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João Pinto Coelho
-excerto-

imagem: The Blind Tobit, Rembrandt, 1651
PARIS, 2001
A montra negra da Livraria Thibault era a moldura mais respeitada da Rue de Nevers, um beco desconsolado que se escondia entre as costas de dois quarteirões do Quartier de la Monnaie e que, séculos antes, servira de escoadouro às imundices das irmãs da Penitência de Jesus Cristo. A loja
situava-se sob o arco que abria para o Quai de Conti e, para entrar, era necessário bater na vitrina. Isto se ele desse pelo sinal, o que não era garantido. Naquele domingo, o livreiro
cego dirigiu-se ao recesso mais escuro da livraria e sentou-se à escrivaninha. O tampo estava vago, apenas papéis dispersos, uma telefonia a pilhas e um rosto num
passe-partout, o rosto de Fidelia.
Estavam juntos havia quatro anos e ele lembrava-se da apoteose dos primeiros tempos: descontando as raras e breves ocasiões em que a rapariga visitava a mãe, nunca acordara sozinho. Como qualquer velho, invejava a imaturidade
e embriagava-se com a juventude da amante. E depois Fidelia lia-lhe a todas as horas do dia. Imprevisíveis, as palavras da jovem surgiam-lhe de lugares distintos, adocicadas pelo sotaque platense, dando voz à multidão de livros que o rodeavam desde sempre como um coro de mudos. Na verdade,
sempre escolhera as mulheres pelos olhos que não tinha.
Só deixava que o aceitassem como amante se lhe prometessem maratonas de leitura. Nunca se despedira de nenhuma com um livro a meio e só por uma vez deixara que o convencessem na hora de escolher o que ler. Fora Azurine, uma argelina de
meia-idade, cuja paixão obcecada por Zola lhe adiara Lolita pela semana que levara a terminar
Germinal - um ultraje! Houvera ainda Apolline, Doriane e Madalena. Apolline, a primeira, que se punha a arder quando o romance aquecia e o fizera devolver os Henry Miller que tinha na livraria; Doriane, a atriz, que invadia a imaginação do livreiro, arquejando como Desdémona às mãos de Otelo ou rindo-se da morte como a Bovary - outro ultraje, «os grandes livros dispensam essas
coisas», dissera-lhe ele tantas vezes; e Madalena, filha de um português e de... Apolline, que, trinta anos depois, aquecia
o lugar que fora da mãe, embora com mais equilíbrio entre as páginas e os lençóis. É claro que a vida dele não fora só romances, também a abrira a contos lidos numa noite, literatura de cordel que esquecia sem desgosto. Nunca cuidara das razões daquelas mulheres, porque o procuravam, porque se deixavam ficar. Talvez preferissem não ser vistas ao acordar,
talvez adorassem ouvir-se com a voz dos livros. [...]
Nordeste da polónia, 1934
Naquele dia Yankel desistira de conhecer o verde. Nem ele sabia explicar como tinha acontecido. Adormecera com
aquele desejo, mas acordara conformado. A única coisa que o atormentou foi ter de o contar a Eryk, o amigo cristão; de resto, o efeito era glorioso. Eryk amava-o
e demonstrava-o
com todos os gestos da sua imaginação prodigiosa, alguns tão frustrantes como o anseio de traduzir cores.
O vermelho é sempre quente, diz, e esbofeteia-me para provar que a
dor é uma mancha encarnada. Tenho de saber que o verde das reinetas de setembro azeda debaixo da língua e cheira como as florestas que cercam o
shtetl *
, a terra é castanha, mas torna-se escura quando chove,
e os paus ardidos no inverno são da cor dos fatos dos homens e do cabelo da minha mãe. São pretos, insiste, como o negrume que vejo em todas
as horas do dia. Mas eu não vejo, Eryk, nem sequer o negrume. Como te explico que a escuridão não é igual ao nada?
Yankel saiu então à rua já na sua condição de completamente cego. O cheiro do shtetl no inverno era o retrato do mundo inteiro, mesmo que o mundo de Yankel não incluísse
mais do que poucas centenas de casas, muitas delas de madeira e cobertas de palha. E essa era a maldição do lugar, quantas vezes soçobrado à predação das chamas, outras tantas levantado dos
escombros calcinados. O último incêndio arrasara dois terços do povoado, a sinagoga velha e os rolos da Torá. Os que ficaram choraram os mortos e os séculos desditosos, gerações inteiras ceifadas pelo fogo. Cinzas de homem
e pergaminho espraiaram-se pelo vento sobre as terras e os lameiros. Novas árvores nasceriam ali, germinadas num barro sagrado feito com o povo e a palavra de Deus. Talvez por isso Yankel fugisse para a floresta, talvez por isso sussurrasse ao pó
dos caminhos ou tateasse os vasos de terracota como quem afaga o rosto de uma mãe. Coisas de cego, disseram então, e ninguém percebeu que o rapaz descobrira a humanidade
onde os outros nada viam.
FIM
nota: "shtetl" é um termo em iídiche que designa as pequenas cidades existentes no Leste da Europa, cuja população era constituída, em larga percentagem, por judeus.
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excerto de
Os Loucos da Rua Mazur
autor: João Pinto Coelho
Edição Maria do Rosário Pedreira
1.ª edição, Novembro de 2017
Prémio Leya 2017
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