há constantes revoluções!

- Não é só na América do Sul que tal acontece. Hoje em dia, há revoluções em todo o mundo.

- Não falemos da bomba - pediu Poirot. - Se tiver de ser, será; mas não discutamos o assunto.

- Para ser franco, vim com a intenção de discutir algo muito diferente consigo.

- Ah! Vai-se casar? Estou encantado, mon cher encantado!

- Porque pensou em semelhante coisa? Não se trata disso!

- Acontece... acontece todos os dias. - Talvez, mas não a mim - afirmei, com veemência. - Na realidade, vim-lhe contar que se me deparou um interessante problema, no campo do assassínio.

- Deveras? Um interessante problema no campo do assassínio... e veio apresentar-mo. Porquê?

- Bem... - senti-me levemente embaraçado.Pensei... pensei que gostaria.

Poirot fitou-me, pensativo, e acariciou suavemente o bigode.

- O dono é muitas vezes bondoso com o seu cão - murmurou, por fim. - Sai com ele, atira-lhe uma bola... Mas o cão também é capaz de ser bondoso com o seu dono. Mata um coelho ou um rato e deposita-o aos pés do dono. E que faz, nessas alturas? Agita a cauda.

Não pude deixar de rir.

- Estou a agitar a cauda?

- Creio que está, meu amigo... sim, creio que está.

- Muito bem, e que diz o dono? Quer ver o rato do cãozinho? Quer saber tudo a seu respeito?

- Naturalmente. Trata-se de um crime que, na sua opinião, me interessará?

- O que me preocupa é que não faz sentido.

- Impossível. Tudo faz sentido. Tudo!

- Então tente encontrar o disto. Eu não consigo. Aliás, nem se trata de nada relacionado comigo. Vi-me metido no assunto casualmente. Pode, até, tornar-se tudo muito simples, quando o morto for identificado.

- Está a falar sem ordem nem método - observou Poirot, severamente.

- Peço-lhe que me conte os factos. Disse que se tratou de um assassínio, não disse?

- Sim, foi um assassínio. Ora escute...

Descrevi-lhe, em pormenor, o que se passara em Wilbraham Crescent, 19. Hercule Poirot recostou-se, fechou os olhos e tamborilou docemente no braço da poltrona, enquanto eu falava. Quando acabei, deixou passar um longo momento, antes de perguntar:

- Sans blague?

- Oh, absolutamente!

- Espantoso! - repetiu, sílaba por sílaba, como se saboreasse a palavra: - Espan-to-so! - Depois continuou a tamborilar no braço da poltrona e a acenar devagarinho com a cabeça.

- Então? - acabei por perguntar, impaciente. Que tem a dizer?

- Mas que quer que eu diga?

- Quero que me dê a solução. O senhor deu-me sempre a entender que era perfeitamente possível recostar-se na cadeira, pensar no assunto e apresentar uma solução, que era desnecessário andar a interrogar pessoas e a procurar pistas.

- Foi essa, sempre, a mínha opinião.

- Bem, prove-o. Apresentei-lhe os factos e agora quero uma resposta.

- Assim sem mais nem menos, hem? Mas é preciso saber muito mais coisas, mon ami. Estamos apenas no princípio dos factos, não é verdade?

- Continuo a querer que diga qualquer coisa.

- Compreendo. Uma coisa é certa: deve ser um crime muito simples:

- Simples?! - perguntei, estupefacto.

- Naturalmente.

- Deve ser simples, porquê?

- Porque parece muito complexo. Se tem de parecer, necessariamente, complexo, deve ser simples. Compreende?

- Não juraria...

- O que me disse foi curioso - murmurou Poirot. - Creio... sim, há algo que me é familiar, nessa história. Onde... quando... vi qualquer coisa?...

- A sua memória deve ser um vasto arquivo de crimes. Mas não se pode lembrar de todos, pois não?

- Infelizmente, não. Mas, de vez em quando, as minhas reminiscências são úteis. Lembro-me de que, em Lieja, um fabricante de sabões envenenou a mulher, a fin de casar com uma estenógrafa loura. O crime formou, digamos, um padrão. Mais tarde, muito mais tarde, esse padrão voltou a apresentar-se e eu reconheci-o. Desta vez tratava-se do rapto de um pequinês, mas o padrão era o mesmo. Procurei o equivalente do fabricante de sabões e da estenógrafa loura... e voilà! Agora voltei a encontrar no que me contou a mesma sensação de reconhecimento.

- Relógios? - sugeri, esperançado. - Falsos agentes de seguros?

- Não, não...

- Cegas?

- Não, não, não. Não me confunda.

- Decepcionou-me, Poirot. Pensei que me daria logo a resposta...

- Mas, meu amigo, por enquanto ainda me apresentou, apenas, um padrão. Há muito mais coisas a averiguar. Possivelmente o homem será identificado, pois a Polícia é excelente, nessas coisas. Tem os seus cadastros criminais, pode publicar a fotografia do indivíduo, tem acesso à lista das pessoas desaparecidas, pode mandar examinar cientificamente o vestuário do morto, etc., etc. Tem muitos outros métodos ao seu dispor. O homem será, sem dúvida, identificado.

- Portanto, de momento, não há nada a fazer. É isso que pensa?

- Há sempre qualquer coisa a fazer - afirmou Poirot, severamente.

- Como, por exemplo?

- Fale com os vizinhos - ordenou-me, de dedo enfaticamente esticado.

- Já falei. Acompanhei Hardcastle, quando ele os interrogou. Não sabem nada útil.

- Ora, ora! Isso é o que você pensa, mas eu garanto-lhe que não pode ser assim. Pergunta-lhes se viram algo suspeito, eles respondem que não e você pensa que está tudo dito. Não é a isso que me refiro quando digo que fale com os vizinhos. Fale com eles e deixe-os falar consigo. Nas suas conversas encontrará sempre uma pista, seja onde for. Podem falar dos seus jardins, ou das suas mascotes, um dos seus cabeleireiros, ou dos seus alfaiates, ou dos seus amigos, ou das comidas que apreciam... Mas há sempre uma palavra que derrama luz. Disse-me que nessas conversas não houve nada de útil, mas eu garanto-lhe que não é possível. Se as pudesse repetir por palavra.

- Praticamente, posso, pois estenografei o que se disse, de acordo com o meu papel de "sargento"... Mandei dactilografar tudo e trouxe-lhe uma cópia. Aqui está.

- Ah, mas é um bom rapaz, um excelente rapaz! Procedeu muitíssimo bem, muitíssimo bem! "e vous remercie infiniment."

Senti-me deveras embaraçado.

- Tem mais algumas sugestões a fazer?

- Tenho sempre sugestões. Há a tal rapariga. Pode falar com ela. Visite-a. Já são amigos, não são? Não a apertou nos braços quando ela fugiu, aterrorizada, da casa onde se deu o crime?

- A leitura de Garry Gregson afectou-o - resmunguei. - Adoptou o estilo melodramático.

- Talvez tenha razão... Costumamos deixar-nos contagiar pelo estilo da obra que estamos a ler.

- Quanto à rapariga...

Poirot olhou-me interrogadoramente, quando me calei e pediu:

- Continue.

- Não gostaria... não quero...

- Ah, é isso! No fundo, crê que ela está de qualquer modo implicada no caso.

- Não creio nada! O facto de ela estar presente deveu-se a absoluta e pura coincidência.

- Não, mon ami, não foi pura coincidência! Sabe muito bem que não foi, e até mo disse. Pediram-lhe pelo telefone que comparecesse, mencionaram especificamente o seu nome.

- Mas ela não sabe porquê...

- Não pode ter a certeza de que ela não sabe porquê. É muito provável que saiba e oculte o facto.

- Não creio - redargui, obstinado.

- É, até, possível que você descubra porquê, ao conversar com ela, mesmo que a pequena não tenha consciência da verdade.

- Não vejo muito bem como... quero dizer, mal a conheço...

Poirot fechou de novo os olhos.

- Há um momento, no decorrer da atracção entre duas pessoas de sexos opostos, em que essa afirmação é verdadeira. Suponho que se trata de uma jovem atraente?

- Bem... sim. Muito atraente.

- Falará com ela, visto já serem amigos, e arranjará um pretexto qualquer para voltar a visitar a cega e conversar com ela - ordenou-lhe Poirot. - Vá, também, a esse tal gabinete de dactilografia, talvez com a desculpa de querer um manuscrito dactilografado, e trave amizade com uma das outras jovens empregadas. Depois de conversar com toda essa gente, visite-me de novo e conteme tudo quanto lhe disseram.

- Tenha dó!

- Não é caso para ter dó, pois você vai gostar.

- Parece esquecer que tenho o meu próprio trabalho...

- Trabalhará melhor se se distrair um pouco.

Levantei-me, a rir.

- Bem, o senhor é o médico! Tem mais alguns conselhos sensatos para me dar? Por exemplo, que pensa da estranha história dos relógios?

Poirot recostou-se na cadeira, fechou os olhos e as palavras que pronunciou foram absolutamente inesperadas:

"Chegou o momento, disse a Morsa,
De falar de muitas coisas:
De sapatos... e barcos... e lacre...
E couves... e reis...
E porque ferve o mar...
E se os porcos têm asas."

Abriu os olhos e acenou com a cabeça.

- Compreende? - perguntou-me. - Citação de "A Morsa e o Carpinteiro", Alice do Outro Lado do Espelho.

- Exactamente. Neste momento, é o melhor que posso fazer por si, mon cher. Medite no assunto.
 

***

Foi grande a afluência de público ao inquérito.

Emocionada por ter havido um assassínio no seu seio, Crowdean compareceu com grandes esperanças de revelações sensacionais. No entanto, os resultados não poderiam ser menos negativos. Sheila Webb escusava de ter receado a provação que a esperava, pois em menos de dois minutos estava despachada.

Tinham telefonado para o Gabinete Cavendish a mandá-la apresentar-se em Wilbraham Crescent, 19; ela apresentara-se e, de acordo com as instruções recebidas, entrara na sala. Encontrara o morto e fugira da casa a gritar, para pedir auxílio. Não houve perguntas nem especulações.

Miss Martindale, também chamada a prestar declarações, despachou-se ainda mais depressa. Recebera um telefonema supostamente feito por Miss Pebmarsh, a pedir que mandasse uma estenodactilógrafa, de preferência Miss Sheila Webb, a Wilbraham Crescent, 19, e a dar determinadas instruções. Ela tomara nota da hora exacta do telefonema: 13.49 h.

Miss Pebmarsh, chamada a seguir, negou terminantemente que, no dia em questão, tivesse telefonado ao Gabinete Cavendish a pedir que lhe enviassem uma dactilógrafa.

As palavras do detective-inspector Hardcastle foram breves e desprovidas de qualquer emoção: depois de receber um telefonema, fora a Wilbraham Crescent, 19, onde encontrara o cadáver de um homem.

- Conseguiu identificar o morto? - perguntou-lhe o juiz de instrução.

- Ainda não, excelência. Por esse motivo, solicito que este inquérito seja adiado.

- Muito bem.

Seguira-se o depoimento médico. O Dr. Rigg, cirurgião da Polícia, identificou-se, apresentou as suas qualificações e descreveu a sua chegada a Wilbraham Crescent, 19, e o exame que fizera ao morto.

- Pode indicar aproximadamente a hora da morte, doutor?

- Examinei-o às três e meia da tarde. Calculo que a morte se verificou entre a uma e meia e as duas e meia.

- Não pode ser mais preciso?

- Prefiro não me arriscar. À primeira vista, a hora mais aproximada seriam as duas horas, ou talvez antes, mas há muitos factores que devem ser tomados em consideração: idade, estado de saúde, etc.

- Efectuou uma autópsia?

- Efectuei.

- Qual foi a causa da morte?

- O homem foi apunhalado com uma faca fina e afiada, algo do género, talvez, uma faca de cozinha francesa, de lâmina cónica. A ponta da faca penetrou... - O médico entrou em pormenores técnicos, ao explicar a maneira exacta como a faca penetrara no coração.

- A morte terá sido instantânea?

- Deve ter ocorrido num espaço de muito poucos minutos.

- Seria possível o homem gritar ou debater-se?

- Nas circunstâncias em que foi apunhalado, não.

- Importa-se de nos explicar o que quer dizer com essa frase?

- Examinei certos órgãos e procedi a determinadas análises. É meu parecer que, quando o mataram, se encontrava em estado de coma, devido à administração de uma droga.

- Sabe-nos dizer de que droga se tratou?

- Sei. Hidrato de cloral.

- Sabe-nos dizer como foi administrada?

- Presumivelmente misturada com qualquer espécie de álcool. O efeito do hidrato de cloral é muito rápido.

- Creio que é conhecido em certos meios por "Michey Finn" - observou o juiz de instrução.

- É verdade. A vítima deve tê-lo bebido sem suspeitar e, passados momentos, cambaleou e ficou inconsciente.

- E, na sua opinião, foi apunhalado enquanto estava inconsciente?

- É essa a minha convicção. Isso explicaria a ausência de indícios de luta e o aspecto sereno da vítima.

- Quanto tempo depois de ficar inconsciente o mataram?

- Mais uma vez, não posso ser exacto, pois isso depende, também, da idiossincrasia da vítima. Não despertaria antes de meia hora e poderia permanecer inconsciente muito mais tempo.

- Obrigado, doutor Rigg. Tem alguma indicação quanto ao momento em que o morto comera pela última vez?

- Sei que não almoçara. Havia pelo menos quatro horas que não ingeria alimentos sólidos.

- Obrigado, doutor. Creio que não desejo mais nada.

O juiz de instrução olhou à roda da sala e anunciou:

- O inquérito fica adiado por quinze dias, até vin te oito de Setembro.

Concluída a audiência, as pessoas começaram a sair. Edna Brent, que estivera presente com a maioria das outras empregadas do Gabinete Cavendish, o qual fechara durante a manhã, hesitou, ao sair. Maureen West, uma das suas colegas, perguntou-lhe:

- Que dizes, Edna? Vamos almoçar ao Bluebird? Temos muito tempo... Pelo menos tu tens.

- Não tenho mais tempo do que tu - redargüiu Edna, ofendida. - A Sandy Cat disse-me que apro veitasse o primeiro intervalo para almoçar. É uma esganada! Eu a pensar que disporia de uma hora para fazer umas compras...

- Não seria de esperar outra coisa dela. É, de facto, uma esganada.

Abrimos às duas e temos de estar todas presentes. Estás à espera de alguém?

- Da Sheila, apenas. Não a vi sair.

- Saiu mais cedo, depois de prestar declarações - informou Maureen.

- Saiu com um rapaz novo, mas não vi quem ele era. Vens ou não?

Edna continuou hesitante.

- Vai andando... Preciso de comprar umas coisas.

Maureen afastou-se com outra rapariga. Edna deixou-se ficar e, por fim, encheu-se de coragem e perguntou ao jovem polícia louro que se encontrava à entrada:

- Posso entrar outra vez e falar ao... ao que foi ao escritório? Era um inspector qualquer coisa...

- Inspector Hardcastle?

- Exactamente. Prestou declarações esta manhã.

- Bem... - O polícia olhou para dentro e viu o inspector muito entretido a conversar com o juiz de instrução e o chefe de Polícia do condado. - Ele parece ocupado, neste momento. Se passar mais tarde pela esquadra, ou se me quiser dar algum recado para lhe transmitir... É alguma coisa importante?

- Não, na realidade não é importante... Apenas... enfim, não compreendo como pode ser verdade o que ela disse, porque eu...

Virou as costas, de testa franzida, e meteu, perplexa, pela High Street. Esforçava-se por raciocinar, coisa que nunca fora o seu forte.

Quanto mais tentava recordar-se das coisas com clareza, maior era a confusão do seu espírito.

A certa altura, murmurou, audivelmente:

- Não podia ter sido assim... Não podia ter sido como ela disse.

De súbito, como se acabasse de tomar uma decisão, passou da High Street para a Albany Road e seguiu na direcção de Wilbraham Crescent.

Desde que os jornais tinham anunciado um assassínio em Wilbraham Crescent, 19, juntavam-se todos os dias grandes multidões de curiosos, para verem a casa fatídica. O fascínio que, em certas circunstâncias, simples tijolos e argamassa exercem no espírito do público, é uma coisa deveras misteriosa. Nas primeiras vinte e quatro horas fora necessário destacar para lá um polícia, que mandava as pessoas dispersar, de modo autoritário. Depois o interesse diminuíra, mas não cessara de todo. As furgonetas dos distribuidores de produtos ao domicílio afrouxaram um pouco a velocidade, ao passar; mulheres com carrinhos de bebé paravam quatro ou cinco minutos no passeio fronteiro, de olhos postos na imaculada residência de Miss Pebmarsh; mulheres carregadas de cestos de compras paravam, de olhar ávido, e tagarelavam umas com as outras...

- Foi naquela casa... naquela ali...

- O corpo estava na sala... Não, creio que a sala é a divisão da frente, do lado esquerdo...

- O merceeiro disse-me que foi na do lado direito.

- Talvez. Estive no número dez, e lembro-me perfeitamente de que a casa de jantar ficava do lado direito e a sala do esquerdo...

- Nem parece que a rapariga saiu a gritar desalmadamente...

- Dizem que ele entrou por uma janela das traseiras. Estava a meter as pratas num saco quando a pequena entrou e o encontrou...

- A dona da casa é cega, coitada... Por isso, claro, não sabia o que se estava a passar...

- Oh, mas ela não estava lá nessa altura!

- Julguei que estava. Julguei que estava no primeiro andar e o ouviu...

Oh, meu Deus, tenho de acabar de fazer as compras!

Ouviam-se a toda a hora conversas como estas, ou parecidas. Como que atraídas por um magnate, chegavam a Wilbraham Crescent as pessoas mais inesperadas, que paravam, olhavam e seguiam o seu caminho, depois de satisfeita qualquer necessidade interior.

Foi aí que, ainda intrigada, Edna Brent se encontrou, a acotovelar um pequeno grupo de cinco ou seis pessoas entregues ao passatempo favorito de olhar para "a casa do crime".

Sempre sugestionável, Edna, olhou, também.

Fora, então, ali! Bonitas cortinas nas janelas, um ar muito decente...

e, contudo, tinham lá assassinado um homem com uma faca de cozinha.

Uma vulgar faca de cozinha... Quase toda a gente tinha uma faca de cozinha. ..

Fascinada pelo comportamento das pessoas que a cercavam, Edna olhou, também, e deixou de pensar... Já quase esquecera o que a levara ali...

Estremeceu, ao ouvir uma voz falar-lhe ao ouvido, e virou a cabeça, surpreendida, ao reconhecer a voz.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Notei quando Sheila Webb saiu tranquilamente do tribunal. Depusera muito bem, um bocadinho nervosa, mas sem exagero. Parecera, de facto, muito natural. Que diria Beck? "Excelente desempenho!" Parecia-me ouvilo!

Ouvi, surpreendido, o fim do depoimento do Dr. Rigg, Dick Hardcastle não me dissera nada, mas devia sabê-lo, e saí, atrás dela.

- Afinal não custou muito, pois não? - perguntei-lhe, quando a alcancei.

- Não. Foi, até, fácil. O juiz de instrução foi muito simpático.

- Hesitou, antes de perguntar: Que sucederá, a seguir?

- O inquérito será adiado, até se recolherem mais provas.

Possivelmente durante quinze dias ou até identificarem o morto.

- Pensa que o identificarão?

- Oh, sim! Não tenho dúvidas nenhumas a esse respeito. - Hoje está frio - murmurou, com um pequeno calafrio.

Pessoalmente, parecia-me que estava, até, um pouco quente.

- Que diz a um almoço mais cedo do que o costume? - sugeri. - Não tem de voltar para o escritório, pois não?

- Não. Está fechado até às duas horas.

- Então venha daí. Gosta de comida chinesa? Há um restaurantezinho chinês ao fim da rua...

Sheila hesitou.

- Preciso de fazer umas compras...

- Pode fazê-las depois.

- Não posso, pois algumas das lojas fecham da uma às duas.

- Nesse caso, encontra-se comigo mais tarde? Daqui a meia hora, está bem?

Respondeu que sim.

Fui até à beira-mar e sentei-me num abrigo. A brisa marinha batia-me em cheio, de frente.

Precisava de pensar. É sempre irritante verificar que outras pessoas sabem mais do que nós acerca de nós próprios, mas a verdade é que o velho Beck, Hercule Poirot e Dick Hardcastle tinham visto claramente o que me via, agora, forçado a admitir.

Interessava-me por aquela rapariga, interessava-me como nunca me interessara por nenhuma.

Não era a sua beleza. Ela era bonita de um modo especial, mas apenas bonita, mais nada. Também não era o seu sex appeal. Já encontrara isso muitas vezes e estava imunizado.

Tratava-se, somente, do seguinte: reconhecera, quase mal a conhecera, que era a minha pequena. E não sabia absolutamente nada a seu respeito!

Passavam poucos minutos das duas horas quando entrei na esquadra e perguntei por Dick. Encontrei-o sentado à secretária, às voltas com a papelada. Levantou a cabeça e perguntou-me o que pensava do inquérito.

Respondi-lhe que me parecera muito decente e cavalheiresco.

- Temos muito jeito para estas coisas, no nosso país - rematei.

- Que pensou do depoimento médico?

- Uma surpresa. Porque não me tinha dito?

- Você não estava cá. Consultou o seu especialista?

- Consultei.

- Creio que me lembro vagamente dele. Uns grandes bigodes...

- Grandíssimos. São o seu orgulho.

- Deve ser muito velho.

- É velho, mas não está gagá.

- Que motivo o levou, na realidade, a visitá-lo? Foi apenas por generosidade humana?

- Tem uma mentalidade muito desconfiada, de polícia, Dick. Foi principalmente por generosidade, mas confesso que também me inspirou uma certa dose de curiosidade. Desejava ouvir o que tinha a dizer acerca do nosso caso. Sempre afirmou, com o que me pareceu um grande descaramento, ser fácil decifrar qualquer mistério criminal. Bastava recostar-se na cadeira, juntar simetricamente as pontas dos dedos, fechar os olhos e pensar. Quis pô-lo à prova.

- E então, ele recostou-se na cadeira, etc., etc.?

- Exactamente.

- E que disse? - inquiriu Dick, com certa curiosidade.

- Disse que devia ser um assassínio muito simples.

- Muito simples, meu Deus! - exclamou Hardcastle, indignado. - Simples porquê?

- Tanto quanto me foi dado compreender, porque se apresentava de modo tão complexo.

- Não percebo. - Dick abanou a cabeça. - Parece uma daquelas coisas muito inteligentes que os jovens de Chelsea dizem, mas que eu não percebo. Mais alguma coisa?

- Recomendou-me que falasse com os vizinhos e eu garanti-lhe que já se fizera isso.

- Os vizinhos são, agora, ainda mais importantes, em virtude do depoimento médico.

- Isso significa presumir-se que o tipo foi drogado em qualquer outro lado e transferido para o número dezanove, a fim de ser assassinado? - As palavras recordaram-me um pormenor: - Tem graça, isto foi, mais ou menos, o que Mistress... a mulher dos gatos disse. Na altura pareceu-me uma observação muito interessante.

- Oh, aquela gataria! - exclamou Dick, com um calafrio de repugnância. - A propósito, ontem encontrámos a arma.

- Sim? Onde?

- Na gataria. Presumivelmente o assassino atirou-a para lá, depois do crime.

- Não tinha impressões digitais, claro?

- Fora cuidadosamente limpa e podia pertencer a qualquer pessoa.

Um bocadinho usada e afiada há pouco tempo.

- Podemos supor, então, que ele foi drogado e depois levado para o número dezanove... num automóvel? Ou como?

- Podia ter sido levado de uma das casas com jardim contíguo.

- Seria um bocadinho arriscado, não seria?

- Exigiria audácia e bom conhecimento dos hábitos da vizinhança.

Seria mais natural transportarem-no de carro.

- O que não deixaria, também, de ser arriscado. As pessoas reparariam num automóvel.

- Ninguém reparou. Admito, no entanto, que o assassino não podia adivinhar se reparariam ou não.

Qualquer transeunte poderia notar se, no dia em questão, estivesse um carro parado defronte do número dezanove...

- Pergunto a mim mesmo se notaria. Está toda a gente tão habituada aos automóveis! A não ser, evidentemente, que se tratasse de um carro luxuoso e fora do vulgar, o que é pouco provável.

- Além disso, foi na hora do almoço. Já pensou, Colin, que Miss Millicent Pebmarsh volta à cena? Pareceu descabido que uma cega pudesse apunhalar um homem saudável, mas se ele estava drogado...

- Por outras palavras, case ele foi lá para ser "morto", como a nossa Mistress Hemming disse, chegou sem qualquer suspeita, de acordo com uma entrevista previamente marcada, aceitou um copo de xerez ou um cocktail... o "Michey Finn" fez efeito e Miss Pebmarsh deitou mãos à obra.

Depois lavou o copo da droga, arranjou o corpo muito bem, no chão, atirou a faca para o quintal da vizinha e saiu, como de costume.

- Telefonou, de caminho, ao Gabinete Cavendish...

- Mas para que faria semelhante coisa? E porque pediria, especialmente, Sheila Webb?

- Quem me dera saber! Ela sabe? Refiro-me à pequena.

- Ela diz que não.

- Ela diz que não! - repetiu Hardcastle, irritado. - Pergunto-lhe o que pensa você do assunto?

Fiquei calado, uns momentos. Que pensava? Tinha de decidir, imediatamente, o meu curso de acção. A verdade descobrir-se-ia, no fim, e Sheila não seria prejudicada, se era o que eu julgava.

Bruscamente, tirei um postal da algibeira e pu-lo em cima da secretária.

- Sheila recebeu isto pelo correio.

Tratava-se de um postal ilustrado de uma série dedicada aos edifícios de Londres e representava o Tribunal Criminal Central. Hardcastle virou-o. Do lado direito estava o endereço, em letras de imprensa muito certinhas, Miss R. S. Webb, Palmerston Road, 14, Crowdean, Sussex, e do lado esquerdo, também em letras de imprensa, a palavra LEMBRE-SE! e, mais abaixo, 4:13.

- Quatro e treze... - murmurou Hardcastle.Era a hora indicada pelos relógios, naquele dia. O Old Bailey, a palavra "lembre-se!" e uma hora: quatro e treze. Deve-se relacionar com qualquer coisa.

- Ela afirma não saber o que significa, e eu acredito.

Hardcastle acenou com a cabeça.

- Guardo isto. Talvez nos permita descobrir alguma coisa.

- Espero que sim. - Havia um certo embaraço, entre nós, e por isso acrescentei, para tentar desanuviar a atmosfera: - Tem aí muita papelada.

- O costume. A maior parte não presta para nada. O morto não tinha registo criminal e, portanto, as suas impressões digitais não estão arquivadas. Praticamente, tudo isto foi enviado por gente que diz tê-lo reconhecido.

Leu algumas passagens:

- "Caro senhor: Tenho quase a certeza de que a fotografia publicada no jornal era de um homem que vi outro dia apanhar um comboio em Willesden. Falava sozinho e parecia muito excitado. Mal o vi, pensei que se passava qualquer coisa..." "Caro senhor: Creio que o homem se parece muito com um primo do meu marido, chamado John. Emigrou para a Africa do Sul, mas é possível que tenha regressado. Usava bigode, quando partiu, mas, claro, podia tê-lo rapado..." "Caro senhor: Vi o homem da fotografia numa composição do metropolitano, a noite passada. Pareceu-me, nessa altura, haver nele algo estranho. .. " Para não falar, claro, de todas as mulheres que reconhecem o marido. Palavra, as mulheres parecem desconhecer o verdadeiro aspecto dos maridos! Também há algumas mães que julgam reconhecer um filho que não viam há vinte anos... Isto é uma lista de pessoas desaparecidas, mas não contém nada que nos ajude. "George Barlow, sessenta e cinco anos, desaparecido de casa. A mulher receia que tenha perdido a memória. E uma nota, a seguir: "Deve muito dinheiro e tem sido visto com uma viúva ruiva. É quase certo que fugiu propositadamente." Outro: "Professor Hargraves, que devia proferir uma conferência na terça-feira passada. Não compareceu nem mandou nenhum telegrama nem carta de desculpas." Hardcastle pareceu não ligar importância ao professor Hargraves.

- Deve ter pensado que a conferência era na semana anterior ou na semana seguinte. Naturalmente julgou que disse à governanta aonde ia, mas não disse.

Acontecem muitos casos assim.

O telefone tocou e Hardcastle atendeu:

- Sim... O quê?!... Quem o encontrou?... Disse o nome?... Compreendo, continue.

Desligou e olhou para mim. O seu rosto modificara-se, estava muito sério e exprimia uma fúria malcontida.

- Encontraram uma rapariga morta numa cabina telefónica de Wilbraham Crescent - anunciou.

- Morta? Como?

- Estrangulada. Com o seu próprio lenço de pescoço!

Senti-me gelar subitamente.

- Que rapariga? Não é...

Hardcastle lançou-me um olhar frio e perscrutador, que não me agradou, e respondeu:

- Tranquilize-se, não é a sua namorada. O polícia parece saber de quem se trata, disse que era uma rapariga que trabalhava no mesmo escritório de Sheila Webb e se chamava Edna Brent.

- Quem a encontrou? O polícia?

- Miss Waterhouse, a mulher do número dezoito.

Parece que foi à cabina para telefonar, em virtude de o seu telefone estar avariado, e encontrou a pequena caída.

A porta abriu-se e um polícia informou:

- O doutor Rigg telefonou a dizer que ia a caminho, inspector.

Encontrar-se-á consigo em Wilbraham Crescent.

Hora e meia depois, o detective-inspector Hardcastle sentou-se à secretária e aceitou, aliviado, uma chávena de chá. O seu rosto ainda conservava a mesma expressão furiosa.

- Inspector, Pierce desejava falar-lhe.

- Pierce? Ah, sim, mande entrar!

Entrou um polícia novo e muito nervoso.

- Desculpe, senhor inspector, mas achei que seria melhor dizer-lhe...

- Dizer-me o quê?

- Depois do inquérito, eu estava de serviço à porta. A pequena... a que mataram... falou comigo.

- Falou consigo, hem? E que lhe disse?

- Queria falar com o senhor inspector...

Hardcastle endireitou-se, subitamente interessado.

- Queria falar comigo? E explicou porquê?

- Não... Lamento, senhor inspector, se... se não fiz o que devia.

Perguntei-lhe se não me podia deixar qualquer recado ou... ou vir à esquadra, mais tarde.

O senhor inspector estava a conversar com o chefe de Polícia e com o juiz de instrução e eu pensei...

- Bolas! - interrompeu-o Hardcastle, entredentes. - Não lhe podia ter dito que esperasse até eu estar livre?

- Peço desculpa, senhor inspector... - O jovem corou. - Se eu adivinhasse, teria procedido assim, mas não pensei que fosse importante...

Creio que ela própria não pensava que fosse importante. Disse que se tratava de qualquer coisa que a preocupava...

- Qualquer coisa que a preocupava? - repetiu o inspector, e ficou calado, a recordar certos pormenores.

Tratava-se da rapariga que se cruzara com ele na rua, quando se dirigia a casa de Mrs. Lawton, da rapariga que quisera falar com Sheila Webb, que o reconhecera, ao passar por ele, e hesitara um momento, como se não soubesse se o deveria deter ou não... Ela devia estar preocupada com qualquer coisa e ele falhara, não compreendera com a rapidez necessária.

Absorto no seu objectivo de descobrir um pouco mais acerca dos antecedentes de Sheila Webb, ignorara um indício que, pelos vistos, era importante. A pequena estava preocupada... Porquê? Provavelmente nunca o saberiam.

- Continue, Pierce, conte-me tudo quanto se lembrar. - E acrescentou bondosamente, pois era um homem justo: - Você não podia adivinhar que era importante.

Sabia que não valeria a pena descarregar a sua cólera e a sua frustração no pobre do rapaz. Como podia ele ter adivinhado? Parte do treino que recebera consistira precisamente em prepará-lo para saber manter a disciplina, para se certificar de que os seus superiores só eram incomodados em momentos e lugares convenientes e oportunos. Se a pequena tivesse dito que era importante ou urgente, seria diferente. Mas ele recordava-se da primeira vez que a vira, no escritório, e sabia que ela não pertencia a esse género. Era uma criatura de raciocínio lento, provavelmente sem confiança no seu próprio processo mental.

- Lembra-se do que se passou, exactamente, e do que ela lhe disse, Pierce?

O moço fitou-o cheio de gratidão e respondeu:

- Bem, senhor inspector, ela aproximou-se, quando todos saíam, hesitou um momento e olhou à sua volta, como se procurasse alguém. Mas não creio que fosse o senhor inspector; devia ser qualquer outra pessoa.

Depois foi ter comigo e perguntou-me se podia falar com o inspector, com o que prestara declarações.

Eu vi, como já disse, que o senhor inspector estava ocupado, com o chefe de Polícia, e expliquei-lhe que, naquele momento, não a podia atender. Mas perguntei-lhe se não me queria deixar nenhum recado ou se não podia ir, mais tarde, à esquadra. Parece-me que ela disse que estava bem. Perguntei-lhe se era alguma coisa importante...

- E ela? - perguntou Hardcastle, todo inclinado para a frente.

- Disse que não, que se tratava de uma coisa que não compreendia como poderia ser como ela dissera.

- Não compreendia como o que ela dissera poderia ser assim? - interpretou Hardcastle.

- Sim, senhor inspector. Não tenho a certeza das palavras exactas, mas suponho que foram: "Não compreendo como o que ela disse pode ser verdade." Estava de testa franzida e parecia intrigada. Mas eu perguntei-lhe se era importante e ela respondeu que não.

A rapariga dissera que não era importante... a mesma rapariga que, pouco depois, fora encontrada estrangulada, numa cabina telefónica...

- Estava alguém perto, quando ela falou consigo?

- Estavam muitas pessoas, que vinham a sair. Foi muita gente assistir ao inquérito, pois o assassínio despertou muita curiosidade, sobretudo por causa da maneira como os jornais se lhe referiram...

- Não se lembra de alguém em especial, que estivesse perto? Por exemplo, alguma das pessoas que prestaram declarações?

- Infelizmente, não me lembro de ninguém em especial, senhor inspector.

- Paciência. Está bem, Pierce, pode ir. Se se lembrar de mais alguma coisa, informe-me imediatamente.

O inspector tentou dominar a sua cólera crescente, as culpas que sentia. A pequena, aquela rapariga com cara de coelho, soubera alguma coisa... Enfim, talvez não soubesse, mas vira ou ouvira qualquer coisa que a preocupara. E a preocupação aumentara, depois de ter assistido ao inquérito. Que seria? Algo relacionado com as declarações feitas? Algo relacionado com as declarações de Sheila Webb, provavelmente... Fora a casa de Mrs. Lawton, dois dias antes, a fim de falar com Sheila. Mas porque não falara com ela no escritório? Porque desejara falar-lhe em particular? Saberia alguma coisa acerca de Sheila que a intrigava? Desejaria pedir a Sheila uma explicação, mas uma explicação particular, sem ser à frente das outras colegas? Assim parecia. Sim, assim parecia... Depois de mandar Pierce embora, deu algumas instruções ao sargento Cray.

- Que terá a pequena ido fazer a Wilbraham Crescent? - perguntou-lhe o sargento.

- Também tenho estado a pensar nisso. É possível, evidentemente, que se tratasse de simples curiosidade, que quisesse ver a casa... É uma reacção natural; metade da população de Crowdean parece sentir o mesmo.

- A quem o diz, inspector!

- Por outro lado, também pode ter ido visitar alguém que lá more...

Quando o sargento saiu, o inspector escreveu três números no seu mata-borrão, cada um com um ponto de interrogação à frente: "20?" "19?" "18?" A seguir escreveu os nomes correspondentes: Hemming, Pebmarsh, Waterhouse. As três casas do crescente superior estavam fora de causa; se quisesse visitar uma delas. Edna Brent não iria pela estrada inferior.

Hardcastle estudou as três possibilidades.

Começou pelo número 20. A faca utilizada no primeiro assassínio fora lá encontrada. O mais provável parecia ser que tivesse sido atirada do jardim do 19, mas não tinham a certeza a esse respeito. Podia ter sido atirada para o meio dos arbustos pela própria moradora do número 20. Ao ser interrogada, a única reacção de Mrs. Hemming, fora de indignação:

"Que maldade, atirarem uma faca tão afiada aos meus gatos!" Que relação havia entre Mrs. Hemming e Edna Brent? Nenhuma.

O inspector considerou, a seguir, Miss Pebmarsh.

Edna Brent teria ido a Wilbraham Crescent a fim de visitar Miss Pebmarsh? Esta prestara declarações, no inquérito... Teria dito alguma coisa que despertara suspeitas a Edna? Mas a pequena já estava preocupada antes do inquérito. Já saberia, então, alguma coisa acerca da cega? Saberia, por exemplo, da existência de um laço qualquer entre Millicent Pebmarsh e Sheila Webb? Isso coadunar-se-ia com as palavras que dissera a Pierce: "Não compreendo como o que ela disse possa ser verdade." "Conjecturas, só conjecturas!", pensou, furioso.

E o número 18? Miss Waterhouse encontrara o cadáver. Por deformação profissional, o inspector desconfiava das pessoas que encontravam cadáveres.

Encontrar o cadáver evitava tantas dificuldades ao assassino!

Poupava as maçadas de arranjar um álibi; justificava o aparecimento de quaisquer possíveis impressões digitais... De certo modo, era uma excelente situação... desde que não existisse nenhum móbil evidente. Ora aparentemente, não havia nenhum motivo para Miss Waterhouse desejar matar Edna Brent, Miss Waterhouse não depusera no inquérito, mas talvez tivesse assistido. "Teria Edna alguma razão para saber, ou supor, que fora Miss Waterhouse que se fizera passar por Miss Pebmarsh e pedira, telefonicamente, que mandassem uma estenodactilógrafa ao número 19?

Mais conjecturas! Havia, evidentemente, a própria Sheila Webb...

Hardcastle estendeu a mão para o telefone e ligou para o hotel onde Colin Lamb estava hospedado. Pouco depois, falava com o amigo.

- Hardcastle. Que horas eram quando almoçou com Sheila Webb?

Seguiu-se uma pausa, antes de Colin redarguir:

- Como sabe que almoçámos juntos?

- Desconfio. Almoçaram, não almoçaram?

- Porque não havia de almoçar com ela?

- Não se trata disso. Perguntei-lhe apenas a que horas foi. Foram almoçar assim que terminou o inquérito?

- Não. Ela precisava de fazer umas compras e nós encontrámo-nos no restaurante chinês da Market Street à uma hora.

- Hum... - Hardcastle consultou os seus apontamentos e verificou que Edna Brent morrera entre o meio-dia e meia e a uma hora.

- Não quer saber o que comemos?

- Não se abespinhe. Só quis saber a hora exacta. É uma questão de rotina.

- Compreendo.

Seguiu-se nova pausa. Por fim o inspector disse, a tentar aliviar a tensão:

- Se não tem nada que fazer esta noite...

Mas o outro interrompeu-o:

- Vou-me embora. Estou a fazer as malas. Esperava-me uma ordem de marcha para o estrangeiro.

- Quando volta?

- Sabe-se lá! Talvez daqui a uma semana, talvez mais tarde... talvez nunca! Não tenho a certeza - respondeu Colin, e desligou.

Hardcastle chegou a Wilbraham Crescent, 19, precisamente quando Miss Pebmarsh vinha a sair.

- Conceda-me um momento, Miss Pebmarsh.

- É... é o inspector Hardcastle, não é?

- Sou. Posso falar consigo?

- Não quero chegar tarde ao Instituto. Será demorado?

- Três ou quatro minutos, apenas.

A cega voltou para dentro e o inspector seguiu-a.

- Já ouviu contar o que sucedeu esta tarde?

- Sucedeu alguma coisa?

- Julguei que soubesse. Mataram uma rapariga na cabina telefónica do fundo da estrada.

- Mataram? Quando?

- Há duas horas e três quartos - respondeu o inspector, ao olhar para o relógio de pé.

- Não ouvi dizer nada. - Na voz de Miss Pebmarsh soou momentaneamente uma espécie de cólera, como se a sua incapacidade se fzesse sentir, de súbito, de uma maneira particularmente dolorosa. - Uma rapariga assassinada! Quem foi?

- Chamava-se Edna Brent e trabalhava no Gabinete Cavendish.

- Outra rapariga de lá! Também fora mandada chamar, como essa Sheila... não sei quê?

- Creio que não. Ela não a veio visitar, aqui a casa?

- Aqui? Evidentemente que não.

- Estaria cá, se ela tivesse vindo?

- Não tenho a certeza. A que horas disse que foi?

- Cerca do meio-dia e meia hora, ou um pouco mais tarde.

- Sim, a essa hora estaria em casa.

- Aonde foi, depois do inquérito?

- Vim direita a casa. - Deixou passar um momento e perguntou, por sua vez: - Porque pensou que essa pequena me podia ter visitado?

- Bem, esteve no inquérito, esta manhã, viu-a lá e deve ter tido qualquer motivo para vir a Wilbraham Crescent. Que saibamos, não conhecia ninguém desta rua.

- Mas por que motivo me viria visitar, só por me ter visto no inquérito?

- Bem... - O inspector sorriu, mas ao compreender que Miss Pebmarsh não o via tentou impregnar as palavras desse sorriso: - Nunca se sabe do que as jovens são capazes. Talvez quisesse apenas um autógrafo, ou qualquer coisa desse género.

- Um autógrafo! - exclamou a cega, com desdém. - Enfim, talvez a ideia não seja tão despropositada como parece; essas coisas acontecem, realmente.Abanou a cabeça e acrescentou: - Garanto-lhe no entanto, inspector, que hoje não aconteceu. Ninguém veio a minha casa desde que regressei do inquérito.

- Obrigado, Miss Pebmarsh. Achámos que devíamos averiguar todas as possibilidades.

- Que idade tinha ela?

- Dezanove anos, suponho.

- Dezanove? Tão nova! - A sua voz modificou-se um pouco. - Tão nova... Pobre criança! Mas quem desejaria matar uma rapariga dessa idade?

- Também são coisas que acontecem.

- Era bonita, atraente... sexy?

- Não. Gostaria de ser, creio, mas não era.

- Então não foi por isso - declarou Miss Pebmarsh, e abanou de novo a cabeça. - Sinto muito... acredite que sinto muitíssimo não o poder ajudar, inspector Hardcastle.

O inspector saiu, impressionado, como sempre, pela personalidade de Miss Pebmarsh.

Miss Waterhouse também estava em casa. Fiel ao seu tipo, abriu a porta com brusquidão, como se desejasse apanhar alguém a fazer o que não devia.

- Respondeu, sem dúvida, a todas as nossas perguntas - admitiu Hardcastle. - No entanto, não é possível fazê-las todas ao mesmo tempo...

Precisamos de averiguar mais alguns pormenores.

- Não compreendo porquê! Foi um choque tão desagradável! - Olhou-o em ar de censura, como se considerasse que a culpa era só dele. - Mas entre, entre; não pode ficar o dia todo no tapete. Entre, sente-se e pergunte-me o que quiser... embora eu não faça ideia do que me poderá perguntar mais. Como já expliquei, saí para telefonar, abri a porta da cabina e deparou-se-me a rapariga. Nunca apanhei um susto tão grande na minha vida! Fui a correr à procura de um polícia... e, depois, se lhe interessa saber, voltei para casa e tomei uma dose medicinal de brande. Medicinal! - frisou Miss Waterhouse, veementemente.

- Fez muito bem, minha senhora. Desejava perguntar-lhe se tinha a certeza absoluta de que nunca vira, antes, a jovem?

- Posso tê-la visto uma dúzia de vezes e não me lembrar. Quero dizer, ela pode-me ter servido no Woolworth's, pode-se ter sentado a meu lado num autocarro, pode-me ter vendido bilhetes num cinema...

- Era estenodactilógrafa do Gabinete Cavendish.

- Creio que nunca precisei dos serviços de uma estenodactilógrafa.

Talvez ela trabalhasse no escritório do meu irmão, na firma Cainsford & Swettenham... É aí que quer chegar?

- Oh, não! Parece não haver nenhuma relação desse género. Enfim, pensei se ela não teria vindo visitar esta manhã, antes de ser assassinada.

- Se não me teria vindo visitar? Claro que não! Para quê?

- Bem, não sei... Mas diria que, se alguém afirmasse tê-la visto transpor a sua cancela, esta manhã, estaria enganado? - perguntou o inspector, e fitou-a com o ar mais inocente deste mundo.

- Alguém a viu transpor a minha cancela? Tolice! - Miss Waterhouse hesitou. - Pelo menos...

- Pelo menos?...

- Bem, é possível que tenha metido um prospecto por debaixo da porta. Encontrei um no chão, à hora do almoço, qualquer coisa acerca de uma concentração para exigir o desarmamento nuclear. Aparecem sempre coisas dessas, todos os dias. Sim, é possível que ela tenha metido o papel por debaixo da porta... mas não me podem censurar por isso, pois não?

- Claro que não. Agora quanto ao telefonema...

Disse que o seu telefone estava avariado, mas na estação informaram que tal não sucedia...

- Ora, na estação dizem o que lhes apetece! Marquei um número, ouvi um barulho muito estranho, não era o sinal de impedido!, e resolvi ir telefonar à cabina.

Hardcastle levantou-se.

- Lamento tê-la incomodado desta maneira, Miss Waterhouse, mas supõe-se que a pequena veio visitar alguém, no Crescent, e se dirigiu a uma casa que não fica longe daqui.

- E, por isso, têm de incomodar toda a gente que mora no Crescent!

Creio que o mais provável seria ela ter ido aqui ao lado, a casa de Miss Pebmarsh.

- Mais provável porquê?

- Disse que a pequena era estenodactilógrafa do Gabinete Cavendish.

Se a memória não me atraiçoa, constou que Miss Pebmarsh pediu que lhe mandassem uma estenodactilógrafa a casa, no dia em que o homem foi assassinado.

- Disse-se isso, de facto, mas ela nega-o.

- Embora ninguém ligue importância ao que digo, a não ser quando já é demasiado tarde, tenho a impressão de que Miss Pebmarsh está um bocado tarouca. Não me admiraria se telefonasse a pedir estenodactilógrafas e depois se esquecesse. - Mas não crê que ela fosse capaz de assassinar, pois não?

- Nunca falei em assassínio nem em nada parecido! Sei que mataram um homem na casa dela, mas não insinuo, nem por um instante que seja, que Miss Pebmarsh tenha tido alguma coisa a ver com o assunto. Pensei, apenas, que ela podia ter uma daquelas curiosas manias que as pessoas às vezes arranjam. Conheci uma mulher que passava a vida a telefonar para uma pastelaria e a encomendar uma dúzia de merengues. Não os queria e quando lhos levavam dizia que não os encomendara.

- Claro que tudo é possível - admitiu Hardcasde, e despediu-se de Miss Waterhouse.

Parecia-lhe que a entrevistada não fizera justiça aos seus méritos ao apresentar a última sugestão. Por outro lado, se pensava que a rapariga fora vista a entrar em sua casa, e se isso sucedera, de facto, a sugestão de que ela fora ao número 19 era, dadas as circunstâncias, inteligente.

Hardcastle viu as horas e achou que ainda tinha tempo de ir ao Gabinete Cavendish, que reabrira às duas horas da tarde. Talvez as pequenas lhe dessem alguma ajuda... e também lá encontraria Sheila Webb.

Uma das empregadas levantou-se imediatamente, mal o viu entrar.

- É o detective-inspector Hardcastle, não é? Miss Martindale esperao.

A jovem conduziu-o ao gabinete da directora, que se lançou logo ao ataque:

- É vergonhoso, inspector Hardcastle, absolutamente vergonhoso!

Têm de resolver este assunto sem demora, sem perda de tempo! A Polícia tem o dever de dar protecção, e é disso que precisamos neste escritório.

Protecção! Quero que as minhas raparigas sejam protegidas, e estou disposta a consegui-lo, doa a quem doer!

- Estou certo, Miss Martindale, de que...

- Nega que duas das minhas empregadas, duas!, foram vítimas de algum irresponsável que por aí anda à solta? É evidente que se trata de alguém com qualquer espécie de... de mania, de complexo acerca de estenodactilógrafas ou gabinetes de secretariado! Estão a castigar-nos deliberadamente! Primeiro, mercê de um estratagema cruel, atraíram Sheila a uma casa onde encontrou um cadáver, o que bastaria para que uma rapariga nervosa perdesse a cabeça, e agora aconteceu isto! Uma pobre rapariga decente e inofensiva assassinada numa cabina telefónica! Tem de desvendar este mistério, inspector!

- Não há nada que deseje mais ardentemente, Miss Martindale. Vim ver se me podia dar alguma ajuda.

- Ajuda! Que género de ajuda lhe poderei dar? Julga que se soubesse alguma coisa susceptível de ajudar não teria ido a correr contar-lha? Tem de descobrir quem matou a pobre Edna e quem pregou aquela incrível partida a Sheila. Sou severa, inspector, obrigo-as a trabalhar com afinco e não permito que cheguem atrasadas ou se desmazelem com o trabalho. Mas também não consinto que as torturem ou assassinem. Tenciono defendêlas, e tratarei de conseguir que as pessoas a quem o Estado paga para as defender cumpram a sua obrigação! - Quando se calou e olhou para o inspector, parecia mais um tigre em forma de gente do que uma mulher.

- Dê-nos tempo, Miss Martindale.

- Tempo? Lá porque a pateta da pequena morreu, julga que dispõe de todo o tempo do mundo! Se não nos precatarmos, será assassinada outra das minhas pequenas!

- Não creio que tenha razões para recear isso, Miss Martindale.

- Não pensou que esta pequena ia ser assassinada quando esta manhã se levantou, pois não, inspector?

Se tivesse pensado, tomaria, comcerteza, determinadas precauções para a proteger. - São igualmente surpreendentes os factos de terem assassinado uma das minhas pequenas e colocado outra numa situação com prometedora. Tudo quanto tem acontecido é extraordinário, louco! Sim, porque tem de admitir que é um caso louco! Pelo menos a julgar pelo que dizem os jornais. Todos aqueles relógios, por exemplo... Reparei, no entanto, que não foram mencionados no inquérito, esta manhã.

- Esta manhã mencionou-se o menos possível. Pretendia-se apenas o adiamento do inquérito.

- Repito, têm de fazer qualquer coisa! - exigiu Miss Martindale, e voltou a fulminá-lo com o olhar.

- Não me sabe dizer nada, Edna não lhe contou nada que possa ser significativo? Não pareceu preocupada, não a consultou acerca de qualquer assunto?

- Não creio que me consultasse, se estivesse preocupada. Mas que motivos tinha ela para estar preocupada?

O inspector também desejaria que lhe respondesse a essa pergunta, mas compreendeu que não obteria a resposta de Miss Martindale.

Redarguiu, por isso:

- Gostaria de falar com o maior número possível de empregadas suas.

Compreendo que seria pouco provável Edna Brent falar-lhe dos seus receios e preocupações, mas podia ter falado deles às colegas.

- Sim, é muito possível. Elas passam a vida a dar à língua. Mal ouvem os meus passos no corredor, desatam todas a martelar as teclas das máquinas de escrever. Mas que tinham estado a fazer antes? A tagarelar! - Acalmou-se um pouco e prosseguiu: - Neste momento estão só três no escritório. Quer falar com elas agora? As outras saíram, em serviço, mas eu posso-lhe indicar os seus nomes e moradas, se desejar.

- Obrigada, Miss Martindale.

- Suponho que quererá falar com elas sozinhas. Não falariam tão à vontade se eu estivesse presente, a ouvir, pois teriam de admitir que deram à língua nas horas de serviço.

Levantou-se e abriu a porta que dava para o escritório.

- O detective-inspector Hardcastle deseja conversar com vocês.

Podem interromper o trabalho e tentem dizer-lhe tudo quanto saibam e que seja susceptível de ajudar a descobrir quem matou Edna Brent.

Voltou para o gabinete e fechou a porta, com firmeza. Três rostos agarotados e inquietos fitaram o inspector, que fez uma ideia rápida do que poderia esperar de cada uma delas. Uma rapariga loura e forte, de óculos, pareceu-lhe digna de confiança, mas não muito inteligente. Uma moreninha de ar atrevido e penteado que dava a impressão de se ter atravessado no caminho de um ciclone, tinha olhos de quem via as coisas, mas provavelmente não mereceria muita confiança no capítulo de se lembrar delas: retocaria tudo, segundo a sua fantasia. A terceira era uma daquelas jovens que riem por tudo e por nada e concordaria, com certeza, com tudo quanto se dissesse.

- Suponho que sabem todas o que aconteceu a Edna Brent, que trabalhava aqui? - perguntou o inspector, calmamente e sem formalismos.

Três cabeças acenaram afirmativa e veementemente, ao mesmo tempo.

- A propósito, como souberam?

Olharam umas para as outras, como se quisessem decidir quem seria a porta-voz. A honra coube, por mútuo e tácito consentimento, à jovem loura, que se chamava Janet.

- Edna não compareceu no escritório às duas horas, como deveria - explicou a pequena. - E a Sandy Cat ficou muito aborrecida... - começou a morena, Maureen, que se apressou a emendar: - Quero dizer, Miss Martindale.

A terceira moça deu uma gargalhadinha e explicou:

- Sandy Cat é como nós lhe chamamos.

"A alcunha não está nada mal escolhida", pensou o inspector.

- É um autêntico terror, quando lhe apetece - prosseguiu Maureen. - Atira-se positivamente a uma pessoa... Perguntou se Edna dissera alguma coisa, acerca de não vir trabalhar de tarde, e afirmou que de veria, pelo menos, ter apresentado uma justificação. - Disse a Miss Martindale que ela estivera no inquérito, connosco, mas que não a voltáramos a ver de pois nem sabíamos aonde fora - informou a loura.

- E isso era verdade, não era? Não faziam ideia aonde ela fora depois de sair do inquérito?

- Eu convidei-a para almoçar comigo - disse Maureen -, mas ela pareceu preocupada e respondeu que não sabia se iria almoçar. Talvez comprasse qual quer coisa para comer no escritório.

- Isso significa, então, que tencionava voltar ao escritório?

- Oh, sim! Todas sabíamos que tínhamos de voltar.

- Alguma de vocês notou qualquer diferença em Edna, nos últimos dias? Ela pareceu-lhes preocupada? Disse-lhes alguma coisa a esse respeito? Se sabem seja o que for a esse respeito, mesmo que lhes pareça insignificante, peço-lhes que me digam.

Olharam umas para as outras, mas de um modo que não tinha nada de conspiracional.

- Ela andava sempre preocupada com qualquer coisa - disse Maureen.

- Tinha tendência para confundir as coisas e cometer erros... era de compreensão um pouco lenta. - Parecia que estavam sempre a acontecer coisas à Edna - disse a das risadinhas. - Lembram-se quan do o salto lhe caiu do sapato, outro dia? Era uma da quelas coisas que tinham de acontecer à Edna.

- Eu lembro-me - murmurou o inspector, e recordou-se do modo triste como a pobre pequena olhara para o sapato que tinha na mão. - Tive um pressentimento de que sucedera algo terrível à Edna, quando não a vi aparecer às duas horas - observou Janet, a acenar solenemente com a cabeça.

Hardcastle fitou-a com certa antipatia. Desagradavam-lhe as pessoas que se mostravam sempre muito sabichonas, depois de as coisas acontecerem. Tinha a certeza de que a rapariga não pensara tal coisa. O mais provável seria ter pensado: "A Edna ouvirá a Sandy Cat, quando voltar." - Quando souberam o que sucedera?

Voltaram a entreolhar-se e a das gargalhadinhas corou e olhou de soslaio para a porta do gabinete de Miss Martindale.

- Bem, eu... eu saí um bocadinho. Precisava de comprar uns pastéis, para levar para casa, e sabia que quando saísse já não haveria nenhuns. Ao chegar à loja, fica à esquina e conhecem-me lá bem, a empregada perguntou-me: "Ela trabalhava no seu escritório, não trabalhava?" Perguntei a quem se referia e ela respondeu: "A pequena que encontraram morta na cabina telefónica." Nem sei como fiquei! Voltei a correr, disse às outras e, no fim, achámos que devíamos informar Miss Martindale. Foi nesse momento que ela saiu do escritório, como uma fúria, e gritou: "Que estão a fazer? Nem uma máquina a trabalhar!" A loura reatou a história nesse ponto:

- E eu respondi-lhe: "A culpa não é nossa. Soubemos uma coisa terrível, acerca da Edna, Miss Martindale." - E que disse ou fez Miss Martindale?

- Bem, ao princípio não quis acreditar - redarguiu a morena. - Respondeu: "Tolices! Deram ouvidos a mexericos estúpidos, numa loja.

Deve tratar-se de outra rapariga qualquer. Porque havia de ser a Edna?" Voltou para o gabinete, telefonou para a esquadra... e soube que era verdade.

- Mas eu não compreendo... - murmurou Janet, em tom quase sonhador - ... não compreendo por que motivo alguém queria matar a Edna!

- Ela não tinha namorado, nem nada... - acrescentou a morena.

Olharam as três para o inspector, esperançadas, como se ele lhes pudesse dar a solução do problema. Hardcastle suspirou. Não havia ali nada para ele. Talvez uma das outras pequenas o ajudasse mais... E havia, também, Sheila Webb.

- Sheila Webb e Edna Brent eram amigas?

Entreolharam-se, vagamente.

- Não havia nenhuma amizade especial entre elas...

- A propósito, onde está Miss Webb?

Responderam-lhe que estava no Curlew Hotel, a trabalhar para o professor Purdy.

O professor Purdy irritou-se quando teve de interromper o ditado para atender o telefone.

- Quem?... O quê? Quer dizer que está cá, agora?... Bem, diga-lhe que volte amanhã... Pronto, está bem, mande-o subir.

Desligou, a resmungar:

- Acontece sempre qualquer coisa. Como pode uma pessoa fazer algum trabalho sério com estas constantes interrupções? - Olhou para Sheila Webb com leve ressentimento e perguntou-lhe: - Onde íamos, minha querida?

Sheila ia a responder quando bateram à porta.

O professor Purdy teve certa dificuldade em se arrancar às complicações cronológicas de cerca de três milénios atrás...

- Entre! - ordenou, amuado. - De que se trata? Recomendei especialmente que não me incomodassem, esta tarde...

- Lamento muito professor, mas foi-me impossível respeitar os seus desejos. Boas tardes, Miss Webb.

Sheila Webb levantara-se e afastara o livro de apontamentos.

Hardcastle perguntou a si mesmo se fora imaginação sua ou se os olhos da jovem tinham denunciado uma súbita apreensão.

- De que se trata? - repetiu o professor, no mesmo tom irritado.

- Sou o detective-inspector Hardcastle, como Miss Webb poderá confirmar.

- Muito bem. Muito bem.

- Precisava de trocar algumas palavras com Miss Webb.

- Não pode esperar? Neste momento causa muito transtorno.

Estávamos num ponto crítico... Miss Webb estará livre daqui a cerca de um quarto de hora... ou talvez meia hora. Mas... meu Deus, já são seis horas?

- Lamento muito, professor Purdy - redargüiu Hardcastle, em tom firme.

- Está bem, está bem. De que se trata? De alguma violação das leis do trânsito, não? Os polícias de trânsito são muito intransigentes. Outro dia, um teimou comigo que eu deixara o meu carro quatro horas e meia junto de um contador de estacionamento... Tenho a certeza de que não podia ter sido tanto tempo.

- Desta vez é mais grave do que uma violação das leis do trânsito.

- Ah! E Miss Webb não tem carro, pois não, minha querida? - Olhou distraidamente para a rapariga. - Agora me lembro, vem de autocarro. Bem, inspector, de que se trata?

- Trata-se de uma jovem chamada Edna Brent.Virou-se para Sheila Webb e acrescentou: - Creio que já ouviu falar do assunto?

Ela fitou-o. Olhos bonitos, cor de centáurea-azul. Lembravam-lhe alguém.

- Edna Brent? - Sheila arqueou as sobrancelhas.Conheço-a, evidentemente. Que se passa com ela?

- Vejo que ainda não tem conhecimento... Onde almoçou, Miss Webb?

A rapariga corou.

- Almocei com um amigo no restaurante Ho Tung, se... se isso é da sua conta.

- Depois não foi ao escritório?

- Ao Gabinete Cavendish? Quando cheguei, disseram-me que devia encontrar-me com o professor Purdy às duas e meia.

- Exactamente - confirmou o professor, a acenar com a cabeça. - Às duas e meia. Ainda não paramos de trabalhar. Agora me lembro, devia ter pedido que servissem o chá! Peço muita desculpa, Miss Webb. Devia terme lembrado...

- Não tem importância nenhuma, professor Purdy.

- Foi uma grande falta da minha parte, uma grande falta... Mas, pronto, não interrompo mais, visto o inspector querer fazer perguntas.

- Não sabe, então, o que sucedeu a Edna Brent?

- O que lhe sucedeu? - perguntou Sheila, em voz mais alta. - Que quer dizer? Foi vítima de algum acidente? Atropelada? - Toda esta velocidade é muito perigosa... - intrometeu-se o professor.

- Aconteceu-lhe uma coisa, sim... - Hardcastle fez uma pausa, antes de acrescentar, o mais brutalmente possível: - Foi estrangulada cerca do meio-dia e meia hora numa cabina telefónica.

- Numa cabina telefónica? - repetiu o professor, com algum interesse.

Sheila Webb não disse nada. Ficou a fitá-lo, de boca ligeiramente aberta e olhos arregalados. "Ou ainda não sabias nada, ou és uma excelente actriz", pensou Hardcastle.

- Meu Deus, estrangulada numa cabina telefónica! - exclamou o professor. - Parece muito extraordinário. Não é o sítio que eu escolheria... enfim, se resolvesse cometer semelhante acto. Oh, não! Pobre pequena! Que pouca sorte a dela!

- Edna... assassinada! Mas porquê?

- Sabia, Miss Webb, que Edna Brent teve muito interesse em falar consigo anteontem, que foi a casa da sua tia e esperou algum tempo pelo seu regresso?

- Mais uma vez por minha culpa - murmurou o professor cheio de remorsos. - Lembro-me de que, nessa noite, demorei Miss Webb até muito tarde...

Deve lembrar-me sempre do tempo, minha querida...

- A minha tia contou-me, mas não pensei que se tratasse de alguma coisa especial. Tratava? A Edna estava metida nalgum sarilho?

- Não sabemos... e provavelmente nunca saberemos. A não ser que nos possa esclarecer?

- Eu? Como poderei saber?

- Talvez faça alguma ideia do que Edna Brent lhe queria dizer...

- Mas não, não faço a mínima ideia.

- Ela não insinuou nada, não falou consigo, no escritório, acerca do que a preocupava?

- Não, não me disse nada. Nem podia, de resto, pois ontem não estive no escritório todo o dia. Tive de ir a Landis Bay, onde passei o dia inteiro a trabalhar com um dos nossos escritores.

- Não a achou preocupada, ultimamente?

- Bem, a Edna parecia sempre preocupada ou intrigada. Tinha uma mentalidade muito... como hei-de dizer?... muito hesitante, muito lenta.

Nunca tinha a certeza se estava certo ou não o que pretendia fazer. Uma vez, escaparam-lhe duas folhas inteiras, ao dactilografar um livro de Armand Levine, e andou preocupadíssima sem saber que fazer, por só ter dado pelo engano depois de lhe mandar o livro.

- Compreendo. E ela costumava pedir conselhos a todas as colegas, acerca do que devia fazer?

- Costumava. Aconselhei-a a escrever imediatamente um bilhete ao escritor, porque geralmente as pessoas não começam logo a ler os trabalhos, para os corrigirem. Disse-lhe que lhe explicasse o que sucedera e lhe pedisse que não se queixasse a Miss Martindale, mas a ideia não lhe agradou.

- Ela costumava, então, pedir conselhos, quando surgia um desses problemas?

- Sempre! O pior é que nem sempre estávamos todas de acordo quanto ao que devia fazer, e isso ainda a deixava mais indecisa.

- Seria, portanto, natural ela procurar uma de vocês se tivesse um problema? Acontecia com frequência?

- Acontecia, sim.

- Parece-lhe que desta vez se trataria de alguma coisa mais grave?

- Não creio. Que coisa mais grave poderia ser?

Sheila Webb sentir-se-ia tão à vontade como parecia?

- Não sei acerca de que me desejava falar - prosseguiu, mais depressa e um bocadinho ofegante.Não faço a mínima ideia. Não imagino, também, porque teria ido a casa da minha tia, para falar lá comigo.

- Dir-se-ia que se tratava de qualquer coisa acerca da qual não lhe queria falar no Gabinete Cavendish, não acha? Digamos, diante das outras colegas... Alguma coisa que lhe parecesse só dever ser tratada entre as duas, particularmente. Poderia ser isso?

- Parece-me muito pouco provável, não creio que fosse nada desse género...

- Não me pode, então, ajudar, Miss Webb?

- Lamento, mas não posso. Sinto muito o que aconteceu à Edna, mas não sei nada que o possa ajudar.

- Seria alguma coisa que tivesse qualquer relação com o que sucedeu no dia nove de Setembro?

- Refere-se àquele homem... àquele homem de Wilbraham Crescent?

- Refiro.

- Como poderia ser isso? Que poderia a Edna saber a esse respeito?

- Nada de importante, talvez, mas alguma coisa... E tudo me ajudaria, por muito insignificante que parecesse. - Fez nova pausa, antes de acrescentar:A cabina telefónica onde a mataram fica em Wilbraham Crescent. Isso não lhe sugere nada, Miss Webb?

- Absolutamente nada.

- Esteve hoje em Wilbraham Crescent?

- Não, não estive! - afirmou, em tom firme.Não me aproximei, sequer, de lá. Quem me dera, até, nunca lá ter ido, não me ter visto envolvida em tudo isto! Porque me mandaram chamar, porque me quiseram especialmente a mim, naquele dia? Porque teve a Edna de ser morta perto desse lugar? Tem de descobrir tudo isto, inspector, tem de o descobrir!

- Tenciono descobri-lo, Miss Webb - afirmou o inspector e terminou, em voz lentamente ameaçadora: - Garanto-lhe!

- Está a tremer, minha querida - disse o professor Purdy. - Acho que precisa de tomar um cálice de xerez.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Apresentei-me ao coronel Beck assim que cheguei a Londres.

- No fim de contas, talvez tenha alguma razão de ser aquela sua idiótica ideia dos crescentes - admitiu, depois de me cumprimentar com um aceno do charuto.

- Descobriu, finalmente, alguma coisa?

- Não direi tanto... mas talvez, sim, talvez. O nosso engenheiro construtor, Mister Ramsay, de Wilbraham Crescent, sessenta e dois, não é exactamente o que parece. Nos últimos tempos, tem aceitado uns trabalhos muito curiosos. São firmas autênticas, as que o contratam, mas sem muito passado. A pouca história que têm é muito peculiar. Há cerca de cinco semanas, Ramsay partiu de um momento para o outro para a Roménia.

- Não foi isso que disse à mulher.

- Talvez não, mas foi esse o seu destino, e é lá que se encontra.

Gostaríamos de saber um pouco mais a respeito dele e, por isso, prepare-se meu rapaz. Tenho todos os vistos arranjados para si e um belo passaporte novo. Desta vez será Nigel Trench. Reveja os seus conhecimentos de plantas raras, dos Balcãs, pois será botânico.

- Algumas instruções especiais?

- Não. Indicar-lhe-emos o seu contacto quando receber os documentos. Descubra tudo quanto puder acerca do nosso Mister Ramsay...

- Olhou-me, com atenção, e observou: - Não parece tão satisfeito como seria de esperar.

- É sempre agradável quando um pressentimento dá resultado - redargui, evasivo.

- Crescente certo, número errado. No número sessenta e um mora um construtor civil sem mácula absolutamente nenhuma, do nosso ponto de vista, evidentemente. O pobre Hanbury errou no número, mas não andou muito longe da verdade.

- Investigou os outros? Ou apenas o Ramsay?

- Diana Lodge parece tão pura como Diana. Uma longa história de gatos... O McNaughton é ligeiramente interessante. E professor reformado, como sabe.

Ensinava matemática e parece que era brilhante. Retirou-se subitamente, a pretexto de falta de saúde. Talvez seja verdade, mas ele parece saudável e robusto. Isolou-se de todos os seus antigos amigos, o que parece muito estranho.

- O nosso mal é chegarmos a um ponto em que pensamos que tudo quanto toda a gente faz é muitíssimo suspeito.

- Talvez tenha razão. Há ocasiões, em que até desconfio de que você, Colin, se passou para o outro lado... e outras em que desconfio de que eu próprio passei para o outro lado e depois voltei para este! Uma grande salsada.


O meu avião partia às dez horas da noite e, por isso, resolvi ir visitar, primeiro, Hercule Poirot. Desta vez estava a beber um sirop de cassis (xarope de groselha-preta, para mim e para os não-iniciados). Ofereceu-me, recusei e George serviu-me uísque. Como de costume.

- Parece deprimido - observou Poirot.

- De modo nenhum. Vou apenas, para o estrangeiro.

Olhou para mim e eu acenei com a cabeça.

- É, então, isso?

- É, é isso.

- Desejo-lhe todo o êxito possível.

- Obrigado. E o senhor, como vai andando com o trabalho de casa?

- Pardon?

- Que me diz ao Assassínio dos Relógios? Recostou-se na cadeira, fechou os olhos e encontrou todas as soluções?

- Li com muito interesse o que me deixou cá.

- Não tem muito onde se pegue, pois não? Eu disse-lhe que os vizinhos não tinham dado nada...

- Pelo contrário! Pelo menos duas pessoas fizeram observações muito esclarecedoras.

- Quais? E quais foram as observações?

Poirot respondeu-me, irritantemente, que devia reler as minhas notas com cuidado.

- Verá por si próprio, então, pois salta aos olhos. O que resta fazer, agora, é falar com mais alguns vizinhos.

- Não há mais.

- Deve haver. Alguém vê sempre qualquer coisa. É um axioma.

- Será um axioma, mas não o é neste caso. E tenho novidades para si: houve outro assassínio.

- Sim? Tão cedo? É interessante. Conte-me.

Contei-lhe e ele interrogou-me implacavelmente, até me arrancar todos os pormenores. Falei-lhe, também do postal ilustrado que entregara a Hardcastle.

- Lembre-se... Quatro, um, três ou quatro e treze - repetiu. - Sim, é o mesmo padrão.

- Que quer dizer?

Poirot fechou os olhos, ao responder:

- Nesse postal só falta uma coisa: uma impressão digital ensanguentada.

Olhei-o, desconfiado, e perguntei:

- Que pensa realmente do caso?

- Cada vez se torna mais claro. Como de costume, o assassino não pôde deixar as coisas como estavam.

- Mas quem é o assassino?

Manhosamente, Poirot não respondeu.

- Posso proceder a algumas investigações, enquanto estiver ausente?

- De que género?

- Amanhã, pedirei à minha secretária, Miss Lemon, que escreva a um velho advogado meu amigo, Mister Enderby, a solicitar-lhe que consulte os registos de casamentos de Somerset House. Miss Lemon expedirá, também, um certo telegrama para o estrangeiro.

- Não sei se isso será leal - observei. - Não se limitará a estar sentado a pensar...

- Limitar-me-ei, sim senhor! Miss Lemon conferirá, apenas, as soluções que já encontrei. Não peço informações e, sim, confirmação.

- Não acredito que saiba seja o que for, Poirot! É tudo bluff. Ainda ninguém sabe quem é o morto...

- Eu sei.

- Como se chama?

- Não faço ideia. O seu nome não é importante. Talvez compreenda melhor se lhe disser que sei o que é e não quem ele é.

- Um chantagista.

Poirot fechou os olhos.

- Um detective particular. - Poirot abriu os olhos. - Far-lhe-ei uma citaçãozinha, como da última vez, e depois não lhe direi mais nada.

Recitou, com a máxima solenidade:

- Dilly, dilly, dilly. Vem para seres morto.

O detective-inspector Hardcastle olhou para o calendário que tinha na secretária. 20 de Setembro. Mais de dez dias, já. Não tinham progredido tanto como supusera porque a dificuldade inicial continuava a peá-los: a identificação de um cadáver. Levara mais tempo do que julgara possível, todas as pistas pareciam ter falhado. O exame laboratorial do vestuário não revelara nada que os ajudasse, as roupas não tinham proporcionado nenhuma pista. Eram de boa qualidade, de exportação, e embora não fossem novas estavam bem tratadas. Nem dentistas, nem lavandarias, nem tinturarias tinham ajudado. O morto continuava a ser "o homem misterioso". E, contudo, Hardcastle tinha a impressão de que ele não tinha nada de misterioso.

Não havia nele nada de espectacular nem de dramático, era apenas um homem que ninguém reconhecera.

Hardcastle suspirou ao lembrar-se dos telefonemas e das cartas que tinham chegado depois da publicação pelos jornais da fotografia, com a legenda: CONHECE ESTE HOMEM? Era surpreendente o número de pessoas que tinham julgado conhecê-lo. Filhas que escreviam, com certa esperança, acerca de um pai que não viam havia anos; uma velha de noventa anos convencida de que a fotografia era do seu filho, que saíra de casa ia para trinta anos; inúmeras mulheres convictas de que se tratava de um marido desaparecido... Houvera menos irmãs a alegar que se tratava de um irmão. Talvez as irmãs fossem mais pessimistas... Não tinham faltado, também, as inúmeras pessoas que o tinham visto no Lincolnshire, em Newcastle, no Devon, em Londres, no metropolitano, no autocarro, num cais, com ar sinistro à esquina de uma rua, a tentar ocultar o rosto ao sair de um cinema... Centenas de pistas, as mais prometedoras das quais tinham sido inutilmente investigadas.

Mas naquele dia o inspector sentia-se um bocadinho mais esperançado. Olhou, de novo, para a carta que tinha na secretária. Merlina Rival... Não gostava muito do nome próprio. Parecia-lhe que ninguém no seu juízo perfeito chamaria Merlina a uma filha. Devia tratar-se de um nome de fantasia, adoptado pela própria signatária. No entanto, gostava do tom da carta.

Não era extravagante nem exprimia excessiva confiança. Dizia apenas que a signatária julgava possível que o homem em questão fosse o seu marido, de quem se separara havia vários anos.

O inspector esperava-a naquela manhã. Premiu a campainha, a chamar o sargento Cray.

- Mistress Rival já chegou?

- Acaba de chegar, inspector. Vinha dizer-lhe.

- Como é ela?

- Tem um ar um pouco teatral... Muita pintura, mas mal aplicada. No conjunto, parece uma mulher razoavelmente digna de confiança.

- Pareceu-lhe transtornada?

- Não. Se está, disfarça bem.

- Mande-a entrar.

Cray partiu e, pouco depois, voltou e anunciou:

- Mistress Rival, inspector.

O inspector levantou-se e apertou a mão à mulher.

Calculou que deveria andar pelos cinquenta anos, embora de longe, de muito longe... talvez parecesse andar pelos trinta. Perto, o resultado da pintura aplicada à toa fazia-a aparentar muito mais de cinquenta anos, mas, no conjunto, Hardcastle optou pelo meio século.

Cabelo escuro, muito pintado, altura e estatura medianas, casaco e saia escuros, blusa branca e uma grande mala de tecido escocês. Não usava chapéu. Uma ou duas pulseiras, que chocalhavam a cada movimento, e vários anéis. No conjunto, e baseado na sua experiência, o inspector considerou-a boa mulher. Não seria talvez, excessivamente escrupulosa, mas devia ser razoavelmente generosa, bondosa, até, e uma pessoa com quem seria fácil viver. Mereceria confiança? Aí é que batia o ponto. Não contaria muito com isso, aliás, nunca podia contar muito com isso.

- Agrada-me muito a sua visita, Mistress Rival, e tenho esperanças de que nos possa ajudar.

- Claro que não tenho a certeza, mas pareceu-me o Harry - redarguiu Mrs. Rival. - Pareceu-me muito... Não me surpreenderei se verificar que não é e só desejo não lhe roubar o seu tempo para nada.

- Não se deve preocupar com isso. Precisamos muito de ajuda, neste caso.

- Compreendo. Só espero poder ter a certeza, pois há muito tempo que não o vejo.

- Comecemos por esclarecer alguns factos, sim? Quando viu o seu marido pela última vez?

- Durante toda a viagem de comboio tentei chegar a uma conclusão a esse respeito. É terrível verificar como a memória nos falha, quando se trata de tempo! Creio que na minha carta me referi a cerca de dez anos, mas foi há mais tempo. Suponho que já lá vão quase quinze. O tempo passa tão depressa! Suponho que temos tendência para julgar que se passaram menos anos porque assim nos sentimos mais novos, não acha?

- É possível, sim. No entanto, calcula que viu pela última vez o seu marido há aproximadamente quinze anos, não é verdade? Quando se casaram?

- Uns três anos antes disso, suponho.

- Onde vivia, então?

- Numa terra chamada Shipton Bois, em Suffolk. Uma terra bonita, de mercado, mas pequena.

- Que fazia o seu marido?

- Era agente de seguros. Pelo menos... - fez uma pausa. - Pelo menos era o que dizia.

O inspector levantou a cabeça, interessado, e inquiriu:

- A senhora descobriu que não era verdade?

- Bem, não foi exactamente isso... pelo menos na altura. Só mais tarde é que comecei a pensar que talvez não fosse verdade. Seria fácil um homem dizer que era agente de seguros e ninguém desconfiar, não seria?

- Creio que sim, em certas circunstâncias. - Quero dizer, dá a um homem um pretexto para se ausentar muito de casa.

- E o seu marido ausentava-se muito de casa, Mistress Rival?

- Ausentava. Ao princípio, não liguei muita importância... - Mas mais tarde?...

Mrs. Rival deixou passar um momento sem responder. Por fim, inquiriu:

- E se resolvêssemos o assunto? No fim de contas, se não for o Harry...

O inspector perguntou a si mesmo em que estaria ela a pensar. A sua voz tornara-se tensa. Comoção, talvez? Não tinha a certeza.

- Compreendo que queira despachar o assunto. Vamos.

Levantou-se e levou-a ao carro que os esperava.

O nervosismo de Mrs. Rival, quando chegaram, era igual ao das outras pessoas que já lá conduzira. Ele proferiu, também, as palavras tranquilizadoras habituais.

- Não tenha medo, o aspecto não impressiona. Levará apenas um minuto ou dois.

Trouxeram a maca, o empregado levantou o lençol e ela olhou durante alguns momentos, a respirar mais aceleradamente. Depois virou-se, com brusquidão, e disse:

- É o Harry. Sim, muito mais velho, diferente... mas é ele, é o Harry.

O inspector fez um sinal ao empregado, com a cabeça, segurou no braço de Mrs. Rival e conduziu-a de novo para o automóvel. Voltaram à esquadra. Durante o trajecto, não disse nada, deixou-a serenar. Quando se encontravam novamente no seu gabinete, um polícia trouxe um tabuleiro com chá.

- Beba uma chávena de chá para se refazer, Mistress Rival. Depois falaremos.

- Obrigada.

Adoçou o chá, com muita generosidade, e bebeu-o quase de um trago.

- Já me sinto melhor - confessou. - Não é que me custe, realmente... mas... dá uma certa volta às pessoas, não dá?

- Tem a certeza de que o homem é o seu marido?

- Tenho. Claro que está muito mais velho, mas não mudou por aí além. Pareceu sempre... bem, impecável, com classe.

Hardcastle achou a descrição muito boa. Com classe. Presumivelmente, Harry aparentara muito mais classe do que tinha. Acontecia isso a alguns homens, o que os ajudava nos seus propósitos especiais.

- Ele foi sempre muito meticuloso acerca da sua roupa e do seu aspecto. Creio que era por isso que se deixavam apanhar tão facilmente, sem suspeitarem de nada.

- Quem é que se deixava apanhar, Mistress Rival? - perguntou Hardcastle, em tom suave e compreensivo.

- As mulheres. Era com mulheres que ele passava a maior parte do tempo.

- Compreendo. E a senhora acabou por saber...

- Bem... suspeitei. Ele estava tanto tempo ausente! Claro que eu sabia como os homens são e pensava que talvez houvesse uma pequena, de tempos a tempos. Mas não vale a pena interrogar os homens a tal respeito, eles mentem com todo o descaramento e pronto. No entanto, eu não sabia... não podia imaginar que ele fazia disso um negócio.

- E fazia?

- Suponho que sim.

- Como descobriu?

- Um dia regressou de uma viagem que fizera. A Newcastle, dissera.

Regressou e avisou-me de que tinha de se safar depressa, de que o jogo fora descoberto. Arranjara sarilhos com uma mulher, uma professora, e era possível que houvesse escândalo. Interroguei-o, então, e ele não se fez rogado e respondeu-me. Provavelmente pensou que eu sabia mais do que na realidade sabia... Elas deixavam-se prender facilmente por ele, como acontecera comigo. Arranjava uma mulher, oferecia-lhe um anel e ficavam noivos. Depois ele dizia que investira dinheiro em nome de ambos... e elas não hesitavam em lhe passar a importância para as unhas.

- Tentara a mesma coisa consigo?

- Tentara, de facto, mas sem resultado.

- Porquê? Já então não confiava nele?

- Bem, eu não era das que confiavam. Já tinha uma certa experiência dos homens, das suas espertezas e do lado mais feio das coisas. Fosse como fosse, não quis que ele investisse o meu dinheiro. O que tinha, investi-lo-ia eu própria. Conserva sempre o teu dinheiro nas tuas próprias mãos, pois assim terás a certeza de o possuir! Tenho visto muitas raparigas e mulheres armarem em idiotas.

- Quando quis ele investir dinheiro? Antes ou depois de casarem?

- Creio que sugeriu qualquer coisa desse gênero antes, mas eu fiz-me lucas e ele mudou imediatamente de assunto. Depois de casarmos, faloume de uma oportunidade maravilhosa que lhe surgira, mas eu respondi-lhe:

"Nada feito." Não se tratava apenas de não confiar nele; sabia de muitos homens que afirmavam ter descoberto uma coisa maravilhosa e às duas por três verificavam que os tinham comido por trouxas.

- O seu marido alguma vez tivera aborrecimentos com a Polícia?

- Não havia perigo disso. As mulheres não gostam que toda a gente saiba que foram intrujadas. Mas daquela vez as coisas pareciam diferentes.

A rapariga, ou a mulher, era instruída, não seria tão fácil de enganar como as outras.

- E ia ter um filho?

- Sim.

- Isso já acontecera noutras ocasiões?

- Suponho que sim... Confesso francamente que não sei o que o tentava, ao princípio. Se era apenas o dinheiro, um modo de vida, digamos, ou se era daqueles homens que têm de ter várias mulheres e não via motivos nenhuns para não serem elas a pagar as despesas dos seus prazeres. - A voz de Mrs. Rival tornara-se amargurada.

- Gostava dele, Mistress Rival? - perguntou Hardcastle, suavemente.

- Para lhe ser franca, não sei. Suponho que gostava, de certo modo, pois de contrário não teria casado com ele...

- Desculpe... era casada com ele?

- Nem disso tenho a certeza - confessou Mrs. Rival, francamente. - Nós casámos, de facto, e numa igreja e tudo, mas eu não sei se ele não teria casado também com outras, usando um nome diferente. Chamava-se Castleton, quando casou comigo, embora eu duvide que esse fosse o seu verdadeiro nome.

- Harry Castleton?

- Sim.

- E durante quanto tempo viveram, como marido e mulher, em Shipton Bois?

- Estivemos lá cerca de dois anos. Antes disso vivêramos perto de Doncaster. Não posso dizer que tenha ficado surpreendida quando regressou, naquele dia, e me contou tudo. Suponho que já sabia, havia algum tempo, que ele não prestava. Custava apenas a crer porque parecia sempre tão respeitável, tão cavalheiro.

- E que sucedeu, então?

- Ele disse que tinha de sair dali imediatamente e eu respondi-lhe que lhe desejava boa viagem, que não estava disposta a tolerar aquilo. - Acrescentou, pensativa: - Dei-lhe dez libras. Era tudo quanto tinha em casa e ele disse que precisava de dinheiro... Nunca mais o vi nem ouvi falar dele. Até hoje, até ver o seu retrato no jornal.

- Ele não tinha nenhuns sinais particulares? Cicatrizes? Uma operação, uma fractura, qualquer coisa desse género?

- Creio que não.

- Alguma vez usou o nome de Curiy?

- Curry? Não, suponho que não. Pelo menos que eu saiba...

- Isto estava na sua algibeira - disse Hardcastle, e estendeu-lhe o cartão.

- Continuava a dizer que era agente de seguros...

Creio que deve ter usado muitos nomes diferentes.

- Disse que nunca mais teve notícias dele nos últimos quinze anos, não foi?

- Nunca me mandou, sequer, um cartão de boas-festas! - exclamou Mrs. Rival, com certo humor.Aliás, não devia saber onde eu estava. Depois de nos separarmos, voltei a trabalhar uns tempos no palco, sobretudo em tournées. Não era grande vida... Além disso, abandonei o apelido de Castleton e voltei a ser Merlina Rival.

- Suponho que Merlina... enfim, não é o seu verdadeiro nome?

Abanou a cabeça e esboçou um leve sorriso.

- Fui eu que o inventei. Fora do vulgar. O meu verdadeiro nome é Flossie Gapp. Suponho que o meu nome de baptismo deve ser Florence, mas toda a gente me tratou, sempre, por Flossie ou Flo. Flossie Gapp... Pouco romântico, não é?

- Que faz agora? Ainda representa, Mistress Rival?

- Ocasionalmente - respondeu, com certa reticência. - Uma vez por outra.

- Compreendo - redarguiu Hardcastle, com tacto.

- Faço uns trabalhos aqui e ali, dou uma ajuda em festas, sirvo de anfitriã, etc. Não é uma vida má. Pelo menos conheço pessoas. Mas, de vez em quando, as coisas tornam-se feias...

- Desde que se separaram, não voltou a ter notícias de Harry Castleton nem a ouvir falar dele?

- Nem uma palavra. Pensei que tivesse ido para o estrangeiro... ou tivesse morrido.

- Faz alguma ideia, Mistress Rival, dos motivos que poderiam trazer Harry Castleton a estas imediações?

- Nenhuma, absolutamente nenhuma. Nem sequer sei o que ele fez, durante todos estes anos.

- Seria possível que tivesse vendido seguros falsos, qualquer coisa desse género?

- Confesso que não sei, mas não me parece muito possível. Quero dizer, o Harry foi sempre muito cuidadoso consigo próprio, não se arriscava nem fazia nada que lhe pudesse arranjar cadastro. Inclino-me mais para que se tenha governado a explorar mulheres.

- Alguma forma de chantagem, por exemplo?

- Não sei... mas talvez fosse possível. Qualquer mulher que não quisesse que se soubesse alguma passagem do seu passado... Suponho que ele se sentiria em segurança, nesse aspecto. Note, não garanto que se dedicasse a isso, mas parece-me possível. Não acho que exigisse muito dinheiro, que fosse capaz de levar alguém ao desespero, mas podia ir "cobrando" em pequena escala. - Acenou com a cabeça e concluiu:Não me surpreenderia.

- As mulheres gostavam dele, não gostavam?

- Sim, deixavam-se sempre prender facilmente por ele. Sobretudo, creio, por aparentar sempre tanta classe, por parecer tão respeitável.

Sentiam-se orgulhosas por terem conquistado um homem assim, convenciam-se de que as esperava um belo e agradável futuro com ele... é, pelo menos, esta a minha opinião. E com conhecimento de causa, pois senti o mesmo.

- Só mais uma coisa... - Hardcastle voltou-se para o sargento e pediulhe:

- Traga os relógios, sim?

Trouxeram os relógios num tabuleiro, cobertos por um pano que Hardcastle levantou. Mrs. Rival observou-os com sincero interesse e aprovação.

- São bonitos, não são? Gosto deste - declarou ela, e tocou no relógio francês.

- Já alguma vez os vira? Significam alguma coisa para si?

- Acho que não. Deviam significar?

- Lembra-se de alguma relação possível entre o seu marido e o nome de Rosemary?

- Rosemary? Deixe ver... Havia uma ruiva... Não, essa chamava-se Rosalie. Não me lembro de ninguém com esse nome. É natural, não acha?

O Harry guardava segredo dos seus romances.

- Se visse um relógio cujos ponteiros marcassem quatro horas e treze...

- Pensaria que eram quase horas do chá! - interrompeu-o Mrs. Rival, a rir.

Hardcastle suspirou.

- Bem, Mistress Rival, estamos-lhe muito gratos. O inquérito será, como lhe disse, depois de amanhã.

Não se importa de declarar que identificou o corpo, pois não?

- Não, evidentemente. Terei apenas de dizer quem ele era, não é verdade? Não terei de entrar em pormenores, de falar do seu modo de vida, etc.?

- Isso não será necessário, por enquanto. Terá apenas de jurar que se trata de Harry Castleton, com quem foi casada. A data exacta deve estar registada em Somerset House. Lembra-se onde se casou?

- Numa terra chamada Donbrook. Creio que foi na Igreja de São Miguel. Espero que não tenha sido há mais de vinte anos. Se fosse, sentirme- ia com um pé na sepultura.

Levantou-se e estendeu a mão ao inspector, que se despediu.

Hardcastle sentou-se à secretária, em cujo tampo começou a tamborilar, com um lápis. Pouco depois, o sargento Cray voltou e perguntou-lhe:

- Satisfatório?

- Parece que sim. O nome de Harry Castleton talvez seja falso...

Temos de ver o que conseguimos averiguar acerca do tipo. Parece provável que várias mulheres tivessem motivos para se quererem vingar dele.

- No entanto, tem um ar tão respeitável...

- Esse deve ter sido o principal capital do seu negócio.

O inspector pensou de novo no relógio com o nome de "Rosemary".

Seria uma recordação?

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

 - Voltou, então - observou Hercule Poirot, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, colocava uma marca no livro que estava a ler.

Desta vez tinha em cima da mesa uma chávena de chocolate quente.

Poirot devia ter um gosto muito especial, no capítulo de bebidas. Para variar, não me ofereceu chocolate.

- Como está? - perguntei-lhe.

- Incomodado. Muito incomodado. Andam a fazer renovações, redecorações e até modificações estruturais nestes apartamentos.

- Mas isso não os melhorará?

- Melhorará, de facto, mas incomoda-me muito. Cheirará a tinta... - Olhou-me, indignado, mas afastou os aborrecimentos com um aceno de mão e indagou: - Foi bem sucedido?

- Não sei - respondi, devagar.

- Ah!

- Descobri o que me mandaram descobrir, mas não encontrei o homem. Pessoalmente, não sei o que pretendiam. Informações ou um cadáver?

- Por falar em cadáveres, li o relatório do inquérito de Crowdean.

Homicídio voluntário, por pessoa ou pessoas desconhecidas. E o seu cadáver recebeu, finalmente, um nome. - Harry Castleton...

- Identificado pela mulher. Esteve em Crowdean?

- Não. Tenciono ir lá amanhã.

- Tem tempo livre?

- Ainda não; continuo com a missão e é por isso que lá vou... Não estou muito ao corrente do que se passou enquanto estive no estrangeiro.

Que pensa do mero facto da identificação?

- Era de esperar - redarguiu Poirot, com um encolher de ombros.

- Sim, a Polícia é muito experiente...

- E as esposas muito prestáveis.

- Mistress Merlina Rival! Que nome!

- Lembra-me qualquer coisa - murmurou Poirot. - Mas que me lembra?

Fitou-me, pensativo, mas não o pude ajudar. Conhecendo Poirot como conhecia, sabia que o nome lhe poderia lembrar tudo.

- Uma visita a um amigo... numa casa de campo... - O detective abanou a cabeça. - Não... já foi há muito tempo.

- Quando regressar a Londres, virei dizer-lhe tudo quanto conseguir arrancar ao Hardcastle acerca de Mistress Merlina Rival.

- Não é necessário.

- Quer dizer que, mesmo sem lhe dizerem, já sabe tudo acerca dela?

- Não. Quero dizer que não estou interessado nela.

- Não está interessado... Mas porquê? Não percebo.

- Devemo-nos concentrar nos pontos essenciais.

Fale-me antes da jovem Edna, assassinada na cabina telefónica de Wilbraham Crescent.

- Não lhe posso dizer mais do que já disse. Não sei nada acerca da pequena.

- Tudo quanto sabe - redarguiu Poirot, acusador -, ou tudo quanto me pode dizer, é que a rapariga era uma coelhinha que viu num escritório de dactilógrafas; que arrancara um salto do sapato num ralo... A propósito, onde ficava esse ralo?

- Francamente, Poirot, como quer que saiba?

- Poderia saber, se tivesse perguntado. Como espera saber alguma coisa se não faz as perguntas devidas?

- Mas que importância pode ter o lugar onde o salto se partiu?

- Pode não importar. No entanto, se soubéssemos onde foi, saberíamos que a rapariga estivera em determinado lugar e isso poderia relacionar-se com uma pessoa que lá a tivesse visto... ou com qualquer evento lá ocorrido.

- Está a forçar um bocado a nota. No entanto, sei que foi perto do trabalho, porque ela o disse e acrescentou que comprara um bolo e regressara, descalça, para o comer no escritório. Disse, também, como demónio iria regressar a casa assim.

- E como regressou a casa? - indagou Poirot, interessado.

- Não faço a mínima ideia.

- Parece impossível essa sua tendência para nunca fazer as perguntas devidas! Como consequência disso, não sabe nada do que é importante.

- Seria melhor ir a Crowdean e fazer o senhor as perguntas - redargui, abespinhado.

- É impossível, neste momento. Há um interessante leilão de manuscritos de escritores, para a semana...

- Continua a dedicar-se ao seu passatempo?

- Certamente! - Os seus olhos brilharam. - Veja as obras de John Dickson Carter ou Carter Dickson, como por vezes também se chama...

Pretextei um encontro urgente e escapei-me antes de ele se entusiasmar. Não estava com disposição para ouvir dissertar acerca dos velhos mestres da arte da ficção policial.

Levantei-me do degrau da casa de Hardcastle e tentei dominar o meu desânimo, quando o vi chegar, na noite seguinte.

- É você, Colin? - perguntou o inspector.Apareceu outra vez de surpresa, hem? Há quanto tempo está aí sentado, no degrau da minha porta?

- Há cerca de meia hora.

- Lamento que não tenha podido entrar.

- Podia ter entrado com toda a facilidade! - afirmei, indignado. - Não imagina como somos bem treinados !

- Então porque não entrou?

- Não desejaria diminuir, em sentido nenhum, o seu prestígio. Um detective-inspector ficaria numa situação muito ridícula se lhe entrassem em casa com a maior facilidade.

Hardcastle tirou a chave da algibeira e abriu a porta.

- Entre e não diga tolices - convidou.

Conduziu-me à sala e começou a encher os copos.

- Diga quando chegar - pediu-me. Disse, mas só passado um bocado, e sentámo-nos cada um com o seu copo.

- As coisas começam, finalmente, a andar. Identificámos o nosso cadáver.

- Bem sei. Li no jornal. Quem era Harry Castleton?

- Um homem aparentemente muito respeitável, mas que vivia de casamentos fictícios ou, pelo menos, de noivados com mulheres crédulas e financeiramente desafogadas. Confiavam-lhe as economias, impressionadas pelos seus conhecimentos de finanças, e pouco depois ele desaparecia calmamente da cena.

- Não tinha ar de pertencer a esse tipo - comentei, ao recordar o assassinado.

- Era esse o seu melhor trunfo.

- Nunca foi acusado?

- Não. Procedemos a consultas, mas não é fácil obter informações, tanto mais que ele mudava frequentemente de nome. Embora, na Yard, pensassem que Harry Castleton, Raymond Blair, Lawrence Dalton e Roger Byron eram uma e a mesma pessoa, nunca o conseguiram provar.

Compreende, as mulheres não falavam, preferiam perder o dinheiro. O indivíduo era, na realidade, mais um nome do que outra coisa. Aparecia aqui e ali, procedia sempre de conformidade com o mesmo padrão, mas era esquivo como uma enguia. Por exemplo, Roger Byron desaparecia de Southend e um homem chamado Lawrence Dalton começava a operar em Newcastle on Tyne... Não gostava de ser fotografado e esquivava-se a que as suas amigas lhe tirassem o retrato... Tudo isto foi há muito tempo.

Uns quinze ou vinte anos. Mais ou menos nessa altura, ele pareceu desaparecer, de facto, e correu o boato de que morrera. Mas houve quem dissesse que fora para o estrangeiro.

- Pelo menos, nada constou a seu respeito até ser encontrado, morto, na carpete da sala de Miss Pebmarsh?

- Exactamente.

- Apresenta, de facto, possibilidades. - Sem dúvida.

- Uma mulher desdenhada que nunca perdoou? - sugeri.

- Às vezes acontece, como sabe. Há mulheres com muito boa memória, que não esquecem...

- E se uma mulher dessas cegasse... Um desgosto em cima do outro...

- Enfim, tudo isto são conjecturas. Ainda não há nada que o confirme.

- Como era a mulher? Mistress?... Merlina Rival não era? Que nome!

Não pode ser verdadeiro.

- Não é. Ela chama-se, de facto, Flossie Gapp, mas inventou o outro nome por lhe parecer mais apro priado para a sua vida.

- Que é ela? Uma prostituta?

- Sê-lo-á, mas não profissional.

- Aquilo a que se chamava, eufemisticamente, uma senhora de virtude fácil?

- Eu diria antes que se trata de uma mulher benévola, sempre disposta a fazer um favor a um amigo. Disse que era uma ex-actriz e que, ocasionalmente fazia trabalho de "anfitriã". Simpática. - Digna de confìança?

- Tão digna de confiança como a maioria das pessoas. O seu reconhecimento foi positivo, sem hesitações.

- Isso é uma bênção.

- Sim, para quem começava a desesperar, como eu. A quantidade de candidatas a viúvas que recebi! Comecei a pensar que eram poucas as mulheres que conheciam realmente os maridos... Note, no entanto, que, quanto a mim, Mistress Rival podia saber um pouco mais acerca do marido do que diz.

- Ela esteve alguma vez pessoalmente envolvida em actividades criminosas?

- Não há nada registado. Suponho, contudo, que teve, e talvez ainda tenha, alguns amigos suspeitos. Nada de grave, porém. Umas ninharias.

- E quanto aos relógios?

- Não significaram nada para ela. Creio que falou verdade. Já averiguámos donde vieram: Mercado de Portobello. Quero dizer, o relógio dourado e o de porcelana de Dresda. Mas pouco ajuda. Sabe como são as coisas por lá, ao sábado... O dono da barraca disse que foi uma senhora americana que os comprou, mas talvez dissesse isso porque o Mercado de Portobello é muito frequentado por turistas americanas. A mulher do tipo, pelo seu lado, afirma que foi um homem quem os comprou, mas não se lembra do seu aspecto. Quanto ao de prata, foi comprado numa joalharia de Bournemouth por uma senhora alta, que queria uma prenda para a filha. A empregada só se lembra de que a cliente usava um chapéu verde.

- E o quarto relógio? O que desapareceu?

- Não faço comentários.

Percebi exactamente o que ele queria dizer.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

O hotel em que me instalara era um estabelecimento modesto e pequeno, perto da estação. Servia uns grelhados decentes, mas ficava-se por aí. E era económico, claro.

Às dez horas da manhã seguinte, telefonei ao Gabinete Cavendish e disse que desejava uma estenodactilógrafa para estenografar algumas cartas e passar um contrato comercial à máquina. Declarei chamar-me Douglas Weatherby e que estava instalado no Clarendon Hotel (os hotéis pelintras têm sempre nomes imponentes). Miss Sheila Webb estava disponível? Um amigo meu achara-a muito eficiente. Encontrava-me em maré de sorte, pois Sheila podia apresentar-se imediatamente. No entanto, já tinha um trabalho para o meio-dia... Redargui que contava terminar muito antes; também tinha um compromisso.

Esperava à porta do Clarendon quando Sheila apareceu. Avancei e apresentei-me:

- Mister Douglas Weatherby, ao seu serviço.

- Foi você que telefonou?

- Fui.

- Não deve proceder assim! - exclamou, escandalizada.

- Porquê? Estou disposto a pagar os seus serviços ao Gabinete Cavendish. Que importa à sua directora se passarmos o seu valioso e dispendioso tempo no Buttercup Café, ali defronte, em vez de a ditar cartas enfadonhas, que começam por "Amigos e Senhores", etc.? Venha daí, vamos beber café num sítio sossegado.

O Buttercup Café era violenta e agressivamente amarelo: tampos de fórmica, almofadas de plástico e pires e chávenas tudo cor de canário.

Pedi café e scones para dois. Como era cedo, estávamos praticamente sozinhos.

Quando a criada se afastou, depois de lhe dar a encomenda, olhámonos, através da mesa.

- Está bem, Sheila?

- Que quer dizer?

Os seus olhos tinham umas olheiras tão escuras que pareciam mais violeta do que azuis.

- Tem passado um mau bocado?

- Sim... não... Não sei. Pensava que se tinha ido embora.

- Fui, mas voltei.

- Porquê?

- Você sabe porquê.

Baixou os olhos e murmurou, passado pelo menos um minuto:

- Tenho medo dele.

- De quem?

- Do seu amigo, do inspector. Ele pensa... pensa que matei o homem e a Edna, também.

- Oh, isso é apenas a sua maneira de ser! Procede sempre como se suspeitasse de toda a gente.

- Não, Colin, não se trata disso. Não vale a pena dizer coisas só para me animar. Ele pensou desde o princípio que eu estava implicada no caso.

- Minha querida pequena, não existe nenhuma prova contra si. Lá porque estava presente naquele dia, porque alguém a chamou lá...

- Ele pensa que fui eu própria que arranjei maneira de lá estar e que a Edna o sabia, ignoro como. Julga que ela reconheceu a minha voz, ao telefone, a fingir que era Miss Pebmarsh.

- Era a sua voz?

- Claro que não! Não fiz semelhante telefonema, como sempre lhe disse.

- Escute, Sheila, seja o que for que tenha dito ou diga aos outros, a mim tem de me dizer a verdade.

- Não acredita, então, no que eu digo!

- Acredito. Você podia ter feito o telefonema, naquele dia, por qualquer motivo inocente. Talvez alguém lho pedisse, a pretexto de que se tratava de uma brincadeira... Depois você assustou-se, mentiu e teve de continuar a mentir. Foi isso?

- Não, não, não! Quantas vezes preciso de lho dizer?

- Tudo isso está muito bem, Sheila, mas há uma coisa que não me disse. Quero que confie em mim. Se Hardcastle tem qualquer coisa contra si, qualquer coisa de que não me falou...

- Espera que ele lhe diga tudo? - interrompeu-me.

- Não há motivo nenhum para não me dizer. Somos, mais ou menos, oficiais do mesmo ofício.

A criada serviu-nos. O café, coitado, estava muito fraquinho...

- Não sabia que tinha alguma coisa a ver com a Polícia - observou Sheila, a mexer, devagar, o seu café.

- Não se trata exactamente da Polícia e, sim, de um ramo totalmente diferente. Mas o que eu estava a dizer era que, se o Dick não me diz algumas coisas que porventura sabe a seu respeito, isso se deve a um motivo especial: pensa que me interesso por si. E é verdade, Sheila, interesso-me por si. Mais do que isso, até. Estou do seu lado, seja o que for que tenha feito. Sei que, naquele dia, saiu daquela casa morta de medo e que não estava a representar. Não podia ter fingido tão bem.

- Claro que estava assustada. Estava aterrorizada.

- Foi só o facto de encontrar o cadáver que a assustou? Ou houve mais alguma coisa?

- Que mais poderia haver?

Enchi-me de coragem e perguntei:

- Por que motivo roubou o relógio que tinha o nome "Rosemary" escrito a um canto?

- Que quer dizer? Porque o roubei?

- Foi o que lhe perguntei.

- Não lhe toquei, sequer.

- Voltou à sala porque, segundo pretextou, se esquecera lá das luvas, mas nesse dia não usava luvas. Estava um bonito dia de Setembro. Aliás, nunca a vi usar luvas. Portanto, voltou à sala e apoderou-se do relógio. Não me minta a esse respeito. Foi isso que fez, não foi?

Ficou silenciosa, durante alguns momentos, a esfarelar os scones do seu prato.

- Está bem - murmurou, em voz quase inaudível -, está bem, foi. Peguei no relógio, meti-o na mala e saí.

- Porque fez isso?

- Por causa do nome... Chamo-me Rosemary.

- Chama-se Rosemary e não Sheila?

- As duas coisas: Rosemary Sheila.

- E isso bastou para a decidir? Bastou-lhe o facto de ter o mesmo nome que estava gravado num dos relógios?

Apercebeu-se da minha incredulidade, mas insistiu:

- Já lhe disse que estava aterrorizada.

Fitei-a. Sheila era a minha pequena, a rapariga que eu queria, e que queria para sempre. Mas seria inútil ter ilusões a seu respeito. Sheila era uma mentirosa e provavelmente sê-lo-ia sempre. Era essa a sua maneira de lutar pela sobrevivência: a negação rápida, fácil, natural. Tratava-se de uma arma infantil, de uma arma que talvez nunca deixasse de usar. Se eu queria Sheila, tinha de a aceitar como ela era, de estar à mão para amparar os pontos fracos. Todos nós temos pontos fracos. Os meus eram diferentes dos de Sheila, mas existiam. Decidi-me a atacar. Era a única, solução.

- O relógio era seu, não era? Pertencia-lhe?

Abriu a boca, surpresa.

- Como... como soube?

- Conte-me.

A história irrompeu-lhe, então, dos lábios, numa grande confusão de palavras. Tivera o relógio quase toda a sua vida. Até à idade dos seis anos, mais ou menos, todos a tinham tratado por Rosemary, mas ela detestava o nome e insistira em que a tratassem por Sheila. Ultimamente, o relógio começara a funcionar mal e ela levara-o, para o deixar num relojoeiro das imediações do escritório. Mas esquecera-se dele em qualquer lado. No autocarro ou numa leitaria onde estivera a comer uma sanduíche, à hora do almoço.

- Quanto tempo antes do assassínio de Wilbraham Crescent foi isso?

Cerca de uma semana, parecia-lhe. Não se preocupara muito, pois o relógio era velho, andava constantemente a avariar-se e talvez fosse preferível comprar um novo.

E depois:

- Ao princípio não reparei nele, quando entrei na sala. Subitamente, deparei com o morto e fiquei paralisada. Levantei-me, depois de lhe tocar, fiquei de olhos fixos... e o meu relógio estava ali, na minha frente, numa mesinha junto da lareira. O meu relógio estava ali e eu tinha a mão suja de sangue... De repente, ela entrou e eu esqueci tudo o mais, porque ela ia pisá-lo. Por isso... por isso fugi. Só queria desaparecer dali para fora.

- E mais tarde?

- Comecei a pensar. Ela dissera que não telefonara a chamar-me.

Então quem me chamara... quem me atraíra ali e pusera lá o meu relógio?

Disse... disse aquilo acerca das luvas e fui buscá-lo. Creio que foi... estupidez da minha parte.

- Não podia ter cometido maior tolice - admiti. - Em certos sentidos, Sheila, não tem senso nenhum.

- A verdade é que alguém tenta implicar-me no assunto. O postal... É evidente que foi enviado por uma pessoa que sabe que tirei o relógio. E o próprio postal, a representar o Old Bailey... Se o meu pai fosse um criminoso...

- Que sabe acerca dos seus pais?

- Morreram num acidente, quando eu era pequenina. É o que a minha tia me tem dito sempre, mas ela nunca fala deles, nunca diz nada a seu respeito. Algumas vezes, quando a interrogo, diz-me coisas que não coincidem com outras que me disse anteriormente. Por isso soube sempre que havia algo errado...

- Continue.

- Penso que o meu pai talvez fosse um criminoso, ou até um assassino. Ou talvez fosse a minha mãe...

As pessoas não dizem a uma rapariga que os pais morreram e não sabem ou não querem dizer nada a seu respeito, a não ser que a verdadeira razão seja de molde a causar grande desgosto à interessada.

- Por isso tem-se preocupado com esse assunto. Provavelmente a explicação é muito simples. Pode ser, apenas, uma filha ilegítima.

- Também pensei nisso. Às vezes as pessoas tentam ocultar essas coisas às crianças. É muito estúpido, pois seria melhor dizerem-lhes a verdade.

Hoje em dia, já não tem grande importância. Mas o principal é que eu não sei. Não sei o que está atrás de tudo isto. Porque me deram o nome de Rosemary? Não é um nome de família... Significa recordação, não significa?

- O que pode ser um significado agradável - salientei.

- Pois pode... mas não creio que seja. Seja como for, depois de o inspector me interrogar, naquele dia, comecei a pensar. Porque pretendera alguém atrair-me ali? Para me colocar na presença de um desconhecido que estava morto? Ou fora o morto que quisera que me encontrasse com ele naquela casa? Tratar-se-ia, porventura, do meu pai e desejaria que eu lhe fizesse alguma coisa? Mas, entretanto, chegara alguém que o matara... Ou teria alguém pretendido, desde o princípio, dar a impressão de que fora eu que o matara? Oh, senti-me muito confusa e muito assustada! Dava a impressão de que tudo me apontava. Atraírem-me ali, o morto e o meu nome, Rosemary, no meu próprio relógio, que não tinha nada que estar naquela casa. O pânico apoderou-se de mim e eu cometi uma grande tolice, como você mesmo disse.

- Tem andado a ler ou a dactilografar muitos romances policiais - observei, acusadoramente. - E a respeito da Edna? Não faz nenhuma ideia do que ela teria na cabeça a seu respeito? Porque se deu ao trabalho de ir a sua casa, se a via todos os dias no escritório?

- Não sei. Ela não podia ter pensado que eu tinha fosse o que fosse a ver com o assassínio. Não podia!

- Terá ouvido qualquer coisa e adquirido uma ideia errada?

- Já lhe disse que não houve nada. Nada!

Não pude deixar de duvidar. Apesar de tudo, não sabia se Sheila dizia a verdade.

- Tem alguns inimigos pessoais? Rapazes decepcionados, raparigas ciumentas, alguém um pouco desequilibrado que lhe queira mal?

As minhas próprias palavras pareceram-me pouco convincentes.

- Claro que não.

Continuava na dúvida acerca do relógio. Era uma história fantástica.

4.13. Que significavam estes algarismos? Porque os escreveria alguém num postal, juntamente com a palavra "Lembre-se!, a não ser que significassem qualquer coisa para a pessoa que receberia o postal?

Suspirei, paguei a conta e levantei-me.

- Não se preocupe - recomendei, sem dúvida a frase mais oca da língua inglesa ou de qualquer outra. O "Serviço Pessoal Colin Lamb" investiga. Nada lhe acontecerá, casaremos e viveremos muito felizes, com um ordenado insignificante... A propósito - acrescentei, incapaz de me dominar, embora consciente de que teria sido muito melhor separarmo-nos numa nota romântica; mas a "Curiosidade Pessoal Colin Lamb" foi mais forte... -, que fez ao relógio? Escondeu-o na gaveta das meias?

Deixou passar um momento, antes de responder:

- Meti-o no caixote do lixo da casa ao lado.

Fiquei impressionado. Fora simples e, provavelmente, eficaz. Fora inteligente da sua parte ter semelhante ideia. Talvez tivesse subestimado Sheila.


NARRATIVA DE COLIN LAMB

Quando Sheila partiu, fui ao Clarendon, fiz a mala e deixei-a no porteiro. Tratava-se de um daqueles hotéis onde faziam questão de que os clientes saíssem antes do meio-dia. Comecei a andar. Como o meu caminho passava pela esquadra, hesitei um momento e entrei. Encontrei Hardcastle a ler uma carta, de testa franzida.

- Parto outra vez esta noite, Dick. Volto para Londres.

Levantou a cabeça e fitou-me, preocupado.

- Aceita um conselho?

- Não - respondi imediatamente.

Não fez caso do "não". As pessoas nunca fazem, quando querem dar conselhos.

- Se sabe o que lhe convém, vá-se embora e não volte.

- Ninguém pode julgar o que é conveniente para outra pessoa.

- Duvido.

- Vou-lhe dizer uma coisa, Dick. Quando deslindar a minha missão actual, demito-me. Pelo menos é essa a minha intenção.

- Porquê?

- Sou como um antiquado sacerdote vitoriano: tenho dúvidas.

- Não se precipite.

Não compreendi bem o que queria dizer e perguntei-lhe porque estava com um ar tão preocupado.

- Leia isto - respondeu, e estendeu-me a carta que estava a ler.

"Caro senhor:
Acabo de me lembrar de um pormenor. Perguntou-me se o meu marido tinha alguns sinais identificativos e eu respondi que não, mas enganei-me. Na realidade, ele tem uma espécie de cicatriz atrás da orelha esquerda. Cortou-se com uma navalha, quando um cão que tínhamos se atirou a ele, e o golpe teve de ser suturado. É uma coisa tão pequena e insignificante que, outro dia, não me lembrei dela.

Sinceramente,
Merlina Rival".

- A caligrafia é bonita e ousada, embora eu nunca tenha gostado muito de tinta cor de púrpura - comentei. - O defunto tem uma cicatriz?

- Tem, precisamente onde ela diz.

- E ela não a viu, quando lhe mostraram o cadáver?

- A orelha encobre-a. É preciso dobrar a orelha para a frente, para se ver.

- Tem, portanto, uma bela corroboração. Porque está preocupado?

Hardcastle respondeu-me, carrancudo, que o caso era um inferno, e perguntou-me se tencionava visitar, em Londres, o meu amigo belga ou francês.

- Provavelmente. Porquê?

- Falei dele ao chefe de Polícia, que disse recordá-lo muito bem daquele caso do assassínio da pequena escuteira. Aconselhou-me a recebêlo muito cordialmente, se ele resolvesse vir até cá.

- Tire daí o sentido. Aquele homem é praticamente uma lapa.

Era meio-dia e um quarto quando toquei à campainha da casa de Wilbraham Crescent, 62. Mrs. Ramsay abriu a porta e mal levantou os olhos para mim.

- Que deseja?

- Posso falar consigo durante alguns momentos? Estive cá há cerca de dez dias. Talvez não se lembre de mim...

Olhou-me, então, e franziu um pouco a testa.

- Veio... veio com aquele inspector da Polícia, não foi?

- Exactamente, Mistress Ramsay. Posso entrar?

- Se deseja... Não se recusa a entrada à Polícia, pois isso causaria muito má impressão.

Conduziu-me à sala, apontou-me uma cadeira, com um gesto brusco, e sentou-se diante de mim. A sua voz exprimira uma certa rispidez, mas depois a sua atitude adquirira uma indiferença que não lhe notara da última vez.

- Isto hoje está muito sossegado... Suponho que os seus filhos voltaram para a escola?

- Voltaram. Faz a sua diferença... Creio que vem fazer mais perguntas acerca do último assassínio, da pequena que mataram na cabina telefónica?

- Não se trata disso. Na realidade, não estou ligado à Polícia.

Pareceu um pouco surpreendida.

- Julguei que fosse o sargento... Lamb, não era?

- Chamo-me Lamb, de facto, mas trabalho num departamento diferente.

A indiferença desapareceu da atitude de Mrs. Ramsay. Olhou-me de modo directo e firme.

- Ah! Que departamento?

- O seu marido ainda está no estrangeiro?

- Ainda.

- Tem-se demorado muito tempo, e foi para muito longe, não foi, Mistress Ramsay?

- Que sabe acerca disso?

- Passou a Cortina de Ferro, não passou?

Ficou calada, uns momentos, e por fim respondeu, em voz serena e inexpressiva:

- Sim, é verdade.

- Sabia que ele ia para lá?

- Mais ou menos. - Fez nova pausa. - Queria que eu fosse ter com ele.

- O seu marido já pensava no assunto havia algum tempo?

- Suponho que sim, mas só me disse ultimamente.

- Não concorda com as suas opiniões?

- Concordei, em tempos... Mas o senhor já deve saber isso.

Investigam essas coisas muito minuciosamente, não investigam? Rebuscam no passado, descobrem quem foi simpatizante, quem foi membro do partido, tudo isso.

- Talvez nos possa dar informações susceptíveis de nos serem muito úteis.

Abanou a cabeça.

- Não, não posso. Digo que não posso e não que não quero. Ele nunca me disse nada definido; eu não queria saber. Estava farta, saturada de tudo aquilo!

Quando Michael me disse que ia deixar o país e seguir para Moscovo, não me surpreendeu. Tive de decidir, então, o que eu queria fazer.

- E chegou à conclusão de que não simpatizava muito com os objectivos do seu marido?

- Não o diria desse modo. A minha opinião é inteiramente pessoal... creio que, no fim, acontece sempre assim, com as mulheres, a não ser que se seja uma fanática. Sei que as mulheres podem ser muito fanáticas, mas eu não o sou. Nunca fui mais do que levemente esquerdista.

- O seu marido esteve implicado no caso Larkin?

- Não sei, mas suponho que talvez estivesse. No entanto, nunca me disse nada nem falou do assunto.Olhou-me, de súbito, com mais interesse e acrescentou: - Acho melhor sermos claros, Mister Lamb... ou lá como se chama. Eu amava o meu marido, talvez lhe quisesse o suficiente para ir com ele para Moscovo, quer concordasse, quer não, com a sua política.

Mas ele queria que levasse os pequenos e eu não concordei. Foi tão simples como isto. Decidi, portanto, ficar com eles. Não sei se voltarei a ver Michael. Ele tem de escolher a sua vida e eu tenho de escolher a minha.

Mas acerca de uma coisa não tenho dúvidas: quero que os pequenos sejam educados aqui, no seu país. Eles são ingleses e eu quero que sejam educados como vulgares rapazes ingleses.

- Compreendo.

- E creio que é tudo - disse Mrs. Ramsay, e levantou-se.

A sua atitude tornara-se decidida e firme.

- Deve ter sido uma decisão dolorosa - murmurei, compreensivo. - Sinto muito por si.

E sentia, de facto. Talvez a minha voz exprimisse a sinceridade dos meus sentimentos e a comovesse, pois ela sorriu tristemente e murmurou:

- Talvez esteja a dizer a verdade... Creio que, na sua profissão, têm de tentar infiltrar-se, mais ou menos, sob a pele das pessoas, saber o que pensam e o que sentem. Foi tudo um grande golpe para mim, mas o pior já lá vai. Agora preciso de fazer planos... Que farei, para onde irei, se deverei ficar aqui ou ir para qualquer outro lado... Terei de arranjar um emprego.

Fui secretária, em tempos... Talvez me inscreva num curso de revisão de estenodactilografia...

- Não vá trabalhar para o Gabinete Cavendish.

- Porquê?

- As raparigas que lá trabalham parecem ter tendência para serem vítimas de coisas muito desagradáveis.

- Se julga que sei alguma coisa a esse respeito, está enganado. Não sei nada.

Desejei-lhe felicidades e saí. Não ficara a saber nada de novo, através dela... nem esperara ficar, na realidade. Mas devemos sempre tentar tudo, não deixar pontas soltas.

Ao sair, quase choquei com Mrs. McNaughton, que transportava um saco de compras e parecia pouco firme nas pernas.

- Dê-me licença... - Ao ver que tentava tirar-lhe o saco, agarrou-o com mais força, mas depois inclinou a cabeça, olhou-me melhor e largouo.

- É aquele jovem da Polícia... Não o reconheci.

Levei-lhe o saco até à porta e ela seguiu a meu lado. O saco pesava mais do que poderia parecer. Que transportaria? Quilos de batatas?

- Não toque. A porta não está fechada à chave.

As portas de Wilbraham Crescent pareciam nunca estar fechadas à chave!

- Como vão as coisas? - perguntou-me, tagarela e curiosa. - Parece que ele casou com uma mulher muito abaixo da sua categoria...

Fiquei sem saber a quem ela se referia.

- Quem? Tenho estado ausente...

- Ah, compreendo! Andou a seguir alguém, naturalmente... Referiame a Mistress Rival. Estive no inquérito e achei-a com um aspecto muito ordinário. Também não pareceu nada transtornada com a morte do marido.

- Não o via há quinze anos...

- Angus e eu somos casados há vinte anos.Suspirou. - É muito tempo.

E ele, agora que não está na universidade, não faz outra coisa senão trabalhar no jardim... Uma pessoa nem sabe com que se entreter.

Nesse momento, Mr. McNaughton surgiu da esquina da casa, de enxada na mão.

- Ah, minha querida, já voltaste! Eu levo-te o saco...

- Ponha-o na cozinha - disse-me Mrs. McNaughton, muito depressa, e deu-me uma cotovelada. Trouxe só os flocos de aveia, os ovos e um melão - acrescentou, dirigindo-se ao marido, toda sorridente.

Pus o saco em cima da mesa da cozinha e senti tilintar.

Flocos de aveia uma fava! Deixei os meus instintos de espião levar a melhor... Debaixo de uma camuflagem de folhas de gelatina, estavam três garrafas de uísque.

Compreendi por que motivo Mrs. McNaughton se mostrava, por vezes, tão animada e tagarela e, também, um pouco cambaleante. Talvez tivesse sido por isso que McNaughton desistira da sua carreira de professor. Naquela manhã parecia que toda a vizinhança andava na rua. Encontrei Mr. Bland, quando seguia pelo crescente na direcção da Albany Road. Mr. Bland parecia em excelente forma e reconheceu-me imediatamente.

- Como está? E como vão os crimes? Sei que conseguiram identificar o cadáver... O patife parece que tratou a mulher muito mal... Desculpe, mas você não faz parte da Polícia local, pois não?

Respondi, evasivamente, que viera de Londres.

- Quer dizer que a Scotland Yard está interessada, hem?

- Bem... - redargui, de novo evasivamente, e fiquei-me por aí.

- Compreendo, compreendo. Não se devem contar histórias fora da escola. Não o vi no inquérito...

Respondi-lhe que estivera no estrangeiro.

- Também eu, meu rapaz, também eu! - Piscou-me o olho.

- Alegre Paris? - indaguei, mas não retribuí a piscadela de olho.

- Pena tenho de não ter sido. Não, fiz apenas uma viagem de um dia a Bolonha. - Deu-me uma cotovelada, tal e qual como Mrs. McNaughton!, e acrescentou: - Não levei a patroa. Emparelhei com uma miúda loura, uma autêntica brasa.

- Viagem de negócios? - perguntei, e rimo-nos ambos, como homens do mundo.

Ele seguiu na direcção do número 61 e eu segui o meu caminho para a Albany Road.

Sentia-me descontente comigo próprio. Como Poirot dissera, os vizinhos poderiam, com certeza, dizer mais coisas. Não era, de facto, natural que ninguém tivesse visto nada. Talvez Hardcastle não tivesse feito as perguntas adequadas... Mas lembrar-me-ia, acaso, de algumas mais apropriadas? Quando cheguei à Albany Road, elaborei mentalmente uma lista de perguntas. Era mais ou menos deste teor:
 

  • Mr. Curry (Castleton) fora drogado. Como?

  • Mr. Curry (Castleton) fora morto. Quando?

  • Mr. Curry (Castleton) fora levado para o n.º 19. Como?

  • Alguém devia ter visto qualquer coisa! Quem?

  • Alguém devia ter visto qualquer coisa! O quê?


Virei de novo à esquerda e segui ao longo de Wilbraham Crescent, tal como acontecera no dia 9 de Setembro. Deveria visitar Miss Pebmarsh Tocar à campainha e dizer... Dizer o quê? E se visitasse Miss Waterhouse? Mas que diabo lhe poderia dizer?Mrs.  , talvez? A essa pouco importaria o que dissesse. Não prestaria grande atenção, mas o que dissesse, embora irrelevante e casual, talvez conduzisse a qualquer coisa.

Continuei a andar e a deduzir mentalmente os números, como anteriormente. Mr. Curry também per correra aquele caminho, a olhar para os números, até encontrar o da casa que tencionava visitar? Wilbraham Crescent nunca parecera tão requintadamente burguês. Quase dei comigo a exclamar, em estilo muito vitoriano: "Ah, se estas pedras falassem!..." Parecia ter sido uma frase favorita daqueles tempos. Mas as pedras não falam, assim como não falam os tijolos e a argamassa nem, tão-pouco, o gesso e o estuque. Wilbraham Crescent manteve-se silencioso. Antiquado, reservado, pelintra e pouco dado a conversas. Desaprovador, tive a certeza, de transeuntes ocasionais, que nem sequer sabiam o que procuravam.

Via-se pouca gente. Passaram dois rapazes de bicicleta e duas mulheres com sacos de compras. As casas, em si, pareciam embalsamadas como múmias, tão raros eram os sinais de vida que envidenciavam. Com preendi porquê. Aproximava-se a uma hora da tarde, a hora santificada pelas tradições inglesas para a refeição chamada do meio-dia. Numa ou duas casas vi, através das janelas sem cortinas, algumas pessoas sentadas à mesa. Mas até isso era raro, pois ou as janelas tinham cortinas de nylon, a versão moderna da em tempos popular renda de Nottingham, ou, e isso era muito mais provável, quem estava em casa almoçava na cozinha "moderna", de acordo com o costume da década de 1960. Era, pensei, uma hora perfeita para um assassínio. Teria o assassino pensado o mesmo? Aquelas circunstâncias peculiares teriam feito parte do seu plano Cheguei, finalmente, ao número 19. Parei a olhar, como acontecera a tantos outros mórbidos membros da comunidade. Naquela altura, porém, não estava mais ninguém à vista. "Nenhuns vizinhos", pensei tristemente. "Nenhuns curiosos inteligentes." Senti uma dor aguda no ombro. Enganara-me. Estava ali um vizinho, um vizinho que seria muito útil se pudesse falar... Encostara-me ao pilar da cancela do número 20, onde se encontrava o mesmo gatarrão amarelado que vira da primeira vez. Libertei o meu ombro das suas garras e disse-lhe umas palavras...

- Se os gatos pudessem falar...

O gato amarelo abriu a boca e soltou um miau alto e melodioso.

- Sei que podes, sei que podes falar tão bem como eu. Mas não falas a minha língua... Estavas aqui sentado, no outro dia? Viste quem entrou naquela casa ou saiu dela? Sabes tudo quanto aconteceu? Não me admiraria nada, bichano.

O gato não gostou dos meus comentários, virou-me as costas e começou a agitar a cauda.

- Peço perdão, majestade.

Lançou-me um olhar frio, por cima do lombo, e começou a lavar-se cuidadosamente. Não havia dúvida que Wilbraham Crescent não sabia o que eram verdadeiros vizinhos. O que eu queria e o que Hardcastle também queria era uma velhota simpática, bisbilhoteira e mexeriqueira, a quem sobrasse tempo, uma velhota sempre em ânsias por vir até à rua presenciar al gum escândalo. Mas, infelizmente, esse género de velhas parecia uma espécie extinta. Agora as velhinhas sentam-se todas em grupinhos, em lares para senhoras idosas onde não faltam os confortos indispensáveis à velhice, ou enchem os hospitais, cujas camas são ur gentemente necessárias para aqueles que estão de facto doentes. Os coxos, os aleijados e os velhos já não vivem nas suas próprias casas, entregues aos cuidados de uma serviçal fiel ou de algum parente pobre e apatetado, grato por ter, assim, um lar. Isso constituía um grave transtorno para a investigação criminal.

Olhei para o outro lado da rua. Porque não haveria vizinhos daquele lado? Porque não havia uma série de casas simpáticas, viradas para mim, em vez daquele grande monstro de cimento armado, de aspecto tão desumano? Era, sem dúvida, uma espécie de colméia humana, habitada por abelhas obreiras que passavam todo o dia fora de casa e só regressavam à noitinha, para lavarem a roupa interior ou retocarem a cara e irem ter com os namorados. Graças ao contraste com a desumanidade daquele prédio imenso, comecei a sentir uma espécie de ternura pela burguesia fanada de Wilbraham Crescent.

Bateu-me nos olhos um clarão de luz, vindo mais ou menos do meio do prédio. Fiquei intrigado e olhei para cima. O clarão repetiu-se. Estava uma janela aberta e alguém a olhar para a rua, um rosto parcialmente obliterado por qualquer coisa contra ele com primida. O clarão de luz repetiu-se mais uma vez.

Levei a mão à algibeira. Trazia muitas coisas nas algibeiras, coisas que podiam ser úteis - nem imaginam com que frequência! Um rolinho de adesivo; alguns instrumentos de aspecto inofensivo, capazes de abrir a maioria das portas fechadas à chave; uma latinha de pó cinzento, com um rótulo a dizer que continha o que não continha, e mais um ou dois objectos que a maioria das pessoas não saberia identificar. Entre outras coisas, tinha, também, um pequeno óculo de observar pássaros. Não era muito potente, mas às vezes fazia jeito. Tirei-o e assestei-o.

Estava uma criança à janela. Vi uma trança comprida caída sobre um ombro. A garota tinha um binóculo pequeno, de teatro, e observava-me com uma atenção que se podia qualificar de lisonjeadora. No entanto, como não havia mais nada ali que pudesse observar, talvez não fosse tão lisonjeadora como parecia... De súbito, porém, surgiu outra distracção inesperada em Wilbraham Crescent.

Um Rolls-Royce muito velho apareceu na estrada, impante de dignidade e conduzido por um motorista que também já não devia nada à juventude e que, embora de aspecto respeitável, parecia muito aborrecido com a vida. Passou por mim com a solenidade de todo um cortejo de carros. Reparei que a minha jovem observadora assestara o seu binóculo no Rolls-Royce... Deixei-me ficar onde estava, a pensar.

Tenho a convicção de que, quando se espera o tempo suficiente, acaba-se sempre por ser bafejado pela sorte. Acontece sempre qualquer coisa com que não contávamos, em que nem sequer pensávamos. Iria ser assim, daquela vez? Olhei de novo para o grande prédio e localizei, com cuidado, a janela que me interessava, a contar dos lados e do rés-do-chão para cima. Terceiro andar. Segui pela rua acima até chegar à entrada do prédio. Tinha uma passagem larga, para carros, que dava para as traseiras do edifício, onde havia canteiros de flores, muito certinhos, no meio da relva.

Acho sempre conveniente proceder a todos os movimentos necessários para dar a ilusão de que sucedeu qualquer coisa. Por isso saí do caminho de carros, aproximei-me do prédio, olhei para cima, como se me tivesse assustado, baixei-me e fingi procurar qualquer coisa. Por fim endireitei-me, ao mesmo tempo que fingia transferir um objecto da mão para a algibeira. A seguir contornei o prédio, até chegar de novo à entrada.

Suponho que, durante quase todo o dia, se devia encontrar lá um porteiro, mas na hora sagrada da uma às duas o átrio estava deserto. Havia uma campainha com o letreiro de PORTEIRO, em que não toquei. Meti-me no elevador e carreguei no botão do terceiro andar. Quando cheguei, tive de proceder com cuidado. Do exterior, parece simples localizar determinado aposento mas o interior de um prédio causa confusão. No entanto, eu tivera oportunidade de adquirir muita prática daquelas coisas e estava convencido de que sabia qual a porta que me interessava. O número que a identificava era, para o melhor ou para o pior, o 77...

Bem, o sete é um número de sorte... Lá vou eu!

Premi o botão da campainha e recuei, a aguardar os acontecimentos.


NARRATIVA DE COLIN LAMB

Esperei apenas um ou dois minutos, antes de a porta se abrir.

Uma robusta rapariga nórdica, de rosto corado e vestido alegremente colorido, olhou-me com ar interrogador. Lavara as mãos, à pressa, mas ainda conservavam vestígios de farinha e tinha um salpico de massa no nariz. Não me custou, por isso, a adivinhar o que estivera a fazer.

- Desculpe, mas mora aqui uma garotinha, não mora? Deixou cair uma coisa da janela...

Sorriu-me, encorajadoramente. O inglês ainda não era o seu forte.

- Desculpe... Que disse?

- Uma criança, aqui uma menina.

- Sim, sim.

- Deixou cair uma coisa da janela. - Recorri aos gestos, para me fazer entender melhor. - Apanhei-a e trouxe-a cá acima.

Abri a mão, na qual tinha uma faca de fruta, de prata. A rapariga olhou-a, sem a reconhecer.

- Não creio... Não vi...

- Está atarefada a cozinhar - observei, com um sorriso de compreensão.

- Sim, sim, eu cozinhar - concordou, a acenar vigorosamente com a cabeça.

- Não a quero incomodar. Se me deixar ir levar-lha...

- Perdão?

Por fim pareceu compreender-me, deixou-me entrar e levou-me a uma saleta agradável. Junto da janela estava um sofá e, nele, uma garota de nove ou dez anos, com uma perna metida num aparelho de gesso.

- Este senhor disse que... que deixar cair...

Felizmente, nesse instante veio da cozinha um forte cheiro a queimado e a rapariga soltou uma exclamação de desagrado.

- Dê-me licença, por favor.

- Vá, eu cá me arranjo - respondi-lhe.

Afastou-se a correr e eu entrei na sala, fechei a porta e aproximei-me do sofá.

- Como passa?

- Bem, e o senhor? - redarguiu a pequenita, e observou-me com um olhar prolongado e penetrante, que quase me fez perder a coragem.

Era uma garota feiota, de cabelo escorrido, acastanhado, preso em duas tranças. Tinha fronte abaulada, queixo pontiagudo e olhos cinzentos muito inteligentes.

- Sou Colin Lamb - apresentei-me. - Como te chamas?

- Geralmente Mary Alexandra Brown - respondeu sem hesitar.

- Meu Deus, que grande nome! Como te tratam?

- Por Geraldine. As vezes chamam-me Gerry, mas eu não gosto. Além disso,o meu pai não aprova os diminutivos.

Uma das grandes vantagens de lidar com crianças é o facto de elas possuírem a sua lógica própria. Qualquer pessoa adulta ter-me-ia perguntado imediatamente o que queria, mas Geraldine estava disposta a entabular conversação sem recorrer a perguntas tolas. Estava sozinha e aborrecida e o aparecimento de uma visita, fosse de que tipo fosse, era uma novidade agra dável. Enquanto eu não demonstrasse ser um tipo enfadonho e sem interesse, conversaria comigo de bom grado.

- Suponho que o teu pai não está em casa?

Respondeu com a mesma prontidão e riqueza de pormenores de que dera provas anteriormente:

- Está a trabalhar na Cartinghaver Engineering Works, em Beaverbridge. Fica exactamente a vinte e quatro quilómetros daqui.

- E a tua mãe?

- A minha mãe morreu - respondeu Geraldine, com o mesmo desembaraço.- Morreu quando eu tinha dois meses. Vinha de França, num avião que caiu. Morreram todos. Falava com certa satisfação e eu compreendi que, para uma criança,o facto de a mãe ter morrido num acidente impressionante se revestia de uma certa glória.

- Compreendo. Por isso tens... - Olhei na direcção da porta.

- Ingrid. É da Noruega e só veio há duas semanas. Ainda não sabe inglês que chegue para falar. Eu estou a ensiná-la.

- E ela ensina-te norueguês?

- Poucochinho.

- Gostas dela?

- Gosto. Mas os seus cozinhados são, às vezes, esquisitos. Gosta de comer peixe cru, veja lá!

- Também comi peixe cru na Noruega. Às vezes é muito bom.

Geraldine pareceu duvidar muito.

- Hoje está a ver se consegue fazer uma tarte de mel.

- Isso parece bom.

- E é. Eu gosto de tarte de mel. - Perguntou, delicadamente: - Veio cá almoçar?

- Não. Ia a passar, lá em baixo, e pareceu-me que deixaste cair qualquer coisa da janela.

- Eu?

- Sim.

Estendi-lhe a faca de prata. Geraldine olhou-a, primeiro com desconfiança, e por fim com sinais de aprovação.

- É bonita - comentou. - O que é?

- Uma faca de fruta.

Abri-a, para a ver melhor.

- Pode-se descascar maçãs e coisas assim com ela, não pode?

- Pode.

- Não é minha - confessou Geraldine, a suspirar. - Não a deixei cair.

Porque pensou que fui eu?

- Bem, estavas à janela e...

- Passo a maior parte do tempo à janela. Caí e parti a perna...

- Pouca sorte.

- Pois foi. Além disso, não a parti de maneira interessante. Ia a descer do autocarro, ele arrancou bruscamente... Ao princípio doeu-me muito, mas agora já não dói.

- Deve ser muito aborrecido para ti.

- Pois é. O meu pai traz-me coisas: plasticina, livros, lápis de cor, quebra-cabeças e coisas assim... Mas uma pessoa cansa-se dessas brincadeiras e é por isso que passo muito tempo a espreitar pela janela com isto!

Mostrou-me o binóculo, cheia de orgulho.

- Posso ver? - Peguei no binóculo, levei-o aos olhos e espreitei pela janela. - É um bom!

Era, de facto, excelente. Se fora o pai que lho dera, não olhara a despesas. Via-se o número 19 de Wil, braham Crescent e as casas vizinhas com uma nitidez extraordinária.

- É excelente - elogiei. - De primeira classe.

- É a sério - explicou Geraldine, vaidosa. Não é como os de brincar, para crianças.

- Ah, pois não!

- Tenho um livrinho - mostrou-mo -, onde escrevo coisas e horas. É como o jogo dos comboios. Tenho um primo chamado Dick que se entretém com isso. Também registamos números de automóveis.

Começamos por um e vemos quantos conseguimos, percebe?

- Deve ser engraçado.

- Pois é. Infelizmente não passam muitos carros por esta rua e, por isso, tive de desistir, por agora.

- Suponho que sabes tudo acerca daquelas casas. Quem lá mora...

Deitei o barro à parede com um ar muito casual, mas Geraldine pegou-me logo na palavra:

- Oh, pois sei! Claro que não sei os nomes verdadeiros, mas inventoos.

- Deve ser divertido.

- Ali, mora a marquesa de Carrabás, naquela casa que tem as árvores maltratadas. Lembra-se de O Gato das Botas? Ela tem montes de gatos!

- Estive a falar com um deles, há bocado. Um amarelado.

- Eu vi.

- Deves ser muito esperta. Creio que não te escapa nada...

Geraldine sorriu, satisfeita. No mesmo instante, Ingrid abriu a porta e entrou, ofegante.

- Está bem, sim?

- Estamos muito bem - respondeu Geraldine, com firmeza. - Não se preocupe, Ingrid. - Acenou com a cabeça e fez gestos com as mãos. - Volte, vá cozinhar.

- Muito bem, vou. Ainda bem que tem uma visita.

- Ela enerva-se quando cozinha - explicou Geraldine. - Sobretudo quando está a experimentar uma coisa nova. Às vezes comemos muito tarde, por causa disso. Ainda bem que o senhor veio. É bom ter alguém para me distrair, pois assim não penso na fome.

- Diz-me mais coisas daquelas casas e do que vês. Quem mora na casa seguinte, naquela arranjada?

- Uma mulher cega. Não vê nada, mas caminha como se visse. Foi o porteiro que me disse. Chama-se Harry e é muito simpático, conta-me muitas coisas.

Falou-me do assassínio.

- Do assassínio? - perguntei, a fingir-me adequadamente surpreendido.

Geraldine acenou com a cabeça e os seus olhos brilharam. A informação que se preparava para me dar fazia-a sentir-se importante.

- Houve um assassínio naquela casa e eu vi-o, praticamente.

- Que interessante!

- E não é? Nunca tinha visto um assassínio... Quero dizer, uma casa onde houve um assassínio.

- Mas que viste, afinal?

- Bem, não se passavam muitas coisas, naquela ocasião. É um período do dia muito parado. Mas de repente saiu uma pessoa da casa, a gritar, e eu compreendi que devia ter acontecido alguma coisa.

- Quem é que gritava?

- Uma mulher. Era nova e bonita, por sinal. Saiu pela porta fora, aos gritos... Vinha um homem na rua e ela transpôs a cancela e agarrou-se a ele... assim.Estendeu os braços e, de súbito, fitou-me. - Ele parecia-se muito consigo.

- Devo ter um sósia! - exclamei, em tom de brincadeira. - Que se passou depois? Isso é muito emocionante!

- Bem, ele sentou-a no chão, sem cerimónias, e correu para dentro de casa. O imperador, é o gato amarelo; chamo-lhe Imperador por ele ser tão orgulhoso, parou de se lavar e pareceu muito surpreendido. Depois Miss Espeto saiu de casa, é aquela, do número dezoito, e parou nos degraus, a olhar.

- Miss Espeto?

- Chamo-lhe assim por ela ser tão feia. Tem um irmão e manda nele.

- Continua - pedi, interessado.

- A seguir aconteceram muitas coisas. O homem saiu de casa... Tem a certeza de que não era você?

- Sou um tipo muito vulgar - respondi, modestamente. - Há muitos como eu.

- Sim, isso é verdade - admitiu Geraldine, nada lisonjeadora. - Bem, o homem correu pela rua abaixo e foi telefonar à cabina. Pouco depois, começou a chegar a Polícia. - Os olhos da miúda cintilavam.Montes de polícias! Levaram o morto numa espécie de ambulância. Claro que, entretanto, juntara-se muita gente, a olhar. Também lá vi Harry, o porteiro.

Ele contou-me tudo, depois.

- Disse-te quem foi assassinado?

- Disse que tinha sido um homem. Ninguém sabia o seu nome.

- Isso tudo é muito interessante.

Pedi fervorosamente aos céus que Ingrid não voltasse naquele momento com uma deliciosa tarte de mel ou qualquer outra guloseima.

- Mas volta um bocadinho atrás, sim? Viste o homem... o homem que assassinaram, chegar àquela casa?

- Não. Suponho que esteve lá sempre.

- Queres dizer que morava lá?

- Oh, não! Naquela casa só mora Miss Pebmarsh.

- Sabes, então, como ela se chama?

- Vinha nos jornais, com a notícia do crime. E a rapariga que gritou chama-se Sheila Webb. Harry disse-me que o homem que mataram se chamava Mister Curry. É um nome muito esquisito, não é? Há uma comida com o mesmo nome. Mas também houve outro assassínio sabe? Não foi no mesmo dia, foi depois... na cabina telefónica. Vejo-a daqui, mas para isso tenho de me debruçar toda e virar a cabeça. Se soubesse que ia haver um crime, ter-me-ia debruçado e teria visto, assim, não vi. Nessa manhã, estava muita gente lá em baixo, na rua, a olhar para a casa defronte. É estúpido não acha?

- Acho. É muito estúpido.

Ingrid voltou:

- Venho daqui a bocadinho. Falta pouco - anunciou.

- Não precisamos dela - disse Geraldine, quando a rapariga saiu. - Enerva-se com as refeições, embora só tenha de preparar esta, além do pequeno-almoço.

À noite o meu pai vai lá abaixo, ao restaurante, e manda trazerem-me qualquer coisa. Peixe ou qualquer coisa... Não é comer a sério - lamentou-se, tristemente.

- A que horas costumas almoçar, Geraldine?

- Jantar, quer dizer? Agora é o meu jantar; à noite não janto, ceio.

Bem, janto quando a Ingrid acaba de cozinhar, a qualquer hora. Ela é muito cómica, com as horas. O pequeno-almoço tem que o ter pronto a tempo, porque o meu pai zanga-se, mas o jantar... às vezes é ao meio-dia, outras tenho de esperar até às duas horas... Ela diz que não é preciso comer a horas certas; come-se quando a comida está feita.

- Isso é uma ideia muito prática. A que horas almoçaste... quero dizer, jantaste, no dia do crime?

- Foi um dos dias em que calhou ao meio-dia. É o dia de saída da Ingrid, percebe? Ela vai ao cinema ou arranjar o cabelo e Mistress Perry vem-me fazer companhia. É terrível. Dá palmadinhas.

- Dá palmadinhas? - perguntei, um pouco intrigado.

- Sim, na cabeça. E diz coisas como: "Querida pequenita"... Não é uma pessoa com quem se possa conversar como deve ser... mas traz-me doces e coisas assim.

- Que idade tens, Geraldine?

- Dez anos. Dez anos e três meses.

- Sabes conversar muito bem, com muita inteligência - elogiei.

- Isso é porque tenho de conversar muito com o meu pai - explicou, com toda a seriedade.

- Portanto, jantaste cedo, no dia do crime?

- Sim, para a Ingrid poder lavar a louça e sair antes da uma hora.

- Nessa manhã estiveste à janela, a observar as pessoas.. .

- Sim, parte do tempo. Cerca das dez horas estive entretida a fazer palavras cruzadas.

- Tenho estado a pensar se não terias visto Mister Curry chegar àquela casa...

- Não vi. Concordo que é estranho.

- Bem, talvez ele tenha chegado muito cedo.

- Não foi à porta da frente e não tocou à campainha. Se fosse, tê-lo-ia visto.

- Se calhar entrou pelo jardim... quero dizer, pelo outro lado da casa.

- Oh, não! Dá para outras casas e as pessoas não deixariam ninguém passar pelos seus jardins.

- Suponho que não.

- Gostava de saber como ele era...

- Bem, era velho, tinha cerca de sessenta anos. Usava a cara rapada e vestia um fato cinzento-escuro.

- Parece muito vulgar - comentou Geraldine, desaprovadora.

- Acho que deves ter dificuldade em distinguir uns dias dos outros, visto estares aqui imobilizada e sempre a olhar lá para fora.

- Não é nada difícil! - afirmou, sem perder a deixa. - Sei-lhe dizer tudo acerca dessa manhã. Até sei quando Mistress Caranguejo chegou e quando saiu.

- Mistress Caranguejo? É a mulher-a-dias?

- É. Arrasta-se mesmo como um caranguejo! Tem um filho, que às vezes vem com ela. Mas nesse dia não veio. Miss Pebmarsh sai cerca das dez horas, para ensinar crianças numa escola de cegos. Mistress Caranguejo sai por volta do meio-dia e, às vezes, leva um embrulho que não trazia à chegada. Bocados de manteiga e de queijo, naturalmente... Como Miss Pebmarsh não vê... Sei muito bem o que aconteceu nesse dia porque a Ingrid e eu estávamos zangadas e ela não queria falar comigo. Ando a ensinar-lhe inglês e ela queria saber como se diz "até à vista". Teve de mo dizer em alemão: Auf Wiedersehen. Sei que é assim porque uma vez estive na Suíça e as pessoas diziam-no. Também diziam Grüss Gott. É feio dizer isso em inglês.

- Então que ensinaste a Ingrid a dizer?

Geraldine desatou a rir, maliciosamente, e teve dificuldade em falar.

Por fim, lá conseguiu:

- Ensinei-a a dizer: "Suma-se daqui para fora!" Ela disse-o a Miss Bulstrode, que mora aqui ao lado, e Miss Bulstrode ficou furiosa! Ingrid descobriu e ficou muito zangada comigo. Só fizemos as pazes à hora do chá do dia seguinte.

Digeri a informação...

- Por isso entretiveste-te com o teu binóculo...

Geraldine acenou com a cabeça.

- E por isso sei que Mister Curry não entrou pela porta da frente.

Penso que talvez tenha entrado de noite e se tenha escondido no sótão.

Acha possível?

- Acho que tudo é possível, mas não me parece muito provável.

- Pois não. Ele teria fome, não teria? E não poderia pedir a Miss Pebmarsh o pequeno-almoço, se estava escondido dela.

- E ninguém foi lá a casa? Absolutamente ninguém? Alguém que viesse num automóvel... um vendedor...

- O merceeiro vem às segundas e às quintas-feiras e o leiteiro às oito e meia da manhã.

A garota era uma autêntica enciclopédia!

- A hortaliça e coisas assim é Miss Pebmarsh que compra. Não veio ninguém, a não ser da lavandaria. Por sinal era uma lavandaria nova.

- Uma lavandaria nova?

- Sim. Costumava ser a Southern Down Laundry, que é a lavandaria da maioria das pessoas daqui. Mas naquele dia foi a Snowflake Laundry. Nunca a tinha visto. Deve ser nova.

Esforcei-me por não atraiçoar, pela voz, o enorme interesse que sentia. Não queria que ela começasse a fantasiar.

- Veio trazer ou buscar a roupa?

- Trazer. O cesto até era muito grande, muito maior do que é costume.

- Foi Miss Pebmarsh que o recebeu?

- Claro que não. Ela tinha saído outra vez.

- A que horas foi isso, Geraldine?

- À uma e trinta e cinco, exactamente. Tomei nota - respondeu, orgulhosamente.

Pegou num livrinho, abriu-o e apontou um registo, com o indicador um bocado sujo: Vieram da lavandaria à 1.35 h.

- Devias ir para a Scotland Yard!

- Têm mulheres-detectives? Gostaria imenso! Mulher-polícia, não. Acho as mulheres-polícias ridículas.

- Ainda não me disseste o que aconteceu quando vieram da lavandaria.

- Não aconteceu nada. O motorista apeou-se, abriu a porta de trás, tirou o cesto e carregou-o, com dificuldade, para as traseiras da casa.

Suponho que não pôde entrar, por a porta estar fechada à chave, e deixou o cesto no patamar.

- Como era ele?

- Vulgar.

- Como eu?

- Oh, não! Era muito mais velho. Mas não o vi bem porque ele aproximou-se da casa por este lado - apontou para a direita. - Parou defronte do número dezanove, embora estivesse fora da sua mão... mas isso não tem importância, numa rua como esta. Depois entrou, todo dobrado debaixo do cesto, e só lhe vi as costas. Quando voltou, vinha a esfregar a cara.

Naturalmente estava cansado e com calor por ter transportado o cesto.

- E partiu?

- Partiu. Porque lhe parece tão interessante?

- Bem, não sei... Pensei que talvez ele tivesse visto alguma coisa com interesse.

Ingrid abriu a porta e entrou a empurrar uma mesinha com rodas.

- Agora vamos jantar! - anunciou, alegremente.

- Óptimo! - exclamou Geraldine. - Estou esfaimada. - Tenho de ir andando - disse, e levantei-me. Adeus, Geraldine.

- Adeus. E isto? - pegou na faca de fruta. Não é minha... tenho pena.

- Parece que não é de ninguém em especial, pois não?

- Pode ser tesouro achado, ou como se diz?...

- Acho que sim... Creio que podes ficar com ela, até alguém a reclamar... mas não creio que alguém a reclame.

- Dê-me uma maçã, Ingrid.

- Maçã?

- Pomme! Apfell!

Não ia nada mal em linguística...


***

Mrs. Rival empurrou a porta do Peacock's Arms e avançou, com pouca segurança, para o balcão. Falava em voz baixa e via-se que não era desconhecida na casa. O empregado saudou-a afectuosamente.

- Como vai, Flo?

- Não vai muito bem. Não está certo. Sei do que estou a falar, Fred, e digo que não está certo.

- Claro que não está certo - concordou Fred, apaziguador. - Que deseja? O costume?

Mrs. Rival acenou afirmativamente, pagou e começou a sorver a bebida. Fred afastou-se, para atender outro cliente. A bebida animou um bocadinho Mrs. Rival.

Continuava a falar entredentes, mas com uma expressão mais animada. Quando Fred voltou, ela falou-lhe, em tom mais suave:

- Mesmo assim, não tolerarei semelhante coisa! Não posso suportar a falsidade, nunca pude!

- Pois claro, Flo. - Fred observou-a com olhar entendido, e comentou:

- Já bebeu uns copitos...E pensou, para consigo: "Mas ainda aguenta mais uns dois. Qualquer coisa a transtornou..."

- Falsidade - repetiu Mrs. Rival. - Prevari... prevari... Bem, você sabe que palavra quero dizer.

- Pois sei, Flo.

Fred foi atender outro cliente, falaram de cães e Mrs. Rival continuou a resmungar.

- Não me agrada e não permitirei. Hei-de dizê-lo. Têm de se convencer de que não me podem tratar desta maneira. Oh, não, não podem! Não está certo, e se uma pessoa não se defende, quem a defenderá? Dê-me mais outra, queridinho - pediu, em voz mais alta, e Fred fez-lhe a vontade.

- No seu lugar, ia para casa depois de beber essa.

Que teria transtornado tanto a velhota? Geralmente mostrava-se bemdisposta, uma boa alma sempre pronta a rir.

- Acabarão por me meter em maus lençóis, Fred. Quando alguém nos pede que façamos uma coisa, deve dizer-nos tudo a esse respeito, deve dizer-nos o que significa e o que pretende fazer. Mentirosos. Imundos mentirosos! Mas eu não permitirei.

- Acho melhor ir para casa - insistiu Fred, ao ver uma lágrima prestes a rolar pelo esplendor da pintura. - Vai chover, e chover muito, e a chuva estragará o seu bonito chapéu.

Mrs. Rival esboçou um leve sorriso de aprovação.

- Sempre gostei de centáureas azuis. Meu Deus, não sei que fazer!

- Vá para casa e durma um bom sono, Flo aconselhou Fred, bondosamente.

- Talvez, mas...

- Então? Com certeza não quer estragar esse chapéu. ..

- Lá isso é verdade... Sim, é muito verdade. É uma prof... profunda... não, não é isso que quero dizer. Que quero eu dizer, Fred?

- Profunda observação.

- Muito obrigada.

- Não tem de quê, Flo.

Mrs. Rival escorregou do banco e encaminhou-se para a porta, um bocadinho cambaleante, mas não muito.

- Parece que a velha Flo está um pouco transtornada, esta noite - observou um dos clientes.

- Geralmente é muito alegre, mas todos temos os nossos altos e baixos - disse um indivíduo de ar tristonho.

- Se alguém me tivesse dito - prosseguiu o primeiro homem - que Herry Vranger chegaria em quinto lugar, atrás da Queen Caroline, não acreditaria! Deve ter havido batota. As corridas, hoje em dia, não são leais.

Drogam os cavalos, todos eles...

Mrs. Rival saíra do Peacock's Arms. Olhou para o céu, hesitante.

Sim, talvez fosse chover... Meteu pela rua fora, estugou um pouco o passo, virou à esquerda e depois à direita e, por fim, parou diante de uma casa muito modesta. Quando tirou a chave e subiu os primeiros degraus, uma cabeça espreitou pela porta e uma voz informou-a:

- Está um cavalheiro à sua espera lá em cima.

- À minha espera? - perguntou Mrs. Rival, um pouco surpreendida.

- Bem, pode-se chamar-lhe um cavalheiro... está bem vestido e tudo o mais, mas não chega aos calcanhares de Lorde Algernon Vere de Vere...

Mrs. Rival conseguiu encontrar o buraco da fechadura, introduzir a chave e abrir a porta.

A casa cheirava a couves, peixe e eucalipto. O último cheiro era quase permanente naquele átrio. A senhoria de Mrs. Rival tinha muito cuidado com o peito, no Inverno, e começava a prevenir-se em meados de Setembro... Mrs. Rival subiu a escada, apoiada ao corrimão, empurrou a porta do primeiro andar e entrou. De súbito, porém, estancou e, a seguir, recuou um passo.

O detective-inspector Hardcastle levantou-se da cadeira onde estava sentado.

- Boas noites, Mistress Rival.

- Que deseja? - perguntou a mulher, com menos delicadeza do que era habitual nela.

- Bem, precisei de vir a Londres, em serviço, e como desejava esclarecer uns pormenores consigo, vim até cá, na esperança de a encontrar. A... a mulher lá de baixo enganou-se, ao dizer que a senhora não se deveria demorar muito.

- Bem, mas não compreendo...

O inspector puxou uma cadeira e convidou, delicadamente:

- Sente-se, por favor.

Dir-se-ia que era ele o dono da casa e ela a visita.

Mrs. Rival sentou-se e olhou-o fixamente.

- De que pormenores se trata?

- Coisas sem importância, que surgiram. - Acerca... acerca do Harry?

- Sim. - Bem... - A mulher hesitou, um momento. - Escute... - Mrs.

Rival falou com uma certa agressividade e as narinas do inspector captaram o cheiro a álcool do seu hálito. - Escute, o Harry acabou-se e não quero pensar mais nele. Apresentei-me quando vi o retrato no jornal, não apresentei? Apresentei-me e disse-lhe tudo a respeito dele. Já passou muito tempo e não quero recordar o que aconteceu. Não lhe posso dizer mais nada, disse-lhe tudo quanto sabia e não quero ouvir falar mais do assunto.

- Trata-se de uma coisa sem importância - insistiu o inspector, em tom suave e pesaroso.

- Pois sim, já que tem de ser. De que se trata? Acabemos com isso.

- Reconheceu o indivíduo como seu marido, ou como o homem com o qual efectuou uma cerimónia de casamento, há cerca de quinze anos. Foi isto, não foi?

- Julgava que já tivesse tido tempo de saber exactamente há quantos anos foi.

"Mais esperta do que eu julgava", pensou o inspector.

- Tem razão, procedemos a investigações a esse respeito. Casaram no dia quinze de Maio de mil novecentos e quarenta e oito.

- Dizem que ser noiva de Maio dá azar... A mim não me deu sorte.

- Apesar dos anos que passaram, identificou o seu marido com muita facilidade.

- Ele não envelheceu muito - redarguiu Mrs. Rival, pouco à vontade.

- Teve sempre muito cuidado consigo.

- Além disso, deu-nos ainda uma informação que ajudou a corroborar a identificação. Escreveu-me acerca de uma cicatriz...

- Sim, atrás da orelha esquerda. Aqui... - Mrs. Rival levantou a mão e apontou o ponto exacto.

- Atrás da orelha esquerda dele? - insistiu Hard castle.

Sim, creio que sim. Sim, tenho a certeza. Claro que, numa pressa, nunca distinguimos a esquerda da direita, pois não? Mas era do lado esquerdo do pescoço de le. Aqui. - Voltou a colocar a mão no mesmo ponto.

- E ele cortou-se ao barbear-se, não foi o que disse?

- Foi. O cão saltou para ele... Tínhamos um cão muito traquinas, nessa altura, muito meigo... Atirava-se a nós, para nos demonstrar o seu carinho... O Harry tinha a navalha na mão e a lâmina enterrou-se profundamente. Sangrou muito. Sarou, mas a cicatriz nunca desapareceu. - Recomeçara a falar com muito mais segurança.

É um pormenor muito importante, Mistress Rival. Os homens às vezes parecem-se muito, sobretudo quando passamos muitos anos sem os ver. Mas encontrar um homem parecido com o seu marido e, ainda por cima, com uma cicatriz no mesmo sítio da que ele tinha... Enfim, a identificação assim torna-se mais segura. Parece-me que temos, agora, por onde começar.

- Ainda bem que está satisfeito.

- A propósito, esse acidente com a navalha... quando sucedeu?

Mrs. Rival pensou, um momento.

- Deve ter sido... uns seis meses depois de casarmos. Exactamente.

Lembro-me de que arranjámos o cão nesse Verão.

- Portanto, ele cortou-se em Outubro ou Novembro de mil novecentos e quarenta e oito?

- Isso mesmo.

- E depois de o seu marido a deixar, em mil no vecentos e cinquenta e um.. .

- Não foi ele que me deixou; eu é que corri com ele - emendou Mrs.

Rival, com dignidade.

- Pois claro, como quiser. Depois de correr com o seu marido, em mil novecentos e cinquenta e um, nunca mais o voltou a ver, até deparar com a sua fotografia no jornal?

- Já lhe disse que não.

- Tem a certeza absoluta a esse respeito, Mistress Rival?

- Claro que tenho a certeza. Nunca mais voltei a pôr os olhos em Harry Castleton até ao dia em que o vi morto.

- É estranho, sabe? É muito estranho...

- Porquê? Que quer dizer?

- O tecido cicatricial é uma coisa muito curiosa. Claro que, para si ou para mim, uma cicatriz é uma cicatriz... Mas os médicos são capazes de descobrir muitas coisas, ao examinarem uma cicatriz. Podem, por exemplo, avaliar mais ou menos há quanto tempo um homem tem determinada cicatriz.

- Não percebo aonde quer chegar.

- Quero chegar simplesmente a isto, Mistress Rival: segundo o médico da Polícia e outro médico que consultámos, a cicatriz que o seu marido apresenta atrás da orelha indica claramente que o ferimento que a causou foi feito há cinco ou seis anos, no máximo.

- Tolice! Não acredito. Eu... ninguém pode saber uma coisa dessas.

Pelo menos não foi nessa altura que...

- Portanto - prosseguiu Hardcastle, suavemente -, se aquela cicatriz resulta de um ferimento de há cinco ou seis anos, isso significa que, se o indivíduo foi seu marido, não tinha cicatriz nenhuma quando a deixou em mil novecentos e cinquenta e um.

- Talvez não tivesse. Mas, de qualquer maneira, trata-se do Harry.

- Mas a senhora afirma que não o voltou a ver desde que se separaram. Ora se não o voltou a ver, como poderia saber que ele arranjou uma cicatriz há cinco ou seis anos?

- Está a confundir-me! - protestou Mrs. Rival.Está a confundir-me muito. Talvez não tivéssemos casado há tanto tempo, talvez não fosse em mil novecentos e quarenta e oito... Uma pessoa não se pode lembrar de tudo. O que interessa é que o Harry tinha aquela cicatriz e eu sabia-o.

- Compreendo - murmurou o inspector, e levantou-se. - Aconselho-a a reflectir muito bem nas declarações que prestou, Mistress Rival. Não deseja, com certeza, arranjar sarilhos.

- Arranjar sarilhos? Que quer dizer?

- Bem... perjúrio - respondeu Hardcastle, quase em tom de quem se desculpa.

- Perjúrio! Perjúrio, eu!

- Sim. É um crime muito grave, aos olhos da lei... Poderia, até, ser presa... Claro que não prestou juramento, ao depor no inquérito, mas talvez tenha de o prestar, um dia, num tribunal competente. Por isso... enfim, gostaria que pensasse bem, Mistress Rival. Talvez alguém lhe sugerisse que nos falasse na cicatriz?

Mrs. Rival levantou-se e ficou muito direita e de olhos coruscantes. Naquele momento, parecia quase majestosa.

- Nunca ouvi tanta tolice na minha vida! Resolvi cumprir o meu dever, apresentei-me e ajudei-o, disse-lhe aquilo de que me lembrei... Se cometi um erro qualquer, acho natural. No fim de contas tenho muitos... enfim, muitos cavalheiros amigos e, às vezes, é possível fazermos confusão. Mas não creio que me tenha enganado. Aquele homem era o Harry e o Harry tinha uma cicatriz atrás da orelha esquerda. Tenho a certeza disso! E agora, inspector Hardcastle, talvez seja melhor ir-se embora, em vez de continuar a insinuar que lhe menti.

- Boas noites, Mistress Rival - despediu-se imediatamente o inspector. - Pense bem.

Assim que Hardcastle saiu, a atitude de desafio da mulher modificou-se por completo. Pareceu assustada e preocupada.

- Meterem-me nisto... - murmurou. - Meterem-me nisto... Não continuarei... Não me meterei em sarilhos seja lá por causa de quem for!

Dizerem-me coisas, mentirem-me, enganarem-me! É monstruoso! Monstruoso!

Começou a andar nervosamente de um lado para o outro e, por fim, pareceu tomar uma decisão. Pegou num chapéu-de-chuva e voltou a sair.

Foi até ao fim da rua, hesitou junto de uma cabina telefónica e depois encaminhou-se para o posto dos Correios. Entrou, pediu que lhe trocassem dinheiro e meteu-se numa das cabinas. Ligou para as informações por moradas, pediu um número e aguardou que fizessem a chamada.

- Está ligado o número que deseja - informou a telefonista.

- Está?... Ah, és tu! Aqui, Flo... Bem sei que me disseste que não telefonasse, mas não o pude evitar. Não foste leal comigo, não me disseste em que me ia meter. Disseste apenas que seria desagradável e embaraçoso para ti se o indivíduo fosse identificado. Não me passou sequer pela cabeça que me veria metida num assassínio... Claro, já esperava que me dissesses isso. Mas não foi o que me explicaste... Sim, penso. Penso que tens a ver com o caso, seja lá em que sentido for... Não, não permitirei... Há uma questão de ser cum... tu sabes a palavra... cúmplice ou coisa parecida.

Estou assustada, garanto-te. Essa ideia de me mandares escrever acerca da cicatriz foi estúpida. Agora parece que ele só tinha a cicatriz há um ou dois anos, e eu jurei que já a tinha quando me deixou... É perjúrio e posso ir parar à cadeia por causa disso!

É inútil tentares convencer-me... Não... Fazer um favor é uma coisa...

Bem sei, bem sei que me pagaste. Mas não foi muito, também... Está bem, eu escuto, mas já te digo que não... Está bem, está bem, eu calo-me... Que disseste?... Quanto?... Isso é muito dinheiro. Como sei que o tens mesmo que... Bem, sim, claro, isso seria diferente. Juras que não tiveste nada a ver com o assunto?... Quero dizer, que não participaste na morte de ninguém...

Não... enfim, tenho a certeza de que não farias. Claro que compreendo...

Às vezes aliamo-nos a certas pessoas que vão mais longe do que nós iríamos, acontecem coisas e a culpa não é nossa, mas... Na tua boca as coisas parecem sempre tão plausíveis... Foste sempre assim... Está bem, pen sarei no assunto. Mas terá de ser depressa... Amanhã... A que horas?...

Sim, sim, irei. Mas nada de cheques, podiam descobrir... Não sei, francamente, se deverei continuar, mesmo que... Está bem, se tu o dizes...

Não queria ser desagradável, acredita... Pronto, combinado.

Saiu do posto dos Correios a cambalear de extremo a extremo do passeio e a sorrir para consigo. Valia a pena arriscar-se a umas complicaçõezitas com a Polícia por aquela quantia. Fazia-lhe muito jei to. E, bem vistas as coisas, os riscos não eram muito grandes. Bastar-lhe-ia dizer que não sabia ou não se lembrava. Havia muitas mulheres que não se lembravam de coisas sucedidas havia apenas um ano... Diria que fazia confusão entre o Harry e outro homem. Oh, a lembrava-se de muitas coisas que poderia dizer! Mrs. Rival possuía um temperamento naturalmente mercurial. Sentiase, naquele momento, tão eufórica quanto se sentira deprimida pouco antes.

Começou a pensar a sério nas primeiras coisas que compraria com o dinheiro...


NARRATIVA DE COLIN LAMB

- Não parece ter sabido grande coisa por intermédio dessa Mistress Ramsay - queixou-se o coronel Beck.

- Não havia muito que saber.

- Tem a certeza?

- Tenho.

- Ela não é parte activa?

- Não.

- Satisfeito? - perguntou-me o velho, a observar-me com atenção.

- Não de todo.

- Esperava mais?

- A lacuna continua a existir.

- Teremos de procurar noutro lado qualquer. Desistiu dos crescentes, hem?

- Sim.

- Está muito monossilábico. Apanhou alguma bebedeira?

- Não presto para este trabalho.

- Quer que o coloque na pista e diga "Ali, ali"?

Não pude deixar de rir.

- Assim já está melhor! De que se trata, Colin? Sarilho de saias, creio?

- Comecei a sentir isto há algum tempo - respondi, a abanar a cabeça.

- Para ser sincero, dei por isso - declarou Beck, inesperadamente. - O mundo está num estado de grande confusão, as coisas não são tão claras como costumavam ser. Quando o desencorajamento se instala, é como o caruncho. Grandes cogumelos a irromper pelas paredes. Se é isso que se passa, perdeu a utilidade para nós. Fez alguns trabalhos de primeira categoria, rapaz, dê-se por feliz com isso e volte para as suas malditas algas. - E após uma pausa: - Gosta realmente dessa porcaria, não gosta?

- Acho o assunto apaixonadamente interessante.

- Eu achá-lo-ia repugnante. Os gostos são uma extraordinária variante da natureza... Como vai o seu assassínio? Aposto que foi a sua pequena que o cometeu.

- Está enganado.

Beck acenou-me com um dedo, de modo paternal e admonitório.

- Só lhe digo o seguinte: "Esteja preparado." E não me refiro ao mote dos escuteiros.

Desci a Charing Cross Road e comprei um jornal.

Uma notícia informava que uma mulher, que se supunha ter tido um colapso na Estação de Vitória, na hora de ponta, fora levada para o hospital. Ao chegar, porém, verificara-se que fora apunhalada. Morrera sem recuperar os sentidos. Chamava-se Mrs. Merlina Rival.

Telefonei a Hardcastle.

- É verdade, aconteceu como noticiam - confirmou, em voz dura e irritada. - Visitei-a, na noite de anteontem, e disse-lhe que a sua história acerca da cicatriz não batia certo, pois o tecido cicatricial era relativamente recente. É singular como as pessoas escorregam, precisamente por tentarem compor demasiado as coisas. Alguém lhe pagou para ela identificar o cadáver como sendo o do marido, que a abandonou há anos. Muito bem, ela identificou-o e eu acreditei-a. Mas, depois, quem quer que esteja por detrás de tudo isto, tentou ser esperto. Se ela se lembrasse daquela insignificante cicatriz mais tarde, depois de falar comigo, esse pormenor acrescentaria convicção às suas declarações e não restariam dúvidas quanto à identificação. Se ela tivesse falado na cicatriz, logo ao ver a vítima, talvez parecesse excessivamente preciso...

- Portanto, Merlina Rival estava metida no assunto até ao pescoço?

- Confesso-lhe que duvido disso. Suponha que um velho amigo ou conhecido a procurava e lhe dizia: "Olha, estou metido num aborrecimento.

Um tipo com quem tive uns negócios foi assassinado, e se o identificarem e as nossas transacções se tornarem conhecidas, será uma tragédia para mim.

Mas se tu te apresentasses e dissesses que se tratava do teu marido, Harry Castleton, que te deixou a ver navios há anos, o caso morreria e eu não teria nada a recear..." - Mas ela recusaria, certamente, diria que era demasiado arriscado?

- Se dissesse, a tal pessoa redarguir-lhe-ia: "Arriscado porquê? Na pior das hipóteses, dirias que te enganaras. Qualquer mulher se pode enganar ao fim de quinze anos." E, provavelmente, prometeram-lhe uma contazinha calada e ela disse que sim, que faria o jeito. E fez.

- Sem suspeitar?

- Não era uma mulher desconfiada. Lembre-se, Colin, que quando um assassino é apanhado, há sempre gente que o conheceu bem e não pode acreditar que ele fosse capaz de fazer semelhante coisa!

- Que aconteceu quando a visitou?

- Meti-lhe um susto. Quando saí, ela fez o que eu esperava que fizesse: tentou comunicar com o homem ou com a mulher que a metera na encrenca. Mandei-a seguir, claro. Entrou num posto dos Correios e fez uma chamada, de uma cabina automática. Infelizmente, não se tratava da cabina que eu calculara que utilizaria, ao fim da sua própria rua... Precisou de trocar dinheiro. Saiu da cabina, depois de telefonar, com o ar de quem se sentia muito contente consigo própria. Mantivemo-la sob observação, mas não sucedeu nada de interessante até ontem à noite. Foi à Estação de Vitória e comprou um bilhete para Crowdean. Passava das seis e meia, a hora de ponta. Ela estava desprevenida, tranquila, julgava que se iria encontrar com a pessoa em questão, em Crowdean. Mas esse demônio de astúcia andava mais depressa do que ela. Não há nada mais fácil do que chegar atrás de uma pessoa, numa multidão, e cravar-lhe uma faca... Creio que ela nem compreendeu que fora apunhalada. As pessoas não se apercebem, como sabe. Lembra-se do Barton, daquele caso do roubo da quadrilha Levitti? Percorreu a pé uma rua inteira, antes de cair morto.

Sente-se apenas uma dor súbita e fina... e depois julga-se que tudo passou.

Mas não passou, fica-se morto em pé sem o saber. - E concluiu: - Raios partam! Raios partam! Raios partam!

- Investigou... alguém? - Não pude deixar de fazer a pergunta.

A sua resposta foi rápida e incisiva:

- A Pebmarsh esteve em Londres, ontem. Tratou de uns assuntos relacionados com o Instituto e regressou a Crowdean no comboio das sete e quarenta., Fez uma pausa. - Quanto a Sheila Webb, foi a Londres levar um trabalho dactilográfico a um escritor estrangeiro, que partia para Nova Iorque. Saiu do Ritz Hotel cerca das cinco e meia, aproximadamente, e foi ao cinema, sozinha, antes de regressar.

- Escute, Hardcastle, tenho uma informação para si, dada por uma testemunha ocular. Uma furgoneta de uma lavandaria parou defronte de Wilbraham Crescent, dezanove, à uma hora e trinta e cinco minutos, do dia nove de Setembro. O homem que conduzia o veículo entregou um grande cesto de roupa, na porta das traseiras. Tratava-se de um cesto muito grande.

- Lavandaria? Que lavandaria?

- Snowflake Laundry. Conhece?

- Assim de repente, não. Estão sempre a aparecer novas lavandarias.

É um nome vulgar, para uma lavandaria...

- Investigue. Era um homem que conduzia a furgoneta, e foi ele que levou o cesto para dentro de casa...

Hardcastle interrompeu-me, subitamente desconfiado:

- Ouça lá, Colin, está a inventar isso?

- Não. Já lhe disse que tenho uma testemunha ocular. Investigue, Dick, despache-se.

Desliguei, antes que ele dissesse mais alguma coisa.

Saí da cabina e vi as horas. Tinha muito que fazer e queria estar fora do alcance de Hardcastle enquanto o fazia. Tinha de organizar a minha vida futura.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Cheguei a Crowdean às onze horas da noite, cinco dias depois. Dirigi-me ao Clarendon Hotel, aluguei um quarto e deitei-me. Como estava fatigado, dormi mais do que a conta e só acordei às dez horas menos um quarto. Pedi que me levassem café, uma tosta e o jornal. Juntamente, entregaram-me um sobrescrito grande e quadrado, com o meu nome e as palavras (<POR MÃO PRÓPRIA>) no canto superior esquerdo. Examinei-o com certa surpresa, pois não o esperava. O papel era grosso e luxuoso e as palavras estavam muito bem escritas em letra de imprensa.

Depois de o virar e revirar, acabei por o abrir. Encontrei uma folha de papel, com os seguintes dizeres, em grandes letras de imprensa:
 

CURLEW HOTEL 11.3O.

Quarto 413

(Bata três vezes)

Fiquei a olhar para o papel e a virá-lo. Que vinha a ser aquilo? Reparei no número do quarto: 413. Os mesmos algarismos dos relógios. Uma coincidência? Ou não? Pensei em telefonar para o Curlew Hotel e, até, em telefonar a Dick Hardcastle, mas não fiz uma coisa nem outra. A letargia deixara-me. Levantei-me, vesti-me e segui para o Curlew Hotel, aonde cheguei à hora marcada. A época de Verão estava acabada e, por isso, não se encontrava muita gente no hotel. Não perguntei nada na recepção. Meti-me no elevador até ao quarto andar, saí e segui pelo corredor, até ao número 413. Parei um momento e por fim, com a consciência de que estava a ser um perfeito idiota, bati três vezes...

- Entre - ordenou uma voz.

Girei o puxador, entrei... e estaquei.

Tinha na minha frente a última pessoa que esperaria encontrar ali:

Hercule Poirot, que me sorria, encantado.

- Une petite surprise, n'est-ce pas? Mas uma surpresa agradável, espero.

- Poirot, velha raposa! Como veio aqui parar?

- Muito confortavelmente, numa limusina Daimler.

- Mas que faz aqui?

- Foi muito desagradável. Insistiram, teimaram positivamente, em redecorar o meu apartamento. Imagine a dificuldade! Que fazer? Para onde ir?

- Não lhe faltavam lugares - respondi friamente.

- É verdade que não, mas o meu médico disse-me que o ar do mar me faria bem.

- Trata-se de um desses médicos sabidos que, depois de saberem aonde o doente quer ir, lhe aconselham precisamente esse lugar! Foi você que me mandou isto? - perguntei, a brandir o bilhete.

- Naturalmente. Quem havia de ser?

- É por coincidência que o número do seu quarto é o quatrocentos e treze?

- Não. Fui eu próprio que o pedi.

- Porquê?

Poirot sorriu e respondeu:

- Pareceu-me apropriado.

- E esta história de bater três vezes?

- Não pude resistir! Se tivesse podido juntar um raminho de alecrim*, ainda seria melhor.

* Em inglês, rosemary. (N. da T. ).

Pensei em cortar um dedo e pôr uma dedada ensanguentada na porta... Mas tudo se quer na sua conta e eu arriscava-me a arranjar alguma infecção.

- Suponho que se trata da segunda infância. Esta tarde hei-de comprar-lhe um balão e um coelho de pano.

- Creio que não lhe agradou a minha surpresa. Não manifesta nenhuma alegria, nenhum contentamento por me ver...

- Esperava que manifestasse?

- Pourquoi pas? Mas falemos a sério, agora que já me diverti um bocadinho. Espero poder ser útil. Visitei o chefe de Polícia, que foi amabilíssimo, e estou à espera do seu amigo, detective-inspector Hardcastle.

- E que lhe vai dizer?

- É minha intenção conversarmos os três.

Olhei-o e desatei a rir. Ele podia dizer "conversarmos", mas eu sabia muito bem quem ia falar: Hercule Poirot!

Hardcastle chegara, procedera-se às apresentações e aos cumprimentos. Estávamos sentados como camaradas, mas, de vez em quando, Dick olhava sub-repticiamente para Poirot, com o ar de um homem que, no jardim zoológico, visse uma nova e surpreendente aquisição. Por fim, respeitadas as amenidades e as cortesias, Hardcastle pigarreou e falou, cautelosamente:

- Suponho, Monsieur Poirot, que desejará ver... bem, todo o cenário?

Não será muito fácil... - Hesitou. - O chefe de Polícia recomendou-me que fizesse tudo quanto pudesse para lhe ser agradável, mas, como deve compreender, há dificuldades, pedidos a fazer, objecções... No entanto, como veio cá especialmente...

- Eu vim porque o meu apartamento de Londres está a ser redecorado.

Dei uma grande gargalhada e Poirot lançou-me um olhar de censura.

- Monsieur Poirot não precisa de ir ver nada afirmei. - Ele insistiu, sempre, que se pode fazer tu do sentado numa poltrona... Mas não é bem assim, pois não, Poirot? Se fosse, para que teria vindo cá?

- Eu disse que não era necessário ser o caçador de raposas, o sabujo, o cão de caça, sempre a correr à procura da pista - redarguiu Poirot, com dignidade. Admito, no entanto, que é necessário um cão para a caça, um bom cão para trazer a presa, meu amigo.

Voltou-se para o inspector e torceu o bigode.

- Deixe-me dizer-lhe que não sou um obcecado pelos cães como os Ingleses. Pessoalmente, posso viver sem um cão. No entanto, aceito o vosso ideal canino. O homem ama e respeita o seu cão, enche-o de mimos e vangloria-se, perante os amigos, da inteligência e sagacidade do animal.

Mas imagine que o oposto também pode acontecer! O cão gosta do dono, satisfaz-lhe os caprichos, vangloria-se da sua inteligência e da sua sagacidade. Assim como o homem faz um esforço, quando não lhe apetece, e sai com o seu cão, por saber que ele gosta do passeio, assim o cão tenta proporcionar ao dono o que ele deseja. Foi o que sucedeu com o meu jovem e amável amigo, Colin. Procurou-me não para me solicitar que o ajudasse a solucionar o seu problema, pois tinha confiança em que o saberia resolver sozinho, e creio que resolveu, mas, sim, por recear que eu me sentisse inactivo e solitário. Levou-me, por isso, um problema que supunha capaz de me interessar e distrair. Ao mesmo tempo, apresentoume um desafio, desafiou-me a fazer o que tantas vezes lhe afirmei ser possível: ficar sentado na minha cadeira e decifrar o mistério. Desconfio, ou melhor, tenho quase a certeza, de que, atrás desse desafio, havia um bocadinho de malícia, uma maldadezinha inofensiva. Queria, digamos, provar-me que não era tão fácil fazer como dizer... Mais oui, mon ami, é verdade! Queria troçar de mim, troçar só um bocadinho! Não o censuro. Só lhe digo que não conhece Hercule Poirot.

Encheu o peito de ar e retorceu o bigode, enquanto eu lhe sorria afectuosamente.

- Muito bem, dê-nos a solução do problema... se a encontrou - desafiei.

- Mas claro que a encontrei!

Hardcastle fitou-o, incrédulo, e perguntou:

- Quer dizer que sabe quem matou o homem em Wilbraham Crescent, dezanove?

- Certamente.

- E também quem matou Edna Brent?

- Claro.

- Sabe a identidade do morto?

- Sei quem deve ser.

A expressão de Hardcastle era muito duvidosa, mas, em atenção ao que o chefe de Polícia lhe recomendara, manteve-se cortês. No entanto, não pôde evitar uma certa nota de cepticismo, ao perguntar:

- Desculpe, Monsieur Poirot, mas alega saber quem matou três pessoas e porquê?

- Exactamente.

- Tem um caso estanque?

- Não direi tanto.

- Então o que quer dizer é que tem um pressentimento - observei, pouco amável.

- Não discutirei consigo por causa de uma palavra, mon cher Colin.

Digo, apenas, que sei!

- Mas, Monsieur Poirot, eu preciso de ter provas! - lembrou Hardcastle, a suspirar.

- Naturalmente. Mas, com os recursos de que dispõe, suponho que não terá dificuldade em obter as provas indispensáveis.

- Não estou muito certo disso.

- Ora essa, inspector! Quando se sabe, quando se sabe realmente, não se pode partir daí?

- Nem sempre - redarguiu o inspector, e voltou a suspirar. - Andam à solta homens que deviam estar na cadeia. Eles sabem-no e nós também.

- Mas trata-se de uma percentagem muito pequena, não trata?

- Está bem, está bem! - interrompi. - O senhor sabe; pois vamos lá a ver se ficamos também a saber.

- Noto que continua céptico. Antes de mais nada, deixem-me esclarecer uma coisa: ter a certeza significa que, quando se encontra a verdadeira solução, tudo encaixa no seu lugar. Compreende-se que as coisas não podiam acontecer de nenhuma outra maneira.

- Com a breca, desembuche! - explodi, impaciente. - Admito tudo quanto disse até agora.

Poirot recostou-se confortavelmente na poltrona e fez sinal ao inspector para voltar a encher o seu copo.

- Há uma coisa, mes amis, que deve ser claramente entendida: para resolver qualquer problema precisamos de conhecer os factos. Para isso é necessário o cão, o cão que vai buscar a presa, que traz as peças uma por uma e as deposita...

- Aos pés do dono - concluí. - De acordo.

- Sentada numa cadeira, uma pessoa não pode resolver um problema baseada apenas naquilo que lê nos jornais. Tem necessidade de conhecer os factos com exactidão, e os jornais raramente ou nunca são exactos, a esse respeito. Dizem que uma coisa aconteceu às quatro horas, quando na realidade foi às quatro e um quarto; dizem que um homem tinha uma irmã chamada Elizabeth, quando na realidade ele tinha uma cunhada chamada Alexandra, etc. Mas eu encontrei, aqui no Colin, um cão de extraordinária perícia, devo dizê-lo, que o levou longe, na sua profissão. Ele sempre teve uma memória notável, é capaz de repetir, passados dias, conversas a que assistiu ou em que participou, mas repete-as com exactidão, quero dizer, não as adapta, como acontece com tanta gente, à impressão que lhe causaram. Para dar um exemplo: ele não diria: "E o correio chegou às onze e vinte." Não, ele descrevia as coisas tal qual se passaram, começando por uma pancada na porta da frente e alguém a entrar com as cartas na mão.

Tudo isto é muito importante, pois significa que ele ouviu o que eu teria ouvido, se estivesse presente, e viu o que eu teria visto. - Mas o pobre cão não soube fazer as deduções necessárias, hem?

- Tanto quanto é possível, estou, pois, de posse dos factos, tenho conhecimento do quadro... É uma frase que vocês costumam usar, não é? A coisa que primeiro me chamou a atenção, quando Colin me contou a história, foi o seu carácter excessivamente fantástico. Quatro relógios, todos eles cerca de uma hora adiantados em relação à hora certa e todos eles introduzidos na casa sem conhecimento da locatária, ou, pelo menos, assim ela o afirmou. Sim, porque nós nunca devemos acreditar no que nos dizem enquanto não confirmarmos cuidadosamente as declarações, não é verdade?

- Pensa como eu - redarguiu Hardcastle.

- No chão jazia um homem, um indivíduo idoso e de aspecto respeitável. Ninguém sabia quem ele era (ou, mais uma vez, diziam que não sabiam). Na algibeira, tinha um cartão com o nome, Mister R. H. Curry, uma morada, Denvers Street, sete, e o nome de uma companhia de seguros, Metropolis Insurance Company. Mas não existe nenhuma Metropolis Insurance Company, nenhuma Denvers Street e, segundo parece, nenhum Mister Curry. Isto são factos negativos, mas são factos.

Prossigamos. Aparentemente, cerca das duas menos dez da tarde, telefonaram para uma agência de secretárias e uma tal Miss Pebmarsh pediu que enviassem uma estenógrafa ao número dezanove de Wilbraham Crescent, às três horas. Miss Pebmarsh pediu, especialmente, que lhe mandassem Miss Sheila Webb. Esta foi mandada à morada em questão, chegou poucos minutos antes das três e, segundo as instruções recebidas, entrou na sala, encontrou um morto no chão, saiu de casa aos gritos e caiu nos braços de um jovem...

Poirot fez uma pausa e olhou para mim.

- Entra o nosso herói - disse, e inclinei a cabeça.

- Como vê, nem você resiste a um tom de farsa melodramática, quando fala do assunto. Todo o caso é melodramático, fantástico e absolutamente irreal, é uma daquelas coisas susceptíveis de acontecer nos livros de autores como, por exemplo, Garry Gregson. Por sinal, quando o meu jovem amigo me visitou e contou o sucedido, eu dedicava-me a um estudo de ficcionistas policiais dos últimos sessenta anos. Muito interessante. Quase chegamos a encarar os crimes autênticos, reais, à luz da ficção. Quero dizer, se reparo que um cão não ladrou quando deveria ladrar, digo para comigo: "Ah, um crime tipo Sherlock Holmes!" Do mesmo modo, se o cadáver aparece numa sala fechada, penso, naturalmente: "Ah, um caso à Dickson Carr!" Há, também, a minha amiga, Mistress Olive. Se eu encontrasse... mas não, não direi mais nada.

Perceberam o que quero dizer? Apresentam-nos um crime revestido de características e circunstâncias tão improváveis, tão incríveis, que não podemos deixar de pensar, acto contínuo: "Este livro não está de acordo com a vida, tudo isto é falso, irreal". Mas, ai de nós!, neste caso é realidade, aconteceu. Sentimo-nos impelidos a meditar, a meditar furiosamente, não acham?

Hardcastle não se teria exprimido assim, mas concordava em absoluto com a ideia. Poirot prosseguiu:

- Trata-se, por assim dizer, do oposto do exemplo de Chesterton:

"Onde esconderias uma folha? Numa floresta. Onde esconderias um seixo?

Numa praia." Neste caso há excessos, fantasia, melodrama! Quando pergunto a mim mesmo, a parafrasear Chesterton, "onde esconde uma mulher de meiaidade a sua beleza fanada?", não respondo, como ele responderia, "entre outras belezas fanadas de meia-idade". De modo nenhum. Ela esconde-a debaixo da pintura, sob rouge e máscara, bem aninhada em peles e com pedras preciosas à volta do pescoço e pendentes das orelhas. Estão a seguir o meu raciocínio?

- Bem... - murmurou o inspector.

- Assim, as pessoas olharão para as peles e para as jóias, para o penteado e para a haute couture, e nem repararão como a mulher propriamente dita é. Por isso disse para comigo, e disse-o também ao meu amigo Colin: como este assassínio se apresenta com tantas aderências fantásticas, para despistar, deve ser, na realidade, muito simples. Não é verdade que disse?

- Disse. Mas continuo a não compreender como poderá ter razão.

- Espere, tenha paciência. Portanto, despimos o crime dos enfeites e observamos o essencial. Mataram um homem. Porque o mataram? E quem é ele? A resposta à primeira pergunta depende, obviamente, da resposta à segunda. Enquanto não obtivermos a resposta certa a estas duas perguntas, não poderemos, por certo, avançar. Ele poderia ser um chantagista, ou um vigarista, ou um marido cuja existência fosse desagradável ou perigosa para a mulher. Poderia ser uma dúzia de coisas diversas. Quanto mais ouvi falar do assunto, mais se me afigurou que ele parecia a todos um banal homem idoso, de aspecto respeitável e bem cuidado. E, de súbito, pensei:

"Disseste que se devia tratar de um crime simples? Muito bem, encara-o assim mesmo. Admite que a vítima é exactamente o que parece: um homem idoso, de aspecto respeitável e bem cuidado." - Olhou para o inspector e perguntou-lhe: Está a compreender?

- Bem... - repetiu Hardcastle, e calou-se, delicadamente.

- Tínhamos, portanto, alguém, um vulgar e agradável homem idoso, cujo desaparecimento devia ter sido necessário a qualquer pessoa. A quem? Neste aspecto, pelo menos, o campo das conjecturas não é muito vasto.

Existe conhecimento local de Miss Pebmarsh e dos seus hábitos, do Gabinete Cavendish e de uma rapariga que lá trabalha e se chama Sheila Webb. Por isso disse ao meu amigo Colin: "Os vizinhos. Converse com eles, saiba coisas a seu respeito, acerca dos seus antecedentes... Mas, sobretudo, estabeleça conversa." Numa conversa não obtemos apenas respostas às perguntas que fazemos; numa conversa natural, há coisas que escapam naturalmente. As pessoas estão na defensiva, quando o assunto pode ser perigoso para elas, mas se se envereda por uma conversa banal, tranquilizam-se, deixam-se vencer pelo alívio que representa dizer a verdade, o que é sempre muito mais fácil do que mentir. E, muitas vezes, deixam escapar um pormenorzito insignificante que, sem que o saibam, faz muita diferença.

- Uma teoria admirável - comentei. - Infelizmente, neste caso não se verificou.

- Mas, mon cher, verificou! Uma frasezinha de inestimável importância!

- Qual? Quem a disse? Quem?

- A seu tempo, mon cher Colin, a seu tempo.

- Dizia, Monsieur Poirot... - interveio o inspector, desejoso de que ele reatasse o fio da conversa.

- Se traçarem um círculo à roda do número dezanove, todas as pessoas que ficam no seu interior poderiam ter matado Mister Curry. Mistress Hemming, os Bland, os McNaughton e Miss Waterhouse. Mas há ainda, e principalmente, as pessoas directamente envolvidas, as que se encontravam, por assim dizer, no centro do círculo: Miss Pebmarsh, que o podia ter assassinado antes de sair, cerca da uma e trinta e cinco, e Miss Webb, que podia ter arranjado maneira de lá se encontrar com ele e matá-lo antes de sair de casa e dar o alarme.

- Ah, agora está a tocar na ferida!

Poirot virou-se para mim e acrescentou:

- E, evidentemente, você, meu querido Colin. Também lá estava, andava a procurar um número alto do lado dos números baixos...

- Essa é boa! - exclamei, indignado. - Que será capaz de dizer a seguir?

- Serei capaz de dizer tudo! - afirmou, impante.

- E pensar que fui eu que lhe contei tudo!

- Os assassinos são, muitas vezes, vaidosos - lembrou Poirot. - Além disso, podia tê-lo divertido rir-se à minha custa.

- Se continuar a falar assim, acabará por me convencer! Palavra, começava a sentir-me constrangido!

Mas Poirot voltou-se de novo para o inspector:

- Deve tratar-se de um crime essencialmente simples, disse para comigo. A presença sem significado dos relógios, uma hora adiantados: os preparativos tão complicada e deliberadamente feitos para a descoberta do cadáver, tudo isso devia ser posto de parte, para começar. Eram, como se diz na vossa imortal Alice, "sapatos e barcos e lacre e cera e couves e reis".

O ponto essencial, vital, era que um vulgar homem idoso morrera e que alguém quisera que ele morresse. Se soubéssemos quem a vítima era, teríamos uma pista que nos indicaria o seu assassino. Se se tratasse de um chantagista conhecido, deveríamos procurar uma pessoa susceptível de ser vítima de chantagem. Se se tratasse de um detective, deveríamos procurar alguém com um segredo criminoso. Se se tratasse de um homem rico, deveríamos procurar o assassino entre os seus herdeiros... mas como não sabíamos quem o homem era, restava-nos a difícil tarefa de procurar, entre os do círculo circundante, alguém que tivesse uma razão para o matar.

Pondo de parte Miss Pebmarsh e Sheila Webb, quem existia nesse círculo susceptível de não ser o que parecia? A resposta foi decepcionante. Com excepção de Mister Ramsay, que segundo me consta, não era o que parecia - Poirot olhou-me interrogadoramente e eu acenei com a cabeça -, todos os outros pareciam autênticos. Bland era um conhecido construtor civil; McNaughton, regera uma cadeira em Cantabrígia; Mistress Hemming era viúva de um leiloeiro local; os Waterhouse eram respeitáveis e antigos locatários...

Voltemos a Mister Curry. Donde viera? Que o levara a Wilbraham Crescent, dezanove? E, a este respeito, uma das vizinhas, Mistress Hemming, fez uma observação muito preciosa. Quando lhe disseram que o morto não morava no número dezanove, ela redarguiu: "Ah, compreendo!

Foi lá para ser assassinado. Que estranho!" Ela, como acontece com tanta frequência àqueles que estão tão absortos nos seus pensamentos que não prestam atenção ao que os outros dizem, teve o dom de penetrar no âmago do problema. Resumiu, numas breves palavras, todo o crime: Mister Curry foi a Wilbraham Crescent, dezanove, para ser assassinado. Era tão simples como isto. - De facto, essa observação dela impressionou-me - confessei, mas Poirot não me ligou importância.

- Dilly, dilly, dilly. Vem para seres morto. Mister Curry foi... e foi morto. Mas isso não era tudo. Convinha muito que ele não fosse identificado. Não tinha carteira nem documentos e o nome do alfaiate fora retirado do seu vestuário. Mas isso não chegaria. O cartão impresso de Curry, agente de seguros, constituía apenas uma providência temporária. A fim de que a identidade do indivíduo fosse oculta para sempre, era necessário atribuir-lhe uma falsa identidade. Não me restaram dúvidas de que, mais cedo ou mais tarde, apareceria alguém que o reconheceria positivamente e, então, estaria tudo acabado. Um irmão, uma irmã, uma esposa... Foi uma esposa: Mistress Rival... Só o nome dela deveria ter levantado suspeitas. Há no Somerset uma aldeia, estive lá perto com uns amigos, há uma aldeia chamada Curry Rival. Inconscientemente, sem se saber como, estes dois nomes insinuaram-se, foram escolhidos. Mister Curry... Mistress Rival.

Até agora, o plano parece óbvio. Mas o que me intrigava era o facto de o nosso assassino parecer absolutamente certo de que não haveria nenhuma identificação genuína. Mesmo que o homem não tivesse família, seria natural que tivesse uma senhoria, criados, pessoas com quem negociasse... Isto levoume à dedução seguinte: ignorava-se o desaparecimento do indivíduo.

Logicamente tive de deduzir, depois, que ele não era inglês, que se encontrava neste país apenas de visita. Confirmava-o o facto de o trabalho protésico dos seus dentes não ter sido identificado cá. "Comecei a fazer uma vaga ideia da vítima e do assassino. Uma vaga ideia, apenas. O crime fora bem planeado e inteligentemente cometido... Mas eis que surgiu um factor de pura sorte, uma daquelas coisas que nenhum assassino pode prever...

- O quê? - perguntou Hardcastle.

Inesperadamente, Poirot declamou, de modo teatral: Por falta de um prego perdeu-se a ferradura, Por falta de uma ferradura perdeu-se o cavalo, Por falta de um cavalo perdeu-se o cavaleiro, Por falta de um cavaleiro perdeu-se a batalha, Por falta de uma batalha perdeu-se o reino... E tudo por falta de um prego numa ferradura!

Inclinou-se para a frente e afirmou:

- Muitas pessoas podiam ter assassinado Mister Curry; mas só uma pessoa podia ter assassinado, ou podia ter razão para assassinar, Edna.

Fitámo-lo ambos, embasbacados.

- Consideremos o Gabinete Cavendish. Trabalham lá oito raparigas.

No dia nove de Setembro, quatro delas estavam ausentes, em serviço a certa distância, e por isso almoçaram com os clientes. Essas raparigas eram as quatro que geralmente almoçavam na primeira hora de almoço, isto é, do meio-dia e meia hora à uma e meia. As restantes quatro, Sheila Webb, Edna Brent, Janec e Maureen, almoçavam no segundo período, ou seja, da uma e meia às duas e meia. Mas nesse dia Edna Brent teve um pequeno acidente, pouco depois de sair do escritório: partiu um salto do sapato, num ralo. Como não podia andar assim, comprou uns bolos e regressou ao escritório.

Poirot acenou-nos com um dedo, enfaticamente, e continuou:

- Disseram-nos que Edna Brent andava preocupada com qualquer coisa, que tentara, em vão, falar com Sheila Webb fora do escritório.

Presumiu-se que o motivo da sua preocupação se relacionava com a própria Sheila Webb, mas não existem nenhumas provas disso. Ela podia desejar, apenas, consultar Miss Webb acerca de qualquer coisa que a intrigava...

Mas, se disso se tratava, uma coisa salta à vista: queria falar com Sheila fora do escritório. As palavras que disse ao polícia, no inquérito, são a única pista de que dispomos quanto à natureza do que a preocupava. Disse qualquer coisa deste género: "Não compreendo como o que ela disse pode ser verdade." Tinham sido três as mulheres que haviam prestado declarações, nessa manhã. Portanto, Edna podia querer referir-se a Miss Pebmarsh ou, como se presumiu, a Sheila Webb... Mas existe uma terceira possibilidade, em que ninguém pensou: podia referir-se a Miss Martindale.

- Miss Martindale? Mas as declarações dela foram muito breves, duraram escassos minutos...

- Exactamente. Relacionaram-se apenas com o telefonema que recebera, supostamente, de Miss Pebmarsh.

- Quer dizer que Edna sabia que não fora Miss Pebmarsh...

- Suponho que era ainda mais simples, suponho que não houve telefonema nenhum. O salto do sapato de Edna partiu-se a pouca distância do escritório e ela regressou ao Gabinete Cavendish. Mas Miss Martindale, no seu gabinete particular, não soube que Edna regressara, continuou convencida de que se encontrava sozinha... Bastou-lhe dizer que recebera um telefonema à uma e quarenta e nove. Ao princípio, Edna não teve consciência do que sabia. Sheila foi chamada ao gabinete de Miss Martindale e recebeu ordem para sair, em serviço. Ninguém disse a Edna como nem quando a entrevista fora combinada. Depois chegou a notícia do crime e, pouco a pouco, a história tornou-se mais definida. Miss Pebmarsh telefonou a pedir que lhe mandassem Sheila Webb... Mas Miss Pebmarsh nega que tenha telefonado. Diz-se que o telefonema foi feito às dez para as duas... Mas Edna sabe que isso não pode ser verdade. Não chegou nenhum telefonema a essa hora. Miss Martindale devia-se ter enganado... Mas Miss Martindale não é pessoa que se engane.

Quanto mais Edna pensa no assunto, mais intrigante lhe parece.

Decide contar a Sheila, perguntar-lhe. Ela deve saber...

"Depois chega o dia do inquérito e as raparigas vão todas assistir.

Miss Martindale repete a sua história do telefonema e Edna compreende, finalmente, que as declarações prestadas por Miss Martindale com tanta clareza e com tanta precisão quanto à hora exacta não são verdadeiras.

Pergunta então a um polícia se pode falar com o inspector. Suponho que, ao sair do tribunal juntamente com outras pessoas, Miss Martindale ouviu a pergunta. Talvez, entretanto, já tivesse ouvido as pequenas troçar de Edna, por causa do percalço do sapato, sem compreender todo o seu alcance...

Fosse como fosse, seguiu a jovem a Wilbraham Crescent. Porque terá Edna ido para esses lados?

- Só para ver o sítio onde o caso se passara, suponho - explicou Hardcastle, a suspirar. - As pessoas costumam fazer isso.

- Sim, é verdade. Talvez Miss Martindale falasse lá com ela, seguisse com Edna pela estrada abaixo e a pequena lhe fizesse, de repente, a pergunta que a intrigava. Miss Martindale resolveu agir depressa e, como estavam perto da cabina telefónica, disse: "Isso é muito importante, deve telefonar à Polícia imediatamente. O número da esquadra é este assim assim. Telefone e diga que vamos as duas para lá." Edna nascera para fazer o que lhe mandavam, isso era uma espécie de segunda natureza. Entrou na cabina, levantou o auscultador... e Miss Martindale entrou atrás dela, puxou-lhe o lenço do pescoço e estrangulou-a.

- E ninguém viu?

- Alguém podia ter visto, mas ninguém viu. Era uma hora da tarde, a hora do almoço... As pessoas que porventura se encontravam na Wilbraham Crescent estavam entretidas a olhar para o número dezanove.

Foi um risco temerário, corrido por uma mulher temerária e sem escrúpulos.

Hardcastle abanava a cabeça, duvidoso.

- Miss Martindale? Não compreendo como poderá estar metida no assunto...

- Não, ao princípio não se compreende. Mas como Miss Martindale matou, indubitavelmente, Edna, oh, sim, só ela pode ter assassinado a pequena!, como matou Edna, tem de estar metida no assunto. Começo a pensar que em Miss Martindale temos a Lady Macbeth do crime, uma mulher implacável e sem imaginação.

- Sem imaginação? - admirou-se o inspector.

- Oh, sim, sem imaginação! Mas muito eficiente. Uma boa planeadora.

- Mas porquê? Qual o móbil?

Hercule Poirot olhou para mim e esticou o dedo.

- A conversa dos vizinhos não lhes serviu, então, de nada, hem? Pois eu encontrei nela uma frase muito esclarecedora. Lembram-se de que, depois de falar em viver no estrangeiro, Mistress Bland disse que gostava de viver em Crowdean "porque tenho aqui uma irmã". Mas Mistress Bland não devia ter uma irmã. Herdara uma grande fortuna, o ano passado, de um tio-avô canadiano, porque era o único membro sobrevivente da família.

Hardcastle endireitou-se, alerta.

- Pensa, então...

Poirot recostou-se na cadeira, uniu as pontas dos dedos, semicerrou os olhos e falou em tom sonhador:

- Suponha que é um homem, um homem muito insignificante, pouco escrupuloso e com dificuldades financeiras. Um dia, chega uma carta de uma firma de advogados a informar que a sua mulher herdou uma grande fortuna, deixada por um tio-avô do Canadá. A carta vem dirigida a Mistress Bland, e a única dificuldade reside no facto de a Mistress Bland que a recebe não ser a Mistress Bland certa, ser a segunda esposa de Mister Bland e não a primeira... Imagine o desgosto, a contrariedade, a fúria. E, depois, surge uma ideia. Quem sabe que a Mistress Bland existente não é a Mistress Bland em questão? Em Crowdean ninguém sabe que Bland já foi casado anteriormente. O seu primeiro casamento, há muitos anos, efectuouse durante a guerra, quando ele estava fora do país. É possível que a sua primeira mulher tenha morrido pouco depois e ele haja voltado a casar quase a seguir. Ele tinha a carta de casamento, vários documentos de família, fotografias de parentes canadianos já falecidos... Seria tudo um mar de rosas. Pelo menos valia a pena arriscar. Arriscam e são bemsucedidos.

As formalidades legais cumprem-se e os Bland ficam ricos e prósperos, com todas as dificuldades financeiras resolvidas... Mas eis que, um ano depois, acontece algo... O quê? Suponho que alguém informou que vinha do Canadá a este país, alguém que conhecera bem a primeira Mistress Bland e, portanto, não se deixaria enganar pela segunda. Talvez fosse um antigo advogado da família ou um amigo íntimo. Fosse quem fosse, era alguém que saberia, que perceberia a fraude. É possível que tenham pensado nalgumas maneiras de evitar o encontro. Mistress Bland poderia ir para o estrangeiro, a pretexto de doença... Mas qualquer solução desse género era susceptível de levantar suspeitas. O visitante insistiria em ver a mulher que viera procurar... - E, daí, o assassínio?

- Sim. Creio que a irmã de Mistress Bland deve ter sido a alma danada da conspiração, quem planeou tudo.

- Parte do princípio de que Miss Martindale e Mistress Bland são irmãs?

- Só assim as coisas fazem sentido.

- Mistress Bland lembrou-me alguém conhecido, quando a vi... - murmurou Hardcastle. - São muito diferentes na maneira de ser, mas é verdade, existe uma semelhança. No entanto, como puderam pensar que seriam bem sucedidos? Acabariam por dar por falta do homem, por proceder a investigações...

- Se o indivíduo andava pelo estrangeiro em viagem de recreio e não de negócios, o seu itinerário talvez fosse vago. Uma carta de um lado, um postal ilustrado de outro... Só passado algum tempo as pessoas começariam a estranhar não receber notícias dele. Nessa altura, quem se lembraria de relacionar um homem identificado e sepultado como Harry Castleton, com um rico visitante canadiano, que nunca sequer fora visto para estes lados?

Se eu fosse o assassino, faria uma viagem de um dia à França ou à Bélgica e livrar-me-ia do passaporte do indivíduo num comboio ou num autocarro, para que as investigações, se efectuassem noutro país.

Mexi-me, involuntariamente, e os olhos de Poirot fitaram-me, acto contínuo.

- Que se passa, Colin?

- Bland disse-me que, recentemente, fizera uma viagem de um dia a Bolonha... com uma loura. - O que pareceria muito natural, pois provavelmente é um dos seus hábitos. - Tudo isto são conjecturas - protestou Hardcastle. - Mas pode-se investigar.

Poirot tirou uma folha de papel de cima da mesa e estendeu-a a Hardcastle.

- Escreva a Mister Enderby, Ennismore Gardens, dez; ele prometeume proceder a certas averiguações, no Canadá. É um advogado internacional muito conhecido.

- E a história dos relógios?

- Ah, os relógios, os famosos relógios! - exclamou Poirot, a sorrir. - Creio que descobrirão que foi ideia de Miss Martindale. Como o crime era simples, como já disse, disfarçaram-no de fantástico... Aquele relógio com o nome de Rosemary, que Sheila trouxe de casa para ser consertado, não terá sido perdido no Gabinete Cavendish? Tê-lo-á Miss Martindale aproveitado como alicerce da sua grande produção e terá sido em parte por causa desse relógio que escolheu Sheila para descobrir o corpo?

- E ainda o senhor diz que essa mulher não tem imaginação! - explodiu Hardcastle. - Ela, que congeminou tudo isso, não tem imaginação?

- Mas não foi ela que o congeminou! Aí é que está todo o interesse.

Estava tudo preparado, à espera dela. Desde o princípio, notei a existência de um padrão, de um padrão que conhecia e de que me recordava bem porque acabara de o ler, com diversas variantes. Fui muito afortunado. Como o Colin lhe confirmará, esta semana estive num leilão de manuscritos de escritores. Entre eles, havia alguns de Garry Gregson. Mal ousei ter esperança, mas a sorte estava do meu lado... - Como um prestidigitador, tirou dois modestos cadernos de uma gaveta da secretária. - Está tudo aqui! É um dos muitos enredos de livros que ele planeara escrever. Não chegou a escrever este, mas Miss Martindale, que foi sua secretária, estava ao corrente da sua existência. Limitou-se a adaptá-los aos seus fins.

- Mas os relógios devem ter significado alguma coisa... no enredo de Gregson, claro.

- Oh, sem dúvida! Os relógios dele estavam parados nas cinco e um, nas cinco e quatro e nas cinco e sete, e formavam, em conjunto, a combinação de um cofre: quinhentos e quinze mil, quatrocentos e cinquenta e sete. O cofre estava oculto atrás de uma reprodução da Mona Lisa, e dentro do cofre - prosseguiu Poirot, com uma careta de desagrado - estavam as jóias da coroa da família real russa. Um acervo de tolices, tudo aquilo. E, claro, havia uma historiazita de uma rapariga perseguida. Muito a propósito para a Martindale. Ela limitou-se a escolher as suas personagens e a adaptar-lhes a história. Todas aquelas pistas que conduziam... aonde? A nada! Uma mulher eficiente, sem dúvida. É caso para pensar... O escritor deixou-lhe um legado, não deixou? Como e de quê , morreu ele, hem?

Mas Hardcastle recusou-se a interessar-se por história passada. Pegou nos cadernos e tirou-me da mão a folha de papel timbrado do hotel, para a qual eu estivera a olhar, como que fascinado. O inspector garatujara o endereço de Enderby sem se dar ao trabalho de virar o papel de modo que o timbre do hotel ficasse para cima: o nome e a morada do Curlew Hotel estavam de pernas para o ar, no canto inferior esquerdo. Ao olhar para aquela folha de papel, compreendi como fora idiota.

- Obrigado, Monsieur Poirot - agradeceu Dick. Deu-nos, sem dúvida, que pensar. Se resultará ou não...

- Sinto-me muito satisfeito por ter sido útil - interrompeu Poirot, modestamente.

- Terei de investigar várias coisas...

- Naturalmente, naturalmente...

Hardcastle despediu-se e partiu, e Poirot olhou para mim, de sobrancelhas arqueadas.

- Eh bien, que bicho lhe mordeu? Parece um homem que viu fantasmas!

- Vi quanto fui parvo.

- Ah, isso acontece muitas vezes!

Mas, provavelmente, nunca acontecera a Hercule Poirot! Apeteciame atacá-lo.

- Diga-me uma coisa, Poirot. Se, como afirmou, podia ter feito tudo isto sentado na sua cadeira, em Londres, e nos podia ter lá mandado chamar, ao Hardcastle e a mim, por que diabo veio cá?

- Já lhe disse que estão a arranjar o apartamento.

- Emprestar-lhe-iam outro, se quisesse. Ou, então, poderia ter ido para o Ritz, onde estaria mais confortavelmente instalado do que neste hotel.

- Sem dúvida. O café, aqui... mon dieu, o café!

- Então, porquê?

Hercule Poirot enfureceu-se.

- Eh bien, já que é tão estúpido que não compreende, dir-lho-ei! Sou humano, não sou? Posso ser uma máquina, quando é preciso, posso recostar-me a pensar, resolver assim os problemas... Mas também sou humano! E os problemas dizem respeito a seres humanos.

- E então?

- A explicação é tão simples como o assassínio. Vim aqui trazido por curiosidade humana - afirmou Hercule Poirot, a esforçar-se por falar com a maior dignidade.

 

NARRATIVA DE COLIN LAMB

Encontrava-me de novo em Wilbraham Crescent, na direcção do oeste. Parei diante da cancela do número 19, mas desta vez não saiu ninguém a correr de casa. Havia sossego e tranquilidade. Dirigi-me à porta principal e toquei à campainha. Miss Millicent Pebmarsh abriu a porta.

- Sou Colin Lamb. Posso entrar e falar consigo?

- Com certeza. - Conduziu-me à sala. - Parece passar aqui muito tempo, Mister Lamb. Constou-me que não pertence à Polícia local...

- Pois não. Suponho, até, que soube exactamente quem eu era, a partir da primeira vez que falou comigo.

- Julgo não compreender o que quer dizer.

- Fui muitíssimo estúpido, Miss Pebmarsh. Vim a esta terra à sua procura, encontrei-a logo no primeiro dia... e não me apercebi disso!

- Possivelmente o assassínio perturbou-lhe o espírito.

- É possível, sim. Cometi, também, a estupidez de olhar para um bocado de papel de pernas para o ar.

- Que pretende com toda essa conversa?

- Informá-la de que o jogo acabou, Miss Pebmarsh. Encontrei o quartel-general, onde se traçam os planos. Todos os registos necessários são conservados por si, em braille, num microponto. As informações que Larkin obtinha em Portlebury eram-lhe comunicadas e, daqui, seguiam para o seu destino, por intermédio de Ramsay. Quando era preciso, ele vinha à sua casa, à noite, através dos jardins. Um dia, deixou cair uma moeda checa, no seu jardim.

- Foi muito descuidado.

- Todos nós somos descuidados, numa ocasião ou noutra. O seu disfarce é muito bom. É cega, trabalha num instituto de crianças deficientes, tem em casa, como é natural, livros infantis, em braille... é uma mulher de invulgar inteligência e personalidade. Não sei qual é a sua força impulsionadora...

- Digamos, se quiser, que sou dedicada.

- Sim, pensei que se tratava disso. - Porque me está a dizer essas coisas? Não parece natural.

Olhei para o relógio, antes de responder:

- Tem duas horas, Miss Pebmarsh. Daqui a duas horas, chegarão membros do Departamento Especial...

- Não o compreendo. Porque veio à frente dos seus colegas, para me dar o que parece um aviso...

- Vim, de facto, avisá-la. Ficarei aqui até os meus colegas chegarem, para ter a certeza de que nada dei xará esta casa... nada, excepto a senhora.

A senhora tem duas horas de avanço, se as quiser aproveitar.

- Mas porquê? Porquê?

- Porque creio que existe a possibilidade de se tornar, em breve, minha sogra... Talvez me engane...

Millicent Pebmarsh levantou-se, em silêncio, e aproximou-se da janela. Não desviei os olhos dela, pois não tinha ilusões a seu respeito. Não confiava absolutamente nada na criatura. Era cega, mas até uma cega pode apanhar um tipo, se ele está desprevenido. A cegueira não a prejudicaria se tivesse ensejo de me encostar uma automática à espinha...

- Não lhe direi se está certo ou errado - disse, devagar. - Porque pensa que... que está certo?

- Por causa dos olhos.

- Mas não somos parecidas no carácter.

- Pois não.

Afirmou, quase num desafio:

- Fiz o melhor que pude por ela.

- Isso é uma questão de opinião. Para si, uma causa está primeiro.

- Assim é que deve ser.

- Discordo. Soube quem ela era... naquele dia?

- Só quando ouvi o seu nome... Mantive-me informada a seu respeito... sempre.

- Nunca foi tão desumana como gostaria de ser.

- Não diga tolices.

Olhei mais uma vez para o relógio.

- O tempo passa...

Afastou-se da janela e aproximou-se da secretária.

- Tenho aqui uma fotografia dela... em pequena...

Encontrava-me atrás dela quando abriu a gaveta.

Não era uma automática: era uma faca pequena, mas muito afiada...

A minha mão cerrou-se sobre a sua e afastou-a.

- Poderei ser brando, mas não sou parvo.

Tacteou, à procura de uma cadeira, e sentou-se, sem denunciar a mínima emoção.

- Não aproveito a sua oferta. Ficarei aqui até chegarem. Há sempre oportunidades... até na prisão.

- Oportunidades de doutrinação?

- Se lhe agrada o termo...

Continuámos sentados, hostis, mas a compreender-nos.

- Demiti-me do Serviço - informei. - Volto para a minha profissão: biologia marítima. Há um lugar, numa universidade australiana.

- Acho que faz bem. Não tem o que é preciso para este género de trabalho. É como o pai da Rosemary. Ele também não compreendia a frase de Lenine: "Fora com a brandura."

Lembrei-me das palavras de Poirot e redargui: - Contento-me com ser humano.

Continuámos sentados em silêncio, cada um convencido de que o ponto de vista do outro estava errado.

Carta do detective-inspector Hardcastle a Monsieur Hercule Poirot


Caro M. Poirot:
Estamos agora de posse de certos factos que talvez lhe agrade conhecer.
Há cerca de quatro semanas, partiu do Canadá para a Europa um tal Mr. Quentin Duguesclin, do Quebeque. Não tinha parentes chegados e os seus planos de regresso eram vagos. O seu passaporte foi encontrado pelo proprietário de um pequeno restaurante de Bolonha, que o entregou à Polícia. Ainda ninguém o reclamou.
Mr. Duguesclin era um velho amigo da família Montresor, do Quebeque. O chefe dessa familia, Mr. Henry Montresor, morreu há dezoito meses e deixou a sua considerável fortuna à sua única parente viva, a sua sobrinha-neta Valerie, descrita como mulher de Josaiah Bland, de Portlebury, Inglaterra. Uma respeitável firma de advogados londrinos actuou como procuradora dos executores testamentários canadianos. As relações de Mrs. Bland com a sua família do Canadá cessaram por completo aquando do seu casamento, que não mereceu a aprovação familiar. Mr. Duguesclin disse a um amigo que tencionava visitar os Bland, enquanto estivesse em Inglaterra, pois fora sempre muito amigo de Valerie.
O cadáver supostamente identificado como sendo o de Harry Castleton foi agora definitivamente identificado como o de Quentin Duguesclin. Foram encontradas algumas tábuas arrumadas a um canto de um lote onde Bland está a construir. Embora tivessem sido apressadamente apagadas, as palavras Snowflake Laundry puderam ler-se com nitidez, depois de os peritos lhes aplicarem o devido tratamento.
Não o incomodarei com pormenores de somenos, mas sempre lhe digo que o acusador público acha possível passar um mandado de captura de Josaiah Bland.
Miss Martindale e Mrs. Bland são, como conjecturou, irmãs, mas, embora eu concorde consigo quanto à participação da primeira nos crimes, será difícil obter as provas necessárias. Ela é, sem dúvida, uma mulher muito astuta. No entanto, Mrs. Bland dá-me esperanças. Pertence ao tipo de mulher que se vai abaixo e fala.
A morte da primeira Mrs. Bland, em consequência da acção do inimigo em França, e o casamento de Bland com Hilda Martindale (que pertencia à NAAFI*) também em França, podem ser, suponho, facilmente comprovados, embora muitos registos tenham sido destruídos, nesse tempo. *Sigla de Navy Army and Force Institute, que se pode traduzir por "Organização do Éxército, da Marinha e da Força Aérea." (N. da T.).

Foi um grande prazer para mim conhecê-lo, naquele dia, e agradeçolhe as utilíssimas sugestões que apresentou. Espero que as obras e a decoração do seu apartamento londrino tenham ficado a seu gosto.

Sinceramente, Richard Hardcastle


Nova carta de RH a HP

Boas notícias!

Mrs. Bland foi-se abaixo! Confessou tudo! Atira as culpas para cima da irmã e do marido. Só compreendeu quando já era tarde de mais o q pretendiam fazer Pensou que tencionavam apenas drogá-lo, para que não a reconhecesse! Uma história incrível. No entanto, acredito que não foi ela a incitadora do crime.

No Mercado de Ponobello identificaram Miss Martindale como a "americana" que comprou dois dos relógios.

Mrs. McNaughton diz, agora, que viu Duguesclin na furgoneta do Bland, a entrar na garagem deste. Tê-lo-á, realmente, visto?

O nosso amigo Colin casou com a pequena. Se quer que lhe diga, é doido.

As maiores felicidades.

Richard Hardcastle"
 

FIM

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O Autor e a Obra

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Agatha Christie, romancista e autora dramática inglesa, de seu nome completo, Agatha Mary Clarissa Miller Christie, nasceu em Torquay, a 15 de Setembro de 1891. Filha de mãe inglesa e pai americano fez os seus estudos em casa, educada por professores.
Durante a Primeira Guerra Mundial alistou-se na Cruz Vermelha para acompanhar o seu primeiro marido, o coronel Archibald Christie, de quem tomou o célebre apelido, que manteve apesar da separação em 1926. A sua experiência com venenos nos hospitais onde trabalhou está na origem do profundo conhecimento sobre a matéria, utilizado em muitos dos seus romances. Foi nesta época que escreveu A Primeira Investigação de Poirot (1920), com que deu início à sua longa e brilhante carreira de escritora de livros policiais. Coincidiu a obra com a apresentação da personagem Hercule Poirot, o detective belga que se ornaria quase tão conhecido como a sua autora e que na resolução dos enigmas policiais será concorrente da amável Miss Jane Marple, a personagem favorita de Agatha Christie.
Depois do segundo casamento, em 1930, com o arqueólogo Max Mallowan, a escritora, apaixonada por viagens, passou a dividir o tempo entre a "estruturação dos crimes" e as escavações arqueológicas.
Célebre, desde a publicação em 1926 de O Assassinato de Roger Ackroyd, Agatha Christie manteve ao longo da sua vasta obra - mais de oitenta volumes as características que identificariam o seu estilo: a investigação racional e a psicologia; o mistério denso e a variedade de personagens e ambientes; o emaranhado de indícios e a solução imprevista.
Os seus livros encontram-se traduzidos em cerca de cem línguas e os exemplares vendidos ascendem às centenas de milhão. No entanto, não foram só os livros policiais a proporcionar-lhe a admiração do público, pois Agatha Christie também é autora de peças de teatro - refere-se A Ratoeira (1951), mantida em cena durante vinte e cinco anos -, histórias para crianças e romances psicológicos publicados sob o pseudônimo de Mary Westmacott.
Membro da Real Sociedade de Literatura e distinguida com um grau honorífico em Letras, atribuído pela Universidade de Exeter, recebeu, em 1956, o título de Dama do Império Britânico, pelo conjunto da sua obra.
Agatha Christie morreu em Wallingforg, Oxford, a 12 de Janeiro de 1976.


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texto integral de:
Poirot e os Quatro Relógios
Agatha Christie (1963)
título original: The Clocks
tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
edição: Livros do Brasil, 1971

 



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8.Abr.2018
publicado por MJA