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J. Pecegueiro

O Cego e a Rapariga - Karl Hofer, c. 1943
«Quando se olha para uma laranja
— dizia um professor de Psicologia dos meus tempos de estudante
— percepciona-se, através desta visão, a forma, a cor, a
rugosidade, o cheiro, o sabor, até um certo peso, frescura,
etc.; tudo dado como um todo imediato e único».
Tenho de confessar que, embora isto então me parecesse
espantoso, o Mestre tinha razão. De facto, não só pode
cheirar-se ou saborear-se com a vista como pode ver-se com o
olfacto, o ouvido e principalmente com o tacto.
Os cegos — no que ao tacto se refere — sabem muito bem que assim
é e, por isso, nada mais incorrecto do que classificá-los de
invisuais.
Em primeiro lugar, o termo é ininteligível do ponto de vista
linguístico. Invisual é palavra composta de visual e do prefixo
in, que implica negação, e não pode significar outra coisa
diferente de «não relativo à vista», o que é sem sentido quando
aplicado a pessoas.
Se fosse lícito substantivar visual e fazê-lo sinónimo de
«pessoa que vê» (o que fundamenta o emprego de invisual como
sinónimo de «cego»), deveria também ser lícito substantivar
auditivo, fonador, táctil, etc., e fazê-los sinónimos de pessoa
que ouve, que fala, que apalpa, — o que fundamentaria por sua
vez o emprego de inauditivo, infonador, intáctil, etc., para
designar o surdo, o mudo, o que não tem ou não usa o tacto,
etc..
Os indivíduos que vêem mas que raramente utilizam os dedos para
conhecer seja o que for, ou os mutilados das mãos, seriam assim
logicamente chamados intácteis; os cegos,
ao contrário, poderiam apelidar-se de tácteis; os que fossem ao
mesmo tempo cegos, surdos e mudos designar-se-iam
invisuais-inauditivos-infonadores!
Às pessoas que empregam os termos invisual e visual, como
sinónimos de «cego» e «não cego», fazemos a justiça de acreditar
que não reflectiram sobre estes disparates e se deixam
simplesmente levar pelo inédito sem curarem do que nele há de
inconsequente.
Em segundo lugar, os cegos são, na sua grande maioria,
indivíduos de imaginação tipicamente visual.
O que se entende vulgarmente por sensação, isto é, conhecimento
da existência de objectos através dos órgãos dos sentidos, é
fenómeno psíquico muito mais complexo. Verdadeiramente, não
existem sensações puras:
Se entrarmos numa sala mobilada e aí permanecermos escassos
minutos, obteremos uma percepção de conjunto em que figuram
informações provenientes dos diversos órgãos dos sentidos —
vista, ouvido, tacto, olfacto, etc. Se no dia seguinte voltarmos
à mesma sala, a nossa percepção enriquecer-se-á não só com as
novas informações ou sentires obtidos mas com combinações que o
intelecto fizer entre esses sentires e as imagens ou resíduos da
percepção do dia anterior. E não só entre os novos sentires mas
entre estes e as ideias e juízos que àcêrca do objecto — sala —
o nosso espírito formulou.
Por isso se diz que toda percepção é uma análise entre duas
sínteses.
A percepção visual, por exemplo, é conjunto de sensações
provenientes não só da vista mas também do ouvido, do tacto, do
olfacto, etc.. E tudo isto estruturado num todo onde entram
ideias e juízos.
A percepção apresenta-se como totalidade em permanente
construção e enriquecimento. Os indivíduos poderiam
classificar-se, quanto ao desenvolvimento da inteligência,
consoante a maior ou menor riqueza das suas percepções.
No que se refere aos cegos, a única coisa que pode dizer-se é
que se trata de indivíduos impossibilitados, ou desde o
nascimento ou a partir de certa idade, de obterem informações do
chamado mundo exterior através dos órgãos sensoriais da vista.
Nem por isso pode afirmar-se que não tenham percepções de tipo
predominantemente visual.
Pelo que respeita aos que cegaram a partir de certa idade, o
simples facto de conservarem imagens visuais da experiência
passada mostra claramente que a toda percepção presente podem
agregar um mundo mais ou menos rico de imagens visuais — e
tenderão, quase diríamos ansiosamente, a fazê-lo.
«O espaço visual é uma combinação de extensão visual e de
extensão táctil, talvez com predomínio da primeira, mais cómoda
que a outra», escreve Cuvillier no seu «Manual de Filosofia». E
acrescenta, citando Pierre Villey; que «o cego dispõe duma
verdadeira visão táctil».
Independentemente destes dados experimentais, a própria génese e
diferenciação fisiológica dos órgãos dos sentidos mostra relação
tal entre o tacto e a vista, que permitiu considerar esta última
como aperfeiçoamento daquele, como verdadeiro «tacto a
distância».
Tudo isto está em oposição com a opinião vulgar de que só as
pessoas que vêem podem ter percepções de tipo predominantemente
visual. Para que assim fosse, tornar-se-ia necessário admitir a
existência de sensações puras, o que é contraditado pelo mais
elementar dos conhecimentos de psicologia. De facto, não existem
sensações puras, porque sensação é conceito-limite e a
experiência psíquica, ao nível sensorial, apresenta-se sempre
sob forma de percepção.
Tiremos agora as conclusões que para o nosso caso interessam: O
cego pode também ser visual. Se não o é de nascença, torna-se
óbvio que a toda a percepção dum objecto presente poderá agregar
o mundo de imagens de natureza visual que constitua a sua
experiência passada. Além disso, se a sua mentalidade for a de
um imaginativo do tipo de esquematização visual, ele organizará
necessariamente a experiência segundo as «formas a priori da sua
sensibilidade» — como diria Kant. Mesmo que o quisesse, talvez
não conseguisse libertar-se desse tipo de esquematização, ainda
que, em virtude da cegueira adquirida, a experiência
sensorial não volte a fornecer-lhe imagens visuais. Estas
formar-se-ão, no entanto, por sinestesia.
Quanto ao cego de nascimento, cuja cegueira for completa, é
errado outrossim julgar que não possa conceber imagens do tipo
visual. Sabido que toda a percepção visual se reduz em última
análise a uma forma localizada espaço-temporalmente — se dessa
forma se abstrair a cor, que é a sensação que só a vista fornece
— a mesma forma pode obter-se com toda a exactidão possível
através do tacto. E admissível defender a tese de que, pela
invenção criadora, o intelecto supra com um produto da sua
autoria aquilo que o sentido lesionado não lhe pode fornecer.
Não, decididamente, não. É absurdo lógico, gramatical e
psicológico, considerar o cego um invisual. Ao contrário,
existem muitos cegos que são visuais e muitas pessoas que vêem
que o não são. Como dizia Heraclito, «há uma harmonia invisível
mais bela que a harmonia visível».
FIM
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Poliedro (N.º 27 - Maio 1959)
Edição Braille em 1960, vol. III da referida revista
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