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Poirot e os Quatro RelógiosAgatha Christie
PRÓLOGOA tarde do dia 9 de Setembro foi exactamente igual a qualquer outra tarde. Nenhuma das pessoas que viriam a estar relacionadas com os acontecimentos desse dia poderia alegar que tivera uma premonição de tragédia. (Com excepção, evidentemente, de Mrs. Packer, de Wilbraham Crescent, 47, a qual era especializada em premonições e, depois, descreveu sempre, com grande minúcia de pormenores, os estranhos pressentimentos e as tremuras que tivera. Mas Mrs. Packer estava, no 47, tão distante do 19, e o que neste número se passou relacionou-se tão pouco com ela, que lhe pareceu absolutamente desnecessário ter uma premonição.)No Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish, dirigido por Miss K. Martindale, no dia 9 de Setembro fora um dia igual a tantos outros, um dia rotineiro. O telefone tocara, as máquinas de escrever tinham matraqueado como de costume e o nível de trabalho fora médio, nem acima nem abaixo do habitual.O género também fora o costumado, sem interesse especial. Até às duas e trinta e cinco da tarde, o dia 9 de Setembro não teve nada a distingui-lo de outro dia qualquer.Às duas e trinta e cinco, a extensão de Miss Martindale deu sinal e Edna Brent, que trabalhava no escritório contíguo, atendeu-a com a voz ofegante e um nadinha nasalada do costume, enquanto empurrava um caramelo para um dos lados da boca.- Que deseja, Miss Martindale?- Já lhe disse que não deve falar assim quando atende o telefone, Edna! Pronuncie as palavras com clareza e domine a respiração.- Desculpe, Miss Martindale.- Já foi melhor. Se tentar, consegue. Mande-me a Sheila Webb.- Ainda não voltou do almoço, Miss Martindale.- Ah! - Miss Martindale viu que eram duas horas e trinta e seis minutos, o que significava que Sheila estava exactamente seis minutos atrasada. - Mande-ma assim que chegar - acrescentou, a pensar que, nos últimos tempos, Sheila Webb se desmazelava um pouco.- Sim, Miss Martindale.Edna passou de novo o caramelo para o meio da língua e, a chupar prazenteiramente, recomeçou a dactilografar o romance Amor Nu, de Armand Levine.O erotismo forçado da obra deixava-a indiferente - como, aliás, à maioria dos leitores de Mr. Levine, não obstante os seus esforços. Armand Levine era uma prova convincente de que nada pode ser mais enfadonho do que a pornografia enfadonha. Apesar das capas sinistras e dos títulos provocantes, as suas vendas decresciam todos os anos e a última conta de serviços dactilográficos já lhe fora apresentada três vezes, em vão.A porta abriu-se e Sheila Webb entrou, um bocadinho ofegante.- A Sandy Cat * chamou-te - informou Edna.* Gata Loura. (N. da T.)- Já é preciso ter azar! - exclamou Sheila, a fazer uma careta. - No único dia em que chego atrasada!Passou a mão pelo cabelo, pegou num lápis e num livro de apontamentos e bateu à porta da directora.Miss Martindale levantou a cabeça. Era uma mulher de quarenta e tal anos, que respirava actividade e eficiência e devia a alcunha de Sandy Cat ao seu cabelo ruivo-claro e ao seu nome próprio de Katherine.- Chegou atrasada, Miss Webb.- Peço desculpa, Miss Martindale. Houve um grande engarrafamento de trânsito...- Há sempre um grande engarrafamento de trânsito a esta hora do dia.Devia contar com isso e sair de casa mais cedo. - Consultou a sua agenda e prosseguiu: - Telefonou uma tal Miss Pebmarsh, que precisa de uma estenógrafa para as três horas e se mostrou particularmente interessada em que fosse você. Já trabalhou alguma vez para ela?- Não me lembro, Miss Martindale. Pelo menos ultimamente, não trabalhei.- A morada é Wilbraham Crescent, dezanove...- Calou-se, com um ar interrogador, mas Sheila Webb abanou a cabeça.- Não me lembro de lá ter ido.Miss Martindale consultou o relógio.- Três horas... Consegue lá chegar a tempo. Tem outros compromissos, para esta tarde? - Passou os olhos pela agenda, que tinha a seu lado. - Professor Purdy, Curlew Hotel, às cinco horas. Deve chegar antes disso, mas se não chegar mandarei a Janet.Mandou-a embora, com um aceno de cabeça, e Sheila voltou para o escritório.- Alguma coisa interessante, Sheila?- Ora, mais um daqueles dias chatos... Uma velhota qualquer de Wilbraham Crescent e, às cinco horas, o professor Purdy... e todos aqueles horríveis nomes arqueológicos! Como desejaria que, de vez em quando, acontecesse alguma coisa emocionante, para variar!A porta de Miss Martindale abriu-se e a directora avisou:- Esqueci-me de um pormenor, Sheila. Se Miss Pebmarsh não estiver, quando chegar, entre, pois a porta não estará fechada. Entre para a sala que fica à direita do vestíbulo e espere. Não se esquece ou prefere que escreva num papel?- Não me esquecerei, Miss Martindale.A directora voltou para o seu santuário.Edna Brent tirou debaixo da cadeira um sapato um bocado espampanante, cujo salto altíssimo e muito fino se despregara.- Como diabo regressarei a casa? - perguntou, tristemente.- Deixa-te de lamúrias, alguma coisa se há-de arranjar - respondeu-lhe uma das outras raparigas, quase sem deixar de martelar as teclas.Edna suspirou e meteu na máquina uma nova folha de papel. 'O desejo dominava-o. Com dedos frenéticos rasgou o tecido finíssimo que lhe cobria os seios e empurrou-a para a sopa'...- Bolas! - resmungou Edna, a procurar a borracha, ao ver que escrevera "a sopa" em vez de "o sofá".Sheila pegou na malinha de mão e saiu.Wilbraham Crescent era uma fantasia criada por um construtor de 1880, mais ou menos, e constava de uma meia-lua de duas fileiras de casas com os jardins de permeio, traseiras com traseiras. Este conceito arquitectónico causava constantes dificuldades às pessoas que não conheciam o lugar. As que chegavam ao lado exterior da meia-lua tinham dificuldade em encontrar os números mais baixos, e as que chegavam ao lado interior viam-se às aranhas para descobrir os mais altos.As casas eram limpas, afectadas, com varandas artísticas e um ar muitíssimo respeitável. O modernismo mal lhes tocara ainda, pelo menos exteriormente. As cozinhas e as casas de banho tinham sido as primeiras divisões a sofrer as consequências das mudanças.Não havia nada de especial no número 19. Tinha cortinas impecáveis e um puxador muito reluzente, na porta principal. De ambos os lados do caminho que conduzia à entrada erguiam-se roseiras.Sheila Webb abriu a cancela, encaminhou-se para a porta principal e tocou à campainha. Aguardou um ou dois minutos e, como não lhe respondessem, obedeceu às instruções recebidas. Girou o puxador, a porta abriu-se e ela entrou. A porta do lado direito do vestíbulo estava entreaberta. Sheila bateu, aguardou um momento e entrou também.Encontrou-se numa vulgar e aconchegada sala de estar, talvez um pouco atravancada para o gosto moderno. A única coisa extraordinária que lhe chamou a atenção foi a abundância de relógios: um relógio de pé, a um canto; um relógio de porcelana de Dresden, na chaminé; um relógio de prata, na secretária; um pequeno relógio dourado de fantasia, numa papeleira, e numa mesa, junto da janela, um velho relógio de viagem, com uma caixa de cabedal, desbotado e o nome ROSEMARY * em letras douradas e já um pouco apagadas, a um canto.* Rosemary significa alecrim, em inglês, mas também é tomado na acepção de "recordação". (N. da T.).Sheila olhou, um pouco surpreendida, para o relógio da secretária, segundo o qual já passava das quatro e dez. Olhou para o da chaminé e verificou que se encontrava nas mesmas circunstâncias.Estremeceu violentamente, ao ouvir um estalido, por cima da cabeça, e ao ver sair um cuco de um relógio de parede, de maneira esculpida. O passaroco anunciou, em tom audível e firme, quase ameaçador: cu, cu! cu, cu! cu, cu! Depois desapareceu e a portinha fechou-se.Sheila Webb esboçou um sorriso e contornou a ponta do sofá. De repente, porém, estacou, petrificada.Estiraçado no chão estava o corpo de um homem, de olhos semicerrados e sem vida e com uma mancha escura e húmida na frente do fato cinzento-escuro.A jovem baixou-se, quase maquinalmente, e tocou-lhe na cara e numa das mãos. Estavam ambas frias. Depois tocou na mancha húmida e retirou bruscamente a mão, de olhos desorbitados de horror.No mesmo instante ouviu abrir a cancela e olhou, quase sem dar por isso, para a janela. Uma figura de mulher subia o carreiro, apressada. Sheila engoliu a custo a saliva, pois tinha a garganta ressequida. Sentia-se pregada ao chão, incapaz de se mexer ou gritar, de olhos fixos em frente.A porta abriu-se e entrou uma mulher alta e idosa, com um saco de compras. Tinha cabelos grisalhos ondulados, penteados para trás, e olhos muito grandes e de um azul muito bonito, olhos que fitaram Sheila, mas não a viram.A jovem soltou uma espécie de gemido abafado, os olhos azuis fitaram-na de novo e a mulher perguntou, vivamente:- Está aí alguém?- Es... está - gaguejou Sheila, enquanto a mulher se aproximava, depressa, das costas do sofá.Depois gritou:- Não... não! Pisa-o... pisa-o e ele está morto!NARRATIVA DE COLIN LAMBPara falar em termos policiais: às 2.59 h da tarde de 9 de Setembro, passava por Wilbraham Crescent, na direcção oeste. Era a primeira vez que por ali passava e confesso francamente que Wilbraham Crescent me intrigava.Obedecia a um pressentimento com uma persistência que se tornava cada dia mais obstinada, ao mesmo tempo que o pressentimento parecia cada vez mais inconsistente e com menos probabilidades de dar qualquer resultado positivo. Eu sou assim.O número que me interessava era o 61, mas nunca mais o encontrava.Seguira cuidadosamente os números de 1 a 35, mas ao chegar aí Wilbraham Crescent parecera terminar. Uma artéria com o nome vulgar de Albany Road barrava-me o caminho. Retrocedi. Do lado norte não havia casas; apenas um muro atrás do qual se erguiam quarteirões de prédios altos e modernos, cujas entradas deviam ficar noutra estrada.Olhei para os números por onde passava: 24, 23, 22, 21... Diana Lodge (provavelmente o número 20, com um gato amarelado no poste da cancela, a lavar o focinho), 19...A porta do número 19 estava aberta e uma jovem saiu e correu pelo carreiro abaixo com o que me pareceu a velocidade de uma bomba.Acentuavam a semelhança os gritos que ela soltava, gritos altos, agudos, quase desumanos. A pequena transpôs a cancela e chocou comigo com tal força que por pouco não me atirava para fora do passeio. Como se isso não bastasse, agarrou-se a mim num frenesi desesperado.- Calma! - aconselhei, a sacudi-la um bocadinho, depois de recuperar o equilíbrio. - Vamos calma...Continuou a agarrar-me, mas deixou de gritar e começou a ofegar, em arquejos profundos e trémulos como soluços.Não posso dizer que tenha reagido brilhantemente à situação...Perguntei-lhe se acontecera alguma coisa, compreendi que a pergunta era redundante e emendei:- Que aconteceu?A pequena respirou fundo, antes de responder, a apontar para trás:- Ali!- Ali o quê?- Está um homem no chão... morto... Ela ia-lhe passar por cima...- Quem? Porquê?- Creio que... que é cega. Ele está sujo de sangue... - Levantou uma das mãos que me seguravam e acrescentou: - E eu também. E eu também estou suja de sangue!Examinei as manchas da manga do meu casaco e observei:- E, agora, também eu estou sujo de sangue. Parece-me melhor levar-me lá e mostrar-me.- Não posso! - afirmou, a tremer violentamente. - Não posso! Não voltarei a entrar lá!- Talvez tenha razão.Olhei à minha volta, mas não encontrei nenhum lugar adequado para depositar uma jovem quase desmaiada. Acabei por a sentar no passeio, encostada ao gradeamento de ferro.- Deixe-se ficar aqui até eu voltar. Não me demorarei. Se se sentir mal, incline-se para a frente e meta a cabeça entre os joelhos.- Creio... creio que já estou bem.Não parecia muito convencida, mas eu não perdi tempo a argumentar. Dei-lhe uma palmadinha tranquilizadora no ombro e meti pelo carreiro acima, apressadamente. Entrei, hesitei um momento no vestíbulo, espreitei no aposento da esquerda, que era uma sala de jantar deserta, atravessei o vestíbulo e entrei na sala da direita.A primeira coisa que vi foi uma mulher idosa, de cabelo grisalho, sentada numa cadeira. Virou bruscamente a cabeça, ao sentir-me entrar, e perguntou:- Quem é?Percebi logo que era cega. Os seus olhos, embora virados para mim, estavam fixos num ponto atrás do meu ouvido esquerdo.- Uma jovem chocou comigo, na rua, e disse que estava aqui um homem morto - expliquei, sem rodeios.Acto contínuo, tive consciência do absurdo das minhas palavras. Não parecia possível que estivesse um homem morto naquela sala arrumada, com aquela mulher calma sentada numa cadeira, de mãos entrelaçadas.Mas ela redarguiu-me, sem hesitar:- Atrás do sofá.Contornei o sofá e vi os braços abertos, os olhos vítreos e a mancha de sangue coagulado, no peito.- Como foi?- Não sei.- Mas... Quem é?- Não faço a mínima ideia.- Temos de chamar a Polícia. - Olhei à minha volta e indaguei: - Onde está o telefone?- Não tenho telefone.Observei-a com mais atenção.- A senhora mora aqui? Esta é a sua casa?- Sim.- Pode-me dizer o que sucedeu?- Sem dúvida. Vim das compras - reparei no saco das compras, abandonado em cima de uma cadeira, à entrada - e entrei aqui. Percebi imediatamente que estava alguém na sala. São coisas que sentimos com facilidade, quando somos cegos. Perguntei quem era e só ouvi o barulho da respiração acelerada de alguém.Encaminhei-me na direcção do som e então quem quer que era começou a gritar que estava um homem morto e eu ia pisá-lo. Depois essa pessoa passou por mim a correr e saiu da sala.Acenei com a cabeça. As histórias condiziam.- Que fez, então?- Tacteei o caminho, com cuidado, até o meu pé encontrar um obstáculo.- E depois?- Ajoelhei e toquei em qualquer coisa... na mão de um homem.Estava fria, não se sentia o pulso...Levantei-me e sentei-me aqui, à espera. Estava convencida de que alguém apareceria, de que a jovem, quem quer que fosse, daria o alarme. Achei melhor não sair de casa.Impressionou-me a calma da criatura. Não gritara nem saíra, aos tropeções e cheia de pânico, da casa onde se encontrava um morto.Limitara-se a sentar-se calmamente, à espera. Era a única maneira sensata de proceder, mas exigia coragem.- Quem é o senhor?- Chamo-me Colin Lamb e ia a passar.- Onde está a jovem?- Deixei-a encostada à cancela. Encontra-se em estado de choque.Onde fica o telefone mais próximo?- Há uma cabina a cerca de cinquenta metros, pouco antes de chegar à esquina.- Tem razão, lembro-me de passar por lá. Vou telefonar à Polícia. A senhora...Hesitei, sem saber se deveria perguntar se ficaria onde estava ou se ficaria bem.Ela poupou-me a escolha:- Acho melhor trazer a jovem cá para dentro.- Não sei se quererá vir... - redargui, duvidoso.- Não virá para esta sala, claro. Leve-a para a casa de jantar, que fica do lado oposto do vestíbulo, e diga-lhe que vou fazer chá.Levantou-se e encaminhou-se para mim.- Mas... a senhora poderá...Esboçou um leve e breve sorriso.- Meu caro jovem, preparo as minhas refeições, na minha cozinha, desde que vim morar para esta casa, há catorze anos. Ser cega não é forçosamente ser inválida.- Desculpe, fui estúpido. Talvez não se importe de me dizer o seu nome?- Millicent Pebmarsh... Miss. Saí e desci o carreiro. A pequena levantou a cabeça e começou a erguer-se.- Creio... creio que já estou mais ou menos bem.- Óptimo! - redargui, enquanto a ajudava a levantar-se.- Estava... estava lá um homem morto, não estava?- Claro que estava. Vou lá abaixo, à cabina, avisar a Polícia. No seu lugar, esperaria dentro de casa.Levantei a voz, para abafar os seus protestos imediatos e veementes: - Vá para a sala de jantar, que fica à esquerda do vestíbulo. Miss Pebmarsh está a fazer uma chávena de chá para si.- Ela é, então, Miss Pebmarsh? E é cega?- É. Também foi um grande choque para ela, evidentemente, mas está a proceder com muita sensatez.Venha, eu levo-a. Uma chávena de chá far-lhe-á bem, enquanto espera pela Polícia.Passei-lhe um braço pelos ombros, conduzi-a pelo carreiro acima, instalei-a à mesa da sala de jantar e saí a correr, para telefonar.- Posto da Polícia de Crowdean - anunciou uma voz calma.- Posso falar com o detective-inspector Hardcastle?- Não sei se está... - respondeu a voz, cautelosa. - Quem fala?- Diga-lhe que é Colin Lamb.- Um momento, por favor.Pouco depois, ouvi a voz de Hardcastle:- Colin? Não esperava que telefonasse tão cedo.Onde está?- Crowdean... ou melhor, estou em Wilbraham Crescent. Está um homem morto no número dezanove, creio que apunhalado. Deve estar morto há meia hora, aproximadamente.- Quem o encontrou? Você?- Não. Ia a passar, inocentemente, quando uma pessoa saiu de casa, como se o Diabo a perseguisse, e quase me derrubou. Disse-me que estava um homem morto e uma mulher cega o pisara.- Não está a mangar comigo, pois não?- Admito que parece fantástico, mas creio que os factos são os que expus. A cega é Miss Millicent Pebmarsh, que mora na referida casa.- Mas ela pisou o morto?- Não no sentido em que pensa. Parece que, em virtude de ser cega, não sabia que ele lá se encontrava.- Vou pôr a engrenagem em acção. Espere lá por mim. Que fez à pequena?- Miss Pebmarsh está a preparar-lhe uma chávena de chá.Dick observou que parecia tudo muito aconchegadinho.A engrenagem da Lei trabalhava a todo o vapor em Wilbraham Crescent,19. Estavam presentes um cirurgião e um fotógrafo da Polícia e os peritos em impressões digitais. Trabalhavam com eficiência, cada um deles entregue à sua própria tarefa.Por fim chegou o detective-inspector Hardcastle, um homem alto e impassível, de sobrancelhas expressivas e ar autoritário. Queria-se certificar de que estavam a fazer tudo quanto ordenara, e de que o estavam a fazer como deviam. Lançou um último olhar ao cadáver, trocou algumas palavras com o médico da Polícia e depois dirigiu-se à sala de jantar, onde se encontravam três pessoas diante de chávenas vazias:Miss Pebmarsh, Colin Lamb e uma rapariga alta, de cabelos castanhos anelados e grandes olhos cheios de medo."Muito bonita", pensou o inspector, para consigo, e apresentou-se a Miss Pebmarsh:- Detective-inspector Hardcastle.Sabia algumas coisas acerca de Miss Pebmarsh, embora os seus caminhos nunca se tivessem cruzado, profissionalmente. Vira-a diversas vezes e sabia que se tratava de uma ex-professora e que tinha um emprego relacionado com o ensino de braille no Instituto Aaronberg de Crianças Deficientes. Parecia inacreditável que encontrassem um homem assassinado na sua casa impecável e austera, mas o inacreditável acontecia mais vezes do que se supunha.- Foi terrível o que aconteceu, Miss Pebmarsh, e deve tê-la abalado muito. Preciso que me descrevam, com toda a clareza, o que sucedeu.Estou informado de que foi Miss... - olhou para o livro de apontamentos que um agente lhe entregara - ... Sheila Webb quem descobriu o cadáver. Se me autorizar a utilizar a sua cozinha, Miss Pebmarsh, levarei para lá Miss Webb, a fim de podermos conversar calmamente.Abriu a porta de comunicação com a cozinha e aguardou que a jovem passasse. Um polícia novo, à paisana, já lá se encontrava instalado a escrever, sentado à mesa de tampo de fórmica.- Esta cadeira parece confortável...Hardcastle puxou uma cadeira e Sheila Webb sentou-se nervosamente, a fitá-lo com os grandes olhos assustados.O inspector teve vontade de lhe dizer que não a comeria, mas conteve-se e limitou-se a declarar:- Não precisa de estar preocupada; queremos apenas fazer uma ideia clara do que se passou. Chama-se Sheila Webb e mora?...- Palmerston Road, catorze, a seguir à fábrica de gás...- Bem sei. Suponho que é empregada - Sou estenodactilógrafa e trabalho no Gabinete de Secretariado de Miss Martindale.- Gabinete de Secretariado e Dactilografia Cavendish. É este o nome completo, não é?- Exactamente.- Há quanto tempo lá trabalha?- Há cerca de um ano... isto é, há dez meses certos.- Agora explique-me, por palavras suas, como veio parar a Wilbraham Crescent, dezanove.- Foi assim.. - Sheila Webb já falava com maior segurança. - Miss Pebmarsh telefonou para o escritório e pediu que lhe mandassem uma secretária, às três horas. Por isso, quando regressei do almoço, Miss Martindale mandou-me cá.- Isso passou-se tudo de acordo com a rotina, não é verdade? Quero dizer, você era a primeira da lista, ou lá como fazem essas coisas...- Desta vez, não. Miss Pebmarsh pediu especificamente que me mandassem a mim.- Miss Pebmarsh pediu especificamente que a mandassem a si... - repetiu Hardcastle, de sobrancelhas arqueadas. - Compreendo... Por já ter trabalhado anteriormente para ela, suponho?- Mas eu nunca trabalhei para ela! - apressou-se Sheila a esclarecer.- Não? Tem a certeza disso?- Absoluta! Não é uma daquelas pessoas fáceis de esquecer. É isso que me parece tão estranho...- Bem, deixemos esse pormenor por agora. A que horas chegou?- Devia faltar pouco para as três horas, pois o relógio de cuco... - Calou-se, bruscamente, de olhos muito abertos. - Que estranho! Na altura não reparei...- Não reparou, em quê, Miss Webb?- Nos relógios.- Que têm os relógios?- O relógio de cuco deu as três horas, mas todos os outros estavam cerca de uma hora adiantados. Que esquisito!- É, sem dúvida, muito esquisito - concordou o inspector. - Quando deu pela presença do cadáver?- Só quando contornei o sofá... Foi... foi horrível!- Concordo. Reconheceu o homem? Tratava-se de alguém que já tivesse visto?- Oh, não!- Tem a certeza absoluta? Podia parecer diferente do seu aspecto habitual... Pense bem. Tem a certeza absoluta de que nunca o vira?- Tenho.- Muito bem. E que fez?- Que fiz?- Sim.- Bem... nada, absolutamente nada! Não fui capaz.- Compreendo. Não lhe tocou?- Sim, toquei. Para ver se... quero dizer, só para ver... Mas ele estava frio e... e... fiquei com a mão suja de sangue... de sangue espesso e viscoso.Começou a tremer e Hardcastle tranquilizou-a, em tom paternal:- Então, então, acalme-se. Já acabou tudo, não pense no sangue. Conte o que sucedeu a seguir.- Não sei... Ah, sim, ela chegou.- Refere-se a Miss Pebmarsh?- Sim... mas eu não pensei que fosse Miss Pebmarsh.Entrou com um saco de compras. - Sublinhou o "saco de compras", como se fosse algo incongruente e relevante.- E que lhe disse você?- Não creio que lhe tenha dito alguma coisa...Tentei, mas não pude. Senti-me abafada aqui... - levou a mão à garganta.O inspector acenou afirmativamente e Sheila Webb prosseguiu:- E depois ela... ela perguntou: "Quem está aí?" Começou a contornar o sofá, pela retaguarda, e eu pensei... pensei que o ia pisar. Gritei... e o mal foi começar. Não consegui conter os gritos, saí, não sei como, pela porta fora...... Como se o Diabo a perseguisse - murmurou o inspector, ao recordar-se das palavras de Colin.Sheila Webb fitou-o, muito triste e assustada, e disse, inesperadamente:- Peço desculpa.- Não tem de que pedir desculpa, pois contou a sua história muito bem. Agora não precisa de pensar mais no assunto. Só uma coisa: por que motivo se encontrava na sala?- Porquê? - indagou, intrigada.- Sim. Suponho que chegou alguns minutos mais cedo e tocou à campainha. Mas se ninguém atendeu, porque entrou?- Porque ela disse que entrasse.- Quem?- Miss Pebmarsh.- Mas eu pensei que não tinha falado com ela...- E não falei. Foi Miss Martindale que o disse...Que entrasse e esperasse na sala da direita do vestíbulo.- Ah! - exclamou Hardcastle, pensativo.- Deseja mais alguma coisa? - perguntou Sheila Webb, timidamente.- Creio que não. Mas gostaria que aguardasse mais uns dez minutos, pois pode surgir alguma coisa acerca da qual a deseje interrogar. Depois disso, mandarei um carro levá-la a casa. É verdade, e a sua família? Tem família?- Os meus pais morreram. Vivo com uma tia.- Como se chama ela?- Mistress Lawton.O inspector levantou-se e estendeu a mão.- Muito obrigado, Miss Webb. Tente repousar bem, esta noite. Precisa disso, depois do que lhe aconteceu.Ela sorriu-lhe, tímida, e voltou para a sala de jantar.- Colin, olhe por Miss Webb - recomendou o inspector. - Miss Pebmarsh, quer fazer o favor de vir cá?Hardcastle começou a estender a mão para a guiar, mas ela passou resolutamente por ele, estendeu as pontas dos dedos para uma cadeira que estava encostada à parede, puxou-a um pouco para a frente e sentou-se.Hardcastle fechou a porta, mas Millicent Pebmarsh não lhe deu tempo para falar e perguntou:- Quem é aquele jovem?- Chama-se Colin Lamb.- Isso já ele me disse. Mas quem é? Porque veio cá?Hardcastle olhou-a, um pouco surpreendido.- Ia a passar por acaso quando Miss Webb saiu a correr e a gritar como uma desalmada. Depois de entrar e de verificar o que sucedera, telefonou-nos e nós convidámo-lo a acompanhar-nos e a esperar.- O senhor tratou-o por Colin.- É muito observadora, Miss Pebmarsh...(Observadora? Parecia uma palavra pouco adequada e, todavia, nenhuma outra se ajustava.) - Colin Lamb é meu amigo embora eu já não o visse havia algum tempo. É biólogo marítimo.- Ah, compreendo!- Miss Pebmarsh, ficar-lhe-ia grato se me pudesse dizer alguma coisa acerca deste surpreendente acontecimento.- Da melhor vontade... mas há muito pouco que dizer.- Suponho que mora aqui há algum tempo?- Desde mil novecentos e cinquenta. Sou... fui, professora. Quando me informaram de que não podiam fazer nada pela minha visão deficiente e de que não tardaria a cegar, empreguei todos os meus esforços para me especializar em braille e em várias outras técnicas de auxílio aos cegos. Sou empregada no Instituto Aaronberg de Crianças Cegas e Deficientes.- Obrigado. Falemos dos assuntos desta tarde.Esperava alguma visita?- Não.- Vou-lhe ler uma descrição do morto, para ver se lhe recorda alguém em especial. Altura entre um metro e setenta e dois e um metro e setenta e cinco, cerca de sessenta anos, cabelo escuro a começar a embranquecer, olhos castanhos, cara rapada e magra e queixo firme. Aspecto de pessoa bem alimentada, mas sem ser gordo, fato cinzento-escuro e mãos bem tratadas. Podia tratar-se de um empregado bancário, de um contabilista, de um advogado ou de homem com qualquer profissão liberal. Esta descrição lembra-lhe alguém conhecido?Millicent Pebmarsh pensou um bocado, antes de responder:- Não posso dizer que lembre... Trata-se, evidentemente, de uma descrição muito generalizada e que se coadunaria com um grande número de pessoas. Poder-se-á tratar de alguém que vi ou conheci em qualquer ocasião, mas não se trata, com certeza, de alguém que conhecesse bem.- Nos últimos tempos não recebeu nenhuma carta de qualquer pessoa que se propusesse visitá-la?- Não.- Muito bem. A senhora telefonou ao Gabinete de Secretariado Cavendish, solicitou os serviços de uma estenógrafa e...- Desculpe - interrompeu-o a cega. - Não fiz semelhante coisa.- Não telefonou ao Gabinete de Secretariado Cavendish a pedir?...- Nem tenho telefone em casa.- Há uma cabina ao fundo da rua - lembrou o inspector.- Há, de facto. Mas afirmo-lhe, inspector Hardcastle, que não precisei dos serviços de nenhuma estenógrafa e não, repito: não telefonei a esse tal Gabinete, a fazer semelhante pedido.- Não pediu, especificamente, que lhe mandassem Miss Sheila Webb?- Nunca ouvira, sequer, falar desse nome.Hardcastle fitou-a, estupefacto.- Deixou a porta da frente apenas no fecho...lembrou.- Deixo-a assim com muita frequência, de dia.- Qualquer pessoa poderia entrar...- Parece que foi isso que sucedeu, neste caso - comentou secamente a cega.- Miss Pebmarsh, segundo a opinião do médico, o homem morreu aproximadamente entre a uma e meia e as duas e quarenta e cinco da tarde. Onde estava nessa altura?Miss Pebmarsh pensou, de novo, antes de responder:- Creio que saí de casa cerca da uma e meia. Precisava de fazer umas compras.- Sabe-me dizer exactamente aonde foi?- Deixe ver... Fui aos Correios da Albany Road expedir uma encomenda e comprar alguns selos; depois comprei umas coisas para a casa, botões e alfinetes de segurança, na capelista Field & Wren. A seguir regressei... Posso-lhe dizer exactamente que horas eram: o meu relógio de cuco estava a dar as três horas quando transpus a cancela. Consigo ouvi-lo da estrada.- E quanto aos seus outros relógios?- Como?- Os seus outros relógios parecem estar todos adiantados cerca de uma hora.- Adiantados? Refere-se ao relógio de pé, do canto?- Não apenas a esse. A todos os outros relógios da sala.- Não compreendo o que quer dizer com "os outros relógios". Não existem outros relógios na sala.- Essa agora, Miss Pebmarsh! Que me diz do belo relógio de porcelana de Dresda, que tem na prateleira da chaminé? E do bonito relógio dourado francês? E do relógio de prata? E... sim, e do relógio que tem o nome de "Rosemary" gravado a um canto?- Um de nós deve estar doido, inspector. Garanto-lhe que não tenho nenhum relógio de porcelana de Dresda, nenhum relógio com o nome... - como disse? - ... com o nome de "Rosemary" gravado, nenhum relógio dourado francês... e qual era o outro?- Um relógio de prata.- Nem nenhum relógio de prata. Se não acredita em mim, pode perguntar à mulher que vem fazer a limpeza. Chama-se Mistress Curtin.O detective-inspector Hardcastle estava perplexo.Miss Pebmarsh falava em tom de grande segurança e firmeza, convictamente. Meditou, alguns momentos, e depois levantou-se.- Miss Pebmarsh, importa-se de me acompanhar à sala?- Às suas ordens. Para lhe ser franca, eu própria gostaria de ver esses relógios.- Ver? - repetiu Hardcastle, surpreendido.- Examinar seria um termo mais adequado - concordou Miss Pebmarsh -, mas até as pessoas cegas usam modos convencionais de linguagem que não se aplicam exactamente às suas capacidades. Quando disse que gostaria de ver esses relógios, queria dizer que gostaria de os examinar e sentir com os meus dedos.Hardcastle saiu da cozinha, atravessou o pequeno vestíbulo e entrou na sala, seguido por Miss Pebmarsh. O perito das impressões digitais levantou a cabeça e anunciou:- Estou quase a acabar, inspector. Pode mexer no que quiser.Hardcastle acenou afirmativamente e pegou no pequeno relógio de viagem, com a palavra "Rosemary" gravada a um canto. Entregou-a a Miss Pebmarsh, que o apalpou cuidadosamente.- Parece um vulgar relógio de viagem, com estojo de cabedal que se fecha. Não é meu, inspector, e tenho praticamente a certeza de que não se encontrava nesta sala quando eu saí, à uma e meia.- Obrigado.O inspector aceitou o relógio de viagem e tirou o de porcelana da prateleira da chaminé.- Tenha cuidado com este - recomendou, ao entregá-lo à cega. - É frágil.Millicent Pebmarsh tacteou o relógio, com dedos delicados e cuidadosos, e abanou a cabeça.- Deve ser um relógio encantador, mas não é meu. Onde disse que estava?- Do lado direito da prateleira da chaminé.- Aí devia estar um castiçal de porcelana.- Está, de facto, mas foi puxado para a porta.- Disse que havia ainda outro relógio, não disse?- Há mais dois.Hardcastle arrumou o relógio de porcelana de Dresda e entregou a Miss Pebmarsh o pequeno relógio dourado francês. Ela examinou-o depressa e devolveu-o.- Também não é meu.Foi a vez do de prata, que ela devolveu igualmente e afirmou não lhe pertencer.- Os únicos relógios que deviam estar nesta sala são um relógio de pé, naquele canto junto da janela...- Exactamente.... e um relógio de cuco, na parede, próximo da porta.Hardcastle não soube ao certo que dizer.Observou perscrutadoramente a mulher que tinha à sua frente, tranquilo por ela não saber que estava a ser observada.Miss Pebmarsh tinha a testa um pouco franzida, numa expressão de perplexidade.- Não compreendo - afirmou, irritada. - Não consigo compreender.Estendeu uma das mãos, com perfeito conhecimento do ponto da sala onde se encontrava, e sentou-se. Hardcastle olhou para o homem das impressões digitais, que se encontrava de pé, à porta.- Examinou estes relógios?- Examinei tudo, inspector. Não há quaisquer impressões no relógio dourado, nem seria de esperar que as houvesse, pois a superfície não as retém. Acontece o mesmo com o de porcelana. No entanto, o de viagem e o de prata também as não têm, e isso já parece um pouco esquisito.Normalmente, deviam ter impressões digitais. A propósito, nenhum deles tem corda e estão todos parados à mesma hora: quatro horas e treze minutos.- E quanto ao resto da sala?- Há três ou quatro jogos diferentes de impressões digitais, suponho que todas de mulheres. O conteúdo das algibeiras da vítima está em cima da mesa.Indicou com a cabeça um montinho de coisas e Hardcastle aproximou-se e observou. Encontrou uma carteira com sete libras e dez xelins; algumas moedas; um lenço de seda, de bolso, sem qualquer inicial; uma caixa de pastilhas digestivas; e um cartão impresso, que o inspector se inclinou para ler.
O inspector voltou ao sofá onde Miss Pebmarsh se sentara e perguntou-lhe:- Aguardava a visita de alguém de uma companhia de seguros?- De uma companhia de seguros? Não, não aguardava.- Da Metropolis and Provincial Insurance Company...- Nunca ouvi falar dela - afirmou Miss Pebmarsh, a abanar a cabeça.- Não tencionava fazer nenhum seguro?- Não. Estou segura contra incêndio e roubo na Jove Insurance Company, que tem aqui uma sucursal.Não tenho nenhum seguro pessoal; como não tenho família nem parentes chegados, não acho necessário fazer um seguro de vida.- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa? Mister R. H. Curry*?* Curry significa caril, em inglês. Daí a associação de ideias da mulher. (N. da T. ).O inspector observava-a atentamente, mas não notou nenhuma reacção.- Curry... - repetiu, e abanou a cabeça. - É um nome pouco vulgar, não é? Mas não, não me lembro de o ter ouvido nem de conhecer alguém com esse nome. Era assim que se chamava o homem que mataram?- Parece que sim.Miss Pebmarsh hesitou um momento, antes de perguntar:- Deseja que eu... que eu toque...O inspector compreendeu-a imediatamente.- Importava-se, Miss Pebmarsh? Não é exigir-lhe demasiado?Percebo pouco destes assuntos, mas suponho que os seus dedos lhe dirão mais exactamente o aspecto de uma pessoa do que qualquer descrição.- Sem dúvida. Confesso que a ideia não é muito agradável, mas estou disposta a fazê-lo, se pensa que o poderá ajudar.- Obrigado. Se me deixar conduzi-la...Levou-a atrás do sofá, pediu-lhe que se ajoelhasse e depois, suavemente, aproximou-lhe as mãos do morto. Ela parecia muito calma e não denunciava qualquer emoção. Os seus dedos percorreram o cabelo, as orelhas - demoraram-se um momento atrás da orelha esquerda -, a linha do nariz, da boca e do queixo. Depois abanou a cabeça e levantou-se.- Faço uma ideia clara do seu aspecto, mas tenho a certeza de que não é ninguém que conheça ou haja visto.O perito das impressões digitais, que arrumara a sua maleta e saíra da sala, apareceu à porta e anunciou, a apontar o cadáver:- Vêm buscá-lo. Podem levá-lo?- Podem. Miss Pebmarsh, venha sentar-se aqui, sim?Instalou-a numa cadeira, a um canto, enquanto dois homens entravam e removiam, com rapidez e eficiência, o corpo do falecido Mr. Curry.Hardcastle acompanhou-o à cancela e depois voltou à sala e sentou-se perto de Miss Pebmarsh.- Este caso é muito estranho, Miss Pebmarsh.Preciso de passar em revista, consigo, os pontos principais, para ter a certeza de que percebi tudo bem.Corrija-me, se me enganar. A senhora não esperava nenhuma visita, não fez consultas acerca de qualquer espécie de seguros e não recebeu nenhuma carta a informá-la de que receberia, hoje, a visita de um representante de uma companhia de seguros. Está certo?- Está.- Não precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa e não telefonou ao Gabinete Cavendish nem pediu que lhe mandassem alguém às três horas.- Continua a estar certo.- Quando saiu de casa, cerca da uma e meia, nesta sala só havia dois relógios, o de cuco e o de pé. Mais nenhum.Miss Pebmarsh ia a responder imediatamente, mas hesitou um momento.- Para responder com toda a verdade, não posso jurar, a esse respeito.Em virtude de me encontrar privada da visão, não notaria a ausência de qualquer objecto, nem a presença de quaisquer outros que não costumassem estar nesta sala. Só tenho a certeza do que estava nesta sala quando limpei o pó, de manhã cedo. Nessa altura, estava tudo no seu lugar. Geralmente sou eu que limpo esta sala, pois as mulheres-a-dias são um bocado descuidadas com os ornamentos.- De manhã saiu de casa?- Saí. Como de costume, às dez horas fui ao Instituto Aaronberg, onde dou aulas até ao meio-dia e um quarto. Regressei a casa cerca do meio-dia e quarenta e cinco, preparei uns ovos mexidos e uma chávena de chá, na cozinha, e voltei a sair, como já disse, cerca da uma e meia. A propósito, almocei na cozinha e não vim a esta sala.- Portanto, embora possa afirmar que às dez horas da manhã não estavam relógios a mais nesta sala, admite que os podiam cá ter posto durante a manhã.- A esse respeito, talvez seja conveniente interrogar a minha mulher-a-dias, Mistress Curtin. Costuma vir por volta das dez horas e partir cerca do meio-dia. Mora na Dipper Street, dezassete.- Obrigado, Miss Pebmarsh. Restam-nos, agora, os factos que vou enumerar e acerca dos quais gostaria que me apresentasse algumas sugestões ou ideias que porventura lhe ocorram. A certa altura do dia de hoje, foram introduzidos nesta casa quatro relógios; todos esses relógios estavam parados às quatro horas e treze minutos. Esta hora sugere-lhe alguma coisa?- Quatro horas e treze minutos... Não, nada.- Passemos agora dos relógios para o morto. Parece improvável que a sua mulher-a-dias o recebesse e deixasse cá ficar à espera, a não ser que a senhora lhe dissesse que o esperava. Mas a esse respeito interrogá-la-emos a ela. Ele veio presumivelmente para falar consigo acerca de qualquer coisa, quer pessoal, quer de negócios. Entre a uma e meia e as duas e quarenta e cinco foi apunhalado e morto. Se ele veio por ter sido chamado, a senhora afirma nada saber acerca disso. É provável que ele estivesse relacionado com seguros, mas a esse respeito, a senhora também não nos pode ajudar. Como a porta estava apenas no fecho, ele podia ter entrado e ficado à sua espera. Mas porquê?- Parece-me tudo muito estúpido - declarou a cega, impacientemente. - O senhor pensa, então, que esse... esse Curry trouxe os relógios?- Não encontrámos nenhuma embalagem e ele dificilmente poderia trazer quatro relógios nas algibeiras. Pense bem, Miss Pebmarsh. Não lhe acode ao espírito nada que se possa relacionar com relógios ou, se não com relógios, digamos, por exemplo, com tempo? Quatro horas e treze minutos?.Millicent Pebmarsh abanou "a cabeça.- Tenho estado a dizer para comigo que se trata de obra de um louco ou que alguém se enganou na casa, mas nem mesmo isso explica o que se passou. Não, inspector, não o posso ajudar.Um jovem polícia chegou à porta e Hardcastle foi ter com ele e acompanhou-o até à cancela, onde se demoraram alguns minutos a conversar.- Agora pode levar a pequena a casa - disse-lhe, por fim. - Mora na Palmerston Road, catorze.Retrocedeu e entrou na casa de jantar. Pela porta aberta, viu Miss Pebmarsh a fazer qualquer coisa, no lava-louça.- Preciso de levar os relógios, Miss Pebmarsh. Deixar-lhe-ei um recibo.- Pode levá-los à vontade, inspector. Não me pertencem...Hardcastle virou-se para Sheila Webb e informou-a:- Pode ir para casa, Miss Webb. O carro da Polícia levá-la-á.A jovem e Colin levantaram-se ao mesmo tempo.- Acompanhe-a ao carro, sim, Colin? - pediu Hardcastle, ao mesmo tempo que chegava uma cadeira para a mesa e se sentava a passar um recibo.Colin e Sheila saíram. No carreiro, Sheila parou, de súbito:- As minhas luvas! Deixei-as...- Vou buscá-las.- Não... Sei exactamente onde as pus. Não me importo de lá voltar, agora... agora que o levaram.Retrocedeu a correr e voltou um ou dois minutos depois.- Peço desculpa de ter sido tão pateta... antes.- Qualquer pessoa procederia do mesmo modo.Hardcastle alcançou-os, quando Sheila entrava no automóvel, deixou o carro arrancar e disse ao jovem polícia:- Quero os relógios da sala acondicionados com cuidado. Todos menos o relógio de cuco, da parede, e o relógio de pé.Deu mais algumas instruções e depois voltou-se para o amigo:- Vou a uns lados. Quer vir?- Porque não? - respondeu Colin.NARRATIVA DE COLIN LAMB- Aonde vamos? - perguntei a Dick Hardcastle.- Gabinete de Secretariado Cavendish - respondeu, mas a dirigir-se ao motorista. - Fica na Palace Street, perto do Esplanade, à direita.- Sim, inspector.O carro arrancou. Entretanto, juntara-se uma pequena multidão de mirones, cheia de curiosidade.O gato amarelo continuava empoleirado no pilar da cancela da Diana Lodge, ao lado do número 19. Agora já não lavava o focinho. Estava sentado muito direito, a abanar um pouco a cauda e a olhar por cima da cabeça dos curiosos, com o absoluto desdém pela espécie humana que é prerrogativa especial de gatos e camelos.- Primeiro o Gabinete de Secretariado e depois a mulher-a-dias - acrescentou Hardcastle, a olhar para o relógio. - O tempo urge; já passa das quatro. Fez uma pausa prolongada, antes de perguntar: Uma pequena muito atraente, não acha?- Muito - concordei.- Mas contou uma história extraordinária e, por isso, quanto mais cedo a confirmarmos, melhor.- Não pensa que ela...- Interessam-me sempre as pessoas que encontram cadáveres - interrompeu-me o inspector.- Mas a pequena estava meio louca de medo! Se a ouvisse gritar...Lançou-me um dos seus olhares irónicos e repetiu que ela era muito atraente.- A propósito, Colin, que andava você a fazer em Wilbraham Crescent? A admirar a nobre arquitectura vitoriana? Ou tinha algum objectivo?- Tinha um objectivo. Procurava o número sessenta e um e não o conseguia encontrar. Possivelmente não existe...- Existe, sim. Suponho que a numeração vai até oitenta e oito.- Mas quando cheguei ao vinte e oito, Wilbraham Crescent acabou-se!- É um pormenor que intriga sempre as pessoas que não são daqui. Se tivesse virado à direita, pela Albany Road, e depois novamente à direita, encontrar-se-ia na outra metade de Wilbraham Crescent. As casas foram construídas aos pares, mas traseiras com traseiras, com os jardins de permeio.- Ah, compreendo! Como aqueles largos e jardins de Londres, não é? Onslow Square... ou Cadogan.Começamos a descer um lado de um largo e ele transforma-se, de súbito, numa praça ou num jardim. Às vezes até os motoristas de táxis ficam às aranhas. Mas o que interessa é que o número sessenta e um existe.Faz alguma ideia de quem lá mora?- No sessenta e um? Deixe ver... Sim, deve ser Bland, o construtor civil.- Ora bolas! - resmunguei. - É pena. - Não lhe interessa um construtor?- Não, não me interessa um construtor para nada. A não ser... Talvez se tenha instalado cá recentemente?- Creio que o Bland nasceu aqui. É, pelo menos, homem destes sítios, estabelecido há anos.- Decepcionante.- É um péssimo construtor, por sinal, utiliza materiais muito fracos.Constrói aquele tipo de casas que parecem mais ou menos bem até lá vivermos. Depois começa tudo a cair ou a funcionar mal. É esperto, mas arrisca-se e algum dia quina.- Não vale a pena tentar-me, Dick. O homem que procuro deve, quase com certeza, ser a rectidão personificada.- Bland herdou uma quantidade de dinheiro há cerca de um ano... ou melhor, quem herdou foi a mulher. Ela é canadiana, veio para cá durante a guerra e conheceu Bland. A família não queria que ela casasse com ele e pô-la mais ou menos à margem, depois do casamento. O ano passado, porém, faleceu um tio-avô cujo filho morrera num desastre de aviação.Devido às baixas provocadas pela guerra e a outras circunstâncias, verificou-se que Mistress Bland era a única pessoa que restava da família e por isso o dinheiro foi para ela. Creio que Bland escapou da falência por um triz.- Parece muito bem informado acerca de Mister Bland.- Bem, o serviço de impostos está sempre interessado quando um homem enriquece da noite para o dia. Desconfia se não terá havido tramóia nas declarações, se o tipo não terá posto uns dinheiros de parte, e manda investigar. Desta vez investigou-se e estava tudo em ordem.- Aliás, não estou interessado num homem que enriqueceu de súbito. Não é isso que procuro.- Não? Mas já lhe tem aparecido, não tem?Acenei afirmativamente.- Esta história é complicada - expliquei, evasivo. - Jantamos juntos, como estava combinado, ou temos de mudar de planos, em virtude do que sucedeu?- Não, o combinado mantém-se. Neste momento, a primeira coisa a fazer é pôr a engrenagem em funcionamento. Precisamos de descobrir tudo quanto seja possível acerca de Mister Curry. É muito provável que, quando soubermos quem era e o que fazia, tenhamos uma ideia mais ou menos aproximada de quem o desejava afastar do caminho. - Olhou pela janela e informou: - Chegámos.O Gabinete de Secretariado e Dactilografia estava situado na principal rua comercial, pomposamente denominada Palace Street. Tratava-se, como muitos outros estabelecimentos daquela artéria, de uma casa vitoriana, adaptada às necessidades actuais. À direita, uma casa semelhante ostentava uma tabuleta a anunciar: "Edwin Glen, fotógrafo artístico. Especializado em fotografias de crianças, de casamentos, etc." Como a provar a afirmação, a montra estava cheia de ampliações de fotografias de crianças de todos os tamanhos e idades, de bebés e adolescentes de 16 anos. A intenção era, provavelmente, tentar as mamãs enlevadas. Viam-se também algumas fotografias de noivos: jovens tímidos e moças sorridentes. Do outro lado do Gabinete Cavendish ficavam os escritórios de uma antiga e antiquada firma de comerciantes de carvão.A seguir, as casas antigas tinham sido deitadas abaixo e dado lugar a um cintilante edifício de três andares, em cuja tabuleta se lia o título imponente de "Café-Restaurante Oriente".Hardcastle e eu subimos os quatro degraus, transpusemos a porta da rua e, obedientes ao letreiro de uma porta da direita, que dizia "Faça Favor de Entrar", entrámos. Encontrámo-nos num aposento de boas dimensões, onde três jovens estavam sentadas a escrever à máquina. Duas delas continuaram a martelar as teclas, sem ligar importância nenhuma à nossa chegada, e a terceira, instalada numa mesa que tinha um telefone e ficava defronte da porta, levantou a cabeça e olhou-nos, de modo interrogador. Parecia estar a chupar uma guloseima qualquer, que empurrou para um dos lados da boca.- Em que lhes posso ser útil? - perguntou, em tom levemente adenoidal.- Miss Martindale? - inquiriu Hardcastle.- Creio que, neste momento, está a telefonar...Ao mesmo tempo ouviu-se um clique e a jovem levantou o auscultador do telefone, mexeu numa cavilha e anunciou:- Estão aqui dois cavalheiros que desejam falar consigo, Miss Martindale... - Olhou para nós e perguntou: - Como se chamam, por favor?- Hardcastle.- Mister Hardcastle, Miss Martindale. - Repôs o auscultador no descanso e levantou-se. - Por aqui, se fazem favor. - Conduziu-nos a uma porta que tinha o nome de "Miss Martindale" numa chapa de metal, abriu-a, chegou-se para um lado para passarmos e fechou-a.Miss Martindale estava sentada a uma grande secretária. Era uma mulher de aspecto eficiente, cerca de cinquenta anos, cabelo ruivo-claro e olhar vivo.Olhou de um para o outro e perguntou:- Mister Hardcastle?Dick tirou um dos seus cartões oficiais e estendeu-lho, enquanto eu tentava passar despercebido e me sentava numa cadeira de espaldar direito, junto da porta.As sobrancelhas arruivadas de Miss Martindale arquearam-se, numa expressão de surpresa e certo desagrado.- Detective-inspector Hardcastle? Em que lhe posso ser útil?- Vim pedir-lhe uma pequena informação, Miss Martindale, e creio que ma poderá dar.Pelo tom da sua voz, deduzi que Dick ia usar de rodeios e recorrer ao seu encanto. Pessoalmente, duvidei que Miss Martindale fosse vulnerável ao encanto. Pertencia àquele tipo que os Franceses qualificam sagazmente de 'femme formidable'. Entretanto, fui observando o ambiente. Nas paredes, por cima da secretária de Miss Martindale, estavam diversas fotografias autografadas.Reconheci numa delas Mrs. Ariadne Oliver, uma escritora policial que conhecia superficialmente e que escrevera a um canto da fotografia, em letras firmes e grandes: Com consideração, Ariadne Oliver. Noutra, de um escritor de suspense morto havia cerca de dezasseis anos, lia-se: Com gratidão, Garry Gregson. Miriam Hogg, especialista em romances amorosos, autografara a sua fotografia com um Sempre sua, Miriam, e o género literário que explorava o sexo também lá tinha o seu representante, um homenzinho careca e tímido, que escrevera, em letras miudinhas: Com a gratidão de Armand Levine. Havia certas constantes naqueles troféus: os homens, na sua maioria, seguravam cachimbos... e vestiam casacos de tweed, e as mulheres tinham um ar muito sério e uma tendência para parecerem afogadas em peles.Enquanto eu me servia dos olhos, Hardcastle interrogava:- Creio que tem ao seu serviço uma jovem chamada Sheila Webb?- Tenho. Mas, neste momento, ela não está. Pelo menos...Premiu um botão e falou com o escritório contíguo:- Edna, a Sheila já voltou?- Ainda não, Miss Martindale.- Foi fazer um trabalho, ao princípio da tarde - explicou a directora. - Calculei que já tivesse acabado... mas é provável que tenha seguido para o Curlew Hotel, onde tinha outro trabalho marcado para as cinco horas.- Compreendo. Sabe-me dizer alguma coisa acerca de Miss Sheila Webb?- Receio não lhe saber dizer muito... Ela está cá... deixe ver... sim, creio que é nossa empregada há cerca de um ano. O seu trabalho tem sido satisfatório.- Sabe onde trabalhava antes de vir para cá?- Acho que poderei procurar, se tem interesse especial nessa informação, inspector Hardcastle. As referências dela estão arquivadas.Que me lembre, assim de repente, esteve empregada em Londres e os patrões deram muito boas informações a seu respeito. Creio, embora não tenha a certeza, que se tratava de uma firma de agentes de propriedades.- E a senhora diz que ela é boa empregada?- É competente - respondeu Miss Martindale, que não devia ser pessoa para grandes elogios.- Mas não de primeira categoria?- Não, isso não. Estenografa a uma velocidade regular e é razoavelmente instruída. Como dactilógrafa, é cuidadosa e certa.- Conhece-a pessoalmente, além de como empregada?- Não. Suponho que vive com uma tia. - Miss Martindale hesitou um momento. - Posso saber porque me faz todas estas perguntas, inspector Hardcastle? A pequena meteu-se nalgúm sarilho?- Suponho que não, Miss Martindale. Conhece uma tal Miss Millicent Pebmarsh?- Pebmarsh... - repetiu a directora, com as sobrancelhas arruivadas franzidas. - Onde... Ah, já me lembro! Foi Miss Pebmarsh que chamou Sheila, esta tarde. O encontro era para as três horas.- Como foi marcada a entrevista?- Pelo telefone. Miss Pebmarsh telefonou e disse que precisava dos serviços de uma estenodactilógrafa e se lhe podia mandar Miss Webb.- Ela pediu, especificamente, Sheila Weeb?- Pediu.- A que horas foi feito o telefonema?Miss Martindale pensou um momento, antes de responder:- O telefonema foi feito directamente para mim... o que significa que foi na hora do almoço. Suponho que faltariam uns dez minutos para as duas. Antes das duas foi, com certeza. Espere, lembro-me de que tomei nota na minha agenda... Cá está: uma hora e quarenta e nove minutos, precisamente.- Foi a própria Miss Pebmarsh que lhe falou?Miss Martindale pareceu um pouco surpreendida.- Presumo que sim.- Não lhe reconheceu a voz? Não a conhece pessoalmente?- Não, não a conheço. Disse que era Miss Millicent Pebmarsh e indicou-me o seu nome e a sua morada, em Wilbraham Crescent. Depois, como já disse, pediu que lhe mandasse Sheila Webb às três horas, se estivesse livre.Pensei que Miss Martindale daria uma excelente testemunha, pois as suas declarações eram claras e firmes.- E se fizesse o favor de me dizer acerca de que vem tudo isto? - perguntou, com certa impaciência.- Sabe, Miss Martindale, Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante telefonema.- Deveras? Mas é extraordinário!- Pelo seu lado, a senhora declara que o telefonema foi feito, mas não pode afirmar que tenha sido Miss Pebmarsh quem telefonou.- Claro que não posso afirmar, pois não conheço a criatura. No entanto, não compreendo porque faria alguém tal coisa... Tratou-se de alguma partida?- Foi muito mais do que isso. Miss Pebmarsh, ou quem quer que telefonou em nome dela, explicou por que motivo desejava especificamente Miss Sheila Webb?- Creio que disse que Sheila Webb já trabalhara para ela, antes.- E isso é verdade?- Sheila declarou-me não se lembrar de ter feito qualquer trabalho para Miss Pebmarsh... mas isso não quer dizer nada. As pequenas saem tantas vezes, trabalham para tanta gente e em sítios tão diferentes, que é natural não se lembrarem, passados alguns meses.Aliás, Sheila não foi muito peremptória a esse respeito. Disse apenas não se lembrar de lá ter ido. Mas, inspector, mesmo que se tenha tratado de uma partida, não compreendo o seu interesse...- Já lhe explico. Quando Miss Webb chegou a Wilbraham Crescent, dezanove, entrou na habitação e dirigiu-se para a sala. Disse-me que tinham sido essas as instruções que recebera. É verdade?- É, sim. Miss Pebmarsh disse que talvez chegasse um bocadinho atrasada e que, nesse caso, Sheila podia entrar e esperar.- Quando Miss Webb entrou na sala, encontrou um homem morto, caído no chão.Miss Martindale fitou o inspector e, por momentos, pareceu incapaz de falar.- Disse um homem morto, inspector?- Um homem assassinado. Apunhalado.- Oh, meu Deus, a pequena deve ter sofrido um grande abalo!- O nome de Curry diz-lhe alguma coisa, Miss Martindale? Mister R.H. Curry?- Não, suponho que não.- Mister Curry, da Metropolis and Provincial Insurance Company?A directora continuou a abanar a cabeça.- Compreende o meu dilema, Miss Martindale: a senhora diz que Miss Pebmarsh lhe telefonou e pediu que mandasse Sheila Webb a sua casa, às três horas; Miss Pebmarsh nega ter feito semelhante telefonema. Sheila Webb obedeceu às instruções que lhe deram e quando chegou encontrou um homem morto.O inspector aguardou, mas Miss Martindale olhou-o inexpressivamente.- Tudo isso me parece estranho e inacreditável - limitou-se a declarar, desaprovadora.Dick Hardcastle suspirou e levantou-se.- Tem uma bela casa - elogiou, delicadamente.Já está estabelecida há algum tempo, não está?- Há quinze anos. Temos tido sorte. Começamos modestamente, mas fomo-nos expandindo e agora quase não chegamos para as encomendas. Tenho oito empregadas e elas nunca param.- Vejo que se dedicam muito a trabalho literário - bservou Hardcastle, a olhar para as fotografias da parede.- Sim, ao princípio especializei-me em trabalhar para escritores. Fui secretária do famoso ficcionista Garry Gregson, durante muitos anos... e, por sinal, foi graças a um legado dele que fundei o Gabinete. Conhecia muitos escritores e eles recomendaram-me. Os conhecimentos especializados que adquirira junto de Mister Gregson foram-me muito úteis e agora estou apta a prestar um serviço importante, no capítulo de datas, citações, pormenores jurídicos, procedimento policial, certas propriedades de venenos, coisas assim...Nomes estrangeiros, moradas e nomes de restaurantes, quando os autores situam os seus romances em países estrangeiros... Noutros tempos, o público não ligava muita importância à exactidão, mas hoje em dia os leitores não deixam escapar nenhuma oportunidade de escrever aos autores sempre que encontram qualquer falha.- Estou certo de que tem motivos para se sentir contente - declarou Hardcastle, muito delicado.Encaminhou-se para a porta e eu abri-lha.No escritório, as três raparigas preparavam-se para sair e já tinham tapado as máquinas de escrever. Edna, a recepcionista, estava de pé, com um ar muito triste, a segurar numa das mãos um sapato e na outra um salto alto e fino.- Só os comprei há um mês - lamentava-se.E foram caros! A culpa foi daquele maldito ralo da esquina, junto da pastelaria. O salto prendeu-se lá e soltou-se. não pude continuar a andar, tive de descalçar os dois sapatos e voltar para o escritório, com dois bolos para me servirem de almoço.Palavra que não sei como hei-de chegar à paragem do autocarro e de seguir para casa!Nesse momento Edna deu pela nossa presença e apressou-se a esconder o sapato, ao mesmo tempo que lançava a Miss Martindale um olhar apreensivo. A directora, que calçava sapatos práticos, de meio-salto, não devia apreciar saltos daqueles.- Obrigado, Miss Martindale - agradeceu Hardcastle. - Lamento ter-lhe roubado tanto tempo. Se se lembrar de alguma coisa...- Com certeza - cortou a mulher, com certa brusquidão.Quando entrámos no automóvel, observei:- Afinal, apesar das suas suspeitas, a história de Sheila Webb é verdadeira.- Está bem, está bem, ganhou!***- Mãe! - gritou Ernie Curtin e desistiu momentaneamente de movimentar um pequeno brinquedo metálico pelo vidro da janela acima e abaixo, ao mesmo tempo que emitia um "zumeee" que pretendia reproduzir o silvo de uma astronave a caminho de Vénus... - Que lhe parece, mãe?Mrs. Curtin, uma mulher de rosto severo que estava ocupada a lavar a louça, não respondeu.- Mãe, parou um carro da Polícia defronte da nossa casa!- Não digas mais mentiras, Ernie! - advertiu Mrs. Curtin, enquanto punha as chávenas e pires a escorrer. - Não te esqueças do que te disse a esse respeito.- Não esqueço! - garantiu Ernie, virtuosamente. - É mesmo um carro da Polícia e estão a sair dois homens.Mrs. Curtin virou-se, ameaçadora, para o rebento.- Que fizeste tu agora? Alguma vergonha, não?- Claro que não! Não fiz nada.- Tudo por andares com aquele Alf e o seu bando. Bandos, imaginem! Tanto eu como o teu pai já te dissemos que um bando não é uma coisa respeitável. Dá sempre sarilho! Primeiro é o tribunal de menores e, mais cedo ou mais tarde, a casa da correcção. Não consentirei semelhante coisa, ouviste?- Dirigem-se para a porta da rua - anunciou Ernie.Mrs. Curtin afastou-se do lava-louça e juntou-se ao filho, à janela.Nesse momento bateram à porta e Mrs. Curtin limpou as mãos a uma rodilha e apressou-se a ir abrir, ao corredor. Olhou, entre desconfiada e provocadora, para os dois homens parados no limiar.- Mrs. Curtin? - perguntou delicadamente o mais alto.- Exactamente.- Dá-me licença que entre um momento? Sou o detective-inspector Hardcastle.Mrs. Curtin recuou, contrariada, abriu a porta e fez sinal ao inspector para entrar. Era uma saleta muito arrumada e limpa, que dava a impressão de ser pouco usada, o que era verdade.Curioso, Ernie aproximou-se, vindo da cozinha, e esgueirou-se para dentro da sala.- Seu filho? - perguntou o inspector.- Sim - respondeu a mulher, e acrescentou, agressiva: - É bom rapaz, diga o senhor o que disser!- Estou certo de que é - concordou Hardcastle, delicadamente, e o rosto de Mrs. Curtin tornou-se menos desafiador. - Desejo fazer-lhe algumas perguntas acerca de Wilbraham Crescent, dezanove. Sei que trabalha lá...- Nunca disse que não trabalhava - replicou a mulher, incapaz, apesar de tudo, de vencer a agressividade inicial.- Trabalha para Miss Millicent Pebmarsh...- Sim, trabalho para Miss Pebmarsh. Uma senhora muito simpática. - Cega...- Sim, coitadinha. Mas nem parece! É extraordinária a maneira como estende a mão para as coisas e anda por todo o lado! Sai de casa, atravessa ruas... Não se atrapalha, como certas pessoas que conheço.- A senhora trabalha lá de manhã?- Trabalho. Entro entre as nove e meia e as dez horas e saio ao meio-dia ou quando acabo o serviço.De súbito perguntou, vivamente: - Não veio dizer que roubaram alguma coisa, pois não?- Pelo contrário - respondeu o inspector, a pensar nos quatro relógios.Mrs. Curtin olhou-o sem compreender e indagou:- Que se passa?- Esta tarde, foi encontrado um homem morto na sala da casa de Wilbraham Crescent, dezanove.Mrs. Curtin arregalou os olhos. Ernie encolheu-se todo, num êxtase, abriu a boca para exclamar "Oh!", achou melhor não chamar a atenção para a sua pessoa e fechou outra vez a boca.- Morto? - perguntou a mulher, incrédula, e acrescentou, com maior incredulidade ainda: - Na sala?- Sim. Fora apunhalado.- Quer dizer que foi... assassínio?- Sim, foi assassínio.- Quem o assassinou?- Lamento, mas ainda não sabemos. Pensamos que talvez a senhora nos pudesse ajudar.- Não sei nada de assassínios! - afirmou Mrs. Curtin, categórica.- Evidentemente. Mas surgiram alguns pormenores que talvez nos possa esclarecer. Por exemplo, esta manhã foi lá algum homem?- Que me lembre, não. Hoje não foi. Que espécie de homem era ele?- Idoso, talvez dos seus sessenta anos, respeitavelmente vestido de escuro... É provável que se apresentasse como agente de seguros.- Não o deixaria entrar. Não deixaria entrar agentes de seguros nem vendedores de aspiradores ou de edições da Enciclopédia Britânica. Nada desse género. Miss Pebmarsh não compra nada à porta e eu também não.- O nome do indivíduo, segundo um cartão que trazia com ele, era Mister Curry. Alguma vez ouviu esse nome?- Curry?... - Mrs. Curtin abanou a cabeça.Soa-me a indiano... - acrescentou, desconfiada.- Oh, não, não era indiano!- Quem o encontrou? Miss Pebmarsh?- Uma jovem estenodactilógrafa. Foi lá a casa devido a um malentendido, convencida de que Miss Pebmarsh a chamara, para lhe fazer um trabalho. Miss Pebmarsh regressou quase ao mesmo tempo.Mrs. Curtin soltou um suspiro fundo e exclamou:- Que complicação! Que complicação!- É possível que tenhamos de lhe pedir que veja o cadáver, a fim de nos dizer se alguma vez o viu em Wilbraham Crescent ou se ele lá foi a casa. Miss Pebmarsh tem a certeza de que nunca foi... Agora desejava que me esclarecesse alguns pormenores. Lembra-se, assim de repente, quantos relógios há na sala?Mrs. Curtin nem precisou de pensar:- Há o relógio grande, ao canto, e o relógio de cuco, na parede. Sai um passarinho por uma portinhola e diz cu, cu! cu, cu! As vezes prega-me cada susto! - Apressou-se a acrescentar: - Não toquei em nenhum, nunca lhes mexo. Miss Pebmarsh gosta de ser ela a dar-lhes corda.- Não aconteceu nada aos relógios - tranquilizou-a o inspector. - Tem a certeza de que esses dois eram os únicos relógios que estavam na sala, esta manhã?- Pois tenho! Não podiam lá estar outros.- Não estavam lá, por exemplo, um pequeno relógio quadrado, de prata, ou um relógio dourado? Um relógio de porcelana, com flores, ou um relógio com um estojo de cabedal e o nome de "Rosemary" gravado a um canto?- Claro que não!- Teria reparado neles se lá estivessem?- Com certeza que teria.- Qualquer destes quatro relógios marcava uma hora e tal a mais do que o relógio grande e o de cuco.- Deviam ser estrangeiros. Eu e o meu marido fomos, uma vez, numa excursão, à Suíça e à Itália e lá era uma hora mais tarde. Deve ser qualquer coisa relacionada com o Mercado Comum. Eu não quero nada com o Mercado Comum e o meu homem também não; a Inglaterra serve-me muito bem.O inspector Hardcastle não se deixou arrastar para o campo político e perguntou:- Sabe-me dizer que horas eram, ao certo, quando saiu de casa de Miss Pebmarsh, esta manhã?- Mais ou menos meio-dia e um quarto.- Miss Pebmarsh estava em casa?- Não, ainda não regressara. Geralmente regressa entre o meio-dia e o meio-dia e meia hora, mas varia.- A que horas saíra ela?- Antes de eu chegar. Entro às dez.- Obrigado, Mistress Curtin.- Isso dos relógios parece estranho. Talvez Miss Pebmarsh tenha ido a alguns saldos... Não eram antigos? Pelo menos é o que me parecem, pelo modo como os descreveu.- Miss Pebmarsh costuma ir a saldos?- Há uns quatro meses comprou uma carpete em muito bom estado, num saldo. Muito barata, segundo me disse. Também comprou uns cortinados de veludo. Foi preciso cortá-los um bocadinho, mas pareciam novos.- Mas ela não costuma comprar bricabraque, coisas assim como quadros, porcelanas?...- Que eu saiba, não. Mas nos saldos nunca se sabe, não é? Quero dizer, deixamo-nos arrastar pela tentação. Quando chegamos a casa, perguntamo-nos:"Mas, afinal, para que quero isto?" Uma vez, comprei seis boiões de compota, que eu própria podia ter feito mais barata.Outra, foram chávenas e pires, que compraria mais baratos no mercado das quartas-feiras...Abanou a cabeça, tristemente, e o inspector compreendeu que, de momento, não conseguiria saber mais nada e despediu-se. Ernie soltou, então, a frase que se esforçara por conter:- Assassínio! Ena!Momentaneamente, a conquista do espaço exterior deu lugar, no seu espírito, a um assunto actual e emocionante.- Miss Pebmarsh não o podia ter morto, pois não? - sugeriu, ansioso.- Não digas tolices! - ralhou a mãe, e murmurou, ao acudir-lhe um pensamento: - Pergunto a mim mesma se lhe deveria ter dito...- Se lhe deveria ter dito o quê, mãe?- Não tens nada com isso. Não foi nada de importância, de resto...NARRATIVA DE COLIN LAMBDepois de nos deliciarmos com dois bons bifes mal passados, regados com cerveja de barril, Dick Hardcastle soltou um suspiro de agradável saciedade, afirmou que se sentia melhor e exclamou:- Ao diabo com os agentes de seguros assassinados, com os relógios de fantasia e com as raparigas a gritar! Fale-me de si, Colin. Julgava que já não tinha nada a fazer por estas bandas e ei-lo a vaguear pelas ruas secundárias de Crowdean! Garanto-lhe que em Crowdean não há futuro para um biólogo marítimo.- Não troce da biologia marítima, Dick, pois trata-se de uma matéria muito útil. A sua simples menção enfada tanto as pessoas, elas têm tanto medo de que falemos do assunto, que nunca temos oportunidade de explicar de que se trata.- Assim, não corre o risco de se denunciar, hem?- Esquece-se de que sou biólogo marítimo - observei, friamente. - Formei-me em Cantabrígia. A classificação não foi muito elevada, mas formei-me. É um trabalho muito interessante e, um dia, voltarei a dedicar-me a ele.- Claro que sei em que tem andado a trabalhar, e felicito-o. O julgamento do Larkin é no próximo mês, não é?- É.- É espantoso como ele conseguiu passar informações durante tanto tempo! Seria de supor que alguém desconfiasse...- Mas ninguém desconfiou. Quando se mete na cabeça de uma pessoa que determinado indivíduo é um tipo excelente, não lhe passa pelo espírito que ele possa não o ser.- Deve ter procedido com muita inteligência.- Francamente, não creio. Estou convencido de que ele procedeu como lhe mandaram proceder. Tinha acesso a documentos muito importantes, saía com eles, fotografavam-nos, devolviam-lhos e ele repunha-os no seu lugar, no mesmo dia. Boa organização, apenas. Ele tinha o hábito de almoçar em lugares diferentes, todos os dias, e nós cremos que pendurava o sobretudo onde havia sempre outro exactamente igual ao seu, embora o homem que o usava não fosse todos os dias o mesmo. Os sobretudos eram trocados, mas o homem que os trocava nunca falava com Larkin nem este com ele.Gostaríamos de saber muito mais coisas acerca da mecânica do caso... Era tudo muito bem planeado, com uma sincronização perfeita, por alguém que tinha miolos.- É por isso que continua nas imediações da Estação Naval de Portlebury?- É. Conhecemos o papel da Estação e o papel de Londres, sabemos quando e onde Larkin recebia, e como. Mas há uma lacuna, entre uma coisa e outra existe uma obra-prima de organização. Era acerca dessa parte que gostaríamos de saber mais alguma coisa, pois é aí que estão os miolos.Algures, existe um bom quartel-general onde se fazem planos excelentes que deixam uma pista que se torna confusa não uma vez, mas provavelmente sete ou oito vezes.- Porque procedia o Larkin desse modo? - perguntou Hardcastle, curioso. - Por idealismo político? Para lisonjear o seu ego? Ou por simples dinheiro?- Ele não tem nada de idealista. Creio que lhe interessava apenas o dinheiro.- Não o podiam ter descoberto mais cedo, por esse motivo? Quero dizer, ele gastava o dinheiro, não gastava? Não o juntava.- Oh, não, ele desbaratava-o! Na realidade, desconfiámos dele mais cedo do que dizemos.Hardcastle acenou com a cabeça, compreensivo.- Estou a perceber. Descobriram o jogo e depois serviram-se dele durante uns tempos. Foi isso?- Mais ou menos. O tipo transmitira valiosas informações, antes de descobrirmos o que se passava, e por isso deixámo-lo transmitir mais algumas, aparentemente valiosas, também. No Serviço a que pertenço temos de nos resignar e de parecer idiotas, de vez em quando.- Não creio que gostasse do seu trabalho, Colin observou Hardcastle, pensativo.- Não é tão emocionante como as pessoas julgam. Na realidade, a maioria das vezes é muitíssimo enfadonho. Mas há mais alguma coisa, para além disso. Hoje em dia, temos a sensação de que nada é realmente secreto.Nós sabemos os segredos deles e eles sabem os nossos... os nossos agentes são muitas vezes agentes deles, também, e os agentes deles nossos agentes... No fim, descobrir quem anda a atraiçoar quem transforma-se quase num pesadelo. Às vezes, penso que todos sabem os segredos uns dos outros e participam numa espécie de conspiração para fingir que não sabem.- Compreendo o que quer dizer... - Dick fitou-me, cheio de curiosidade, e acrescentou: - Percebo por que motivo ainda permanece nas imediações de Portlebury, mas Crowdean fica a mais de dezasseis quilómetros de distância!- O que na realidade procuro são crescentes. - Crescentes? - repetiu o inspector, intrigado.- Sim. Ou, então, luas. Luas novas, quartos crescentes, etc. Comecei a investigar em Portlebury, onde há um bar chamado Quarto Crescente, e perdi muito tempo. Parecia ideal... Seguiram-se A Lua e as Estrelas, A Lua Nascente, O Alegre Crescente, A Cruz e o Crescente, este numa terreola chamada Seamede. Nada feito. Desisti das luas e concentrei-me nos crescentes propriamente ditos. Há vários em Portlebury: Crescente de Lansbury, Crescente de Aldridge, Crescente de Livermead, Crescente de Vitória...Reparei na cara espantada de Dick e desatei a rir.- Não faça essa cara de espanto, homem! Eu tinha algo tangível em que me basear.Puxei da carteira, tirei uma folha de papel e estendi-lha. Tratava-se de uma simples folha de papel de carta de um hotel, na qual alguém fizera um desenho tosco. Hotel Pmrington Erners Strero Londres 61M.- Um tipo chamado Hanbury tinha isso na carteira. Hanbury trabalhou muito no Caso Larkin e era bom... muito bom. Foi atropelado em Londres, por um automóvel que não parou. Ninguém viu o número. Não sei o que isso significa, mas é qualquer coisa que Hanbury desenhou ou copiou, por julgar que era importante. Alguma ideia que teve? Algo que vira ou ouvira? Fosse o que fosse, estava relacionado com a Lua ou o crescente, o número sessenta e um e a inicial M. Substituí-o, depois da sua morte. Ainda não sei o que procuro, mas tenho a certeza de que existe alguma coisa para encontrar. Não sei o que significa o sessenta e um nem o M. Tenho estado a trabalhar numa área que tem Portlebury como centro, parti daí para o exterior. Três semanas de trabalho intensivo e inútil. Crowdean fica no meu caminho e é por isso que estou cá. Para ser franco, nunca tive muitas esperanças em Crowdean, onde só há um crescente: Wilbraham Crescent. Tencionava passear por Wilbraham Crescent e ver o que pensava do número sessenta e um, antes de lhe perguntar se sabia alguma coisa que me pudesse ajudar. Era o que estava a fazer esta tarde, mas sem conseguir encontrar o número que me interessava.- Como já lhe disse, no sessenta e um mora um construtor civil.- E não é isso que procuro. Têm alguém estrangeiro ao seu serviço?- É possível. Hoje em dia, muita gente tem criadas estrangeiras. Se tiverem alguma, ela estará registada. Amanhã averiguarei isso.- Obrigado, Dick.- Amanhã efectuarei investigações de rotina nas duas casas que ladeiam o número dezanove, para saber se viram alguém entrar, etc. Talvez investigue também nas que ficam directamente atrás do número dezanove, cujos jardins são contíguos. Tenho até a impressão de que o número sessenta e um fica atrás do dezanove. Se quiser ir comigo, posso-o levar.Aceitei a oferta sem hesitar.- Serei o seu "sargento Lamb" e tomarei apontamentos em estenografia.Ficou combinado que me encontraria na esquadra da Polícia às nove e meia da manhã seguinte.Cheguei pontualmente e encontrei o meu amigo a ferver de raiva.Quando despediu um subordinado cabisbaixo, perguntei, com todas as cautelas, o que sucedera.Ao princípio, Hardcastle pareceu incapaz de falar. Depois explodiu:- Os malditos relógios!- Outra vez os relógios? Que sucedeu agora?- Um deles desapareceu.- Desapareceu? Qual?- O de viagem, com estojo de cabedal e o nome de "Rosemary" gravado a um canto.Soltei um assobio.- Mas isso parece muito estranho! Como aconteceu?- Os grandíssimos idiotas... - Dick, que era um homem muito honesto, hesitou um momento e admitiu: - Suponho que também o sou.Um homem tem de pôr todos os pontos nos is senão corre tudo mal.Bem, os relógios estavam na sala, ontem, e eu pedi a Miss Pebmarsh que os examinasse com os dedos, a fim de saber se lhe eram familiares. Não eram. Depois chegaram para remover o cadáver...- E então?- Acompanhei-os até à cancela, para dirigir as operações, e depois regressei à moradia e falei com Miss Pebmarsh, que estava na cozinha. Disse-lhe que teria de trazer os relógios e lhe daria um recibo.- Lembro-me perfeitamente, pois ouvi-o. - Depois disse à pequena que a levaria a casa num dos nossos carros e você acompanhou-a ao automóvel, a meu pedido.- Exactamente.- Passei o recibo a Miss Pebmarsh, embora ela dissesse que não era preciso, pois os relógios não lhe pertenciam, e fui ter consigo. Disse ao Edwards que queria os relógios da sala cuidadosamente acondicionados e trazidos para cá. Todos, excepto, claro, o de pé e o de cuco. E foi aí que fiz asneira. Devia ter dito, especificamente, os quatro relógios. Edwards diz que foi logo à sala e cumpriu as minhas ordens, mas teima que só lá estavam três relógios, além dos dois que não eram para trazer.- Não houve muito tempo para agir - observei. Parece...- Miss Pebmarsh podia ter pegado no relógio, assim que eu saí da sala, e ido para a cozinha com ele.- Claro. Mas porquê?- Precisamos de saber tantas coisas! Mais alguém teria a mesma possibilidade? Teria sido a pequena?- Não creio. Eu... - calei-me, de repente, ao recordar uma coisa.- Afinal, podia ter sido ela! - exclamou Hardcastle, perante a minha hesitação. - Continue. Quando foi?- Saíramos e dirigíamo-nos para o carro da Polícia - expliquei, muito triste. - Ela lembrou-se de que se esquecera das luvas e eu disse-lhe: "Vou buscá-las." Mas ela redarguiu: "Não... Sei exactamente onde as pus. Não me importo de lá voltar, agora... agora que o levaram." E voltou para trás, a correr. Só se demorou um minuto...- Quando regressou, trazia as luvas calçadas ou na mão?Hesitei.- Sim... creio que as trazia...- É evidente que não as trazia, pois se trouxesse você não hesitaria.- Provavelmente meteu-as na mala.- O mal é que você se deixou prender pela moça - resmungou Hardcastle, acusadoramente.- Não seja idiota! - protestei, com veemência.Via-a ontem à tarde pela primeira vez, e não se tratou de uma apresentação nada romântica.- Não estou muito de acordo com isso. Não é todos os dias que caem nos braços de homens novos como você pequenas a gritar por socorro, no bom estilo vitoriano. Um tipo sente-se um herói e um defensor galante do sexo fraco... Mas tem de deixar de a defender, meu amigo. Nada nos garante que ela não esteja metida até ao pescoço no assassínio.- Pretende dizer que aquela criatura cravou uma faca num homem, a escondeu tão bem que nenhum dos seus cães foi capaz de a encontrar e depois saiu de casa e improvisou aquela cena de gritos, quando me caiu nos braços?- Ficaria surpreendido se soubesse o que tenho visto, durante a minha vida.- Não se lembra de que a minha vida também tem estado cheia de belas espias de todas as nacionalidades? Espias com estatísticas vitais tão impressionantes que fariam o mais esperto detective particular americano esquecer-se da eterna garrafa de uísque na gaveta da secretária. Estou imunizado contra todos os encantos femininos.- Toda a gente acaba por ter o seu Waterloo. Depende tudo do tipo... e Sheila Webb parece ser o seu tipo.- Seja como for, não compreendo porque está tão empenhado em lhe atribuir as culpas.Hardcastle suspirou.- Não lhe estou a atribuir culpas nenhumas, mas preciso de começar por qualquer lado. O corpo foi encontrado na casa de Miss Pebmarsh e esse facto envolve automaticamente a cega no assunto. O corpo foi encontrado por Miss Webb... e eu não preciso de lhe dizer que, muito frequentemente, a primeira pessoa a encontrar um cadáver foi a última a ver o indivíduo vivo. Portanto, enquanto não descobrirmos novos factos, não podemos ignorar o papel destas duas mulheres.- Quando entrei na sala, pouco depois das três horas, o indivíduo morrera havia pelo menos meia hora. Ou mais, provavelmente. Que me diz a isto?- Sheila Webb foi almoçar da uma e meia às duas e meia.Fitei-o, desesperado, e perguntei:- Que descobriu acerca de Curry?- Nada! - replicou o inspector, com inesperado azedume.- Nada? Que quer dizer?- Quero dizer que não existe, que não há semelhante pessoa.- Que diz a Metropolis Insurance Company?- Não diz nada, porque também não existe. A Metropolis and Provincial Insurante Company não existe. Quanto a Mister Curry, da Denvers Street, não existe nenhum Mister Curry, nem nenhuma Denvers Street, nem nenhum número sete ou qualquer outro.- Interessante! Quer dizer que o tipo mandou imprimir alguns cartões falsos, com um nome falso e a menção de uma companhia de seguros falsa?- Assim parece.- E qual seria a grande ideia?Hardcastle encolheu os ombros.- Por enquanto, só podemos conjecturar. Talvez ele cobrasse prémios falsos, para não destoar do resto... Ou talvez fosse uma maneira de se introduzir na casa das pessoas e praticar qualquer vigarice. Tanto podia ser um vigarista como um aldrabão, um gatuno de bagatelas como um investigador particular... Não sabemos.- Mas descobrirão?- Oh, sim, acabaremos por descobrir! Recolhemos as suas impressões digitais, para sabermos se tem cadastro de qualquer espécie. Se tiver, será um grande passo em frente. Se não tiver, será mais difícil.- Um investigador particular... - murmurei, pensativo. - Agrada-me essa hipótese. Apresenta... possibilidades.- Possibilidades é tudo quanto temos, até agora.- Quando é o inquérito?- Depois de amanhã. Será puramente formal e haverá um adiamento.- Qual foi o relatório médico?- Apunhalado com um instrumento aguçado. Qualquer coisa do género de uma faca de vegetais.- Isso a bem dizer iliba Miss Pebmarsh, não lhe parece? Seria muito difícil a uma cega apunhalar um homem. Suponho que ela é realmente cega?- Sim, é realmente cega. Investigámos isso. Disse a verdade. Foi professora de matemática numa escola do Norte, perdeu a vista há cerca de dezasseis anos, aprendeu braille, etc., e, finalmente, arranjou emprego no Instituto Aaronberg.- Não terá qualquer tara?- A mania dos relógios e dos agentes de seguros?- É, de facto, tudo muito fantástico. - Não pude deixar de acrescentar, com certo entusiasmo: - Como Ariadne Oliver nos seus piores momentos, ou o defunto Garry Gregson no auge da sua forma...- Divirta-se à vontade! Não é o desgraçado do detective-inspector a quem compete investigar o caso! Não tem de prestar contas a um superintendente nem a um chefe de Polícia e a todos os outros!- Anime-se! Talvez a vizinhança nos diga alguma coisa útil.- Duvido - resmungou Hardcastle, pessimista.Se o tipo tivesse sido apunhalado no jardim da frente e dois mascarados o levassem para dentro de casa, ninguém teria visto nada. Por azar, não estamos numa aldeia.Wilbraham Crescent é uma artéria residencial burguesa. A uma hora, as mulheres-a-dias, que poderiam ver alguma coisa, deixam o trabalho e regressam a sua casa. Nem sequer se vê ninguém a empurrar um carrinho de bebé na rua!- Não há nenhum doente idoso, que passe o dia junto da janela?- Isso era o que nos convinha, mas não é a realidade.- E a respeito das casas números dezoito e vinte?- No número dezoito moram Mister Waterhouse, gerente da firma de solicitadores Gainsford & Swettenham, e a sua irmã, que se entretém a geri-lo a ele nas horas vagas... Quanto ao número vinte, só sei que mora lá uma mulher que tem cerca de duas dezenas de gatos. Não gosto de gatos...Disse-lhe que a vida de polícia era muito dura e pusemo-nos a caminho.***Mr. Waterhouse, que se encontrava, hesitante, no degrau da casa número 18 de Wilbraham Crescent, olhou nervosamente para trás, para a irmã.- Tens a certeza de que ficas bem? - perguntou.Miss Waterhouse replicou, indignada:- Confesso que não compreendo o que queres dizer, James!Mr. Waterhouse mostrou um ar contrito. Tinha de se mostrar contrito com tanta frequência que tal expressão se tornara, praticamente, constante.- Bem, minha querida, se pensarmos no que sucedeu ontem, aqui ao lado...Mr. Waterhouse preparava-se para seguir para o escritório onde trabalhava. Era um homem grisalho e imaculado, de ombros ligeiramente curvados e rosto mais cinzento do que rosado, embora sem aspecto doentio.Miss Waterhouse era uma mulher alta e angulosa, pouco dada a contra-sensos e sem tolerância nenhuma pelos contra-sensos dos outros.- O facto de, ontem, terem assassinado alguém aqui ao lado será razão para me assassinarem, hoje, a mim?- Bem, Edith, depende muito da pessoa que cometeu o assassínio, não achas?- Pensas, então, que anda alguém por Wilbraham Crescent, a escolher uma vítima em cada casa? Francamente, James, isso é quase blasfemo!- Blasfemo, Edith? - perguntou Mr. Waterhouse, muito surpreendido, pois jamais lhe ocorreria que o seu comentário merecesse tal comparação.- Reminiscente da Páscoa dos Judeus*, à qual, deixa-me que te lembre, a Bíblia se refere.* A Páscoa dos Judeus comemora a passagem do mar Vermelho e, também - e daí a alusão acima -, a passagem do anjo exterminador, que matou todos os primogénitos dos Egípcios, na noite da partida dos Judeus, e poupou as casas dos Israelitas, assinaladas pelo sangue do cordeiro.(N. de T.).- Creio que a comparação é um bocadinho descabida, Edith...- Sempre queria ver alguém vir aqui e tentar matar-me! - exclamou Miss aterhouse, muito decidida.O irmão pensou que, de facto, seria muito pouco provável. Ele próprio, se quisesse escolher uma vítima, jamais escolheria a irmã. Se alguém se lembrasse de tal cometimento, acabaria provavelmente, por ser posto xo com um atiçador ou a tranca da porta, e entregue à Polícia sujo de sangue e humilhado.- Só queria dizer que... - murmurou, com um ar mais contrito do que nunca - ... enfim, que andam por aí pessoas muito indesejáveis.- Pouco sabemos, ainda, acerca do que sucedeu. Por enquanto, só há boatos. Mistress Head contou alguns extraordinários, esta manhã...- Acredito, acredito...Mr. Waterhouse olhou para o relógio. Não tinha vontade nenhuma de ouvir repetir os boatos contados pela sua tagarela mulher-a-dias. A irmã apressava-se sempre a reduzir às devidas proporções esses disparatados voos da imaginação, mas, no entanto, gostava de os ouvir...- Já há quem diga que a vítima era o tesoureiro ou um administrador do Instituto Aaronberg, e que veio interrogar Miss Pebmarsh, em virtude de haver qualquer coisa errada nas contas.- E Miss Pebmarsh assassinou-o? - perguntou Mr. Waterhouse, surpreendido. - Uma cega? Certamente...- Passou-lhe um bocado de arame pelo pescoço e estrangulou-o. Ele estava desprevenido, compreendes?Qualquer pessoa estaria, na presença de um cego...Claro que eu não acredito - apressou-se a afirmar. Estou certa de que Miss Pebmarsh é uma senhora de excelente carácter. Posso não estar de acordo com ela a certos respeitos, mas isso não significa que a considere criminosa. Considero apenas que tem opiniões intolerantes e extravagantes. No fim de contas, há outras coisas além da instrução. Todos esses estranhos liceus que hoje constroem, praticamente de vidro... Até parecem estufas para pepinos ou tomates! Tenho a certeza de que são prejudiciais para as crianças, nos meses de Verão. Mistress Head, por exemplo, disse-me que a sua Susan não gosta das novas salas de aula: as janelas são tantas que a tentação de olhar constantemente para a rua não lhe permite prestar atenção às lições.- Meu Deus, vou chegar muito atrasado! - exclamou Mr. Waterhouse, a olhar de novo para o relógio. - Até logo, minha querida. Tem cuidado.Talvez seja melhor manter a corrente na porta...Miss Waterhouse soltou um rosnido e fechou a porta. No entanto, antes de subir para o andar de cima, parou um instante, pensativa, e depois foi ao saco de golfe buscar um niblick*, que colocou estrategicamente, junto da porta principal.*Taco de golfe com uma cabeça grande, redonda e pesada, próprio para tirar bolas dos obstáculos constituídos por depressões arenosas. (N. da T.).Sorriu, satisfeita. Claro que James só dissera tolices, mas não perdia nada em estar prevenida. Na sua opinião, a maneira como, hoje em dia, davam alta aos doentes mentais e os incitavam a levar uma vida normal, era um perigo para as pessoas inocentes.Miss Waterhouse estava no seu quarto quando Mrs. Head subiu a escada, numa grande agitação.Mrs. Head era baixinha, roliça e muito semelhante a uma bola de borracha, e deliciava-se praticamente com tudo quanto sucedia.- Dois cavalheiros desejam falar-lhe - anunciou, toda eufórica. - Bem, não são realmente cavalheiros... São polícias.Estendeu um cartão, que Miss Waterhouse leu.- Detective-inspector Hardcastle... Mandou-os entrar para a sala?- Não. Levei-os para a casa de jantar. Já tinha levantado a mesa do pequeno-almoço e pensei que seria um lugar mais adequado, atendendo a que não passam de polícias.Miss Waterhouse não compreendeu bem o raciocínio da empregada, mas limitou-se a responder-lhe:- Desço já.- Naturalmente querem interrogá-la acerca de Miss Pebmarsh, perguntar-lhe se notou algo estranho no seu comportamento... Parece que, às vezes, estas manias surgem de repente, sem ninguém dar por isso. Mas há sempre qualquer coisa, uma maneira especial de falar... Dizem, também, que se percebe pelos olhos... mas no caso de uma cega não deve ser assim.Miss Waterhouse desceu a escada e entrou na sala de jantar com uma certa e agradável curiosidade, disfarçada pelo seu habitual ar de beligerância.- Detective-inspector Hardcastle?- Bons dias, Miss Waterhouse.Hardcastle levantara-se. Acompanhava-o um homem novo, alto e moreno, que Miss aterhouse não se deu ao trabalho de cumprimentar, embora o inspector lho apresentasse como o "sargento Lamb".- Espero não ter vindo muito cedo e suponho que sabe de que se trata, pois deve ter ouvido contar o que sucedeu na casa ao lado, ontem à tarde.- Um assassínio na casa do vizinho do lado não costuma passar despercebido - redarguiu Miss Waterhouse. - Até tive de correr com um ou dois repórteres, que me vieram perguntar se vira alguma coisa.- Correu com eles?- Naturalmente.- Fez muito bem. Tentam infiltrar-se em toda a parte, mas eu estou certo de que a senhora é muito capaz de fazer frente a situações dessas.Miss Waterhouse dignou-se demonstar uma leve reacção de prazer ao cumprimento.- Espero que não leve a mal se lhe fizermos o mesmo género de perguntas - prosseguiu o inspector.Se viu alguma coisa de susceptível de nos interessar, creia que ficaremos muito gratos se nos informar. Suponho que estava aqui, em sua casa, quando cometeram o crime?- Não sei quando foi cometido o crime.- Calculamos que foi entre a uma e meia e as duas e meia da tarde.- Nesse caso, estava, com certeza.- E o seu irmão?- Não vem almoçar a casa. Mas afinal, quem assassinaram? Não esclarecem esse ponto, na breve notícia publicada no jornal desta manhã.- Ainda não sabemos quem era.- Um desconhecido?- Assim parece.- Não quer dizer que era, também, um desconhecido para Miss Pebmarsh?- Miss Pebmarsh garantiu-nos que não esperava a visita do indivíduo e que não fazia ideia nenhuma de quem se tratava.- Ela não pode ter a certeza a esse respeito, em virtude de não ver.- Descrevemos-lhe com a maior minúcia.- De que género de homem se tratava?Hardcastle tirou uma fotografia de um sobrescrito e mostrou-lha.- Aqui o tem. Faz alguma ideia de quem poderá ser?- Não. Não... Tenho a certeza de que nunca o vi. Meu Deus, parece um homem respeitável!- Tinha, de facto, um aspecto muito respeitável, concordou o inspector. - Parecia um advogado, ou um homem de negócios...- Tem razão. A fotografia não impressiona nada, ele parece que está apenas a dormir.Hardcastle não lhe explicou que das várias fotografias tiradas ao cadáver escolhera aquela precisamente por ser a menos perturbadora.- A morte, às vezes, traduz-se em paz. Não creio que este homem esperasse morrer quando morreu.- Que diz Miss Pebmarsh acerca do assunto?- Não sabe que dizer.- Extraordinário!- Pode-nos ajudar de alguma maneira, Miss Waterhouse? Tente recordar o dia de ontem. Lembra-se de ter olhado pela janela, ou de ter ido ao jardim entre, digamos, o meio-dia e meia hora e as três horas?Miss Waterhouse pensou, uns momentos.- Sim, estive no jardim... Deixe-me ver... deve ter sido antes da uma hora. Quando vim para dentro faltavam uns dez minutos para a uma, lavei as mãos e sentei-me a almoçar.- Viu Miss Pebmarsh entrar ou sair de casa?- Creio que ela entrou... Ouvi a cancela ranger depois do meio-dia e meia hora.- Não falou com ela?- Oh, não! Levantei apenas a cabeça, ao ouvir a cancela ranger.Costuma regressar mais ou menos àquela hora, quando acaba as suas aulas. Ensina crianças deficientes, como provavelmente já sabe.- Segundo declarou, Miss Pebmarsh voltou a sair, cerca da uma e meia. Pode confirmá-lo?- Bem, não posso dizer a hora certa, mas lembro-me de ela passar pela cancela.- Perdão, Miss Waterhouse, disse "passar pela cancela"...- Com certeza. Estava na sala, que dá para a rua, ao passo que a casa de jantar, onde estamos agora, dá para o quintal das traseiras, como pode verificar. Levei o café para a sala, depois de almoçar, e sentei-me numa cadeira, junto da janela, a bebê-lo e a dar uma vista de olhos pelo Times. Creio que foi ao virar uma página que reparei em Miss Pebmarsh, que ia a passar pela cancela da frente. Há alguma coisa de extraordinário nisso, inspector?- Não, não há nada de extraordinário - respondeu Hardcastle, a sorrir.- Consta-me, no entanto, que Miss Pebmarsh saiu para fazer umas compras e ir aos Correios, e estava convencido de que o caminho mais curto para as lojas e para os Correios era o oposto.- Depende das lojas a que se vá. Claro que há lojas mais perto desse lado e um posto dos Correios na Albany Road...- Talvez Miss Pebmarsh costume passar pela sua cancela mais ou menos a essa hora?- Não sei, francamente, a que horas Miss Pebmarsh costuma passar nem em que direcção vai, pois não tenho o hábito de espiar os meus vizinhos, inspector. Sou uma mulher atarefada e tenho muito com que me entreter. Certas pessoas que conheço passam o tempo todo a espreitar pela janela e a ver quem passa e quem vai visitar este ou aquele. Considero isso um hábito de doentes ou de quem não tem mais que fazer do que bisbilhotar a vida dos vizinhos e mexericar.Miss Waterhouse falou em tom tão acerbo que o inspector teve a certeza de que ela se referia a alguém em especial.- Tem razão - declarou. - Tem toda a razão. Visto Miss Pebmarsh ter passado pela sua cancela, talvez tivesse ido telefonar, não? A cabina pública fica para esse lado...- Sim, fica defronte do número quinze.- A pergunta importante que tenho de lhe fazer, Miss Waterhouse, é esta: viu chegar o homem em questão, o homem misterioso, conforme os jornais matutinos lhe chamam?Miss Waterhouse abanou a cabeça, sem hesitar:- Não, não o vi chegar a ele nem a outro visitante.- Que esteve a fazer entre a uma e meia e as três horas?- Passei cerca de meia hora a fazer as palavras cruzadas do Times, pelo menos até onde fui capaz... e depois fui para a cozinha lavar a louça do almoço. Deixe ver... Escrevi duas cartas, passei uns cheques para pagamento de umas contas e a seguir fui lá acima escolher umas coisas que precisava de mandar para a tinturaria. Creio que foi da janela do meu quarto que reparei ter-se passado qualquer coisa na casa do lado. Ouvi gritar e, naturalmente, fui à janela. Estavam um homem novo e uma pequena à cancela. Ele parecia estar a abraçá-la.O "sargento Lamb" mudou de posição, mas Miss Waterhouse não estava a olhar para ele e era evidente que não fazia a mínima ideia de que ele fora o "homem novo" em questão.- Só vi a nuca do homem, que parecia estar a dizer qualquer coisa à jovem. Por fim sentou-a junto do pilar da cancela, o que me pareceu muito estranho, meteu pelo carreiro e entrou na casa ao lado.- A senhora não dera por Miss Pebmarsh ter regressado a casa pouco antes?- Não. Creio que só espreitei pela janela quando ouvi gritar. No entanto, confesso que não liguei muita importância. Os jovens estão sempre a fazer coisas tão extraordinárias, a gritar, a empurrarem-se, a rir..., que não me passou pela cabeça que tivesse acontecido algo sério. Só quando chegaram carros da Polícia compreendi que devia ter sucedido qualquer coisa fora do vulgar.- Que fez, então?- Saí de casa, naturalmente. Parei nos degraus e depois dei a volta e fui ao quintal das traseiras. Estava intrigada, mas não vi nada de especial.Quando voltei, juntara-se uma pequena multidão e uma pessoa disse-me que tinha havido um assassínio. Pareceu-me muito extraordinário! - exclamou, em tom de grande desaprovação.- Não se lembra de mais nada?- Infelizmente, não.- Ultimamente alguém lhe escreveu a oferecer um seguro, ou alguém a visitou ou lhe sugeriu uma visita?- Não, não aconteceu nada desse género. Tanto James como eu estamos seguros pela Mutual Help Assurance Society. Claro que estão sempre a chegar circulares e anúncios diversos, mas não me lembro de ter recebido nada desse género, ultimamente.- Nem cartas assinadas com o nome de Curry?- Curry? Não, tenho a certeza de que não.- O nome de Curry não lhe diz nada, em sentido nenhum?- Não. Deveria dizer?- Não, creio que não - respondeu Hardcastle, a sorrir. - Trata-se apenas do nome que o homem assassinado usava.- Mas não era o seu verdadeiro nome?- Temos razões para supor que não.- Uma espécie de vigarista, não?- Não o poderemos afirmar enquanto não tivermos provas disso.- Claro, claro. Precisam de ser cuidadosos, bem sei. Não acontece o mesmo com certas pessoas daqui, que dizem tudo quanto lhes vem à cabeça. Até me admira que não estejam sempre a ser acusadas de calúnias.- Difamação - corrigiu o "sargento Lamb", que falava pela primeira vez.Miss Waterhouse olhou-o, surpreendida, como se só então tivesse consciência de que ele era uma entidade independente e não, apenas, um apêndice necessário do inspector Hardcastle.- Lamento não o poder ajudar - disse a mulher ao inspector.- Também eu. Uma pessoa com a sua inteligência e o seu poder de observação seria uma testemunha muito útil.- Gostava de ter visto alguma coisa! - confessou Miss Waterhouse, e por momentos o tom da sua voz pareceu triste como o de uma rapariguinha.- E o seu irmão, Mister James Waterhouse?- James não sabe de nada - afirmou a interpelada, com desdém. - Nunca sabe coisa nenhuma. Além disso, estava na firma Gainsford & Swettenhams, na High Street. Não, o James não o poderia ajudar. Como já disse, não vem a casa almoçar.- Onde costuma almoçar?- Geralmente come sanduíches e bebe café nas Três Penas, uma casa muito asseada e respeitável, especializada em almoços rápidos.- Muito obrigado, Miss Waterhouse. Não lhe roubaremos mais tempo.O inspector levantou-se e dirigiu-se para o vestíbulo, seguido por Miss Waterhouse e pelo "sargento Lamb". Este pegou no taco de golfe, que estava ao pé da porta, e comentou, enquanto o sopesava:- Belo taco, com muito peso na cabeça. Vejo que está preparada para qualquer eventualidade...Miss Waterhouse pareceu um bocadinho atrapalhada e declarou:- Não sei francamente, como foi aí parar.Arrancou-lho da mão e meteu-o no saco.- Era uma precaução muito sensata - observou Hardcastle.Miss Waterhouse abriu a porta e os dois homens saíram.- Bem, não conseguimos muito dela, apesar de você lhe dar uma graxa danada - murmurou Colin Lamb, a suspirar. - É esse o seu método invariável?- Às vezes dá bons resultados, com pessoas como ela. Os duros reagem sempre à lisonja.- Sim, ela ronronou como um gato a que dessem um pires de leite...Infelizmente, não revelou nada de interesse.- Não?Colin olhou-o, atento, e perguntou:- Em que está a pensar?- Num pormenor muito pequeno e possivelmente sem importância.Miss Pebmarsh saiu para ir aos Correios e às compras e virou para a esquerda, em vez de virar para a direita... e o telefonema, segundo declarou Miss Martindale, foi feito cerca das duas menos dez.- Continua a pensar que, apesar da sua negação, ela telefonou? Foi muito positiva...- Pois foi, foi muito positiva - concordou o inspector, inexpressivamente.- Mas, se foi ela que telefonou, porquê? - Oh, são tudo porquês! - resmungou Hardcastle, impaciente. - Porquê? Porquê toda esta história?Se Miss Pebmarsh fez o telefonema, para que precisava da pequena?Se foi outra pessoa que telefonou, para que quis envolver Miss Pebmarsh no assunto?Ainda não sabemos nada. Se a Martindale conhecesse Miss Pebmarsh pessoalmente, saberia se fora a voz dela ou não ou, pelo menos, se era parecida... Enfim, não conseguimos muito no número dezoito.Vejamos se temos mais sorte no número vinte.Além do número 20, a morada tinha um nome: Diana Lodge. A cancela tinha arames no interior, para impedir a entrada de intrusos, e havia loureiros mal aparados, que dificultavam igualmente a passagem.- Se jamais houve uma casa que merecesse o nome de Loureiros, foi esta - observou Colin Lamb.Por que diabo se chamará Diana Lodge?Olhou à sua volta, com interesse. Diana Lodge não primava pelo asseio nem tinha canteiros de flores. Imperavam os arbustos densos e mal tratados e um cheiro forte a amoníaco... A casa parecia em muito mau estado, precisava de reparações, o que contrastava com a porta da frente, recentemente pintada de um azul muito forte, que realçava ainda mais o abandono a que tinham sido votados a habitação e o jardim. Em vez de campainha eléctrica havia uma espécie de manípulo, visivelmente destinado a ser puxado. O inspector puxou-o e ouviu-se um tilintar abafado e distante.Passados momentos, ouviram sons no interior. Sons curiosos, aliás.Uma espécie de lengalenga, meio cantada, meio falada.- Que demónio... - começou Hardcastle.À medida que a pessoa se aproximava da porta, as palavras tornavam-se mais inteligíveis.- Não querida, queridinha. Ali, meu amor. Cuidado com o rabinho, Xá-Xá-Mimi, Cleo... Cleópatra... Ai os mauzões!Fecharam-se portas e, finalmente, a da frente abriu-se. Diante dos dois homens apareceu uma senhora de vestido de veludo verde-musgo muito coçado, com o cabelo branco, esfarripado, subido num penteado que estivera em moda uns trinta anos atrás.Usava à roda do pescoço uma gola de pele cor de laranja.- Mistress Hemming? - perguntou o inspector, duvidoso.- Sim, sou Mistress Hemming... Devagarinho, Raio de Sol, devagarinho...Só então o inspector compreendeu que a gola de pele era, na realidade... um gato. Mas não era o único. Apareceram outros três, no vestíbulo, dois deles a miar. Não tardaram a ocupar o seu lugar à roda das saias da dona, enquanto olhavam para os visitantes.Ao mesmo tempo, um cheiro forte, a gatos, atormentou as narinas dos dois homens.- Sou o detective-inspector Hardcastle...- Suponho que me vem visitar por causa daquele homem antipático da Liga Protectora dos Animais. Que vergonha! Escrevi uma carta a fazer queixa dele.Dizer que os meus gatos viviam de maneira prejudicial à sua saúde e felicidade! Eu vivo para os meus bichanos, inspector, eles são a minha única alegria, o meu único prazer na vida! Faço tudo por eles! Aí não, Xá-Xá-Mimi!Mas Xá-Xá-Mimi não quis saber da mão estendida da dona e saltou para a mesinha do vestíbulo, a lavar o focinho e a observar os desconhecidos.- Entrem - convidou Mrs. Hemming. - Oh, não, para aí, não!Esquecera-me...Abriu uma porta, à esquerda. A atmosfera ainda era mais penetrante...- Entrem, meus lindos, entrem...No aposento, espalhados por cadeiras e mesas, encontravam-se vários pentes e escovas, com pêlos de gato. Viam-se diversas almofadas desbotadas e sujas e, pelo menos, mais seis bichanos.- Vivo para os meus queridos - afirmou Mrs. Hemming. - Eles compreendem todas as minhas palavras.O inspector Hardcastle entrou, corajosamente. Por pouca sorte, era uma daquelas pessoas alérgicas aos gatos e, como acontece em tais circunstâncias, os bichanos dirigiram-se logo para ele. Um saltou-lhe para os joelhos e outro roçou-se-lhe afectuosamente pelas calças. Mas o inspector Hardcastle, que era um homem valente, cerrou os lábios e resignou-se.- Desejava fazer-lhe, algumas perguntas acerca...- Pergunte o que quiser - interrompeu-o a velhota. - Não tenho nada que esconder. Posso mostrar-lhes a comida dos gatos e as suas caminhas, cinco no meu quarto e sete aqui... Só lhes dou o peixe mais fresco que existe, cozinhado por mim própria.- O assunto não tem nada a ver com os gatos - esclareceu Hardcastle, em voz mais forte. - Vim por causa do infeliz acontecimento da casa ao lado. Provavelmente já ouviu falar...- Da casa ao lado? Refere-se ao cão de Mister Josaiah?- Não. Refiro-me ao número dezanove, onde ontem foi encontrado um homem assassinado.- Sim? - perguntou Mrs. Hemming, mas apenas por delicadeza; os seus olhos não se afastavam da gataria.- Permite que lhe pergunte se ontem à tarde esteve em casa? Entre a uma e meia e as três e meia?- Estive, sim. Geralmente faço as compras de manhã cedo, para ter tempo de preparar o almoço dos meus amorzinhos e de os escovar e arranjar.- Não notou nenhuma actividade aqui ao lado? Carros da Polícia, ambulância?...- Bem, não estive à janela da frente. Estive no quintal das traseiras, porque a Arabela desaparecera. E uma gatinha nova e trepara para uma das árvores, e eu receava que não fosse capaz de descer. Experimentei tentá-la com um prato de peixe, mas ela estava assustada, coitadinha! Acabei por desistir e voltar para dentro. Imaginem que, mal entrei, desceu da árvore e entrou atrás de mim! Até custa a acreditar! - Olhou de um homem para o outro, como se avaliasse a sua credulidade.- Não me custa nada a acreditar - afirmou Colin, incapaz de continuar calado mais tempo.- Como? - perguntou Mrs. Hemming, a fitá-lo um pouco assustada.- Gosto muito de gatos e tenho estudado a sua natureza. O que a senhora disse ilustra perfeitamente o padrão do comportamento dos gatos e as regras que para si próprios estabeleceram. Pelo mesmo motivo, os seus gatos estão todos reunidos à volta do meu amigo, que não gosta, francamente, de bichanos, e não me ligam importância nenhuma a mim, nem ligarão por muito que os afague.Se Mrs. Hemming pensou que Colin não estava a falar como um sargento da Polícia, o seu rosto não o denunciou. Limitou-se a murmurar, vagamente:- Eles sabem sempre, os amorzinhos, não sabem?Um belo gato persa cinzento apoiou duas patas nos joelhos do inspector Hardcastle, fitou-o extasiado de prazer e cravou as garras, como se Hardcastle fosse uma almofada de espetar alfmetes. Incapaz de suportar aquele tormento durante mais tempo, o inspector levantou-se.- Posso ver o seu quintal das traseiras, minha senhora? Colin sorriu.- Oh, com certeza! Tudo quanto quiser.Mrs. Hemming levantou-se e o gato cor de laranja saltou-lhe do pescoço e ela substituiu-o, distraidamente, pelo persa cinzento. Saiu da sala, seguida pelos dois homens.- Já nos víramos - disse Colin ao gato alaranjado. - E tu és uma beleza, não és? - perguntou a outro persa cinzento, que estava em cima de uma mesa, ao lado de um candeeiro chinês, a dar ao rabo. Colin fez-lhe cócegas atrás das orelhas e ele condescendeu em ronronar.- Façam o favor de fechar a porta, quando saírem - pediu Mrs. Hemming, do vestíbulo. - Hoje está vento e eu não quero que os meus lindos se constipem. Além disso, há aqueles horríveis rapazes... Não é seguro deixar os queridinhos andar à solta no quintal.Encaminhou-se para o fundo do vestíbulo e abriu uma porta lateral.- A que rapazes horríveis se referiu? - perguntou Hardcastle.- Aos dois filhos de Mistress Ramsay. Moram na parte sul do crescente e as traseiras dos nossos quintais são mais ou menos contíguas. São dois jovens rufiões! Têm uma fisga... ou tinham. Insisti para que lha confiscassem, mas tenho as minhas dúvidas... Fazem emboscadas, escondem-se, no Verão atiram maças...- Vergonhoso - sentenciou Colin.O quintal era como o jardim, mas pior. Tinha alguma relva que crescia em inteira liberdade, arbustos virgens de tesoura e amontoados, quase pegados uns aos outros, e mais loureiros. Na opinião de Colin, estavam ali a perder tempo. Através daquela sólida barreira de loureiros, árvores e arbustos não se podia ver nada do quintal de Miss Pebmarsh. Diana Lodge era uma casa absolutamente isolada. Do ponto de vista dos seus habitantes, era como se não tivesse vizinhos.- Falou do número dezanove, não foi? - perguntou Mrs. Hemming, parada, hesitante, no meio do quintal. - Julgava que só lá vivia uma pessoa, uma mulher cega...- O homem assassinado não morava lá em casa - explicou o inspector.- Ah, compreendo! - exclamou a velhota, distraidamente. - Foi lá para ser assassinado. Que estranho!"Eis uma excelentíssima definição", pensou Colin para consigo.Meteram-se no automóvel, percorreram Wilbraham Crescent, viraram à direita, subiram a Albany Road, viraram de novo à direita e encontraram-se na continuação de Wilbraham Crescent.- É, na realidade, simples - comentou Hardcastle.- Depois de se saber - admitiu Colin.- O sessenta e um dá para as traseiras da casa de Mistress Hemming, mas como uma esquina toca no dezanove, podemos tentar. Você terá, assim, oportunidade de ver o seu Mister Bland. A propósito, ele não tem nenhuma empregada estrangeira.- Lá se vai uma bonita teoria.O carro parou e os dois homens apearam-se.- Bonito jardim, sim senhor! - elogiou Colin.Tratava-se, de facto, de um modelo de perfeição suburbana, embora em pequena escala. Havia canteiros de gerânios, com bordaduras de lobélias, grandes begónias carnudas e uma abundância de ornamentos de jardim: rãs, cogumelos, gnomos cómicos e elfos.- Estou certo de que Mister Bland deve ser um homem muito simpático e muito digno - comentou Colin, a fingir um calafrio. - Não teria estas horríveis ideias se o não fosse. - E acrescentou, quando Hardcastle tocou à campainha: - Espera que ele esteja em casa a esta hora?- Telefonei-lhe a perguntar se podíamos vir.Nesse instante, chegou um carro pequeno e elegante, que entrou na garagem, a qual era, sem dúvida, uma adição recente à moradia. Mr. Josaiah Bland apeou-se, bateu com a porta e foi ao encontro dos dois visitantes. Era um homem de estatura mediana, cabeça calva e olhos azuis muito pequenos. Tinha um ar muito cordial.- Inspector Hardcastle? Façam favor de entrar.Conduziu-os à sala, que evidenciava várias provas de prosperidade. Candeeiros caros e muito cheios de adornos; uma escrivaninha Império; um jogo de ornamentos coruscantemente dourados, na prateleira da chaminé; um armário marchetado, e uma floreira ornamental, cheia de flores, na janela. As poltronas eram modernas e ricamente estofadas.- Sentem-se - convidou, cordial, Mr. Bland.Um cigarro? Ou não podem fumar quando estão de serviço?- Não, obrigado - redarguiu Hardcastle.- Suponho que também não bebem? Bem, talvez seja melhor para todos. De que se trata? Daquela história do número dezanove, creio? As esquinas dos nossos quintais tocam-se, mas não vemos muito do quintal desse número, a não ser das janelas do andar de cima. Extraordinário acontecimento, pelo menos a julgar pelo que li no jornal da manhã. Fiquei encantado quando me telefonou, pois assim teria ensejo de falar com alguém que estava dentro do assunto. Não faz ideia dos boatos que correm por aí! A minha mulher ficou muito nervosa, ao saber que andava um assassino à solta. É um perigo darem alta a todos esses chalados dos manicómios, como fazem hoje em dia. Mandam-nos para casa condicionalmente, ou lá como lhe chamam, depois os tipos fazem qualquer asneira e apanham-nos outra vez... Mas voltando aos boatos. Ficariam surpreendidos se ouvissem o que disseram a nossa mulher-a-dias, o leiteiro, o rapaz dos jornais... Uns dizem que o estrangularam com um arame, outros que foi apunhalado, outros ainda que lhe deram uma pancada na cabeça... O que é certo, segundo parece, é que a vítima foi um homem, não foi? Quero dizer, não foi a velhota que liquidaram, pois não? Os jornais referem-se a um homem desconhecido.Mr. Bland calou-se, finalmente.Hardcastle sorriu e disse, em tom um pouco desdenhoso:- Bem, quanto a ser um desconhecido, ele tinha na algibeira um cartão com um endereço.- Portanto, esse aspecto está resolvido - sentenciou Bland. - Palavra que não sei como as pessoas conseguem inventar tantas coisas!- Já que estamos a falar da vítima, talvez não se importe de ver isto - disse Hardcastle, e mostrou novamente a fotografia tirada pela Polícia.- É ele, hem? Parece um tipo absolutamente vulgar, não parece? Quero dizer, vulgar como o senhor e eu, por exemplo. Suponho que não devo perguntar se havia algum motivo especial para o assassinarem?- Ainda é cedo para falar nisso. O que me interessa saber, Mister Bland, é se alguma vez viu esse homem.- Não, tenho a certeza que não vi. Sou muito previsto, como se costuma dizer. Quando vejo uma cara, não a esqueço.- Ele não lhe bateu à porta com qualquer intenção? Angariar seguros, vender aspiradores, máquinas de lavar, qualquer coisa desse género?- Não, estou certo que não.- Talvez fosse melhor perguntarmos à sua mulher. No fim de contas, se ele batesse à porta, seria a sua mulher que o atenderia.- Sim, isso é verdade. No entanto, não sei... Valerie não está bem de saúde e eu não gostaria de a perturbar. Enfim, sempre é uma fotografia tirada com ele morto, não é?- É, mas não tem nada de impressionante.- Não tem, realmente, trata-se de um bom trabalho. O tipo parece que está a dormir.- Estavas a falar de mim, Josaiah?Uma porta de comunicação abriu-se e entrou na sala uma mulher de meia-idade. Hardcastle teve a certeza de que ela estivera a escutar à porta com toda a atenção.- Julguei que estivesses a descansar, minha querida. Minha mulher, o detective- inspector Hardcastle.- Aquele horrível assassínio - murmurou Mrs. Bland. - Arrepio-me toda, só de pensar...Sentou-se no sofá e soltou um suspirozinho.- Levanta os pés, querida, para descansares melhor.Mrs. Bland obedeceu. Era uma mulher de cabelo alourado e voz fraca e lamurienta. Parecia anémica e tinha todo o ar de uma doente crónica, que aceita a sua invalidez com certa dose de prazer. O inspector teve a impressão de que ela lhe lembrava alguém conhecido, mas não foi capaz de saber quem, por muito que pensasse. " A voz lamurienta prosseguiu:- Como não sou muito saudável, o meu marido tenta, naturalmente, evitar-me abalos e preocupações. Sou muito sensível... Estavam a falar de uma fotografia do... do assassinado. Meu Deus, que horror! Não sei se terei coragem para a ver..."Mas estás mortinha por a ver", pensou Hardcastle, que redarguiu, com certa malícia:- Nesse caso, talvez seja melhor não lhe pedir que a veja, Mistress Bland. Pensei apenas que nos poderia ajudar, se acaso o homem tivesse batido alguma vez à sua porta.- Devo cumprir o meu dever, não devo? - perguntou Mrs. Bland, de mão estendida e com um leve sorriso corajoso.- Não compreendes que te transtornará, Val!- Não sejas pateta, Josaiah. Claro que devo ver a fotografia.Observou-a com muito interesse e, na opinião do inspector, um bocadinho decepcionada.- Parece... quero dizer, nem parece morto! Não tem nada o ar de ter sido assassinado! Foi... não pode ter sido estrangulado, pois não?- Foi apunhalado - esclareceu o inspector.Mrs. Bland fechou os olhos e estremeceu.- Meu Deus, que horror!- Acha que o terá visto alguma vez, Mistress Bland?- Não - respondeu a interpelada, com evidente relutância. - Não, não.Era desses homens que andam de porta em porta, a vender coisas?- Parece que era agente de seguros - respondeu Hardcastle, cauteloso.- Compreendo. Tenho a certeza de que não nos bateu à porta nenhuma pessoa dessas. Não te lembras de eu mencionar nada do género, pois não, Josaiah?- Não, não me lembro.- Era algum parente ou conhecido de Miss Pebmarsh?- Não, Mistress Bland. Era um perfeito desconhecido para ela.- Muito estranho.- A senhora conhece Miss Pebmarsh?- Oh, sim! Quero dizer, conhecemo-la como vizinha. Às vezes pede conselhos ao meu marido, acerca do jardim.- É um jardineiro muito entusiasta, suponho? perguntou o inspector.- Nem por isso, nem por isso - respondeu Bland, modestamente. - Falta-me tempo, compreende? Claro que percebo do assunto, mas não tenho tempo, como disse. Vem aí um tipo excelente, duas vezes por semana, para manter tudo limpo e em ordem. Creio que nenhum jardim das imediações leva a palma ao nosso, mas não sou um desses jardineiros fanáticos como o meu vizinho.- Mister Ramsay? - perguntou Hardcastle, um pouco surpreendido.- Não, não. O do sessenta e três, Mister McNaughton. Esse só vive para o jardim. Passa lá o dia inteiro e tem a mania do adubo composto. Por sinal é um grande maçador, quando começa a falar de adubo... Mas não creio que tenha sido para falar destas coisas que o inspector nos visitou.- Não, de facto. Pensei apenas se alguém cá de casa, o senhor ou a sua esposa, por exemplo, teria estado no jardim, ontem. No fim de contas, como o senhor disse, as traseiras do seu jardim tocam na esquina do de Miss Pebmarsh, e talvez tivessem visto ou ouvido algo interessante...- Foi ao meio-dia, não foi? Quero dizer, quando se deu o crime?- O espaço de tempo importante vai da uma às três horas da tarde.- Nesse caso, não podíamos ter visto nada. Estava em casa, com minha mulher, mas estávamos a almoçar, e a nossa sala de jantar dá para o lado da rua. Não podíamos ver nada que se passasse no jardim.- A que horas almoçam?- Cerca da uma hora. Às vezes à uma e meia.- E depois não foram ao jardim?Bland abanou a cabeça.- A minha mulher vai sempre descansar lá para cima, depois de almoçar, e eu, se não tenho muito que fazer, também passo pelas brasas, ali naquela cadeira.Calculo que saí de casa por volta... das duas e quarenta e cinco, talvez. Mas, infelizmente, não fui ao jardim.- Paciência - murmurou Hardcastle, a suspirar. - Temos de perguntar a toda a gente.- Evidentemente. Lamento não ter podido ajudar mais.- Tem uma bonita casa - elogiou o inspector.Não se poupou a despesas, se me permite que o diga.Bland riu-se, jovial.- Oh, gostamos de coisas bonitas! Minha mulher tem muito gosto e, o ano passado, tivemos uma sorte inesperada: ela herdou algum dinheiro de um tio que não via há vinte e cinco anos! Foi uma grande surpresa, claro, e garanto-lhe que fez muito jeito. Podemos viver melhor e estou a pensar em irmos num desses cruzeiros, lá mais para o fim do ano. Suponho que são muito instrutivos. Grécia e tudo o mais... Vão muitos professores, que fazem conferências. Não escondo que sou um autodidacta, que devo a mim próprio o que sou e não tenho tido muito tempo para me instruir, mas essas coisas interessam-me. O tipo que descobriu as ruínas de Tróia era merceeiro, segundo me parece. Muito romântico. Confesso que gosto muito de ir ao estrangeiro, embora por enquanto só me tenha sido possível passar um ou outro fim-de-semana na alegre Paris. Ando a pensar em vender tudo aqui e ir viver em Espanha, ou Portugal, ou até nas Índias Ocidentais, como tantos outros. Os impostos são menores e tudo o mais. Mas a ideia não agrada à minha mulher.- Gosto de viajar, mas não desejaria viver fora da Inglaterra - declarou Mrs. Bland. - Temos cá todos os nossos amigos... a minha irmã vive aqui e toda a gente nos conhece. Se fôssemos para o estrangeiro, seríamos autênticos desconhecidos. Além disso, temos um excelente médico, que compreende o meu estado de saúde. Não gostaria de ter um médico estrangeiro, não teria confiança nele...- Veremos - disse Mr. Bland, alegremente.Faremos o nosso cruzeiro... e talvez te apaixones por uma ilha grega.Mrs. Bland fez uma cara de quem achava a possibilidade muito remota.- Suponho que haverá a bordo um médico inglês decente? - perguntou, duvidosa.- Oh, com certeza! - garantiu-lhe o marido.Acompanhou Hardcastle e Colin à porta e repetiu lamentar não lhes poder ser mais útil.- Que pensa dele? - perguntou o inspector ao amigo, quando se encontraram sós.- Não o encarregaria de construir uma casa para mim... Mas não é um pequeno construtor civil aldrabão que procuro; o que me interessa é um homem dedicado a uma causa. Quanto ao seu assassino, também não se ajusta ao tipo. Se Bland desse arsénico à mulher ou a empurrasse para o Egeu a fim de herdar o seu dinheiro e casar com uma loura espampanante, seria outra ordem de ideias...- Trataremos disso quando acontecer, temos de investigar este assassínio.***No número 62 de Wilbraham Crescent, Mrs. Ramsay dizia para consigo, encorajadoramente: "Só mais dois dias... Só mais dois dias..." Afastou uma madeixa de cabelo húmido da testa. No mesmo instante, soou na cozinha um grande estrondo. Mrs. Ramsay sentiu-se muito pouco inclinada a ir ver o que se passava. Se ao menos pudesse fmgir que não houvera estrondo nenhum... Ora, eram só mais dois dias! Atravessou o vestíbulo, abriu a porta da cozinha e perguntou, em tom muito menos agressivo do que teria usado três semanas antes:- Que fizeram vocês agora?- Desculpe, mãe - redarguiu Bill. - Estávamos a jogar bowling com estas latas e, não sei como, chocaram com o fundo do armário da louça.- Nós não atirámos de propósito - afirmou Ted, o mais novo.- Bem, apanhem essas coisas, arrumem-nas no armário, varram os cacos do que se partiu e deitem-nos na lata do lixo.- Oh, mãe, agora não!- Agora sim.- Então o Ted que trate disso.- Pois, tenho de ser sempre eu! Não apanharei nada se não apanhares também.- Aposto que apanhas.- Aposto que não apanho.- Obrigo-te.- Ai!Os dois rapazes desataram à pancada, furiosamente, Ted chocou com a mesa da cozinha e uma taça de ovos estremeceu, perigosamente...- Saiam da cozinha! - Mrs. Ramsay empurrou os dois rapazes pela porta fora, fechou-a e começou a apanhar as latas e a varrer os cacos."Daqui a dois dias estarão de novo na escola!", pensou. "Que maravilhoso, que celestial pensamento para uma mãe!" Recordou vagamente um comentário cínico de uma jornalista qualquer: Para uma mulher, só há seis dias felizes no ano: os primeiros e os últimos dias das férias."Nunca se disse nada tão certo", pensou Mrs. Ramsay, enquanto varria os cacos de uma parte do seu melhor serviço de jantar. Com que prazer, com que alegria, aguardara a vinda dos seus filhos, havia apenas cinco semanas! E agora? "Amanhã", repetiu mentalmente, "amanhã o Bill e o Ted voltarão para a escola.Até me custa a acreditar! Mal posso esperar!" Como se sentira feliz quando os fora esperar à estação, havia cinco semanas! Que alegria lhe causara o modo tempestuoso e terno como eles tinham corrido para ela, o alvoroço com que tinham percorrido a casa toda e o jardim! Um bolo especial, para o chá... E agora... Que desejava ela agora? Um dia de paz completa! Não ter de preparar refeições colossais, de andar sempre a arrumar o que eles desarrumavam...Claro que gostava dos seus filhos. Eles eram excelentes rapazes, não lhe restavam dúvidas nenhumas a esse respeito, e causavam-lhe orgulho. Mas também eram extenuantes. O seu apetite, a sua vitalidade, o barulho que faziam... Uma grande gritaria fê-la virar a cabeça, assustada. Não havia novidade, tinham ido apenas para o jardim. Assim era melhor, no jardim tinham muito mais espaço. Provavelmente, no entanto, aborreceriam a vizinhança. Oxalá deixassem os gatos de Mrs. Hemming em paz! Não pelos gatos em si, a verdade acima de tudo, mas porque a cerca de arame que protegia o quintal de Mrs. Hemming lhes rasgaria os calções. Lançou um olhar rápido à farmácia portátil, que estava à mão.Claro que não a preocupavam muito os acidentes naturais resultantes das brincadeiras de rapazes vigorosos... Na realidade, a primeira coisa que costumava dizer era: "Não te disse centenas de vezes que não viesses a sangrar para a sala? Quando acontecer uma coisa destas, vai direito à cozinha, pois o sangue limpa-se bem do linóleo." Um grande grito, vindo do exterior, pareceu morrer a meio. Seguiuse um silêncio tão profundo que Mrs. Ramsay sentiu uma ferroada de medo no coração.Aquele silêncio não era natural... Parou, hesitante, com a pá cheia de cacos na mão. A porta da cozinha abriu-se e Bill estacou à entrada, com uma expressão extasiada, muito rara no seu rosto vivo de saudável rapaz de onze anos.- Mãe, está aqui um detective-inspector e mais outro homem.- Que deseja ele, querido? - perguntou Mrs. Ramsay, aliviada.- Perguntou por si, mas creio que deve ser por causa do assassínio.Daquilo que se passou ontem em casa de Miss Pebmarsh, lembra-se?- Não compreendo por que motivo precisará de falar comigo...A vida só era feita de complicações, umas atrás das outras. Como havia de preparar as batatas para o guisado se um detective-inspector se lembrava de a visitar a hora tão imprópria?- Bem, parece-me melhor ir ver o que se passa - resignou-se, a suspirar.Deitou os cacos na lata do lixo, lavou as mãos, endireitou maquinalmente o cabelo e seguiu Bill, que dizia, impaciente:- Despache-se, mãe!Mrs. Ramsay entrou na sala, seguida de perto por Bill, e encontrou lá dois homens, de pé. Ted, o mais novo dos filhos, observava-os de olhos muito abertos.- Mistress Ramsay?- Bons dias.- Espero que os seus homenzinhos lhe tenham dito que sou o detective-inspector Hardcastle.- Vem a uma hora muito má, muito má - protestou Mrs. Ramsay. - Tenho tanto que fazer esta manhã! Demorará muito tempo?- Quase nenhum - tranquilizou-a o inspector.Podemo-nos sentar?- Claro, façam favor.Mrs. Ramsay sentou-se numa cadeira de espaldar direito e olhou-os cheia de impaciência. Desconfiava que não ia levar tão pouco tempo como isso...- Vocês não precisam de ficar - disse Hardcastle, a sorrir.- Não nos vamos embora - afirmou Bill.- Não nos vamos embora - repetiu Ted.- Queremos ouvir tudo.- Claro, tudo.- Havia muito sangue? - quis saber Bill.- Era um ladrão? - perguntou Ted.- Calem-se, meninos - ordenou Mrs. Ramsay.Não ouviram Mister... Mister Hardcastle dizer que não os queria aqui?- Não saímos - afirmou Bill. - Queremos ouvir tudo.Hardcastle foi abrir a porta, olhou para os rapazes e disse:- Saiam.Foi uma palavra apenas, dita calmamente, mas com autoridade. Os miúdos levantaram-se, sem tugir nem mugir, e saíram a arrastar os pés."Que maravilha!", pensou Mrs. Ramsay, encantada. "Porque não consigo eu ser assim?" Era a mãe deles, claro... Sabia, pelo que ouvia dizer, que as crianças, quando saíam, se portavam de modo muito diferente do adoptado em casa. As mães é que tinham sempre de suportar o pior. Mas talvez fosse preferível assim. Seria pior, muito pior, se, em casa, fossem sossegados e corteses e, fora de casa, se portassem como verdadeiros rufiões e causassem má impressão. Lembrou-se do que pretendiam dela quando o inspector voltou a sentar-se.- Se veio por causa do que se passou no número dezanove, creio que não lhe posso dizer nada, inspector - declarou nervosamente. - Não sei nada, nem sequer conheço as pessoas que lá moram.- Mora lá apenas Miss Pebmarsh, uma senhora cega que trabalha no Instituto Aaronberg.- Ah! Não conheço praticamente ninguém do outro lado do crescente.- Esteve em casa, ontem, entre o meio-dia e meia e as três horas?- Estive, sim. Tinha de adiantar o jantar e tudo o mais... No entanto, saí antes das três horas. Levei os pequenos ao cinema.O inspector tirou a fotografia da algibeira e estendeu-lha.- Agradecia que me dissesse se alguma vez viu este homem.Mrs. Ramsay observou a fotografia com um bocadinho mais de interesse.- Creio que não. No entanto, não garanto que me lembrasse, se o tivesse visto.- Ele nunca lhe bateu à porta, a tentar angariar seguros ou vender qualquer coisa?Mrs. Ramsay abanou a cabeça, com maior segurança.- Não, disso tenho a certeza.- Supomos que o seu nome é Curry, Mister R. Curry.O inspector olhou-a interrogadoramente, mas Mrs. Ramsay voltou a abanar a cabeça.- Sinto muito, mas praticamente não tenho tempo para reparar em nada, durante as férias.- É sempre um período muito atarefado, não é?Tem ali dois mocetões, cheios de vitalidade... Às vezes, até, de excessiva vitalidade, suponho?Mrs. Ramsay sorriu pela primeira vez.- Sim, às vezes tornam-se um bocadinho cansativos... Mas são bons rapazes.- Evidentemente. Devem ser muito inteligentes... Se não se importar, conversarei um bocadinho com eles, antes de partir. As crianças reparam em coisas que passam despercebidas às outras pessoas.- Não vejo como possam ter reparado nalguma coisa. As casas não ficam ao lado uma da outra...- Mas as traseiras dos jardins dão uma para a outra.- É verdade, embora haja muito espaço a separá-las.- Conhece Mistress Hemming, do número vinte?- Bem, de certo modo, conheço. Por causa dos gatos e de outras pequenas coisas.- Gosta de gatos?- Oh, não, não se trata disso! Geralmente há queixas...- Compreendo, queixas... Acerca de quê?Mrs. Ramsay corou.- Quando as pessoas têm gatos naquela quantidade catorze, nem menos!, perdem por completo a cabeça acerca deles. É tudo uma grande tolice. Gosto de gatos e nós próprios até tivemos um gato, um tigre que era excelente caçador de ratos. Mas a maneira como aquela mulher procede, meu Deus! Cozinha peixe especial, não deixa os pobres bichanos sair para levarem a sua vida... Claro que os animais estão sempre a tentar fugir... eu faria o mesmo, se fosse um dos gatos dela! Os meus filhos são bons rapazes, incapazes de atormentar um gato seja em que sentido for... Os gatos sabem muito bem olhar por eles, são animais inteligentes... desde que os tratem como deve ser, evidentemente.- Tem toda a razão. Deve ter muito trabalho para manter os seus filhos bem alimentados e distraídos, durante as férias.Quando voltam eles para a escola?- Depois de amanhã.- Desejo que possa descansar, então.- Tenciono preguiçar o mais que puder!O outro homem, que tomara notas, em silêncio, quase a assustou, ao dizer inesperadamente:- Devia arranjar uma daquelas raparigas estrangeiras. Creio que lhes chamam au pair... Dão uma ajuda, em troca de lhes ensinarem inglês.- Talvez ainda experimente qualquer coisa desse género... embora tenha a impressão de que deve ser difícil aturar pessoas estrangeiras. O meu marido ri-se de mim, mas é natural. Não tenho viajado tanto pelo estrangeiro como ele.- Ele agora está ausente, não está? - perguntou Hardcastle.- Está. Teve de ir à Suécia, no princípio de Agosto. É engenheiro de construções. Foi uma pena ter de partir logo no princípio das férias, pois tem muita paciência com os pequenos. Gosta mais de brincar com comboios eléctricos do que eles! Às vezes, as linhas e as estações enchem o vestíbulo e chegam a entrar pelas outras casas! - Abanou a cabeça e acrescentou, indulgente: - Os homens são tão crianças!- Quando espera que ele volte, Mistress Ramsay?- Nunca sei - respondeu, a suspirar. - Assim ainda é mais difícil. - Colin reparou na tremura da sua voz e olhou-a com atenção.- Não lhe roubamos mais tempo, Mistress Ramsay - disse Hardcastle, ao mesmo tempo que se levantava. - Talvez os seus pequenos não se importem de nos mostrar o jardim...Bill e Ted, que esperavam no vestíbulo, não deixaram escapar a oportunidade.- Não é um jardim muito grande... - disse Bill, como quem se desculpa.Notava-se que tinham feito alguns esforços para manter o jardim de Wilbraham Crescent, 62, num estado razoável. A um dos lados havia uma bordadura de dálias e margaridas e, a seguir, um pequeno relvado, a precisar de tesoura. Os caminhos precisavam de ser mondados e viam-se aviões, astronaves e outros testemunhos da ciência moderna espalhados por toda a parte e num estado um pouco lamentável. Ao fundo do jardim havia uma macieira, carregada de tentadoras maçãs vermelhas, e ao lado uma pereira. - Foi ali - disse Ted, a apontar para o espaço entre a macieira e a pereira, através do qual se viam perfeitamente as traseiras da casa de Miss Pebmarsh.Aquele é o número dezanove, onde cometeram o assassínio.- Vêem bem a casa, hem? - perguntou o inspector. - Suponho que ainda a devem ver melhor das janelas do primeiro andar.- Pois vemos - concordou Bill. - Se ontem lá tivéssemos estado, talvez víssemos alguma coisa, mas não estivemos.- Fomos ao cinema - explicou Ted.- Encontraram impressões digitais? - perguntou Bill.- Encontrámos, mas não ajudaram muito. Ontem estiveram no jardim?- Sim, de vez em quando... Olhe, estivemos toda a manhã. Mas não ouvimos nem vimos nada.- Se cá tivéssemos estado de tarde - acrescentou Ted, pesaroso -, talvez ouvíssemos gritos...- Conhecem, de vista, Miss Pebmarsh, a senhora que lá mora?Os rapazes entreolharam-se e acenaram afirmativamente.- É cega, mas anda muito bem pelo jardim, disse Ted. - Não precisa de andar com uma bengala nem nada dessas coisas. Uma vez, devolveu-nos uma bola que caiu lá. Foi muito simpática.- Ontem não a viram?Abanaram os dois a cabeça e Bill explicou:- Nunca a vimos de manhã, porque sai todos os dias. Geralmente vem para o jardim depois do chá.Colin observava uma mangueira que estava ligada a uma torneira, dentro de casa, e ia ter a um canto, perto da pereira.- Nunca me constou que as pereiras necessitassem de ser regadas - comentou.- Hum... - murmurou Bill, um bocadinho em baraçado.- Por outro lado - prosseguiu Colin -, se trepassem a esta árvore... - olhou para os rapazes e sorriu, de súbito - ... poderiam ver um belo esguicho de água a banhar um gato, não poderiam?Os dois miúdos começaram a raspar o saibro, com os pés, e olharam para todos os lados menos para Colin.- É o que vocês fazem, não é? - perguntou.- Bem, não os aleija... - murmurou Bill, e acrescentou, com um ar muito virtuoso: - Não é como uma fisga.- Creio que, em certa altura, se serviram de uma fisga...- Mal e porcamente, pois nunca conseguíamos acertar em nada - desabafou Ted.- Seja como for, divertem-se com a mangueira e, por isso, Mistress Hemming queixa-se.- Ela está sempre a queixar-se - resmungou Bill.- Alguma vez transpuseram a vedação?- Nunca passámos aqui pelo arame - apressou-se a responder Ted, desprevenido.- Mas às vezes entram no jardim dela, não entram? Como o conseguem?- Bem, podemos passar pela cerca que dá para o jardim de Miss Pebmarsh... e depois, mais abaixo, à direita, entrar no jardim de Mistress Hemming. O arame tem um buraco.- Não te sabes calar, idiota? - perguntou Bill.- Desconfio que têm andado a procurar pistas, desde que souberam do assassínio... - insinuou Hardcastle.Os rapazes entreolharam-se.- Aposto que, quando regressaram do cinema e souberam o que acontecera, passaram pela cerca para o jardim do número dezanove e se divertiram à grande, a procurar...- Bem... - Bill calou-se, cauteloso.- Não me admiraria se tivessem encontrado alguma coisa que nos escapou a nós - acrescentou o inspector, muito sério. - Se encontraram alguma coisa, ficaria muito agradecido se ma mostrassem.Bill decidiu-se:- Vai buscá-las.Ted partiu, a correr.- Não temos nada de especial... - confessou Bill. - Só... fingimos.Olhou ansiosamente para Hardcastle, que declarou:- Compreendo muito bem. A maior parte do trabalho policial também é assim. Temos muitas decepções.Bill pareceu aliviado.Ted voltou, também a correr, e entregou um lenço sujo e atado, cujo conteúdo tilintava. Hardcastle desatou-o, com um miúdo de cada lado, e estudou os achados...Encontrou a asa de uma chávena, um fragmento de porcelana com um desenho de salgueiros, um sacho partido, um garfo ferrugento, uma moeda, uma mola de roupa, um bocado de vidro colorido e metade de uma tesoura.- Interessante colecção - comentou, gravemente.Depois compadeceu-se das caras ávidas dos miúdos e pegou no bocado de vidro.- Levo isto. Talvez se relacione com qualquer coisa.Colin pegou na moeda e examinou-a.- Não é inglesa - disse Ted.- Pois não, não é inglesa. - Colin olhou inspector e acrescentou: - Talvez seja melhor também.- Não digam uma palavra a ninguém, a este respeito - recomendou Hardcastle, em tom confidente.- Ramsay... - murmurou Colin, pensativo.- Que tem ele de especial?- Agrada-me, apenas. Parte para o estrangeiro, de um momento para o outro... A mulher diz que é engenheiro de construções, mas parece não saber mais nada a seu respeito.- É uma mulher simpática.- Pois é... e pouco feliz.- Cansada, apenas. Os miúdos são cansativos.- Há mais do que isso, suponho.- O tipo de pessoa que procura não estaria, com certeza, sobrecarregado com mulher e dois filhoslembrou Hardcastle, céptico.- Nunca se sabe. Ficaria surpreendido se soubesse o que alguns tipos inventam, como disfarce. Uma viúva sem recursos e com dois filhos podia muito bem estar disposta a fazer um acordo...- Não me deu a impressão de ser uma mulher dessas - resmungou Hardcastle, muito puritano.- Não me referia a viver em pecado, meu caro. Queria somente dizer que ela aceitaria ser Mistress Ramsay, a fim de lhe proporcionar um passado. Naturalmente ele ter-lhe-ia impingido uma história convincente: tinha um trabalho de espionagem para o nosso lado, tudo muito patriótico...Hardcastle abanou a cabeça.- Vocês vivem num mundo estranho, Colin.- Pois vivemos. Creio que, um dia, terei de o abandonar... A certa altura começamos a esquecer como são as coisas e as pessoas. Metade daquela gente trabalha para os dois lados e, no fim, nem sabe de que lado está, na realidade. Perde-se a noção dos valores...Bem, mas continuemos a trabalhar.- Parece-me melhor tentarmos também os McNaughton - decidiu Hardcastle, parado junto da cancela do 63. - Uma parte do jardim deles toca no do dezanove, como o dos Bland.- Que sabe acerca dos McNaughton?- Pouco. Vieram para cá há cerca de um ano e são idosos. Creio que ele é professor reformado e se entretém a trabalhar no jardim.O jardim da frente tinha roseiras e um canteiro de açafrão outonal, debaixo das janelas. Uma jovem alegre, de bata florida, abriu-lhes a porta e perguntou:- Que desejam?- A empregada estrangeira, finalmente! - murmurou Hardcastle, e mostrou o seu cartão.- Polícia! - exclamou a jovem e recuou alguns passos, a olhar para o inspector como se ele fosse um demónio em pessoa.- Mistress McNaughton? - perguntou Hardcastle.- Mistress McNaughton mora aqui.A rapariga levou-os para a sala, que dava para o jardim das traseiras e estava deserta.- Deve estar lá em cima - murmurou a empregada, já sem alegria, enquanto ia ao vestíbulo e chamava: - Mistress McNaughton... Mistress McNaughton...- Que se passa, Gretel? - perguntou uma voz que a distância abafava.- É a Polícia... Dois polícias. Levei-os para a sala.Ouviu-se um ruído de passos, no andar de cima, e as palavras:- Meu Deus, que mais teremos?Soaram passos na escada e, passados instantes, Mrs. McNaughton entrou na sala, com um ar preocupado. Hardcastle não tardaria a notar que Mrs. McNaughton apresentava quase sempre esse ar de preocupação.- Meu Deus, meu Deus... - repetiu. - Inspector... ah, sim, Hardcastle.Porque nos veio visitar? Não sabemos nada do assunto. Suponho que se trata do assassínio... Não é por causa da licença do televisor, pois não?Hardcastle tranquilizou-a a esse respeito.- Parece tudo tão extraordinário! - exclamou a dona da casa, mais animada. - E logo por volta do meio-dia! Uma hora muito esquisita para entrar na residência alheia, pois as pessoas costumam estar em casa para o almoço... Mas, nos tempos que correm, os jornais andam cheios de coisas horrorosas desse género, que acontecem em pleno dia. Uns amigos nossos saíram para almoçar fora, chegou uma camioneta de mudanças, os homens arrombaram a porta e levaram a mobília toda! A rua inteira assistiu, mas, naturalmente, não pensou que fosse um roubo. Ontem tive a impressão de ouvir alguém gritar, mas o meu marido, Angus, disse que deviam ser aqueles insuportáveis pequenos de Mistress Ramsay. Correm pelo jardim a fazer ruídos como astronaves, foguetões, bombas atómicas... Às vezes metem medo.Hardcastle voltou a mostrar a fotografia:- Alguma vez viu este homem, Mistress McNaughton?A mulher observou-a, com avidez.- Tenho quase a certeza de que vi. Sim, sim, tenho praticamente a certeza. Ora deixe ver onde foi... Terá sido o homem que veio perguntar se queria comprar uma enciclopédia nova, em catorze volumes? Ou o que veio com um novo modelo de aspirador? Despachei-o, mas ele foi atormentar o meu marido, no jardim da frente. Angus estava a plantar uns bolbos e não queria que o interrompessem, mas o homem começou a explicar as coisas que o aparelho fazia, como limpava cortinados, degraus, almofadas, etc. Contou a história toda, toda! No fim, Angus levantou a cabeça e perguntou: "Serve para plantar bolbos?" Não pude conter o riso, pois o homem ficou aparvalhado e foi-se logo embora.- E parece-lhe que esse homem era o desta fotografia?- Não, creio que não. Agora me lembro que era muito mais novo. No entanto, tenho a impressão de já ter visto esta cara... Sim, quanto mais olho para a fotografia, mais me convenço de que esse homem veio cá tentar vender-me qualquer coisa.- Angariar seguros, talvez?- Não, seguros não. Isso é o meu marido que atende. Temos todos os seguros devidos. Mas quanto mais olho para a fotografia...Hardcastle não se mostrou muito entusiasmado. A sua experiência permitia-lhe colocar Mrs. McNaughton na categoria de pessoas desejosas de terem visto alguém relacionado com um assassínio. Quanto mais olhasse para a fotografia, mais se convenceria de que se lembrava de alguém parecido.Suspirou, desanimado, mas a interlocutora prosseguiu:- Creio que conduzia uma furgoneta, mas não me consigo lembrar quando foi. Uma furgoneta de padeiro, suponho.- Não o viu ontem, pois não, Mistress McNaughton?O rosto da mulher entristeceu um pouco e ela afastou da testa o cabelo grisalho, ondulado e um pouco rebelde.- Não, ontem não o vi. Pelo menos... pelo menos creio que não. - Animou-se um bocadinho e acrescentou: - Talvez o meu marido se lembre!- Ele está em casa?- Está lá fora, no jardim. - Apontou para a janela e o inspector viu um homem idoso a empurrar um carrinho de mão.- Vamos até lá falar com ele.Mrs. McNaughton levou-os ao jardim por uma porta lateral. O marido estava todo suado.- Estes senhores são da Polícia, Angus - anunciou a mulher, ofegante.- Vieram por causa do assassínio verificado em casa de Miss Pebmarsh e trazem uma fotografia da vítima. Sabes, tenho a impressão de já o ter visto em qualquer lado... Não será o que veio cá a semana passada, perguntar se tínhamos antiguidades para vender?- Deixe-me ver - pediu Mr. McNaughton ao inspector. - Mas segure o senhor na fotografia, pois eu tenho as mãos todas sujas de terra.Lançou-lhe um olhar breve e afirmou:- Nunca o vi na minha vida.- Disseram-me que gostava muito de jardinagem - observou Hardcastle.- Quem? Não foi, com certeza, Mistress Ramsay?- Não. Foi Mister Bland.- Bland não sabe o que é jardinagem - rosnou o velho. - Só sabe fazer canteiros. Plantar begónias e gerânios e bordaduras de lobélias. Não é a isso que eu chamo jardinagem. Lembra-me um jardim público... Interessa-se por arbustos, inspector? Claro que a época do ano não é apropriada, mas tenho aqui um ou dois arbustos que o surpreenderão. Dizem que só se dão no Devon e na Cornualha...- Infelizmente, não posso dizer que perceba de jardinagem...McNaughton olhou-o, como um artista olha para uma pessoa que diz não perceber nada de arte, mas saber do que gosta.- Trouxe-me cá um assunto muito menos agradável - prosseguiu o inspector.- Sem dúvida, essa história de ontem. Eu estava no jardim, quando aconteceu.- Sim?- Quero dizer, estava aqui quando a pequena desatou aos gritos.- Que fez?- Bem... não fiz nada - confessou Mr. McNaughton, um pouco envergonhado. - Pensei que fossem aqueles malditos fedelhos dos Ramsay, que passam a vida a gritar como danados.- Mas os gritos não vinham da mesma direcção...- Isso teria algum significado se os tratantes não saíssem do seu jardim, mas eles saem, passam pelas vedações dos outros... Perseguem os estupores dos gatos de Mistress Hemming por todo o lado. O mal é não terem ninguém com mão firme para os dominar. A mãe é fraca como água... Quando não há um homem em casa, as crianças tornam-se indisciplinadas...- Consta-me que Mister Ramsay passa muito tempo no estrangeiro.- Sim, ouvi dizer que é engenheiro - concordou o velho, vagamente. - Está sempre a ausentar-se. Parece que constrói represas... ou oleodutos, ou lá o que é. Não sei ao certo. Há um mês, teve de partir de repente para a Suécia. A mãe dos pequenos ficou cheia de trabalho, coitada. Cozinhar, fazer a lida da casa, mais isto e mais aquilo... Claro, eles apanharam-se à solta e parecem dois demónios. Não são maus pequenos, note, mas precisam de disciplina.- O senhor não viu nada? Só ouviu os gritos? A propósito, quando foi isso?- Não faço ideia. Tiro sempre o relógio, quando venho cá para fora.Outro dia molhei-o, com a mangueira, e depois foi um sarilho para o consertar.Voltou-se para a mulher e perguntou-lhe: - Que horas eram, minha querida? Tu também ouviste, não ouviste?- Talvez fossem umas duas e meia... Pelo menos foi meia hora depois de acabarmos de almoçar.- A que horas almoçam?- À uma e meia... se estamos em maré de sorte - respondeu Mr. McNaughton. - A nossa empregada dinamarquesa não tem noção nenhuma do tempo.- E depois do almoço, costuma dormir uma sesta?- Às vezes. Ontem não dormi; queria acabar o que estava a fazer. Precisava de arrancar umas coisas, para pôr no monte de adubo composto...- É uma coisa maravilhosa, o adubo composto - sentenciou Hardcastle.- Não há nada que se lhe compare! - concordou o velhote, entusiasmado. - Não imagina a quantidade de pessoas que tenho convertido! Usavam aqueles adubos químicos, que são um verdadeiro suicídio! Venha cá, eu mostro-lhe.Puxou o inspector por um braço e, ao mesmo tempo que empurrava o carrinho de mão, levou-o junto da cerca que separava o seu jardim do do número dezanove.O monte de adubo composto lá estava em toda a sua glória, no meio de uma moita de lilases. Mr. McNaughton meteu o carro num pequeno barracão, onde tinha diversas ferramentas bem arrumadas.- Tem tudo muito ordenado - elogiou o inspector.- Devemos cuidar bem das nossas ferramentas.Hardcastle olhou pensativamente para o número 19. Do outro lado da cerca havia uma pérgola de roseiras, que seguia até um dos lados da casa.- Não viu ninguém no jardim do número dezanove, nem a espreitar pela janela, ou qualquer coisa desse género, enquanto esteve a trabalhar no adubo?- Não vi absolutamente nada. Lamento não o poder ajudar, inspector.- Sabes, Angus, tenho a impressão de que vi um vulto, no jardim do dezanove...- Não creio que tenhas visto, minha querida - afirmou o marido, com firmeza. - Eu também não vi.- Aquela mulher seria capaz de dizer que viu tudo! - resmungou Hardcastle, quando voltaram para o automóvel.- Não acredita que ela tenha reconhecido a fotografia?- Duvido muito. Só quer pensar que viu o tipo. Conheço bem de mais, por meu mal, este género de testemunhas. Quando insisti, não foi capaz de dar meia para a caixa, pois não?- Não.- Claro que pode ter viajado defronte dele num autocarro ou coisa parecida. Até aí, admito. Mas, se quer a minha opinião franca, não passa tudo de fantasia, do que ela desejava que fosse. E você, que pensa?- O mesmo.- Não obtivemos grandes resultados. - Hardcastle suspirou. - Há, evidentemente, pormenores que se afiguram esquisitos... Por exemplo, parece quase impossível que Mistress Hemming, apesar da sua obsessão pelos gatos, saiba tão pouco acerca da vizinha, Miss Pebmarsh, como diz. Igualmente me pareceu estranho que ela se mostrasse tão vaga e tão desinteressada pelo assassínio.- Ela é uma mulher vaga.- Ausente - resmungou o inspector. - Quando se encontra uma mulher assim, podem haver incêndios, roubos e assassínios à sua volta sem elas darem por isso.- Está muito protegida com todas aquelas cercas de arame e os arbustos vitorianos não deixam ver grande coisa.Chegaram à esquadra. Hardcastle sorriu ao amigo e disse-lhe:- Bem, sargento Lamb, por hoje dispenso-o do serviço.- Não há mais visitas a fazer?- De momento, não. Talvez faça outra, mais tarde, mas não o levarei.- Bem, obrigado pela boleia da manhã. Pode mandar dactilografar estes apontamentos que tomei? - Estendeu a agenda ao inspector e perguntou: - O inquérito sempre é depois de amanhã, como disse? A que horas?- Às onze.- Voltarei a tempo.- Vai-se embora?- Tenho de ir a Londres amanhã, apresentar o meu relatório.- Calculo a quem.- Não devia calcular.- Dê saudades minhas ao velhote - pediu Hardcastle, a rir.- Talvez vá, também, consultar um especialista.- Um especialista? De quê? Há alguma coisa que não funciona bem?- A cabeça: estupidez pura e simples. Não me referia a especialistas médicos e, sim, a um especialista da sua profissão.- Scotland Yard?- Não. Um detective particular, amigo do meu pai e meu. Esta sua fantástica história será um pratinho para ele! Adorará e sentir-se-á mais animado... e eu tenho a impressão de que ele precisa de que o animem.- Como se chama?- Hercule Poirot.- Já tenho ouvido falar dele, mas pensava que morrera.- Não morreu, mas tenho a impressão de que se sente entediado, o que é pior do que estar morto.Hardcastle olhou-o, com curiosidade, e comentou:- Você é um tipo esquisito, Colin. Arranja amigos tão estranhos!- Incluindo você - respondeu Colin, a sorrir.Depois de se despedir de Colin, o inspector Hardcastle olhou para a morada escrita na sua agenda e acenou com a cabeça. Guardou a agenda e começou a despachar os vários assuntos rotineiros que se tinham acumulado.Foi um dia muito atarefado para ele. Mandou vir café e sanduíches e recebeu relatórios do sargento Cray: não surgira nenhuma pista relevante.Ninguém reconhecera a fotografia de Mr. Curry na estação de caminhos-de-ferro nem na dos autocarros, e os relatórios do laboratório também não ajudavam nada. O fato fora feito por um bom alfaiate, mas a etiqueta com o seu nome tinha sido tirada. Desejo de anonimato da parte de Mr. Curry? Ou da parte do seu assassino? Foram enviados pormenores acerca dos seus dentes a diversos lados e talvez se encontrassem aí as melhores pistas. Era uma coisa que demorava um bocadinho, mas costumava dar resultado. A não ser, claro, que Mr. Curry fosse estrangeiro... O inspector Hardcastle encarou tal possibilidade. Talvez o morto fosse francês... No entanto, o seu vestuário não tinha nada de francês. Por enquanto, também não tinham encontrado marcas de lavandaria. Hardcastle não estava, porém, impaciente. A identificação costumava ser uma tarefa demorada, mas no fim aparecia sempre alguém que resolvia o problema. Uma lavandaria, um dentista, um médico, uma pessoa de família, geralmente a mulher ou a mãe, ou uma senhoria. A fotografia do morto seria distribuída pelas esquadras e publicada nos jornais. Mais cedo ou mais tarde, conhecer-se-ia a verdadeira identidade de Mr. Curry.Entretanto, era preciso trabalhar, e não apenas no caso Curry. Hardcastle trabalhou sem descanso até às cinco e meia. A essa hora olhou para o relógio e achou que chegara o momento de fazer a visita que tinha em mente.O sargento Cray informara-o de que Sheila Webb recomeçara a trabalhar no gabinete Cavendish e às cinco horas iria ao Curlew Hotel estenografar uns apontamentos do professor Purdy. O mais provável seria não se despachar antes das seis horas.Como se chamava a tia da pequena?... Lawton, Mrs. Lawton. A morada era Palmerston Road, 14. Em vez de pedir um carro da Polícia, Hardcastle preferiu percorrer a pé a curta distância.Palmerston Road era uma rua sombria que, como se costuma dizer, conhecera melhores dias. Hardcastle notou que as casas tinham sido quase todas convertidas em apartamentos. Quando o inspector dobrou a esquina, uma rapariga que caminhava na sua direcção hesitou momentaneamente.Distraído, o inspector julgou que ela lhe ia perguntar o caminho para qualquer lado, mas se era essa a sua intenção desistiu e passou por ele sem parar. Hardcastle perguntou a si mesmo por que motivo lhe teria acudido ao espírito, inesperadamente, a ideia de sapatos. Sapatos... Não, um sapato.A cara da jovem era-lhe, também, familiar...Quem seria? Alguém que vira ultimamente? Talvez ela o tivesse reconhecido, também, e hesitasse sem saber se lhe deveria falar.Parou e olhou para trás. A rapariga ia a andar muito depressa. A dificuldade residia no facto de ela ter um daqueles rostos indistintos e difíceis de reconhecer, a não ser que existisse alguma razão especial.Olhos azuis, pele clara, boca ligeiramente aberta... Boca. Isso também lhe recordava qualquer coisa. Qualquer coisa que a vira fazer com a boca? Falar? Pintar os lábios? Não. Sentiu-se um bocadinho irritado consigo próprio. Hardcastle gabava-se de ser previsto, de fixar rostos.Costumava dizer que nunca esquecia uma cara que visse no banco dos réus ou no das testemunhas... Mas, no fim de contas, havia outros lugares para ver pessoas. Não reconheceria, por exemplo, as inúmeras criadas de restaurantes que o tinham servido. Nem as condutoras de autocarros...Afastou o assunto do pensamento. Chegou ao número 14. A porta estava entreaberta e havia quatro botões de campainha, com os nomes dos respectivos inquilinos em baixo.Mrs. Lawton morava no rés-do-chão. Entrou na escada e tocou à campainha da porta do lado esquerdo do vestíbulo. Só passados momentos ouviu passos, dentro de casa.Abriu-lhe, finalmente, a porta uma mulher alta, de cabelo escuro despenteado e avental. Estava um pouco ofegante. Do interior, sem dúvida da cozinha, vinha um cheiro acentuado a cebolas.- Mistress Lawton?- Sim - respondeu, desconfiada e um bocadinho aborrecida.O inspector calculou que deveria ter cerca de quarenta e cinco anos e achou-lhe um aspecto vagamente aciganado.- Que deseja?- Ficar-lhe-ia grato se me pudesse dispensar uns minutos.- Para quê? Neste momento estou muito atarefada. - E perguntou, irritada: - Não é repórter, pois não?- Calculo que tenham sido muito incomodadas pelos repórteres - observou Hardcastle, em tom compreensivo.- Se temos! Todo o dia a baterem à porta, a tocarem à campainha e a fazerem as perguntas mais estúpidas que se possa imaginar!- Concordo que é muito aborrecido e desejaria poder poupar-lhe todas essas maçadas, Mistress Lawton. Sou o detective-inspector Hardcastle e estou encarregado de investigar o caso acerca do qual os repórteres a têm atormentado. Se pudéssemos, teríamos evitado esses contratempos, mas como sabe não podemos. A imprensa tem os seus direitos...- É uma vergonha incomodarem particulares da maneira que incomodam, a pretexto de que precisam de notícias para dar ao público!Quanto a mim, a única coisa que tenho notado nas notícias que publicam é que são uma teia de mentiras, do princípio ao fim. São capazes de inventar tudo! Mas queira entrar.A mulher desviou-se para o lado e o inspector entrou e fechou a porta. Mrs. Lawton baixou-se para apanhar umas cartas que tinham caído no tapete, mas, delicadamente, Hardcastle adiantou-se-lhe e apanhou-as.Os seus olhos ercorreram-nas durante meio segundo, enquanto as entregava, com os endereços para cima.- Obrigada. - Mrs. Lawton colocou-as em cima da mesa do vestíbulo.- Entre para a sala, sim? É por essa porta. Tem de me dar licença por um momento, pois parece-me que está qualquer coisa a ferver.Mrs. Lawton correu para a cozinha e o inspector lançou um último olhar deliberado às cartas. Uma estava dirigida a Mrs. Lawton e as outras duas a Miss R. S. Webb. Entrou, então, no aposento indicado. Era uma sala pequena e desarrumada, pobremente mobilada, mas aqui e ali tinha uma mancha de cor ou algum objecto fora do vulgar. Uma bonita, e provavelmente cara, peça de vidro veneziano, de cores suaves e forma abstracta; duas almofadas de veludo de cores vivas; uma travessa de cerâmica estrangeira, com conchas... Ou a tia ou a sobrinha tinham uma certa tendência para a originalidade.Mrs. Lawton voltou, um pouco mais ofegante do que anteriormente.- Creio que podemos conversar, agora - declarou, embora em tom pouco convincente.- Peço desculpa de ter vindo a uma hora inconveniente, mas encontrava-me perto e precisava de averiguar mais alguns pormenores acerca deste caso em que a sua sobrinha teve a pouca sorte de ser envolvida. Espero que ela já se tenha refeito do grande abalo que sofreu. ..- Sim, Sheila chegou a casa num estado lastimoso. Mas esta manhã já estava boa e voltou para o trabalho.- Bem sei. Disseram-me, no entanto, que ela se encontrava com um cliente, em qualquer lado, e como não quis interferir no seu trabalho pensei que seria melhor vir até cá e falar-lhe na sua própria casa. Mas, pelo que vejo, ainda não regressou, pois não?- Provavelmente regressará tarde. Foi trabalhar para um tal professor Purdy e, segundo Sheila diz, ele é um homem que não tem a mínima noção do tempo.Está sempre a dizer: "Como isto não levará mais do que dez minutos, parece-me melhor irmos até ao fim." Mas os dez minutos arrastam-se quase sempre e transformam-se em três quartos de hora ou uma hora. No entanto, é uma pessoa muito simpática e correcta. Uma vez ou duas insistiu em que ela ficasse para jantar com ele e pareceu muito preocupado por a ter retido muito mais tempo do que supusera. Há alguma coisa que eu lhe possa dizer, inspector? Sheila pode-se demorar muito...- Não creio... Claro que, no outro dia, só tomámos nota dos principais pormenores e eu nem sei se correctamente. - Consultou, de modo ostensivo, o livro de apontamentos. - Ora deixe ver. Miss Sheila Webb. É este o seu nome completo ou tem outro nome próprio? Como sabe, precisamos de todos estes pormenores muito certos, para as actas do inquérito.- O inquérito é depois de amanhã, não é? Ela recebeu uma convocação...- Sim, mas escusa de se preocupar com isso. Terá apenas de explicar como encontrou o corpo.- Ainda não sabem quem era o homem?- Não. Ainda é cedo para isso. Ele tinha um cartão na algibeira e nós pensámos, ao princípio, que se tratasse de um agente de seguros. Parece, agora, mais provável que o cartão lhe tenha sido dado por alguém. Talvez ele próprio tencionasse fazer algum seguro.- Compreendo - murmurou Mrs. Lawton, vagamente interessada.- Vamos, então, confirmar os nomes... Creio que escrevi Miss Sheila Webb ou Miss Sheila R. Webb, mas não me lembro a que se refere o "R". É Rosalie?- Rosemary. O seu nome de baptismo é Rosemary Sheila, mas ela achou sempre o Rosemary piroso e diz chamar-se apenas Sheila.- Compreendo.Nada, no tom de voz de Hardcastle, demonstrava o seu contentamento por uma das suas suspeitas ter batido certo. Reparou também numa coisa: o nome de Rosemary não impressionava nada Mrs. Lawton. Para ela, Rosemary era apenas um nome próprio que a sua sobrinha não usava.- Agora já está certo - continuou o inspector, a sorrir. - Suponho que a sua sobrinha veio de Londres e trabalha no Gabinete Cavendish há cerca de dez meses. Creio que não se lembra da data exacta?- Sim, não me lembro. Sei que foi em Novembro passado, para o fim do mês...- Muito bem, não tem importância. Ela não morava consigo, aqui, antes de aceitar emprego no Gabinete Cavendish?- Não. Residia em Londres.- Tem a sua morada em Londres?- Tenho-a aí em qualquer lado... - Mrs. Lawton olhou à sua volta, com a expressão vaga das pessoas habitualmente desarrumadas. - Tenho uma memória péssima. Era qualquer coisa como Allington Grove, para os lados de Fulham... Compartilhava um apartamento com duas outras pequenas. Os quartos para raparigas são muito caros, em Londres.- Lembra-se do nome da firma onde ela trabalhava?- Lembro, sim. Hopgood & Trent. Eram agentes de propriedades na Fulham Road.- Obrigado. Bem, tudo isto parece muito claro. Creio que Miss Webb é órfã? - É. - Mrs. Lawton mexeu-se, pouco à vontade, e olhou na direcção da porta. - Importa-se que vá de novo à cozinha?- Faça favor.O inspector abriu a porta e ela saiu. Seria impressão sua, ou a última pergunta que fizera perturbara Mrs. Lawton? Até então respondera rapidamente, sem hesitar... Pensou no assunto até Mrs. Lawton regressar.- Desculpe, mas cozinhar tem que se lhe diga... Agora está tudo a andar bem. Deseja perguntar-me mais alguma coisa? A propósito, lembrei-me de que a morada não era Allington Grove. Era Carrington Grove, dezassete.- Obrigado. Creio que lhe estava a perguntar se Miss Webb era órfã.- É, sim. Os pais morreram.- Há muito tempo?- Quando ela era pequena.Adivinhava-se no tom da sua voz uma espécie de desafio quase imperceptível.- Era filha de uma irmã sua ou de um irmão?- De uma irmã.- Qual era a profissão de Mister Webb?Mrs. Lawton pensou um momento, a morder os lábios, e por fim respondeu:- Não sei.- Não sabe?- Quero dizer, não me lembro. Foi há tanto tempo...Hardcastle aguardou, pois sabia que ela voltaria a falar. Não se enganou.- Posso perguntar que tem tudo isto a ver com o caso? Quero dizer, que interessa quem eram os pais da minha sobrinha, o que fazia o pai dela, etc.?- Suponho que, na realidade, uma coisa não tem nada a ver com a outra, do seu ponto de vista. Mas as circunstâncias são muito invulgares, compreende?- As circunstâncias são muito invulgares? Que quer dizer?- Temos motivos para crer que Miss Webb foi àquela casa porque a requisitaram especificamente, pelo nome, ao Gabinete Cavendish. Parece, portanto, que alguém arranjou as coisas de propósito, para que ela lá estivesse. Alguém, talvez... enfim, com qualquer ressentimento contra ela.- Não acredito que alguém possa ter qualquer ressentimento contra Sheila. É uma jóia de rapariga, simpática e dada...- Sim, também foi essa a impressão que me causou.- Não me agrada ouvir insinuar o contrárioafirmou Mrs. Lawton, com certa agressividade.- Decerto. - Hardcastle continuou a sorrir, apaziguador. - Mas deve compreender, Mistress Lawton, que tudo indica ter a sua sobrinha sido deliberadamente escolhida como vítima. Meteram-na de propósito em sarilhos, como dizem nos filmes. Alguém arranjou maneira de ela entrar numa casa onde estava um morto, um morto que fora assassinado havia pouco tempo. Parece, pois, que se trata de um acto maldoso.- Quer dizer... quer dizer que alguém tentou dar a impressão de que foi Sheila que o matou? Oh, não, não posso acreditar!- É, de facto, difícil de acreditar - concordou o inspector. - Mas precisamos de esclarecer tudo, de ter a certeza. Haverá, por exemplo, algum jovem, algum rapaz que se tenha apaixonado pela sua sobrinha e de quem ela não goste? Os rapazes novos fazem, às vezes, coisas muito cruéis e vingativas, sobretudo se são desequilibrados.- Não creio que se trate de nada desse género -murmurou Mrs. Lawton, de olhos semicerrados e testa franzida, a pensar. - Sheila tem-se dado com um ou dois rapazes, mas não é nada de sério.- Talvez se tenha passado alguma coisa enquanto ela viveu em Londres - sugeriu o inspector.É possível que a senhora não esteja muito bem informada acerca dos amigos que ela lá teve.- Sim, é possível... Mas a esse respeito terá de a interrogar a ela própria, inspector Hardcastle. No entanto, nunca me constou que tivesse qualquer aborrecimento dessa espécie.- Também se poderá tratar de alguma rapariga... Não será possível que uma das jovens com quem ela compartilhou o apartamento a invejasse ou tivesse ciúmes dela?- Não me admiraria que existisse uma rapariga que desejasse pregar-lhe uma partida, mas certamente não iria ao ponto de envolver assassínio.A observação era sensata e Hardcastle compreendeu que Mrs. Lawton não tinha nada de tola. Apressou-se a dizer:- Sei que parece muito improvável, mas a verdade é que todo este caso é incrível.- Deve ter sido algum doido...- Mesmo na loucura há uma ideia definida a motivar as acções, qualquer coisa que lhes dá origem. Foi por isso que lhe fiz perguntas acerca do pai e da mãe de Sheila Webb. Ficaria surpreendida se soubesse como é frequente os motivos terem raízes no passado. Como os pais de Miss Webb morreram quando era pequena, ela não me saberá, naturalmente, dizer nada acerca deles. Por isso recorri à senhora.- Compreendo... sim, compreendo. Mas... bem...O inspector notou que a perturbação e a incerteza tinham voltado à sua voz.- Eles morreram ao mesmo tempo, num acidente ou em qualquer coisa desse género?- Não, não houve nenhum acidente.- Morreram ambos de causas naturais?- Eu... bem, sim... quero dizer, não sei, francamente.- Penso que deve saber um pouco mais do que diz, Mistress Lawton.Eram divorciados, estavam separados?- Não, não eram divorciados.- Ora vamos, Mistress Lawton! Deve saber de que morreu a sua irmã.- Não compreendo que... quero dizer, é muito difícil... É muito melhor não remexer no passado...Os seus olhos exprimiam uma perplexidade desesperada.O inspector fitou-a, com atenção, e depois perguntou, docemente:- Sheila Webb será... uma filha ilegítima?No rosto de Mrs. Lawton estampou-se, imediatamente, um misto de consternação e alívio.- Ela não é minha filha.- É filha ilegítima da sua irmã?- É... mas ignora-o. Nunca lho disse. Disse-lhe que os pais morreram novos e é por isso que... enfim, compreende.. .- Compreendo, sim. E garanto-lhe que, a não ser que desse lado surja qualquer necessidade imperiosa de investigação, não interrogarei Miss Webb a tal respeito.- Não precisará de lhe dizer?- Só se tiver alguma importância para a solução do caso, o que, confesso, me parece improvável. Mas preciso de tomar conhecimento de todos os factos que a senhora sabe, embora prometendo-lhe que farei o possível para que fique apenas entre nós o que me disser.- Não é uma coisa agradável e eu confesso que fiquei muito transtornada. A minha irmã fora sempre a mais inteligente da família, era professora e muito respeitada. Enfim, a última pessoa que se julgaria capaz de...- Isso acontece muitas vezes - interrompeu o inspector, com tacto. - Ela conheceu esse homem, esse Webb...- Nunca sequer soube como ele se chamava - interveio Mrs. Lawton.- Nunca o conheci. Mas ela procurou-me e disse-me o que sucedera, que esperava um filho e que o homem não podia, ou não queria, nunca soube ao certo, casar com ela. Minha irmã era ambiciosa e, se se descobrisse a verdade, teria de desistir do seu trabalho. Por isso, naturalmente, eu... eu disse que estava disposta a ajudar.- Onde está agora a sua irmã, Mistress Lawton?- Não faço a mínima ideia - declarou, com ênfase. - Absolutamente nenhuma ideia.- Mas vive?- Suponho que sim.- Não se mantiveram em contacto?- Ela não quis. Achou melhor para a criança e para ela haver uma separação total. Tínhamos ambas um pequeno rendimento, que a nossa mãe nos deixara. Ann passou a sua parte para o meu nome, para a manutenção da filha. Disse que continuaria a desempenhar a sua profissão, mas mudaria de escola. Suponho que tinha um plano qualquer de substituir um professor no estrangeiro, durante um ano. Na Austrália ou em qualquer outro lado. É tudo quanto sei, inspector Hardcastle, e tudo quanto lhe posso dizer.Hardcastle fitou-a, pensativo. Seria, realmente, tudo quanto ela sabia? Era difícil ter a certeza. O que era certo era não tencionar dizer-lhe mais nada. No entanto, talvez não soubesse, de facto, mais do que dissera.As poucas referências que fizera à irmã tinham bastado para dar a impressão de que se tratava de uma personalidade imperiosa, severa e implacável, de uma mulher decidida a não permitir que um erro lhe estragasse a vida. Friamente, insensivelmente, providenciara para a manutenção e presumível felicidade da filha, e a partir desse momento afastara-se de vez, para recomeçar a vida sozinha. Era admissível que sentisse assim em relação à filha. Mas e a irmã? - Parece estranho que ela não tenha, ao menos, comunicado consigo por carta, que não tenha querido saber como se desenvolvia a filha...- Se conhecesse Ann não se admiraria. Foi sempre muito firme nas suas decisões. Além disso, não éramos muito unidas. Eu era muito mais nova... doze anos... Repito, nunca fomos muito unidas.- Que pensou o seu marido da adopção?- Eu era viúva. Casei nova e o meu marido foi morto na guerra. Nessa altura, tinha uma pequena loja onde vendia doces.- Onde foi isso? Não foi aqui em Crowdean, pois não?- Não. Vivíamos no Lincolnshire. Vim aqui passar umas férias, uma vez, e gostei tanto que trespassei a loja e mudei-me para cá. Mais tarde, quando Sheila entrou para a escola, empreguei-me na firma Roscoe & West, a grande loja de fanqueiro da terra. Ainda lá trabalho. São pessoas muito simpáticas.- Muito obrigado pela sua franqueza, Mistress Lawton - agradeceu Hardcastle, enquanto se levantava.- Não dirá nada a Sheila?- Só se for indispensável, e só será indispensável se verificarmos que certas circunstâncias do passado têm qualquer relação com este assassínio de Wilbraham Crescent, dezanove. Parece-me improvável, como já lhe disse. - Tirou da algibeira a fotografia que já mostrara a tanta gente e estendeu-a a Mrs. Lawton.Não faz nenhuma ideia de quem possa ser este homem?- Já me mostraram a fotografia - respondeu a mulher, mas pegou-lhe e observou-a com atenção.Não, tenho a certeza de que nunca o vi. Não creio que seja destes lados, pois de contrário talvez me lembrasse de o ter visto por aí. Claro... - Olhou de novo, atentamente, antes de acrescentar, de modo inesperado: - Parece uma pessoa decente. Um cavalheiro, não acha?Era uma expressão ligeiramente fora de moda, no âmbito da experiência do inspector, mas não pareceu deslocada nos lábios de Mrs. Lawton. "Criada na província...", disse para consigo. "Ainda pensam assim." Olhou por sua vez para a fotografia e verificou, surpreendido, que pessoalmente não pensara no morto dessa maneira. Seria um homem decente? Era singular, mas presumira exactamente o contrário. Presumira-o inconscientemente, talvez, ou talvez influenciado pelo facto de o indivíduo ter na algibeira um cartão com um nome e uma morada que tudo indicava serem falsos. Era possível que a explicação que dera a Mrs. Lawton, pouco antes, fosse verdadeira, que o cartão pertencesse a algum falso agente de seguros e que este o tivesse dado ao morto... Isso tornaria tudo ainda mais complicado. Aborrecido, viu as horas.- Não a quero afastar por mais tempo dos seus cozinhados. Como a sua sobrinha ainda não chegou...Mrs. Lawton olhou também para o relógio da chaminé. "Graças a Deus só há um relógio nesta sala!", pensou o inspector.- Sim, ela está atrasada... muito atrasada. Ainda bem que a Edna não esperou.Ao ver a expressão um pouco intrigada do inspector, exglicou:- É uma das pequenas do escritório. Veio cá, para conversar com a Sheila, mas depois de esperar um bocado disse que não se podia demorar mais e foi-se embora, pois tinha um encontro qualquer. Acrescentou que falaria com a minha sobrinha amanhã ou qualquer outro dia.Fez-se luz no espírito do inspector: a rapariga que se cruzara com ele na rua! Já sabia por que motivo ela o fizera pensar em sapatos. Claro! Era a jovem que o atendera, no Gabinete Cavendish, e que, quando ele saía, segurava um sapato com o salto partido e perguntava às colegas como havia de se arranjar para chegar a casa. Lembrava-se agora de que era uma pequena banal, pouco atraente e que chupava uma guloseima qualquer, enquanto falava. Ela reconhecera-o, ao encontrá-lo na rua, e hesitara, como se pretendesse falar-lhe. Que lhe teria querido dizer? Pretenderia explicarlhe porque visitara Sheila Webb ou pensaria que ele esperava que lhe dissesse alguma coisa?- É uma grande amiga da sua sobrinha?- Nem por isso. Quero dizer, trabalham no mesmo escritório, mas Edna é uma pequena enfadonha, pouco inteligente, e não são grandes amigas. Por sinal, até me admirei de mostrar tanto interesse em falar com Sheila esta noite. Disse-me que se tratava de uma coisa que não compreendia e acerca da qual queria falar com a minha sobrinha.- Mas não lhe explicou o que era?- Não. Disse que podia esperar e que não tinha importância.- Bem, vou andando.- Admira-me a Sheila não ter telefonado... Geralmente telefona, quando está atrasada, tanto mais que, às vezes, o professor a convida para jantar. Enfim, deve chegar de um momento para o outro. As bichas para os autocarros são enormes, a esta hora, e o Curlew Hotel ainda fica longe. Não deseja deixar nenhum recado para ela?- Suponho que não...Quando ia a sair, perguntou:- Já agora, diga-me uma coisa: quem escolheu os nomes próprios da sua sobrinha, Rosemary e Sheila? A sua irmã ou a senhora?- Sheila era o nome da nossa mãe. Rosemary foi escolha da minha irmã. Confesso que me admirou. Trata-se de um nome romanesco e a minha irmã não era nada romanesca nem sentimental.- Bem, boas noites.Quando chegou à rua, o inspector ia a pensar:"Rosemary... hum... Terá escolhido Rosemary como recordação romântica e perfumada... ou por qualquer outro motivo diferente?"NARRATIVA DE COLIN LAMBSubi a Charing Cross Road e virei para o labirinto de ruas que abrem sinuosamente caminho entre a New Oxford Street e Covent Garden. Havia ali toda a sorte de estabelecimentos insuspeitos: lojas de antiguidades, um hospital de bonecas, uma loja de sapatilhas de ballet, charcutarias de especialidades estrangeiras, etc.Resisti à tentação do hospital de bonecas, com os seus vários pares de olhos de vidro azul e castanho, e cheguei, finalmente, ao meu destino: uma livrariazinha modesta, numa transversal que não ficava muito longe do Museu Britânico. No exterior, encontravam-se as habituais prateleiras de livros: romances antigos, velhos livros de estudo, todo o género de leituras com etiquetas de 3 d., 6 d.,1 x., e até alguns "aristocratas" com as páginas quase todas e, ocasionalmente, as encadernações intactas.Esgueirei-me pela porta dentro. Tive mesmo de me esgueirar, pois a quantidade de livros, em equilíbrio precário, roubava cada vez mais espaço.No interior, havia-os por toda a parte, como se crescessem e se multiplicassem num desenfreamento, sem a mão forte de alguém a dominá-los. O espaço entre as estantes era tão pequeno que só com grande dificuldade se conseguia passar. Havia rimas de livros em todas as prateleiras e em todas as mesas. Sentado num banco, a um canto, verdadeiramente emoldurado por livros, estava um velho de barrete e cara larga e inexpressiva como um peixe embalsamado. Tinha o ar de quem desistira de uma luta desigual. Tentara dominar os livros, mas era evidente que os livros o tinham dominado a ele. Era uma espécie de rei Canuto do mundo dos livros, a retirar perante o avanço da maré livreira... Se lhe ordenasse que parasse, seria com a certeza absoluta e desesperada de não ser obedecido. Tratava-se de Mr. Soloman, proprietário da loja. Quando me reconheceu, acenou com a cabeça e o seu olhar de peixe suavizou-se um momento.- Tem alguma coisa da minha especialidade?- Terá de ir ver lá acima, Mister Lamb. Continua interessado nas algas e coisas parecidas?- Continuo.- Bem, sabe onde estão. Biologia marinha, fósseis, Antárctica: segundo andar. Recebi uma encomenda nova, anteontem. Comecei a desembrulhá-los, mas não acabei. Encontrá-los-á a um canto, lá em cima.Acenei com a cabeça e continuei a esgueirar-me até ao fundo da loja, donde partia uma escada pequena, pouco segura e muito suja. O primeiro andar era reservado ao Oriente, a livros de arte e medicina e a clássicos franceses. A sala tinha um canto muito interessante, separado por uma cortina e desconhecido do público em geral, mas acessível aos peritos, onde se encontravam os volumes chamados "estranhos" ou "curiosos".Segui o meu caminho para o segundo andar.Aí se encontravam, muito inadequadamente separados por categorias, livros sobre arqueologia, história natural e outras matérias respeitáveis. Abri caminho por entre estudantes, coronéis idosos e sacerdotes, contornei o ângulo de uma estante, passei por cima de vários embrulhos de livros, que se encontravam no chão e tinham começado a ser abertos, e vi o meu progresso impedido por dois estudantes de sexos opostos, perdidos para o mundo num abraço muito apertado.Balançavam-se de um lado para o outro, muito agarrados. "Com licença", pedi e, firmemente, afastei-os para o lado, levantei uma cortina que encobria uma porta, tirei uma chave da algibeira, introduzi-a na fechadura e entrei. Encontrei-me, incongruentemente, numa espécie de vestíbulo de paredes caiadas e limpas, das quais pendiam gravuras de gado escocês. Dirigi-me a uma porta que tinha uma aldrava reluzente, bati devagarinho e apareceu uma mulher idosa, de cabelo grisalho, óculos de modelo muito antigo, saia preta e uma camisola às riscas verdes, que não podia destoar mais do conjunto do que destoava.- É você? - murmurou, sem qualquer outra forma de cumprimento. - Ele perguntou por si, ontem. Não estava satisfeito. - Abanou a cabeça, como uma velha ama a ralhar com uma criança decepcionante, e acrescentou: - Tem de se esforçar para obter melhores resultados.- Deixe-se disso, ama.- Não me trate por ama! É preciso atrevimento! Já lhe tenho dito...- A culpa é sua. Não deve falar comigo como se eu fosse um rapazinho.- Já era tempo de crescer, já... É melhor entrar e despachar-se. - Carregou num botão, levantou o auscultador do telefone e anunciou: - Mister Colin... Sim, vou mandá-lo entrar. - Repôs o auscultador e acenou-me com a cabeça.Transpus uma porta do fundo da sala e entrei noutro aposento, tão cheio de fumo de charuto que quase não se via nada. Quando os meus olhos, a arder, se habituaram ao ambiente, distingui as volumosas proporções do meu chefe, recostado numa velha poltrona junto da qual se encontrava uma mesinha assente numa base giratória.O coronel Beck tirou os óculos, afastou a mesinha, em cima da qual estava um grosso volume, e olhou-me de modo desaprovador.- É você, finalmente?- Sou, sim.- Soube alguma coisa?- Não, senhor.- Ah! Bem, Colin, assim não vale. Assim não vale, ouviu?Crescentes!- Continuo a pensar o mesmo.- Está bem, continua a pensar. Mas nós não podemos esperar eternamente, enquanto você pensa.- Admito que foi apenas um pressentimento...- Não há mal nenhum nisso.O coronel Beck era um homem cheio de contradições.- Os melhores trabalhos que fiz foram inspirados por pressentimentos, mas este seu pressentimento parece que não está a dar resultado. Já acabou com os bares?- Já. Como lhe disse, comecei por crescentes... quero dizer, casas em crescentes...- Também não supus que se referisse a padarias especializadas em croissants... embora, afinal, não fosse nada de extraordinário. Alguns desses estabelecimentos fazem ponto de honra em fabricar croissants franceses que não são nada franceses. Congelam-nos, como a tudo o mais, hoje em dia. É por isso que nada sabe, já, a nada.Esperei que o velhote desenvolvesse o tópico, que era um dos seus favoritos, mas ele percebeu e dominou-se.- Já percorreu tudo?- Quase tudo. Ainda falta um bocadinho.- Quer mais tempo, não é?- É, quero mais tempo. Mas, de momento, não estou interessado em mudar de terra. Houve uma espécie de coincidência e pode, pode apenas, significar alguma coisa.- Não esteja com rodeios... Apresente-me factos.- Local de investigação: Wilbraham Crescent.- E falhou! Ou não?- Não tenho a certeza.- Esclareça, rapaz, esclareça.- A coincidência reside no facto de terem assassinado um homem em Wilbraham Crescent.- Quem foi assassinado?- Ainda não se sabe. Tinha na algibeira um cartão com um nome e uma morada, mas era falso.- Hum... é sugestivo. Tem alguma relação com o resto?- Se tem ainda não a encontrei, mas, mesmo assim...- Bem sei, bem sei. Mesmo assim... Mas, afinal, que veio cá fazer?Pedir autorização para continuar a farejar em Wilbraham Crescent... onde quer que isso seja?- Fica numa terra chamada Crowdean, a dezasseis quilómetros de Portlebury.- Sim, sim, uma localidade muito boa. Mas para que está você aqui? Não costuma pedir autorização, faz o que a sua cabeça teimosa lhe dita, não é?- Creio que é...- Então de que se trata?- Há umas pessoas que desejaria fossem investigadas.O coronel Beck suspirou, puxou de novo a mesinha, tirou uma esferográfica da algibeira e fitou-me.- Então?- Uma casa chamada Diana Lodge, Wilbraham Crescent, vinte. Vive lá uma mulher, uma tal Mistress Hemming, e uns dezoito gatos.- Diana? Hum... Deusa da Lua! Diana Lodge. Que faz essa Mistress Hemming?- Nada. Vive absorvida nos seus gatos.- Excelente disfarce - comentou o coronel. Podia ser, pelo menos. Mais nada?- Há, também, um homem chamado Ramsay, que mora em Wilbraham Crescent, sessenta e dois. Diz ser engenheiro de construções, não sei bem o que seja... e viaja muito pelo estrangeiro.- Esse agrada-me... agrada-me mesmo muito. Quer saber coisas acerca dele, não é verdade? Muito bem.- Tem mulher, uma senhora simpática, e dois barulhentíssimos rapazes.- Não me espanta. Há precedentes. Lembra-se do Pendleton?Também tinha mulher e filhos. Uma mulher simpática e a mais estúpida que jamais conheci. Nunca lhe passou pela cabeça que o marido não fosse um pilar de respeitabilidade, um honrado negociante de livros orientais.Agora que penso no assunto, o Pendleton também tinha uma mulher alemã e duas filhas... assim como uma mulher suíça, na Suíça. Francamente, não sei o que elas representavam, se excessos íntimos, se camuflagem, apenas.Claro que ele diria que eram camuflagem... Mas, muito bem, você quer saber coisas acerca de Mister Ramsay. Mais alguma coisa?- Não sei bem... Há um casal no número sessenta e três. Ele é professor reformado, chama-se McNaughton, é escocês e idoso. Passa o tempo a trabalhar no jardim. Não há motivo nenhum para desconfiar dele e da mulher, mas...- Está bem, verificaremos. Passá-lo-emos pela máquina, para termos a certeza. A propósito, que é toda esta gente?- São pessoas cujos jardins são contíguos ou tocam no da casa onde se deu o assassínio.- Parece um jogo francês: Onde está o cadáver do meu tio? No jardim do primo da minha tia... E a respeito do número dezanove?- Mora lá uma mulher cega, antiga professora. Presentemente trabalha num instituto para cegos e deficientes e está a ser investigada pela Polícia.- Vive sozinha?- Vive.- E qual é a sua ideia a respeito das outras pessoas?- A minha ideia é que se uma dessas pessoas cometesse um assassínio em qualquer dessas casas, seria fácil, embora arriscado, transferir o cadáver para o número dezanove, a uma hora apropriada. Não passa de uma simples possibilidade, claro. Já agora, gostaria de lhe mostrar... isto.- Um haller checo. Onde o achou?- Não fui eu que o achei. Mas estava no jardim das traseiras do número dezanove.- Interessante. Afinal, talvez essa sua persistente ideia fixa das luas e quartos crescentes tenha alguma razão de ser... Há um bar chamado Quarto Crescente na rua a seguir a esta. Porque não vai lá tentar a sorte?- Já lá fui.- Tem resposta para tudo, não tem? Quer um charuto?- Obrigado, mas hoje não tenho tempo.- Volta para Crowdean?- Volto. Há o inquérito.- Será adiado, apenas. Tem a certeza de que não anda atrás de nenhuma pequena, em Crowdean?- Claro que tenho a certeza! - repliquei, secamente, e o coronel Beck desatou a rir.- Tenha cuidado, meu filho! O sexo a empinar a sua hedionda cabeça, como de costume... Há quanto tempo a conhece?- Não há nenhuma... Quero dizer, foi uma rapariga que descobriu o cadáver.- Que fez ela, quando o descobriu?- Gritou.- Muito apropriado. Correu para si, chorou no seu ombro e contou-lhe tudo, não foi?- Não sei de que está a falar - redargui, friamente. - Dê uma vista de olhos a isto.Estendi-lhe um jogo de fotografias.- Quem é?- O morto.- Dez contra um em como essa rapariga que tanto lhe interessa o matou! Toda essa história me parece muito suspeita...- Como, se ainda não lha contei?- Não preciso que ma conte. Vá ao seu inquérito, meu rapaz, e tenha cuidado com essa pequena. Ela chama-se Diana, ou Ártemis, ou qualquer coisa relacionada com luas ou crescentes?- Não.- Bem, não se esqueça de que pode haver sempre qualquer relação.NARRATIVA DE COLIN LAMBHavia muito tempo que não visitava Whitehaven Mansions. Alguns anos atrás, fora um prédio imponente, de apartamentos modernos. Agora erguiam-se de ambos os lados muitos outros ainda mais modernos e imponentes. Notei que, no interior, sofrera reparações recentes e estava pintado de tons suaves de amarelo e verde.Subi no elevador e toquei à campainha do número 203. Abriu a porta o impecável George, cujo rosto se iluminou num sorriso de boas-vindas.- Mister Colin! Há quanto tempo não o víamos!- É verdade. Como está, George?- Estou bem de saúde, felizmente, senhor.- E ele? - perguntei, mais baixo.George baixou também a voz, embora não fosse praticamente necessário, pois desde o princípio da nossa conversa que falava em tom muito discreto.- Creio que, às vezes, se sente um pouco deprimido.Acenei com a cabeça, compreensivamente.George pegou no meu chapéu e convidou:- Por aqui, Mister Colin...- Anuncie-me como Mister Colin Lamb, por favor.- Muito bem. - Abriu uma porta e anunciou, em voz clara: - Mister Colin Lamb deseja vê-lo. Recuou, para me deixar passar, e eu entrei no aposento.O meu amigo Hercule Poirot estava sentado na sua habitual poltrona quadrada, defronte da lareira. Reparei que um dos elementos do irradiador eléctrico rectangular estava ligado. Setembro ainda ia no princípio e estava calor, mas Poirot era um dos primeiros homens a sentir o fresco do Outono e precaver-se contra ele. No chão, de ambos os lados da poltrona, estavam diversos livros, bem empilhados, e havia mais livros na mesa, à sua esquerda. A sua direita encontrava-se uma chávena fumegante. Uma tisana, supus. Gostava de tisanas e, às vezes, insistia comigo para que as tomasse, também. Tinham um gosto enjoativo e um cheiro forte.- Não se levante - pedi, mas Poirot já avançava para mim, de mãos estendidas e sapatos de verniz a rebrilhar.- Ah, é você, é você, meu amigo! O meu jovem amigo Colin! Mas porque disse que se chamava Lamb*? Deixe-me pensar... Há um provérbio qualquer, do carneiro vestido com a pele do cordeiro... Não, isso é o que se costuma dizer das velhotas que querem passar por mais novas do que são.* Lamb, em inglês, significa cordeiro. (N. da T.).Claro que não se aplica a si. Ah, já sei! É um lobo com pele de cordeiro, não é?- Não. Pensei apenas que, na minha profissão, o meu verdadeiro apelido podia ser prejudicial, podia ser facilmente relacionado com o do meu pai. Por isso escolhi o de Lamb. Curto, simples, fácil de lembrar... e, digo-o sem modéstia, de acordo com a minha personalidade.- Oh, a esse respeito, não juraria! Como está o meu bom amigo e seu pai?- O velhote está óptimo. Muito atarefado com as suas malvas-rosas... ou serão crisântemos? As estações passam tão depressa que nunca sei qual é a flor do momento.- Ele entretém-se, então, com a horticultura?- Parece que toda a gente opta por isso, no fim.- Eu não! Uma vez dediquei-me às abóboras, mas não voltei! Se uma pessoa deseja ter as flores mais bonitas, porque não vai a uma florista?Julguei que o bom superintendente fosse escrever as suas memórias.- Ele começou, mas eram tantas as coisas que não podia contar que chegou à conclusão de que o resto não valia a pena ser contado.- É necessário ser discreto... É uma pena, pois o seu pai podia contar algumas coisas muito interessantes. Admiro-o muito, sempre admirei.Achava os seus métodos muito interessantes, sabe? Era uma pessoa que avançava resolutamente em frente, que sabia utilizar o óbvio como mais ninguém... Preparava uma armadilha, a armadilha mais óbvia possível, e as pessoas que queria apanhar diziam: "É muito evidente, não pode ser verdade..." E, zás, caíam nela!Ri-me.- Bem, hoje não é moda os filhos admirarem os pais. Muitos sentamse, enchem as canetas de veneno, recordam todas as coisas desagradáveis e feias e escrevem tudo com grande satisfação. Mas eu, pessoalmente, tenho um enorme respeito pelo meu velhote. Só desejo vir a ser tão bom como ele foi... embora não tenha exactamente a mesma profissão.- Mas a que tem está estritamente relacionada com a dele, embora você tenha de trabalhar nos bastidores de modo diferente do dele. - Tossiu delicadamente. - Creio que o devo felicitar pelo seu recente e espectacular êxito. O caso Larkin...- Já se sabe muito, mas eu gostaria de saber muito mais, para arredondar bem as contas... Não foi, no entanto, para falar disso que vim.- Claro que não, claro que não... - Poirot indicou-me uma cadeira e ofereceu-me uma tisana, que recusei imediatamente.George entrou muito a propósito, com uma garrafa de uísque, um copo e um sifão, que colocou junto de mim.- E o senhor, que faz? - Olhei para os vários livros que o cercavam e acrescentei: - Parece que se dedica a qualquer espécie de pesquisa...- Pode chamar-lhe assim - admitiu Poirot, a suspirar. - Sim, talvez, em certo sentido, seja isso. Ultimamente tenho sentido uma grande necessidade de um problema qualquer. Disse para comigo que não interessava a natureza do problema, que podia ser como o do bom Sherlock Holmes: a que profundidade se enterrara a salsa na manteiga? O que importava era que existisse um problema. Compreende, não são os músculos que preciso exercitar e, sim, as células cerebrais.- Compreendo. É tudo uma questão de se manter em forma.- Exactamente. - Poirot suspirou de novo. Mas, mon cher, os problemas não são fáceis de encontrar. É verdade que, na quinta-feira passada, se me apresentou um: o indevido aparecimento de três bocados de casca de laranja seca no receptáculo dos chapéus-de-chuva. Como tinham lá ido parar? Como podiam lá ter ido parar? Eu não como laranjas e o George jamais poria cascas de laranja no receptáculo dos chapéus-de-chuva.Também era pouco provável que uma visita trouxesse três bocados de casca de laranja seca. Um problema complicado!- Resolveu-o?- Resolvi. - Explicou, com mais melancolia do que orgulho: - No fim, nem sequer foi muito interessante. Um caso de substituição da habitual mulher-a-dias. A substituta trouxe com ela, em absoluta desobediência às ordens dadas, um dos seus filhos. Embora não pareça interessante, a verdade é que exigiu uma firme penetração numa rede de mentiras, disfarces e tudo o mais. Digamos que foi satisfatório, mas não importante.- Decepcionante - sugeri.- Enfin, eu sou modesto... Mas ninguém precisa de utilizar um florete para cortar o cordel de um embrulho.Abanei a cabeça, com um ar muito solene, e Poirot prosseguiu:- Ultimamente, tenho-me entretido a ler vários mistérios da vida real, que nunca foram decifrados. Aplico-lhes as minhas soluções.- Refere-se a casos como o do Bravo, de Adelaide Bartlett e todos os demais?- Exactamente. Mas, em certo sentido, foi demasiado fácil. Não restam quaisquer dúvidas no meu espírito quanto a quem assassinou Charles Bravo. A dama de companhia talvez estivesse implicada, mas não foi, com certeza, a alma danada do caso. Temos, também, o caso daquela infeliz adolescente, Constance Kent. O verdadeiro motivo que a levou a estrangular o irmãozinho, a quem sem dúvida amava, constituiu sempre um quebra-cabeças. Mas deixou de o ser para mim assim que li a história.Quanto a Lizzie Borden, só desejaria poder fazer certas perguntas essenciais a várias pessoas. Tenho mais ou menos a certeza de quais seriam as respostas. Mas, infelizmente, essas pessoas já devem ter morrido todas.Pensei para comigo, como já me sucedera tantas vezes, que a modéstia não era o forte de Hercule Poirot...- E que fiz a seguir? - Calculei que não devia ter tido muito com quem falar, nos últimos tempos, e que estava a gostar de ouvir a sua própria voz. - Da vida real passei para a ficção. Como vê, tenho à minha esquerda e à minha direita vários exemplos de ficção policial. Tenho estado a trabalhar de trás para a frente... Olhe... - pegou no livro que pusera no braço da poltrona, quando eu entrara - meu caro Colin, aqui tem 'O Caso Leavenworth'.- Deve ter recuado muito... Creio que o meu pai disse ter lido este livro, quando era rapaz, e suponho que eu próprio também o li. Deve parecer muito fora de moda, agora.- É admirável! Uma pessoa saboreia a sua atmosfera coeva, o seu melodrama estudado e deliberado, as deliciosas e exuberantes descrições da beleza dourada de Eleanor e da beleza prateada de Mary...- Tenho de o reler! Já não me lembro das passagens acerca de raparigas bonitas.- Há ainda aquela criada, Hannah, muito bem vista, e o assassino, que constitui um excelente estudo psicológico.Compreendi que me esperava um sermão e preparei-me para escutar.- Temos, também, As Aventuras de Arsène Lupin. Quanta fantasia, quanta irrealidade e, contudo, quanto vigor, quanta vitalidade, quanta vida São absurdas, mas têm panache! E humor, também.Largou As Aventuras de Arsène Lupin e pegou noutro livro.- O Mistério do Quarto Amarelo... Este, ah, este é um verdadeiro clássico! Merece a minha aprovação do princípio ao fim. Tão lógico! Lembro-me de que algumas críticas o acusaram de desleal, meu caro Colin.Não, não! Quase, talvez, mas quase, apenas. Tem a sua diferença. Há verdade em todo ele, uma verdade porventura oculta pela cuidadosa e inteligente escolha das palavras... Tudo devia estar perfeitamente claro no momento supremo em que os homens se encontram no ângulo dos três corredores. - Largou o livro, com reverência. - Uma verdadeira obra-prima... e, suponho, quase esquecido, presentemente.Poirot saltou por cima de cerca de vinte anos e começou a falar de autores mais recentes.- Também li algumas das primeiras obras de Mistress Ariadne Oliver.Ela é uma pessoa minha amiga, e suponho que sua, mas eu não aprovo inteiramente os seus trabalhos. Os acontecimentos descritos são muito improváveis, usa e abusa da coincidência... e, em virtude de ser muito jovem quando começou, cometeu a tolice de escolher um finlandês para detective. Ora é evidente que ela não sabe nada acerca dos Finlandeses nem da Finlândia, a não ser, talvez, as obras de Sibélius. No entanto, possui uma mentalidade original, por vezes apresenta deduções inteligentes, e nos últimos anos aprendeu muito acerca de coisas que anteriormente desconhecia, como, por exemplo, o modo de agir da Polícia. Agora também merece mais confiança no capítulo das armas de fogo e, essa necessidade ainda se fazia sentir mais!, provavelmente arranjou um amigo solicitador ou advogado que a esclareceu acerca de certos pormenores jurídicos.Pôs de parte Ariadne Oliver e pegou noutro livro.- Mister Cyril Quain. Ah, Mister Quain é um mestre na arte do álibi!- Se a memória não me atraiçoa, é um escritor muito enfadonho.- É verdade que não acontece nos seus livros nada muito emocionante... - admitiu Poirot. - Há um cadáver, evidentemente, e, de vez em quando, até mais do que um... Mas o principal é sempre o álibi, o horário dos comboios, o trajecto dos autocarros, o traçado das estradas.Confesso que aprecio este intrincado emprego do álibi... e gosto de tentar apanhar Mister Cyril Quain em falta.- E, provavelmente, consegue-o sempre.Poirot foi sincero:- Nem sempre. Não, nem sempre... Claro que, ao fim de certo tempo, compreendemos que um livro dele é quase igual a todos os outros... Os álibis assemelham-se, embora não sejam exactamente os mesmos. Sabe, mon cher Colin, imagino Cyril Quain sentado na sua sala, a fumar cachimbo, como aparece nas fotografias, e rodeado pelo A. B. C., pelo Bradshaw continental, por brochuras das companhias de aviação, por horários de todas as espécies... Até por pautas dos movimentos dos transatlânticos! Diga-se o que se disser, Colin, há ordem e método em Mister Cyril Quain.Largou o livro de Mr. Quain e pegou noutro.- Agora temos aqui Mister Garry Gregson, um fecundíssimo autor de romances policiais. Creio que escreveu pelo menos sessenta e quatro... É quase o oposto perfeito de Mister Quain. Nos livros de Mister Quain acontecem poucas coisas; nos de Garry Gregson acontecem demasiadas e de modo implausível e confuso. E é tudo muito colorido, melodrama bem explorado... Sangue, cadáveres, pistas, emoções, amontoa-se tudo numa grande superabundância, é tudo muito sinistro e muito diferente da realidade. Não é dos meus preferidos... Lembra um desses cocktails americanos do tipo mais obscuro, cujos ingredientes são muito suspeitos.Poirot fez uma pausa, antes de reatar a prelecção:- Voltemo-nos agora para a América. - Pegou num livro da pilha da esquerda. - Florence Elks. Aqui há ordem e método, muito colorido, mas também muito acerto, alegria e vivacidade. Esta senhora tem talento, embora, como acontece a tantos escritores americanos, pareça um pouco obcecada pela bebida.Eu sou, como sabe, um connaisseur de vinho. Agrada-me sempre encontrar numa história um clarete ou um borgonha, com a vintage e a data devidamente autenticadas. Mas a quantidade exacta de uísque e Bourbon consumida em todas as páginas pelo detective de um policial americano não me interessa nada. O facto de ele beber um litro ou meio litro não me parece afectar de modo nenhum a acção da história. Este motivo do álcool nos livros americanos assemelha-se muito ao que a cabeça do rei Carlos foi para o pobre Mister Dick, quando tentou escrever as suas memórias. É impossível afastá-lo.- E quanto à escola dos duros?Poirot afastou a escola dos duros com um gesto de mão, como se afastasse um mosquito importuno.- A violência pelo amor da violência? Desde quando é isso interessante? Vi muita violência, nos meus primeiros tempos de oficial da Polícia. Mais vale ler um livro de estudo de medicina! Tout de même, dou à ficção policial americana, no seu conjunto, uma nota muito elevada.Creio que é mais engenhosa, mais imaginativa do que a inglesa. É menos atmosférica e menos sobrecarregada de ambiente do que a maioria da ficção francesa. Veja Louisa O'Malley, por exemplo.Pegou noutro livro. - O seu estilo literário é modelar e erudito, mas quantas emoções, quanta apreensão crescente desperta nos leitores! Aquelas mansões de arenito de Nova Iorque... Enfin, eu nunca soube o que era uma mansão de arenito... Aqueles apartamentos luxuosos, aquele pretensiosismo aristocrata... e, no fundo, filões insuspeitos de crime seguem os seus caminhos imprevistos. Podia acontecer assim... e acontece assim. Louisa O'Malley é uma boa escritora, muito boa, mesmo.Suspirou, recostou-se na poltrona, abanou a cabeça e bebeu o resto da tisana.- E, depois, há sempre os antigos favoritos...Mais outro livro... - As Aventuras de Sherlock Holmesmurmurou, docemente, e acrescentou, cheio de reverência: - Maître!- Sherlock Holmes?- Ah, non, non! É o autor, Sir Arthur Conan Doyle, que saúdo, e não Sherlock Holmes. Na realidade, estas histórias de Sherlock Holmes são muito artificiais, estão cheias de sofismas e são muito forçadas. Mas a arte de escrever... ah, isso é absolutamente diferente! O prazer da linguagem, a criação, sobretudo, da magnífica personagem que é o doutor Watson... Ah, isso foi, deveras, um triunfo!Voltou a suspirar e a abanar a cabeça, e murmurou, inspirado, sem dúvida, por uma natural associação de ideias:- Há muito tempo que não tenho notícias do cher Hastings de quem me tem ouvido falar tantas vezes. Foi uma ideia tão absurda ir-se enterrar na América do Sul, onde há constantes revoluções!- Não é só na América do Sul que tal acontece. Hoje em dia, há revoluções em todo o mundo.- Não falemos da bomba - pediu Poirot. - Se tiver de ser, será; mas não discutamos o assunto.- Para ser franco, vim com a intenção de discutir algo muito diferente consigo.- Ah! Vai-se casar? Estou encantado, mon cher encantado!- Porque pensou em semelhante coisa? Não se trata disso!- Acontece... acontece todos os dias. - Talvez, mas não a mim - afirmei, com veemência. - Na realidade, vim-lhe contar que se me deparou um interessante problema, no campo do assassínio.- Deveras? Um interessante problema no campo do assassínio... e veio apresentar-mo. Porquê?- Bem... - senti-me levemente embaraçado.Pensei... pensei que gostaria.Poirot fitou-me, pensativo, e acariciou suavemente o bigode.- O dono é muitas vezes bondoso com o seu cão - murmurou, por fim. - Sai com ele, atira-lhe uma bola... Mas o cão também é capaz de ser bondoso com o seu dono. Mata um coelho ou um rato e deposita-o aos pés do dono. E que faz, nessas alturas? Agita a cauda.Não pude deixar de rir.- Estou a agitar a cauda?- Creio que está, meu amigo... sim, creio que está.- Muito bem, e que diz o dono? Quer ver o rato do cãozinho? Quer saber tudo a seu respeito?- Naturalmente. Trata-se de um crime que, na sua opinião, me interessará?- O que me preocupa é que não faz sentido.- Impossível. Tudo faz sentido. Tudo!- Então tente encontrar o disto. Eu não consigo. Aliás, nem se trata de nada relacionado comigo. Vi-me metido no assunto casualmente. Pode, até, tornar-se tudo muito simples, quando o morto for identificado.- Está a falar sem ordem nem método - observou Poirot, severamente.- Peço-lhe que me conte os factos. Disse que se tratou de um assassínio, não disse?- Sim, foi um assassínio. Ora escute...Descrevi-lhe, em pormenor, o que se passara em Wilbraham Crescent, 19. Hercule Poirot recostou-se, fechou os olhos e tamborilou docemente no braço da poltrona, enquanto eu falava. Quando acabei, deixou passar um longo momento, antes de perguntar:- Sans blague?- Oh, absolutamente!- Espantoso! - repetiu, sílaba por sílaba, como se saboreasse a palavra: - Espan-to-so! - Depois continuou a tamborilar no braço da poltrona e a acenar devagarinho com a cabeça.- Então? - acabei por perguntar, impaciente. Que tem a dizer?- Mas que quer que eu diga?- Quero que me dê a solução. O senhor deu-me sempre a entender que era perfeitamente possível recostar-se na cadeira, pensar no assunto e apresentar uma solução, que era desnecessário andar a interrogar pessoas e a procurar pistas.- Foi essa, sempre, a mínha opinião.- Bem, prove-o. Apresentei-lhe os factos e agora quero uma resposta.- Assim sem mais nem menos, hem? Mas é preciso saber muito mais coisas, mon ami. Estamos apenas no princípio dos factos, não é verdade?- Continuo a querer que diga qualquer coisa.- Compreendo. Uma coisa é certa: deve ser um crime muito simples:- Simples?! - perguntei, estupefacto.- Naturalmente.- Deve ser simples, porquê?- Porque parece muito complexo. Se tem de parecer, necessariamente, complexo, deve ser simples. Compreende?- Não juraria...- O que me disse foi curioso - murmurou Poirot. - Creio... sim, há algo que me é familiar, nessa história. Onde... quando... vi qualquer coisa?...- A sua memória deve ser um vasto arquivo de crimes. Mas não se pode lembrar de todos, pois não?- Infelizmente, não. Mas, de vez em quando, as minhas reminiscências são úteis. Lembro-me de que, em Lieja, um fabricante de sabões envenenou a mulher, a fin de casar com uma estenógrafa loura. O crime formou, digamos, um padrão. Mais tarde, muito mais tarde, esse padrão voltou a apresentar-se e eu reconheci-o. Desta vez tratava-se do rapto de um pequinês, mas o padrão era o mesmo. Procurei o equivalente do fabricante de sabões e da estenógrafa loura... e voilà! Agora voltei a encontrar no que me contou a mesma sensação de reconhecimento.- Relógios? - sugeri, esperançado. - Falsos agentes de seguros?- Não, não...- Cegas?- Não, não, não. Não me confunda.- Decepcionou-me, Poirot. Pensei que me daria logo a resposta...- Mas, meu amigo, por enquanto ainda me apresentou, apenas, um padrão. Há muito mais coisas a averiguar. Possivelmente o homem será identificado, pois a Polícia é excelente, nessas coisas. Tem os seus cadastros criminais, pode publicar a fotografia do indivíduo, tem acesso à lista das pessoas desaparecidas, pode mandar examinar cientificamente o vestuário do morto, etc., etc. Tem muitos outros métodos ao seu dispor. O homem será, sem dúvida, identificado.- Portanto, de momento, não há nada a fazer. É isso que pensa?- Há sempre qualquer coisa a fazer - afirmou Poirot, severamente.- Como, por exemplo?- Fale com os vizinhos - ordenou-me, de dedo enfaticamente esticado.- Já falei. Acompanhei Hardcastle, quando ele os interrogou. Não sabem nada útil.- Ora, ora! Isso é o que você pensa, mas eu garanto-lhe que não pode ser assim. Pergunta-lhes se viram algo suspeito, eles respondem que não e você pensa que está tudo dito. Não é a isso que me refiro quando digo que fale com os vizinhos. Fale com eles e deixe-os falar consigo. Nas suas conversas encontrará sempre uma pista, seja onde for. Podem falar dos seus jardins, ou das suas mascotes, um dos seus cabeleireiros, ou dos seus alfaiates, ou dos seus amigos, ou das comidas que apreciam... Mas há sempre uma palavra que derrama luz. Disse-me que nessas conversas não houve nada de útil, mas eu garanto-lhe que não é possível. Se as pudesse repetir por palavra.- Praticamente, posso, pois estenografei o que se disse, de acordo com o meu papel de "sargento"... Mandei dactilografar tudo e trouxe-lhe uma cópia. Aqui está.- Ah, mas é um bom rapaz, um excelente rapaz! Procedeu muitíssimo bem, muitíssimo bem! "e vous remercie infiniment."Senti-me deveras embaraçado.- Tem mais algumas sugestões a fazer?- Tenho sempre sugestões. Há a tal rapariga. Pode falar com ela. Visite-a. Já são amigos, não são? Não a apertou nos braços quando ela fugiu, aterrorizada, da casa onde se deu o crime?- A leitura de Garry Gregson afectou-o - resmunguei. - Adoptou o estilo melodramático.- Talvez tenha razão... Costumamos deixar-nos contagiar pelo estilo da obra que estamos a ler.- Quanto à rapariga...Poirot olhou-me interrogadoramente, quando me calei e pediu:- Continue.- Não gostaria... não quero...- Ah, é isso! No fundo, crê que ela está de qualquer modo implicada no caso.- Não creio nada! O facto de ela estar presente deveu-se a absoluta e pura coincidência.- Não, mon ami, não foi pura coincidência! Sabe muito bem que não foi, e até mo disse. Pediram-lhe pelo telefone que comparecesse, mencionaram especificamente o seu nome.- Mas ela não sabe porquê...- Não pode ter a certeza de que ela não sabe porquê. É muito provável que saiba e oculte o facto.- Não creio - redargui, obstinado.- É, até, possível que você descubra porquê, ao conversar com ela, mesmo que a pequena não tenha consciência da verdade.- Não vejo muito bem como... quero dizer, mal a conheço...Poirot fechou de novo os olhos.- Há um momento, no decorrer da atracção entre duas pessoas de sexos opostos, em que essa afirmação é verdadeira. Suponho que se trata de uma jovem atraente?- Bem... sim. Muito atraente.- Falará com ela, visto já serem amigos, e arranjará um pretexto qualquer para voltar a visitar a cega e conversar com ela - ordenou-lhe Poirot. - Vá, também, a esse tal gabinete de dactilografia, talvez com a desculpa de querer um manuscrito dactilografado, e trave amizade com uma das outras jovens empregadas. Depois de conversar com toda essa gente, visite-me de novo e conteme tudo quanto lhe disseram.- Tenha dó!- Não é caso para ter dó, pois você vai gostar.- Parece esquecer que tenho o meu próprio trabalho...- Trabalhará melhor se se distrair um pouco.Levantei-me, a rir.- Bem, o senhor é o médico! Tem mais alguns conselhos sensatos para me dar? Por exemplo, que pensa da estranha história dos relógios?Poirot recostou-se na cadeira, fechou os olhos e as palavras que pronunciou foram absolutamente inesperadas:
Abriu os olhos e acenou com a cabeça.- Compreende? - perguntou-me. - Citação de "A Morsa e o Carpinteiro", Alice do Outro Lado do Espelho.
- Exactamente. Neste momento, é o melhor que posso fazer por si,
mon cher. Medite no assunto.
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